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3231 A DATAÇÃO DAS GARRAFAS COM O BRASÃO DE CASTELA E LEÃO Maria Fernanda Lochschmidt Simpósio 7 Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões A DATAÇÃO DAS GARRAFAS COM O BRASÃO DE CASTELA E LEÃO Maria Fernanda Lochschmidt RESUMO As garrafas com o brasão de Castela e Leão constituem uma das primeiras grandes encomendas realizadas pelos europeus em porcelana brasonada azul e branco da China. Na ausência de documentação referente, ainda não se sabe quem as encomendou, nem para que mercado eram destinadas. Tampouco se chegou a um consenso sobre sua datação pelo fato de existirem dois tipos de garrafas portadoras do brasão: uma com decoração típica da era Wanli (1573-1620), com rochedos, flores e insetos, e outra com decoração típica do Período de Transição (1621-1683), com letrado em paisagem montanhosa. Nas referências bibliográficas, o período de produção oscila entre 1573 e 1644. O objetivo desta pesquisa é chegar por meio de análise estilístico das peças à sua correta datação. PALAVRAS-CHAVE porcelana chinesa azul e branco de exportação; porcelana brasonada; Castela e Leão; porcelana do período de transição; tulipas. ABSTRACT The bottles bearing the Castile and León coat of arms are one of the first great orders made by Europeans in Chinese armorial blue and white porcelain. Due to lack of documentation, it still remains unknown who commissioned them and for which market, they were intended. The fact that two types of armorial bottles exist, has made it difficult to come to a consensus about their date of production. One type shows typical Wanli (1573-1620) decoration, with rocks, flowers and insects, and the other typical Transitional Period decoration (1621-1683), with a scholar in a rocky landscape. In the literary sources their date of production oscillates between 1573 to 1644. The aim of the present research is to attain their correct date through a stylistic analysis of the pieces. KEY-WORDS chinese blue and white export porcelain; armorial porcelain; Castile and León: transitional period porcelain; tulips.

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3231 A DATAÇÃO DAS GARRAFAS COM O BRASÃO DE CASTELA E LEÃO

Maria Fernanda Lochschmidt Simpósio 7 – Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões

A DATAÇÃO DAS GARRAFAS COM O BRASÃO DE CASTELA E LEÃO Maria Fernanda Lochschmidt RESUMO

As garrafas com o brasão de Castela e Leão constituem uma das primeiras grandes encomendas realizadas pelos europeus em porcelana brasonada azul e branco da China. Na ausência de documentação referente, ainda não se sabe quem as encomendou, nem para que mercado eram destinadas. Tampouco se chegou a um consenso sobre sua datação pelo fato de existirem dois tipos de garrafas portadoras do brasão: uma com decoração típica da era Wanli (1573-1620), com rochedos, flores e insetos, e outra com decoração típica do Período de Transição (1621-1683), com letrado em paisagem montanhosa. Nas referências bibliográficas, o período de produção oscila entre 1573 e 1644. O objetivo desta pesquisa é chegar por meio de análise estilístico das peças à sua correta datação. PALAVRAS-CHAVE porcelana chinesa azul e branco de exportação; porcelana brasonada; Castela e Leão; porcelana do período de transição; tulipas. ABSTRACT

The bottles bearing the Castile and León coat of arms are one of the first great orders made by Europeans in Chinese armorial blue and white porcelain. Due to lack of documentation, it still remains unknown who commissioned them and for which market, they were intended. The fact that two types of armorial bottles exist, has made it difficult to come to a consensus about their date of production. One type shows typical Wanli (1573-1620) decoration, with rocks, flowers and insects, and the other typical Transitional Period decoration (1621-1683), with a scholar in a rocky landscape. In the literary sources their date of production oscillates between 1573 to 1644. The aim of the present research is to attain their correct date through a stylistic analysis of the pieces. KEY-WORDS

chinese blue and white export porcelain; armorial porcelain; Castile and León: transitional period porcelain; tulips.

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3232 A DATAÇÃO DAS GARRAFAS COM O BRASÃO DE CASTELA E LEÃO Maria Fernanda Lochschmidt Simpósio 7 – Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões

Introdução

O objetivo desta pesquisa é chegar, por meio de análise estilística, à correta datação

das garrafas feitas em porcelana chinesa, que portam o brasão de Castela e Leão

em uma de suas faces.

O fato de existirem dois tipos de garrafas, uma delas com decoração caraterística da

era Wanli (r. 1573–1619) e outra com decoração típica do Período de Transição

(1620–1683) no lado oposto do brasão, têm induzido os especialistas à mpla

datação que vai de 1573 a 1644.

Alguns estudiosos aceitam a possibilidade de que os dois tipos de garrafas tenham

sido produzidas em duas épocas diferentes.

Garrafa, 24,1 x 15,1 cm [esquerda] Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa

Fotografia: Dra. Maria Teodora Marques Garrafa, 30,9 x 15,5 cm [direita]

Fundação Oriente, Lisboa Foto: Dra. Maria Manuela d'Oliveira Marques

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3233 A DATAÇÃO DAS GARRAFAS COM O BRASÃO DE CASTELA E LEÃO Maria Fernanda Lochschmidt Simpósio 7 – Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões

O expressivo número de garrafas existantes prova que se trata de uma das

primeiras encomendas realizadas em grande escala pelos europeus em porcelana

da China ostentando heráldica. Exemplares inteiros ou quebrados e restaurados

com partes em metal fazem parte do acervo dos mais importantes museus e

coleções privadas do globo que albergam porcelana chinesa de exportação. Alguns

deles são:, Museu do Oriente em Lisboa; Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves;

duas coleções particulares portuguesas; Coleção Dr. João Gonçalves do Amaral

Cabral;; Fundação Carmona e Costa; British Museum; Victoria and Albert Museum;

Dublin Municipal Art Gallery; Museum für Kunsthandwerk em Frankfurt; Peabody

Essex Museum de Salem; Museu Nacional de Tóquio, Idemitsu Museum of Arts de

Tóquio (exemplar vendido); Matsui Collection; Metropolitan Museum;; Coleção

Mottahedeh (exemplar vendido); Gemeentemuseum, Den Haag e no Brasil, na

coleção particular R.A. em São Paulo.

Apesar de su importância histórica e artística, até hoje não se sabe ao certo quem

comissionou as garrafas nem para que mercado elas foram destinadas.

Descrição das garrafas com o brasão de Castela e Leão

Garrafa, 19,8 x 14,6 cm Museum für Kunsthandwerk Frankfurt am Main, Alemanha

Fotografia: Dr. Stephan Graf von der Schulenburg

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Garrafa, 30,9 x 15,5 cm Fundação Oriente, Lisbo

Fotografia: Dra. Maria Manuela d'Oliveira Marques

As garrafas, quando inteiras, medem ca. 30 cm de altura por ca. 15 cm de largura e

foram feitas em porcelana branca e espessa, e pintadas em vários tons de azul de

cobalto sob vidrado de tom levemente azulado, que reveste todo o corpo com

exceção da base

Praticamente todas as peças apresentam falhas no vidrado, visíveis nos cantos e

bordes como se estivessem a descascar. Estas são falhas são denominadas

mushikui na literatura especializada, que em japonês significa “comido por traças”.1

Muitas das porcelanas chinesas da era Tianqi (1621–1627) foram exportadas para o

Japão. Seu aspecto tosco não destoou com a estética do wabi-sabi, fazendo com

que o nome mushikui que define as falhas no vidrado trascendesse fronteiras e

fosse adotado pela literatura internacional especializada2.

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3235 A DATAÇÃO DAS GARRAFAS COM O BRASÃO DE CASTELA E LEÃO Maria Fernanda Lochschmidt Simpósio 7 – Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões

Manchas ferruginosas visíveis na superfície das peças indicam que a pasta da

porcelana não foi corretamente levigada.

A forma das garrafas não é própria da China e provavelmente foi inspirada em um

protótipo de vidro ou metal, oriundo da região ocidental da Ásia. Ela consiste em um bojo

circular e achatado, feito por meio de moldes, onde foram ajuntadas paredes laterais que

o circundam, mais o colo cilíndrico truncado que foi formado com a utilização do torno do

oleiro e finalmente o pé, de forma trapezoidal, aplicado na parte inferior.

A decoração em uma das faces apresenta as insígnias heráldicas dos reis de

Castela e Leão, “dispostas num escudo circular contendo uma cruz de extremidades

flordelizadas, que assim o esquartela, tendo no primeiro e quarto quartéis uma torre

de três ameias (em vez do castelo) e no segundo e terceiro o que se pretendeu que

correspondesse a um leão (figurando andante, e não rampante, como competiria em

armas de Leão) coroado, com a coroa separada da cabeça do leão, sendo o escudo

rodeado por bordadura circular ponteada”.3

Garrafa, 24,1 x 15,1 cm Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa

Fotografia: Dra. Maria Teodora Marques

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Ao redor do brasão foram pintados enrolamentos florais barrocos.

Quatro flores destoantes da decoração chinesa, cujos hastes rígidos parecem ser

prolongamentos da cruz do brasão despontam em flor. As flores são tulipas. Elas

fazem parte da decoração das porcelanas chinesas azul e branco de exportação

durante todo o Período de Transição (1620–1682) e aparecem desenhadas de

maneiras variadas, nem sempre fáceis de se identificar.4

A flor da tulipa provém da Ásia central, foi transportada para a Pérsia e logo para o

Império Otomano, onde começaram a ser cultivadas. A meados do século XVI são

levadas para Viena, maravilhando a corte dos Habsburgo. Mais tarde Charles

d'Écluse (1525–1609), ou Carolus Clusius, médico e botânico flamengo transfere

bulbos para a Holanda. Nos Países Baixos as tulipas viram furor, chegando-se a

pagar fortunas por elas.5

No borde do bojo e do colo das garrafas foram desenhados pequenos círculos que

imitam a pregação de peças metálicas da época.

As paredes laterais foram decoradas com enrolamentos contínuos de três flores de

lótus e suas folhas e o colo com rochedo e flores sobrevoadas por borboleta. No

extremo superior, entre duas linhas duplas, foram pintadas cabeças de ruyi.

Segundo Stephan Little, a pintura do motivo decorativo de cabeças de ruyi no colo

de peças como garrafas, potes e vasos é uma caraterística de fins da era Wanli

(1573–1620) que persiste no começo da era Tianqi (r. 1621–1627).6

Sobre as quatro faces do pé trapezoidal foram pintadas pequenas flores com folhas.

Na face oposta ao brasão, uma das versões da garrafa ostenta rochedos

ornamentais estilizados, ramos, flores, folhas, bagas e insetos voando.. Este tipo de

decoração, assim como a do colo e das paredes laterais, são típicas da era Wanli

(1573–1620) e perduram até meados da era Tianqi (1621–1627).7 Motivos idênticos

de rochedos ornamentais, ramos e flores com insetos são recorrentes nas centenas

de peças resgatadas do navio afundado aproximadamente em 1625, conhecido

como “The Wanli Shipwreck, tido internacionalmente como referência no estudo das

porcelanas da época”.8

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Durante a era Wanli foram produzidas milhares de peças para a exportação,

sacrificando assim a qualidade em detrimento da quantidade.9

Na outra versão da garrafa com o brasão de Castela e Leão, a decoração mostra

paisagem com letrado – sentado ou em pé – e seu criado, situados entre rochedos

abruptos, traçados deixando grandes espaços em branco, bambús, uma cerca, e um

círculo ao alto que poderia ser o sol ou a lua. Este tipo de representação de

paisagem tão arrojada e particular surge na decoração das porcelanas a partir de

1620, permanecendo até a era Chongzhen (1628–1644).

Ela não é mais do que um reflexo das grandes mudanças que a pintura chinesa

passava durante o século XVII. Mestres como Dong Qichang (1555–1636), Sheng

Maoye (ativo ca. 1594–1610), Wu Bin (ativo ca. 1573–1620) e Gao Yang (ativo ca.

1609-1636) trouxeram grandes inovações revelando uma visão abstrata do mundo

natural. Esta visão, povoada de idealizações daquilo que se encontrava ao redor,

expressava o difícil período que a sociedade chinesa atravessava durante a

transição da dinastia Ming (1368-1644) para a Qing (1644–1911).10

Motivos representados soltos no vazio, como se estivessem flutuando no espaço,

são uma das caraterísticas típicas das porcelanas azul e branco exportadas nessa

época para o Japão, as Ko-sometsuke, que quer dizer “velho azul e branco”. Elas

eram destinadas à cerimônia do chá, e gozaram grande popularidade durante o

periodo Momoyama (1568–1615), impulsionando o comércio de porcelanas com o

continente.

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Descrição da versão da garrafa sem o brasão de Castela e Leão

Garrafa, 25,7 cm Christie's, London Bridgeman Images

Este terceiro tipo de garrafa, leiloada na Christie's de South Kensington, em 14 de

novembro de 2003, no leilão “Chinese Ceramics and Works of Arts”, possui forma e

caraterísticas do corpo da porcelana idênticas à das garrafas com o brasão Castela

e Leão. A diferença reside na decoração das duas faces do bojo, que foram pintadas

com enrolamentos de flores de lótus em distintos tons de azul. Os enrolamentos se

prolongam em ramificações secundárias e terciárias.

Segundo Stephan Little, o motivo de enrolamentos com flores, folhas e hastes, com

ramificações secundárias e terciárias, desenhados de modo esboçado e livre é

caraterístico e importante para a datação de porcelanas de começos do Periodo de

Transição.11

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Nesta versão da garrafa, a faixa que bordeia o bojo imita a costura das garrafas de

peregrino feitas em couro.

A datação das garrafas

Ambas as versões que portam o brasão de Castela e Leão – um deles decorado

com rochedos ornamentais estilizados, ramos, flores, folhas, bagas e insetos voando

e o outro com letrado e criado em paisagem na face oposta do brasão – e o terceiro

tipo sem insignia heráldica, leiloado na Christie's em 14 de novembro de 2003,

datam de 1620 a 163312, época que na literatura especializada em inglês se

denomina “Early Transitional Period”, isto é, começos do Período de Transição. Este

periodo abarca os reinados de Taichang (r. 1620), Tianqi (r. 1621–1627) e começos

do reinado Chongzhen (r. 1628–1644).

O reinado do imperador Taichang (r. 1620) é normalmente omitido como fonte de

informação no estudos das porcelanas pelo fato do soberano ter reinado durante

apenas um mês.

Definição do Período de Transição no estudo da porcelana chinesa

Foi o historiador de arte inglês Soame Jenyns (1904–1976) quem em 1955 cunhou

como “Transitional” as porcelanas chinesas produzidas entre 1620 e 1683, isto é,

após a morte do imperador Wanli (r. 1573–1619) e antes da indicação de Zang

Yingxuan como superintendente dos fornos de Jingdezhen.13 Este lapso cobre os

reinos dos três últimos imperadores da dinastia Ming, Taichang (r. 1620), Tianqi (r.

1621–1627) e Chongzhen (r. 1628–1644) e começos da dinastia manchu Qing, com

os reinados de Shunzhi (r. 1644–1661) e as duas primeiras décadas do imperador

Kangxi (1662–1682).

Neste período, que presencia o dramático ocaso da dinastia Ming (1368–1644) e o

assentamento da dinastia manchu Qing (1644–1911), ocorrem guerras e distúrbios

sociais em todo o território chinês e os recursos financeiros são destinados à

manutenção do poder. Assim, o controle e subsídio imperial sobre os fornos de

Jingdezhen reduzem drasticamente a produção de porcelana.

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O termo “Transitional” foi novamente usado por Richard S. Kilburn em 1981, na

primeira exposição feita sobre porcelanas do século XVII na cidade de Hong Kong.

Com o passar do tempo, e a medida que o estudo das porcelanas produzidas entre

1620 e 1683 se foi aprofundando e que foram surgindo caraterísticas estilísticas

próprias de cada época dentro deste período, foi necessário dividir o Período de

Transição.

Foi Sir Michael Buttler quem, em 1986, no Princesshof Museum de Leeuwarden, fez

pela primeira vez a divisão do Período de Transição entre “Early Transitional Period”

(1620–1633), “High Transitional Period” (1634–1643) e “Later Transitional Period”

(1644–1682).

Uma das principais razões para datar o começo do “High Transitional Period”,

caraterizado pelas porcelanas de alta qualidade, foi o achado a começos dos anos

1980 de um navio afundado em 1643, pelo Capitão Michael Hatcher, conhecido

como “Hatcher Cargo”. O navio, que transportava porcelanas de extraordinária

qualidade, possivelmente dirigia-se da China para a ilha de Java onde os

holandeses possuiam um entreposto. As porcelanas seriam destinadas para o

mercado holandês ou para chineses de ultramar que habitavam no sudeste

asiático.14

Peças da época apresentam a pasta branca e finamente levigada, vidrado e corpo

completamente vitrificados, e um tom de azul violáceo caraterístico, conhecido como

“violet in milk”, ou violeta sobre leite, termo usado por Friedrich Perzynski em 1910.15

Segundo o professor Wang Qinzheng, a partir dessa época os fornos conseguem

extraordinárias melhorias na qualidade da matéria prima. O melhor cobalto provinha

da província de Zhejiang, e era tratado com um “fire process” ou processo térmico,

além de passar pelo tradicional e cuidadoso processo de lavado e peneiramento.16

Também a pintura das porcelanas passa por mudanças a partir de ca. 1634. Nota-se

que a pincelada é mais fluente e realizada de maneira especialmente cuidadosa,

caraterística que as distingue da decoração ortodoxa do período Wanli (r. 1573–

1619).

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Os fornos, reorganizados sob mãos privadas, adquirem então a capacidade de

produzir as peças excelentes caraterísticas do “High Transitional Period” que diferem

completamente das de qualidade mais tosca do “Early Transitional Period”.

Acerca da produção de porcelanas durante o Período de Transição (1620–1683)

A drástica diminuição do aporte financeiro imperial obrigou os ceramistas a

buscaram subsídios nos mercados interno e externo. Estes compradores já existiam

anteriormente, mas a mercadoria a eles destinada raramente escapava da ortodoxia

imperial na determinação de forma e decoração. Durante o Período de Transição a

ausência de inspetores da corte deu mais liberdade artística e operacional aos

produtores.

No exterior, além do tradicional mercado do sudeste asiático, foram principalmente

os japoneses e os holandeses que se beneficiaram desta nova situação.

O mercado japonês, que demandava preferentemente peças pequenas para a

cerimômina do chá, trouxeram inovações nas formas e designs, exercendo

influência estilística durante o reinado do imperador Tianqi (r. 1621–1627) e

começos do reinado Chongzhen (r. 1628–1644).

Já os holandeses, que começam a realizar regularmente suas encomendas em

porcelana chinesa a princípios do século XVII, tiveram como principal requerimento

a qualidade do produto. As grandes mudanças ocorrem a partir de 1635, quando a

V.O.C. – Vereenigde Oostindische Compagnie, ou Companhia Holandesa das Índias

Orientais, a partir de seu estabelecimento na Ilha de Formosa, no Forte Zeelandia,

introduzem formas europeias com o envio de moldes em madeira para serem

copiados em porcelana em Jingdezhen.

Também no caso das porcelanas feitas para o mercado interno revela-se durante o

Periodo de Transição uma ruptura na forma e decoração, principalmente se as

compararmos ao estilo relativamente ortodoxo do periodo Wanli (r. 1573–1619).

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Conclusão

Os três tipos de garrafas são contemporâneas e datáveis do “Early Transitional

Period” (1620–1633) pela caraterísticas estilísticas demostradas acima: 1 – a

decoração típica do período Wanli (1573–1620) que aparece em uma das faces da

garrafa com o brasão e Castela e Leão, assim como a decoração do colo e da

parede lateral dos três tipos de garrafa persiste até meados da era Tianqi (1621–

1627); 2 – o tipo de paisagem arrojada, com rochedos abruptos e grandes espaços

livres entre os elementos composicionais surge na decoração das porcelanas a

partir de 1620; 3 – os enrolamentos florais do terceiro tipo de garrafa são elementos

datáveis do começo do Período de Transição.

Notas

1 Masahiko, Kawahara, Chinesische Porzellane des 17 Jahrhunderts für Japan, Sammlung Georg Weishaupt,

Museum für Ostasiatische Kunst, Berlin, 1997, p. 21.

2 Harrison Hall, Jessica, Ming Ceramics in te British Museum. Londres, 2001, p. 352-353.

3 Abreu, Jorge Brito e Branco, João Alarcão de Carvalho, “Garafa de Peregrino – Leitura heráldica” em:

catálogo da exposição Porcelanas da China. Colecção de Ricardo Espírito Santo Silva, Fundação Ricardo do Espírito Santo, Lisboa, 2000, p. 90.

4 Krahl, Regina, Plant Motifs of Chinese Porcelain, Orientations, Volume 18, n° 5, Hong Kong, Maio 1987, p.

52

5 Juffinger, Roswitta, Tulpen, Schönheit und Wahn, Residenzgalerie, Salzburg, 2002, p. 5.

6 Little, Stephen, Chinese Ceramics of the Transitional Period 1620-1683, Published by China House Gallery,

New York, 1984, p. 4.

7 Little, Stephen, Chinese Ceramics of the Transitional Period 1620-1683, Published by China House Gallery,

New York, 1984, p. 4.

8 Brown, Roxana M., The Wanli Shipwreck and its Ceramic Cargo, Department of Museums, Malaysia, and

Sten Sjostrand, Kuala Lumpur, 2007.

9 Lion-Goldschmidt, Daisy, Ming Porzellan, Paris, 1978, p. 194

10 Little, Stephen, Seventeenth Century Landscape Painting and the Decoration of Chinese Ceramics, em

Chinese Porcelains of the Seventeenth Century, Landscapes, Scholars' Motifs and Narratives, China Institute, New York City, 1995, p. 36.

11 Little, Stephen, Chinese Ceramics of the Transitional Period 1620-1683, Published by China House Gallery,

New York, 1984, p. 13.

12 Lochschmidt, Maria Fernanda, “Chinesisches Blauweiss-Exportporzellan, Die portugiesischen Bestellungen

vom Anfang des 16. Jahrhunderts bis 1722, Eine neue Chronologie mit Beiträgen zu Form und Dekor”, Universität Wien, Dissertação de Mestrado apresentado na Universidade de Viena, 2008, pág. 70.

13 Jenyns, Soame, antigo curador-chefe das seção de porcelanas orientais do British Museum, “The Wares of

the Transitional Period Between the Ming and the Qing: 1620-1683”. Archives of the Chinese Art Society of America, Vol. IX, 1955

14 Butler, Michael, Late Ming, Chinese Porcelain from the Butler Collections, Musée national d’histoire et d’art

Luxembourg, 2008.

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3243 A DATAÇÃO DAS GARRAFAS COM O BRASÃO DE CASTELA E LEÃO Maria Fernanda Lochschmidt Simpósio 7 – Orientes e ocidentes em rede: conexões e desconexões

15

Friedrich Perzynski, Toward a Grouping of Chinese Porcelains, Volume I, Smithsonian Institute, Washington, 1910.

16 Wang, Qingzheng, Seventeenth Century Jingdezhen Porcelain from the Shanghai and the Butler Collection,

Shanghai Museum, Shanghai, 2006.

Maria Fernanda Lochschmidt

Pesquisadora autônoma brasileira, formada em História da Arte pela Universidade de Viena

(2008). Residiu em Pequim de 1986 a 1989, em Taipé de 1995 a 2002, onde foi orientadora

no Museu Nacional do Palácio durante quatro anos. Classificou e datou as porcelanas

chinesas do Museu D. João VI do Rio de Janeiro. Faz parte do grupo de pesquisa Outros

Orientes. Ministra cursos de História da Arte chinesa em São Paulo desde 2009.