a cultura na rua1 - livros e outros escritos de carlos

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A cultura na Rua Carlos Rodrigues Brandão Campinas: Papirus, 1989. Anúncio Assim, sabemos que as rotinas diárias preservam o tempo na sua duração “normal”, ao passo que nas festas o tempo pode ser acelerado ou vivido como tal. Por que tal experiência é possível? Ora, ela se faz porque, nas rotinas, espaços específicos estão equacionados socialmente e atividade específicas. Não dormimos na rua, não fazemos amor nas varandas, não comemos com comensais desconhecidos, não ficamos nus em público, não rezamos fora das igrejas, etc. Os exemplos, conforme sabe o leitor, são legião. Ora, a festa promove precisamente os deslocamentos destas atividades dos seus, digamos, “espaços normais”. Isso, então, permite a sensação de um tempo louvo, notavelmente lento ou, como ocorre com o nosso carnaval, uma temporalidade acelerada, vibrante e invertida. Roberto da Matta em A casa e a rua 1. A festa Basta olharmos para nossa própria vida, e com bons olhos veremos como ela é uma seqüência de situações únicas (o nascimento e a morte), raras (o casamento ou o nascimento de nossos filhos) ou repetidas (a série dos aniversários) com que as pessoas da família, da parentela, da vizinhança ou dos círculos de trabalho ou de amizade nos festejam ou nos obrigam a festejar. Olhando nossa própria cultura vale a pena observar uma diferença curiosa e importante. Algumas sociedades comemoram com mais ênfase certos acontecimentos e situações, enquanto outras os deixam em segundo plano e dão mais importância a outros. Nas cidades médias e grandes as festas cívicas, históricas e profanas conquistam um lugar de crescente importância, enquanto nas pequenas cidades e nos povoados do interior elas ocupam um segundo plano, e os festejos locais e religiosos povoam quase todo o calendário. Aqui o Primeiro de Janeiro, o Carnaval, o Dia do Trabalho, o Vinte e Um de Abril e o Sete de Setembro; lá, o Dia de Santos Reis, a festa do padroeiro, a Semana Santa, as festas juninas. A família urbana e a cidade multiplicam na casa os ritos de passagem: os aniversários, a primeira comunhão, o crisma, os 15 anos, o ingresso de um filho na universidade e mais adiante a formatura, a casa nova, a nova praça, a vitória do Flamengo, a de Trancredo Neves. Entre homens do campo, as principais cerimônias são as do batizado, do matrimônio e aquelas que envolvem os

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A cultura na Rua Carlos Rodrigues Brandão Campinas: Papirus, 1989.

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Assim, sabemos que as rotinas diárias preservam o tempo na sua duração “normal”, ao passo que nas festas o tempo pode ser acelerado ou vivido como tal. Por que tal experiência é possível? Ora, ela se faz porque, nas rotinas, espaços específicos estão equacionados socialmente e atividade específicas. Não dormimos na rua, não fazemos amor nas varandas, não comemos com comensais desconhecidos, não ficamos nus em público, não rezamos fora das igrejas, etc. Os exemplos, conforme sabe o leitor, são legião. Ora, a festa promove precisamente os deslocamentos destas atividades dos seus, digamos, “espaços normais”. Isso, então, permite a sensação de um tempo louvo, notavelmente lento ou, como ocorre com o nosso carnaval, uma temporalidade acelerada, vibrante e invertida. Roberto da Matta em A casa e a rua

1. A festa

Basta olharmos para nossa própria vida, e com bons olhos veremos como ela é uma seqüência de situações únicas (o nascimento e a morte), raras (o casamento ou o nascimento de nossos filhos) ou repetidas (a série dos aniversários) com que as pessoas da família, da parentela, da vizinhança ou dos círculos de trabalho ou de amizade nos festejam ou nos obrigam a festejar.

Olhando nossa própria cultura vale a pena observar uma diferença curiosa e importante. Algumas sociedades comemoram com mais ênfase certos acontecimentos e situações, enquanto outras os deixam em segundo plano e dão mais importância a outros. Nas cidades médias e grandes as festas cívicas, históricas e profanas conquistam um lugar de crescente importância, enquanto nas pequenas cidades e nos povoados do interior elas ocupam um segundo plano, e os festejos locais e religiosos povoam quase todo o calendário. Aqui o Primeiro de Janeiro, o Carnaval, o Dia do Trabalho, o Vinte e Um de Abril e o Sete de Setembro; lá, o Dia de Santos Reis, a festa do padroeiro, a Semana Santa, as festas juninas. A família urbana e a cidade multiplicam na casa os ritos de passagem: os aniversários, a primeira comunhão, o crisma, os 15 anos, o ingresso de um filho na universidade e mais adiante a formatura, a casa nova, a nova praça, a vitória do Flamengo, a de Trancredo Neves. Entre homens do campo, as principais cerimônias são as do batizado, do matrimônio e aquelas que envolvem os

ritos da morte da pessoa. É como se no mundo da cidade a festa oscilasse entre um máximo de sentido universal, como no Natal e no Ano Novo, e, em contrapartida, um máximo de afirmação simbólica do valor da individualidade, como no aniversário. Enquanto no campo, valem mais as cerimônias de reconhecimento de um nós local, como nas festas de santos padroeiros, e de associação da biografia individual ao ritmo e ao sentido da vida comunitária, como no batizado, no casamento e no velório.

E, mesmo a partir do que acontece com a própria pessoa individual, quando ela festeja ou é festejada, que emerge clara a idéia tão antiga e atual de que a festa é uma fala, uma memória e uma mensagem. O lugar simbólico onde cerimonialmente separam-se o que deve ser esquecido e, por isso mesmo, em silêncio não-festejado, e aquilo que deve ser resgatado da coisa símbolo, posto em evidência de tempos em tempos, comemorado, celebrado. Aqui e ali, por causa dos mais diversos motivos, eis que a cultura de que somos ator-parte interrompe a seqüência do correr dos dias da vida cotidiana e demarca os momentos de festejar. Instantes dados à casa ou ao quintal, à igreja, à praça ou à rua em que cada um, alguns ou vários de nós somos, singular ou coletivamente, chamados à cena, postos à cabeceira da mesa e diante de um bolo com velas, presenteados, honrados com falas ou lágrimas. Eis-nos por um instante convocados à evidência, para sermos lembrados ou para que algo ou alguém – uma outra pessoa, um bicho, um deus – seja lembrado através de nós, para que então alguma coisa constituída como sentido de vida e ordem do mundo, seja dita ritualmente através de nós, que, festejados, somos durante a brevidade de um momento especial enunciados com mais ênfase: somos símbolo.

A ênfase daquilo que a sociedade festeja em nós prefere recair sobre as situações em que ela atesta que alguém transitou de uma posição e outra e, assim, migrou de um de seus espaços de vida e trabalho a outro: de estudante a profissional, de pagão a cristão, de menina a moça “pronta-pra-casar”, de adolescente a guerreiro da tribo, de vivo a morto, de morto a mito. A festa, quando soleniza a passagem e comemora a memória, demarca. A vida passa, passamos. Tudo muda, e tudo é o mesmo: mudamos, somos agora o que não éramos ainda, mas somos os mesmos, diversos: ao mesmo tempo um outro e eu. Envelheço, “vejo em mim o tempo do mundo passar”, e isso pesa. Mas eis que os símbolos dos sistemas de festas de que sou parte, ou alvo, aos poucos me ensinam a substituir a pura energia do desejo do prazer ou o temor de seu fim em mim pela serena vontade de conviver em paz comigo mesmo, entre todos, e possuir a compreensão de tudo. Eis que a festa restabelece laços. Sou eu que se festeja, porque eu sou daqueles ou daquilo que me faz a festa. Estou sólida e afetivamente ligado a uma comunidade de eus-outros que cruzam comigo a viagem do peso da vida e da realíssima fantasia exata das festas que nos fazemos, para não esquecer isto. Juntos, diferencialmente irmanados, pedimos à festa a evidência de que tudo isso, que é a vida, e a vida impositivamente social, é suportável e até bom, porque, sendo irrecusável, pode ser até previsível se revivido com afeto e com sentido. Vista em sua desvestida realidade, a celebração religiosa ou profana, solenidade ou mascarada (Matta), não ilude nem oculta. Não disfarça. Ao contrário, ao jogar com a metáfora e romper com o excesso de significado, a festa exagera o real. Se eu disse antes que ela faz ser suportável o inevitável e sua consciência antecipada, é porque ela comemora a possibilidade disto e de tudo o mais ser compreensível e compreendido. Assimilado à lógica da cultura não como sua ilusão – mágicos não fazem festas – mas como a necessidade de transpor umas para outras esferas de trocas, que nem por serem mais motivamente simbólicas deixam de ser tão socialmente rurais.

Ela toma a seu cargo os mesmos sujeitos e objetos, quase a mesma estrutura de relações do correr da vida, e os transfigura. A festa se apossa da rotina e não rompe mas excede sua lógica, e é nisso que ela força as pessoas ao breve ofício ritual da transgressão. No Carnaval, que os atores da ordem saiam de mesmos e produzam outros gestos. Que suspeitem da conduta adequada ao tempo do trabalho e se vejam, no espelho invertido do que é socialmente esperado, logo que simbolicamente limita muito o ser do homem. Os homens se vestem de mulheres, as mulheres de fadas, os pobres de príncipes, os ricos de índios, e os índios de deuses. Em algumas regiões do sudeste da África, mas também na Roma antiga ou no Rio de Janeiro de hoje, as condutas se ultrapassam, e um modo mais denso e enigmático do real emerge: as mulheres da tribo atacam os homens e os possuem, as mães de respeito em Roma se entregam à orgia, o gerente de banco carioca se reveste de folião por três dias. Senhores e servos da metáfora e da memória, conhecemos, criamos e queremos muito mais dimensões da vida e das experiências do ser e do mundo a que a vida sem o ritual nos obriga. E é também a tempos opostos da volta ao normal que algumas grandes festas brasileiras nos devolvem. Pelo fato de que em uma sociedade de cultura e consciências fragmentadas perdemos aos poucos ou de uma vez o sentido do todo, é que isso agora nos escapa. Se o Carnaval – mascarada profana – acaba na Quarta-feira de Cinzas, que inaugura o longo tempo contrito da Quaresma, já desde a noite do Sábado Santo a pesarosa Semana Santa – solenidade religiosa – devolve os homens ao prazer cerimonial do excesso: o Baile de Aleluia, a malhação do Judas, a comilança familiar da ceia da Páscoa. Melhor: ela os devolve ao “tempo depois da Páscoa”, uma era anual de alegria e permissividade. Em várias celebrações, os mesmos comportamentos e as mesmas relações entre as pessoas são exagerados: o que se come sempre se come agora, muito mais e em lugares cerimoniais, fora de casa; o que se bebe, bebe-se muito mais e em nome de alguma coisa que mereça o gasto e a ressaca; o que se fala, canta e dança é enunciado por mais tempo e com bastante mais prazer ou fervor.

Em algumas cidades brasileiras o Divino Espírito Santo é festejado com muita pompa. É preciso que haja fogos, muita comida, procissões, cantos e danças. Em lugares como Pirenópolis, São Luís do Paraitinga, Parati ou Diamantina, algumas figuras que ao olhar o viajante distraído podem parecer haver saltado do século XVIII desafiam-se a cavalo, travam lutas com danças e bastões, viajam dias cantando e rezando terços de casa em casa, comem exageradamente em público ou se deixam coroar com rara solenidade e em seu “ano de festa” ostentam o nome de Imperador do Divino. Armados de violas e lanças, embandeirados de vermelho e branco, vestidos de seda e de veludo, as personagens dos ritos e dos folguedos da Festa do Divino trabalham um ano quase inteiro para colocar na rua, na “casa do império”, na praça da cidade e até na igreja seus dias de reza da novena e, no auge de tudo, o fim-de-semana dos “dias da festa”.

Tomemos aqui seu exemplo. Outras festas e folguedos possuem uma estrutura muito semelhante. Mais adiante é possível que nos espantemos juntos por descobrir que pelo menos quanto a este aspecto relevante não são muito grandes as diferenças entre antigas festas religiosas e o Carnaval.

Um imperador do Divino foi constituído. Eleito ou escolhido entre outros iguais “irmãos na sorte”, por um ano ele é o responsável por uma festa que deve patrocinar com trabalho, empenho e gastos. Mas ele não está só. No mesmo ato de sorteio ou escolha, são incorporados a seu pequeno séqüito mordomos, como o “do mastro” e o “da bandeira”, os responsáveis pelos leilões, pela comida a ser servida a todos e por outros setores de trabalho e pequeno poder que criam em seu todo a festa. Menos

instáveis do que essas pessoas, os foliões do Divino são convocados por seu imperador a viajar pelo município e pelas redondezas anunciando cerimonialmente a festa de mais um ano. Eles fazem isso ritualmente, distribuindo bênçãos e arrecadando as “prendas do Divino”: cabeças de gado, leitões, frangos, artesanato comestível, dinheiro. Esmolam em nome do imperador, mas seu próprio trabalho – ancestral no Brasil, porque existente desde o começo da Colônia – já é uma pequena festa. Viajando a pé ou a cavalo, vão de casa em casa na cidade ou na roça. Em cada uma cantam o pedido de entrada porta adentro, cantam o anúncio da festa, o peditório de bens e as bênçãos que deixam.

Eis um sistema inicial de trocas entre pessoas que configura a própria essência da festa popular no Brasil. Porque, cheia de falas e gestos de devoção, ruptura e alegria, ela afinal não é mais do que uma seqüência cerimonialmente obrigatória de atos codificados de dar, receber, retribuir, obedecer e cumprir. Troca-se o trabalho por honrarias, bens de consumo por bênçãos, danças por olhares cativos, o investimento do esforço pelo reconhecimento do poder, a fidelidade da devoção pela esperança da bênção celestial. Obedece-se ao mestre, ao festeiro, ao padre, ao chefe da torcida, ao maestro da banda. Cumprem-se promessa, votos feitos.

Quando termina a jornada, os foliões da Bandeira do Divino retornam à cidade de onde partiram e, solenemente, percorrem-na entregando depois ao imperador a relação dos bens dados ou prometidos.

Muitos dias antes do primeiro dia de novena, os cartazes do anúncio da Festa do Divino devem estar prontos. Na porta da igreja local, assim como nas paredes de bares e vendas, de farmácias, nos pontos mais visíveis da cidade em festa e das vizinhas, eles serão pregados, para que todos se sintam convidados. Não é raro que alguns cartazes (multipliquemos seu número por muitos milhares, dedicados a padroeiros de inúmeras festas, de qualquer cidade ou povoado no Brasil) estabeleçam por escrito a própria ordenação dos espaços e momentos da festa. Há uma “parte religiosa”, composta invariavelmente de novena, missa e procissão e que é aquilo a que muitas antigas grandes festas populares se reduzem quando perdem ou empobrecem muito ao longo do tempo suas duas outras partes. Pois a segunda resolve-se nas ruas, nas praças, em visitações cerimoniais de casas da cidade, num campo de futebol, por três dias transformado no terreno dos jogos e das batalha simbólica das Cavalhadas de Cristãos e Mouros, como em Pirenópolis ou em São Luís do Paraitinga. É a ela que se dá o nome, não raro indevido, de “parte folclórica”. Entregue aos cuidados de grupos de folguedos de nossa mais cristã cultura popular, ela realiza os momentos festivos dos ternos de dançadores do Guerreiro, do Congo e do Moçambique do Caiapó, da Dança de Fita e da Cavalhada.

Alguns desses ternos de folguedos de nosso folclore acompanham o mastro da Bandeira do Divino, que solenemente se hasteia ao lado da igreja ou em algum local apropriado. Eles participam ainda e fora de seus momentos de canto e dança de jogos simulados, que são a essência de seus ritos e das visitações devotas que fazem entre casas. Saem, devotos, nas procissões que misturam nessas festas a intenção propriamente religiosa das autoridades da Igreja e o desejo festivo de torná-la um alegre desfile de rua com banda de música, bandeiras vermelhas, toques de sinos e o clarão dos fogos (quanto mais e mais sonoros, tanto maior o prestígio do imperador) na noite da cidade. Vários outros momentos da festa serão o resultado de uma tensão entre os mesmos desejos e interesses: os das autoridades da Igreja, para tornar as cerimônias mais “puras” e subordinadas a sua lógica, versus os dos festeiros, foliões, capitães de ternos de folguedos e outras pessoas corporadamente dedicadas às vocações e ao desejo

de manter vivos os costumes cerimoniais de seus antepassados, justamente aquilo que torna uma festa como outras: “a nossa festa”.

O leilão de gado e de prendas, que ocupa não raro todas as dez noites entre o primeiro dia da novena e o “dia da festa”, desenha muito bem a fronteira entre os limites das tradições e dos gestos populares, antigos, e os de situações mais inovadoras de circulação comercial de bens, serviços e prazeres na festa. Pequenos circos e rodeios são trazidos para a cidade; inúmeras barraquinhas onde se vende comida (de sanduíche de carne picada a maçã do amor), roupa feita, objetos de uso doméstico, novidades de plástico onde se lê a sorte ou se tiram fotos “de lembrança”, onde prazerosamente se bebe, e o devoto católico, resolvidas suas contas com o sagrado, entrega-se sem culpa a outros jogos de sedução. Essa “parte profana” da festa é tão indispensável quanto as outras duas. Não é errado, portanto, dizer-se que a festa é justamente essa bricolagem de ritos, folguedos e festejos de devoção e de pura e simples diversão. Bailes e forrós, pagodes antigos e danças de catira ou jungo concorrem com as apresentações mais modernas de “shows sertanejos” e rodeios, com escolhas de Rainha da Festa.

Como em algumas festas mais tradicionais do Divino, preserva-se o costume herdado da Idade Média portuguesa de uma distribuição farta e generosa de comida a todos os presentes, completa-se o ciclo dos gestos, de sorte que uma festa popular é a mistura, ao mesmo tempo espontânea e ordenada, de momentos de rezar, cantar, dançar, desfilar, ver, torcer, cantar. Enfim, de “festar”, palavra brasileira que deliciosa e sabidamente resumo tudo o que se deve fazer em uma festa popular.

Um momento do olhar na praça de uma cidade em festa poderia oferecer o ilusório espetáculo de uma combinação de corpos, de gestos, de vestimentas e de situações não muito diferentes da descrição feita aqui. É preciso guardar as proporções e as diversidades regionais, mas o sentido e a estrutura variam muito pouco. A festa é uma viagem: vai-se a ela e ali transita-se entre seus lugares. Por isso o desfile, o cortejo, a procissão, a folia e tudo o mais que possibilite fazer deslocar, entre as pessoas e pelos lugares que a própria festa simbolicamente reescreve e redefine: sujeitos, cerimônias e símbolos. Por isso as visitações tão próprias de todos os nossos festejos e folgues. Por isso essa mistura tão rica de contrários. Um só momento da tarde de domingo em Ouro Preto, São Luís do Paraitinga, Atibaia ou Oliveira coloca em cena em uma mesma para: o cortejo cerimonial (a procissão, o reinado, o desfile), os cantos e as danças dos folguedos populares, o leilão e a roda de violeiros no palanque, o fim da missa, ao longe, o troar de fogos, a espera do último baile, o anúncio de que o “espetáculo do circo” vai começar, o alegre frenesi de comidas, compra e venda no “mercado da festa”, o par de amantes “de festa”, cujas juras de amor talvez não durem mais que o fim da noite. Religiosa ou profana, a festa não conspira apenas contra o trabalho produtivo e sua ordem social; conspira contra a casa e o seu domínio. Pois mesmo uma Semana Santa tradicional como a que nos espera adiante obriga a ser na rua e revestido de multidão e exagero o que uma família católica moderadamente faz como prece “entre os seus”.

De Jean de Lery a Saint-Hilaire duas coisas espantaram o todos os viajantes europeus não-ibéricos que por algum tempo vieram conviver conosco a aventura do Brasil. Primeira: havia sempre festas, todo o tempo, por toda a parte e por todos os motivos. Segunda: ao contrário do que começou a ocorrer na Europa após a Reforma Protestante e a Contra-Reforma, as cerimônias religiosas da Igreja no Brasil eram desbragadamente festivas e misturavam tudo e todos, de uma maneira impensável na França ou na América do Norte. O francês Jean de Lery chega ao Brasil pelos anos 600, nos começos da fase de colonização do litoral brasileiro. Ele descreve com delicioso

espanto uma festa de São Gonçalo realizada nada menos do que dentro de uma igreja de Salvador. E o que irá surpreender esse protestante calvinista? Pois ali estão, “de mãos dadas: sacerdotes, freiras, ‘homens-de-bem’, e o ‘populacho’ da cidade”. Em segundo lugar, o que eles fazem juntos e quase sem diferenças, pois dentro da igreja e diante do altar cantam ao som de bizarros instrumentos e dançam, irreverentes e quase sensuais, em louvor ao “santo casamenteiro”. Abraçados, ora aos pares, ora em rodas de dançantes, ei-los que celebram com dança um rito de fé. Outros iguais espantos devem ter ocorrido muitas vezes, porque não são poucos os depoimentos de viajantes a respeito da quase carnavalesca representação cerimonial de nossos festejos populares e mesmo oficiais. Ali tudo se festeja, objetivamente tudo. E esta é uma primeira notável diferença entre a herança de nossas festas de rua e a das culturas americanas de origem anglo-saxã. Decora-se a rua e vai-se a ela por um casto temor do homem diante da divindade; pelo rito coletivo que torne público o desejo, mas também a efusiva alegria de sentir-se salvo e até santo livre com a festa da poeira do pecado, piedoso da salvação pessoal, diante da majestade terrível de um deus ao mesmo tempo distante e paternal, senhor do mundo mais amigo de festas.

Curioso observar que entre os “figurantes” dos ternos e guardas dos nossos rituais populares de rua, não se exige que a pessoa seja religiosa ou eticamente exemplar, como acontece em outras confissões cristãs de domínio popular. Exige-se, sim, que todos sejam devotos confessos e artistas adequados ao papel que ali desempenham: cantar, compor, tocar um instrumento, dançar festivamente, recitar um verso, “fazer um drama”. Religião sob o controle de elites civis e eclesiásticas mas inquestionavelmente aberta a todos e não apenas a uma minoria exclusiva de eleitos, o catolicismo brasileiro recriou seus ritos dos festejos de rua, uma espantosa variedade que se presta aos mais variados fins conjugados e quer cobrir justamente a polissemia de atores sociais que se reconhecem pertencentes a ele e multiplicam até hoje festas públicas para atestar justamente isto. E por isso mesmo não é raro que as mesmas missas, cortejos e danças de praça sirvam para louvar um padroeiro comunitário, festejar uma boa colheita, a derrota do inimigo, a súplica pela chuva, a identidade do negro ou do camponês pobre, o aniversário da cidade, a vitória de um time de futebol, o desespero da mãe cujo filho morre aos poucos, a memória de um herói, a lembrança de um acontecimento que merece sua festa.

Não é nada difícil observar o quanto à medida que se seculariza a sociedade brasileira – isto é, transfere valores, símbolos e poderes de uma esfera propriamente religiosa para outras esferas de códigos e linguagens – as comemorações rituais de origens e nacionalidades transitam também, pouco a pouco, do santo padroeiro para o produto típico: de São Genaro para a uva. O que vemos na rua agora é uma acelerada multiplicação de grandes e pequenos festejos, onde uma ou algumas categorias peculiares de pessoas e grupos sociais se festejam a si mesmos através do que são (negros, japoneses, caminhoneiros ou “josés”), do que criam (artesanato de barro, de pano ou de palha) ou do que produzem (maçãs, milhos ou flores). Que cidade de região rural do Brasil vive hoje sem suas festas “de vaqueiro”, “de peão de boiadeiro”, de “pescador”? Por outro lado, como pensar qualquer feira agropecuária sem os cortejos a cavalo, os rodeios, as eleições de Rainha da Festa, os concursos de música sertaneja e os bailes? Situações cerimoniais que apenas fazem passar de um círculo a outro de símbolo e sujeitos homenageados, os mesmos gestos e propósitos das humildes ou grandiosas antigas “festas de santo”.

Se há muito tempo o circo, o rodeio, o leilão, o forró, o desfile e o concurso invadiram todas as festas de tradição religiosa católica no País, agora a missa, a

procissão breve mas não menos piedosa, os pequenos ritos de devoção e este ou aquele padroeiro ameaçam invadir com a mesma desenvoltura as festas modernas de produto e produtor.

E que há agora nas festas civis de expressão de etnia, de celebração de origens, de comemoração de produtos ou de coletivização do prazer que seja tão diverso da estrutura de gestos e relações das festas antigas? Saberíamos festejar de outro modo? As procissões e os cortejos de reinados transformados em desfiles e paradas; a celebração piedosa de “nós mesmos” através de nossos santos e padroeiros, revividos como folguedos modernos de afirmação de “nós ainda”, através do que produzimos e ostensivamente mostramos a nós e a todos; as mesmas divertidas situações de trocas mansas, solidárias, ou de competição ativa, como nos leilões e concursos disto e daquilo; a mesma farta orgia do comer-e-beber e as mesmas buscas do outro, onde os desejos do amor e do prazer entre homens e mulheres agora se escondem menos e já não se sublimam tanto mais. Narciso muda de roupa mas não de cara.

Tal como os “viajantes” do passado, pessoas de outros países que nos visitam estranham e invejam esta ainda tão intensa e diferenciada capacidade de ano após ano inventar situações onde “pomos na rua” o que somos e queremos. Se assim é, aceitemos que, ao lado de todas as razões já descritas para sermos tão festejadores, haja em nossas culturas uma persistente vocação de investir o sentido das coisas no exagero do símbolo que só se realiza plenamente como festa. Não espanta que a alguns analistas políticos tenha surpreendido o quanto algumas últimas campanhas de mobilização popular nacional tenham sido grandes e alegres festas de multidões reunidas nas ruas diante de palanques.

Já que não sabemos viver a não ser dividindo o tempo dado ao trabalho produtivo com outros tempos divididos por sua vez entre o rito e o jogo, eis que a todo momento e por toda a parte misturamos uma coisa com a outra. Em seus melhores momentos, nosso futebol é também “a festa das torcidas”. Mas eis-nos de novo e pela última vez, aqui, diante de contrastes que perecem querer tudo confundir, para poder explicar pelo menos alguma coisa. Se a euforia desbragada dos Gaviões da Fiel parece ser uma explosão desordenada da multidão da torcida, ela é também o resultado coletivo e rigorosamente preparado do trabalho do torcedor – sócio ou não de uma confraria profana onde o desejo de viver, como um rito, o puro prazer da disputa obriga a massa “da galera” a transformar-se pouco a pouco na equipe até séria e rigorosa da “torcida organizada”.

Possivelmente mais humana do que o próprio trabalho, a festa não quer mais do que essa contida gramática de exageros com que os homens possam tocar as dimensões mais ocultas de sua própria difícil realidade. Generoso espelho do ser mais denso do homem, eis que a festa o revela, de tão fantasiado, posto a nu como nunca.

Iguais ou diferentes, irmanados ou em conflito, que na festa e no folguedo os homens aprendam a trocar com excessos seus bens, serviços e significados. Em nome de deuses, de antepassados e heróis, mas também em nome de pássaros, flores e desejos, que eles se troquem na festa com maior fervor e uma acentuada sabedoria.

“Os mitos se pensam através dos homens”, escreveu um dia Lévi-Strauss, como se um imaginário intensamente universal e cuja estrutura lógica de significados nos fosse ainda inconsciente lançasse mão da gramática e do conhecimento de cada cultura humana para se pensar como e nos mitos que os homens de todos os povos criam e se contam. Isso não é assim tão diferente da idéia mais recente e algo mais suave de Marguerite Yorcenar: “os ritos e as máscaras são mais fortes do nós”.

A festa quer lembrar. Ela quer ser memória do que os homens teimam em esquecer – e não devem – fora dela. Séria e necessária, a festa apenas quer brincar com os sentidos, o sentido e o sentimento. E não existe nada de mais gratuito e urgentemente humano do que exatamente isto.

2. Na rua

Mas é afinal da rua que se trata. Fora o capítulo sobre Dança de São Gonçalo dos camponeses da região entre Piracaia e Atibaia, em São Paulo, uma cerimônia do catolicismo popular feita em frente de casas ou fundos de quintais, tudo o que acontece nos outros escritos é na rua, na praça e no mercado.

Em seus estudos intrigantes e admiráveis a respeito das festas brasileiras – do Carnaval ao Sete de Setembro, passando pela Semana Santa – e sobre a oposição casa X rua, Roberto da Matta no afã de opor uma à outra – e dividir-se no afeto que tem por ambas – ao mesmo tempo lembra e esquece que em muitos sentidos eles na verdade não se opõem: nem os tipos de festas, nem os espaços. A não ser enquanto compõem uma dualidade em que rua e casa se complementam. Não há dúvida de que a casa é o local da rotina, da família e de uma estabilidade de relações que em quase tudo sugere o contrário daquilo que a rua, seus tempos, festas e sujeitos pretendem ser.

Mas é preciso considerar que, se a gramática social da rotina familiar restringe o cotidiano, é a comemoração a trocas e eventos entre os “da família” e outros raros seres do círculo fechado daqueles que podem de um modo ou de outro ser associados à casa e diferencialmente invadir todo sou alguns de seus recantos internos, os festejos fora dele não se opõem a ela na rua. Ao contrário, pelo menos em muitos casos, um lugar e outro se completam e há entre eles, vivida em seus atores de ambos os lados, uma intenção permanente de começar num e acabar noutro e fazer com que tudo o que se festeja oscile entre os dois domínios. Alguns rituais do catolicismo popular fazem isso de uma maneira muito evidente e pode-se até dizer que eles não são outra coisa senão uma viagem entre casas por ruas e estradas. Vimos páginas atrás, que os bandos errantes de foliões viajam de casa em casa, e boa parte do seu demoradíssimo rito são cerimônias de ingresso, orações e cantorias dentro da casa, de despedida e saída. Nos ternos devotos e ao mesmo tempo quase carnavalescos de congos, marujos e moçambiques há uma intenção fundamental de unir a rua à casa. De um certo modo, tudo o que acontece nos dias de festa é uma seqüência de cerimônias regidas pela idéia de vagar pelas ruas e do entra-e-sai de igrejas e casas, unificando com o rito justamente as polaridades que existem não apenas entre a casa e a rua, mas entre também tudo aquilo de que elas são símbolos: o sagrado e o profano, o feminino e o masculino, a devoção e a diversão, a restrição e a permissividade. Curioso observar como, vinda da rua, a equipe de devotos-artistas de qualquer um desses grupos cerimoniais do catolicismo popular altera conduta próprias e produz emoções nos “da casa” quando se adentra suas portas em suas longas e emotivas “visitações”. Tal como nas folias de Santos Reis ou do Divino Espírito Santo, o bando de dançantes vai de casa em casa, canta na porta das que visita, recebe ordens de entrar, entra, presta e recebe homenagens dos “donos” e, quando pedido, transforma-se em um efêmero grupo de orantes cujas preces não raro são vistas como possuidoras de um poder quase milagreiro. A “bandeira” é levada pela “dona” aos cômodos, para os abençoar.

De outra parte, vagando pelas ruas da cidade, os artistas errantes chamam as pessoas da casa a que venham vê-los, a que os sigam:

Ó moça goiana

Chega na janela,

Venha ver os congos

Que já vai pra guerra.

(marcha de rua dos Congos da Cidade de Goiás).

Assim também em uma festa como a do Divino Espírito Santo em São Luís do Paraitinga ou em Pirenópolis, vista de perto, ela revela como tudo é uma permanente oscilação entre domínios caseiros, domínios fechados públicos, como a igreja e o local da comilança do “afogado” nos sábados, e as ruas e praças. A todo momento os principais atores e também os devotos “da roça” e os turistas chegados “da capital” transitam entre casas, igrejas e ruas. Em cada um desses espaços, mas também no que há entre eles, e diversos (porque os mesmo sempre mas com acentos peculiares em cada caso) dão ao que se festeja um sentido e uma intensidade que marcam, pelo espaço especial que simbolicamente são, a diferença de gestos e sentidos do que se faz; mas uma diferença de frases cerimoniais que apenas no todo da gramática da festa ganham seu sentido. E a festa é justamente o jogo generoso e não raro tenso da passagem, de todo ou de alguns atores, de um espaço ao outro.

Tomo aqui um exemplo favorito de Roberto da Matta, para completar essas idéias introdutórias: o Carnaval. Lembro-me dos carnavais cariocas dos “anos dourados”, ali, onde do “outro lado da bahia” niteroenses fervorosos faziam o impossível para festejar a vida com a mesma pompa e euforia com que se fazia tudo na cidade do Rio de Janeiro. O Carnaval não era então, como creio que no fundo não seja exclusivamente até hoje, uma “festa de rua”. Ou melhor, o Carnaval não era e não é só uma festa na rua, ainda que seu espírito de rua em boa medida seja oposto à lógica e à ética que dominavam então a gramática social da vida da casa e de seus atores na casa.

Não muito diferente da Semana Santa em Pirenópolis que aos pedaços descrevo adiante, o Carnaval carioca envolvia a possibilidade de “ser celebrado” em todos os espaços real e aparentemente opostos. Havia um “Carnaval em casa”: pequenas festas para familiares, vizinhos e amigos, quase sempre dedicados às crianças e algumas vezes incorporadas a “festinhas de aniversário”. Esses caseiros arremedos dos “bailes carnavalescos” traziam o Carnaval para dentro do lar, é bem verdade, mas sob a condição de imprimir em tudo o ritmo e o sela da moralidade da família de então. Eram, portanto, bem o contrário dos bailes “do cabide”, que começaram a aparecer anos mais tarde. Domésticos também mas justamente não-familiares nem familiares, tinham esse nome porque, dizia-se, os convivas penduravam discretamente em um cabide à entrada da casa – a que se costumou a dar o nome sugestivo de “inferninho” – sua roupa, de modo a que se entregassem à dança e a tudo o mais que a ocasião sugeria com uma vestimenta adequada ao clima do mês e ao da festa.

Havia os carnavais “de clube”, tal como eles existem até hoje em qualquer cidade do País onde entre a casa e a rua haja esse tipo de mediador de encontros e trocas. Estranho mediador, cuja posição e cuja lógica bem mereciam um estudo mais aprofundado. Vejamos: havia “clubes familiares”, que se confundiam com a idéia de “fechado” e eram dedicados aos usos das famílias de sócios e seus convidados. Eram sem dúvida uma extensão doméstica à órbita e à ordem do público, vivido ainda como uma comunidade. Havia clubes “abertos”, isto é, locais de lazer cujo ingresso podia ser

conseguido com a compra de um “convite”. Eis que a lógica da relação – o “convidado da família” – passava à lógica do mercado: qualquer um que possa comprar com o convite o direito ao acesso. Havia situações intermediárias entre o código familiar de acesso e o público: clubes onde as vendas de convites eram submetidas à apresentação do convidado por um sócio. Opostos quanto a princípios de dimensão, democracia d acesso e exclusividade, eram os bailes “de boate” (simbólica, lúdica e sexualmente associados aos dos “inferninhos”) e os bailes de amplos recintos, como o do Teatro Municipal e, mais modernamente, os das sedes gigantescas das escolas de samba.

E havia o “carnaval de rua” que tanto se opunha ao “de casa” quanto ao “de clube”. Mas havia ruas e ruas. Havia já então o “carnaval de avenida”, embrião dos desfiles “para serem vistos” das escolas de samba. Havia, para ser vivido muito mais do que visto, o desfile de blocos pela avenida Atlântica, que terminava sempre com um “baile à fantasia” em que os dançantes saíam dos blocos e, vestidos com as cores do papel “crepom”, metiam-se água adentro, até quando as ondas lhes roubavam, para o mar e Iemanjá, as vestes da folia. Havia pequenos carnavais de praça, mais nos “subúrbios da Zona Norte” do que pela Zona Sul da cidade, à volta de um coreto, e mais públicos do que os das ruas, porque sequer obrigavam o folião a pertencer ou fazer-se aceitar por um bloco, eles eram uma espécie de clube mais aberto daqueles que não podiam ou não desejavam “farrear” em lugares fechados. E começou a haver (de Copacabana em diante, se não me engano) carnavais de “rua fechada”. Nos meus tempos de Copacabana, o “da turma da (rua) Miguel Lemos” foi famoso por muitos anos. Uma rua onde isto era física e socialmente possível, era fechada e se abria apenas às famílias de lá e a seus convidados (penetras indesejados geravam brigas invejáveis). A casa descia à rua e impunha nela a sua ordem. Havia mais, em mais lugares, mas estes bastam.

Se traço aqui esta breve geografia folia da memória, é para apenas sugerir a demonstração de que na verdade, dentro ou fora do Carnaval, lógicas de oposição e complementaridade entre espaços, tempos e situações de reciprocidade não se realizam para tornar exclusivos símbolos e possibilidades de articulação social de símbolos. Ao contrário, como um também ordeiro bricolleur, a sociedade joga com alternativas de combinações de mesmos e de diferentes significados e intenções de atores para, ao mesmo tempo, reforçar e romper sistemas de relações – como a casa e a rua – e continuamente invadir uma com a lógica da outra. É mais ou menos isto o que aqui e ali deverá aflorar em algumas passagens dos escritos a seguir.

Voltando ao exemplo do Carnaval, duas lembranças curiosas poderiam ser um bom complemente de minhas suspeitas.

Primeira: um dos costumes mais populares dos antigos carnavais brasileiros aos poucos se perde, mas sua estrutura em boa medida se preserva, em várias celebrações do catolicismo popular que aqui e ali andei descrevendo com uma mesma lógica de reciprocidade. A casa e a rua se articulavam a todo o momento, e isso era muito visível no costume de pequenos blocos saírem foliando pelas ruas mas entre casas. Tal como devotamente fazem os foliões de Santos Reis até hoje e tal como fazem, também devota e quase carnavalescamente, os ternos e as guardas de congos e moçambiques das festas de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário, o vagar pelas ruas é o ir entre casas. A visitação é, uma vez mais, a alma do rito ou, pelo menos, uma sua parte nuclear. Os “blocos de sujos” batiam em portões de conhecidos, entravam pelas casas, invadiam quintais e, quando convidados, chegavam a salas, onde batucavam, troçavam e dançavam, não raro ganhando um pouco de bebida e balas. Eu quero mesmo desconfiar que essa conjunção da casa e da rua através da estrutura do ritual popular da visitação

(trazer a rua para a casa e devolver a casa à rua) foi ou é um dos núcleos de sentido de praticamente todos os rituais e celebrações populares no Brasil. É isso o que se perde nas mascaradas profanas, como o Carnaval; mas é isso o que querem preservar os ritos populares ainda religiosos, como as folgas, as folias e os bailes de congos de que tenho falado aqui e ali. Não tão debochados e descontraídos como a farra do Carnaval e, por isso mesmo, não obrigados a separar o código da casa do código da rua.

Segunda: às vezes a pressa de opor engana. Seria este o caso de alguns momentos de análise em Roberto da Matta? Possivelmente não, mas creio que vale a pena aqui algumas observações. Durante o Carnaval, não era e ainda não é nas ruas que um primado da individualidade anônima autoriza uma moralidade oposta à da casa: reduto da pessoalidade realizada como e através da lógica da família. Em primeiro lugar, podemos separar não tanto os espaços “brutos” da casa e da rua quanto os locais de significados, gramáticas e condutas opostos. O mais certo seria separar espaços domésticos fechados (o clube) e abertos (a praça e a rua) regidos pela lógica da rua ou por seus códigos e seus exatos equivalentes regidos pelo código da casa. Um quadro muito simplificado poderia nos dar a seguinte estrutura de relações.

Código da casa Código da rua

Espaços domésticos (família) Bailes familiares em “casa de família”

Bailes privados em casas sem a família (“inferninhos”)

Espaços fechados (comunidade) Clubes familiares Clubes abertos (venda de convites) teatros, sedes de escolas de samba

Espaços abertos (públicos) Bailes em ruas fechadas e em praças familiares

Desfiles, farras, etc., em ruas públicas e em avenidas.

Mas mesmo esta ordem não traduz tudo. Num máximo de rua, as escolas de samba obrigam os figurantes a se desvestirem de máscaras e a “desfilar”, muito mais do que a “brincadeira”. Não seria a escola de samba uma grande família folia, regida na rua pelo código da casa? Por outro lado, é nos redutos fechados e não nas ruas – lugares de uma intrigante moralidade doméstica ampliada ao público – que os pecados e escândalos dos “dias de folia” são vividos em excesso. Na verdade, a rua é bastante ética, e algumas são, principalmente nos subúrbios, até mesmo familiares. (Estarei eu nostalgicamente pensando hoje com os dados do “meu tempo”?). É nos recintos fechados, mas justamente revestidos em exagero de uma ordem de rua ( no sentido damattiano do termo), que os foliões se entregam a uma conduta relacional que, em princípio, nada tem a ver com o que um folião autêntico definiria como “o espírito do Carnaval”.

Saíamos à rua, pois.

Os escritos de rua e festa que faço desfilarem daqui em diante foram redigidos em diferentes momentos e para diferentes situações. Alguns, como “Os senhores do gesto” e “A Semana Santa em Pirenópolis”, quase se confundem com anotações de campo um pouco mais elaboradas. Eu me atreveria a dizer que são escritos sobre a rua, feitos na rua e, depois, revistos em casa. A outros me dediquei por mais tempo, no que se refere tanto ao trabalho de campo quanto ao de usa elaboração.

“Festa, folia, procissão e romaria” é o único que foi feito não a partir de uma “visita ao campo” mas de fragmentos de dados e memória de várias visitas. Foi apresentado em 1988 no grupo de trabalho sobre religião e sociedade, em uma reunião da ANPOCS. “Ouro Preto” e “Ibirité” foram escritos como parte dos estudos feitos durante o tempo em que assessorei a equipe do Projeto “Interação”, da Fundação Nacional Pró-Memória; o segundo apenas complementa, por contraste, o primeiro. Em nome de José da Silva Quintas, quero agradecer de pé e de público à “equipe do Interação” pelos muitos dias de encontros calorosos e de uma troca de idéias cuja fértil criatividade reencontrei poucas vezes em outros lugares.

Já “A Semana Santa em Pirenópolis” foi a minha contribuição ao projeto de pesquisas sobre a paixão brasileira, coordenado por Rubem César Fernandes e patrocinado pelo Instituto Nacional do Folclore. No próprio texto reconheço a ajuda de ambos, mas gostaria de fazê-lo aqui, uma vez mais. “Dançar pelo morto” foi escrito para um seminário a respeito da morte e do morto na sociedade brasileira, realizado em 1985 na USP e coordenado por José de Souza Martins. Tanto aqui quanto em outros momentos, sou devedor de muitas idéias e sugestões. Parece que há pessoas que nunca deixam de ser um bom e querido orientador. Finalmente, “Os senhores do gesto” foi escrito como parte de estudos sobre o negro na cultura do catolicismo popular, a que venho esporadicamente me dedicando desde algum tempo. As pessoas de Oliveira e, especialmente, os amigos do Encontro Popular de Cultura, de Minas Gerais, foram, muito mais do que a presença e o apoio, a razão pela qual este estudo e outros foram feitos. Sueli Regina A. Ferreira fez mais do que a datilografia dos originais. Ela traduziu páginas de uma difícil decifração. Também por isso quero agradecer a ela.

Folia, festa, procissão e romaria*

Algumas anotações de viagem sobre a lógica dos espaços entre as celebrações da fé no catolicismo de camponeses do Centro-Sul do Brasil.

O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e ainda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito por coragem. (João Guimarães Rosa, na página 242 de Grande Sertão, veredas.)

...ninguém pode me impedir de rezar: pode algum? O existir da alma é a reza. (O mesmo João, no mesmo Sertão, na página 458.)

1. Crer no imóvel, mas rezar é para quem se move

Já que ali está o suposto princípio de tudo, ousemos tomar o exemplo do uno e do trino da Santíssima Trindade. Afinal, no princípio era o verbo, e o verbo era Deus. Mas o Deus único se refez em três e, na crença do povo, de tanto serem obscuramente um só, são tão irreversivelmente diferentes. Por isso a um se reza à distância, sem festa nem romaria; a outro com festa e sem romaria; e outro, com festa e romaria. Multiplicando o exemplo aos outros santos e seres sagrados e sacralizados do catolicismo, haveria alguma lógica nas relações entre a folia, o cortejo, a festa e a romaria?

É fácil crer em Deus. Para a pessoa católica do campo o difícil é não ter fé. A tal ponto tudo a prova, da tradição dos ancestrais à evidência caseira do milagre, que é preciso pensar muito contra Deus e ser uma espécie obscura e perversa de sábio às avessas – o que sabe tudo, menos o que importa – para não crer. Mas, acreditado sem dúvida e pronunciado com respeito muitas vezes em orações e pequenas fórmulas orais de reza, é difícil imaginar com há de ser este Deus-Pai, obscuro princípio de tudo. Por isso se o teme, mas é perigoso amar com um amor humano a generosa figura distante de um Deus-Pai, apesar de pai ou por isso mesmo. Porque ele, todo-poderoso, é distante, é um deus móvel. Parece nunca haver ido a parte alguma para ter feito com só a palavra o que realizou. Estranho ser: amorosamente tomou o barro com as mãos e fez dele um boneco: soprou na matéria o alento divino e criou a vida humana. Mas onde estava então? De onde veio? Por onde viajou? Da Bíblia ao imaginário do catolicismo popular, Deus-Pai não viaja, Ele aparece, como a Moisés, ou envia emissários em seu nome, como a Maria. Dele se vem, como o Filho à Terra, e a ele se vai, se volta. Deus é quem é, e espera. Não vem mas vaga por toda parte e, afora ser um misericordioso velho de supostos cabelos e barbas brancas, é também um olho terrível, temível, de que nem um pensar, nem uma fala, nem um corpo ou gesto escapam. Como suplicar a quem me vê nu sem que eu queira? Deus-Pai é quem julga, como à humanidade nos dias do Dilúvio. É de quem o homem se esconde, sem conseguir, como Caim depois de matar Abel. Ele não “vem a nós”, mas a ele se vai para se ser julgado, ainda que com “infinita misericórdia”. Mas então, quem vive no inferno?

* Documento apresentado no grupo de trabalho religião e sociedade, durante o XI Encontro Anual da ANPOCS, Águas de São Pedro, outubro de 1987.

Deus de um tempo cósmico, logo cíclico e atemporal, não histórico, não “da minha vida”, ainda que ela seja “dele”. Um deus vivo mas situado fora da vida cotidiana, isto é, não lembrado como relacionado pessoalmente com os homens como sujeitos. Fora raros casos, não há festas populares a Deus-Pai. Fora a exceção de Trindade, em Goiás, não conheço cortejos e, menos ainda, procissões ou romarias a ele. Com o geógrafo Yi-Fu Tuan, eis-nos diante de um ser sagrado do espaço, mas não do lugar, da natureza e do cosmos, mas não da cultura e da história: um ser da crença sem o culto1. pois já que ele existe e aparece mas não nos vem, não há porque ir infestivamente a ele.

Um ser oposto ao Deus-Pai é a pessoa do Deus-Filho. De saída uma diferença importante entre os católicos. O Pai não tem nome próprio, pois o catolicismo popular esquece o Jeová dos judeus. Gerador não-gerado, ele não tem uma família de onde veio, embora tenha, na Trindade de que é supostamente o ser supremo, o nome e o lugar do “pai”. Nas rezas do povo ele nunca é Iavé ou Jeová, como na Bíblia, é apenas Deus, Pai, Nosso Pai, Deus-Pai, o Onipotente. Ao contrário, Jesus Cristo é menos chamado Filho do que ele, Pai. Quando Filho, o costume é que ao nome se acrescente: “de Maria”, “da Virgem”, “da Virgem Maria”. Ele é Jesus Cristo, é Jesus, o Menino Jesus, Bom Jesus e, então, como outros seres santificados, pode ser de uma qualidade: “dos navegantes”, “do bonfim”, ou de um lugar: “da Lapa”, “de Pirapora”; às vezes, de uma qualidade tornada um lugar: “dos Perdões”, Jesus é Cristo apenas quando o imaginário do povo se deixa invadir pelo da Igreja, como nas comunidades eclesiais de base.

Também ao contrário de Deus-Pai, que disse, de onde estava, a palavra necessária para criar, o Deus-Filho viajou e veio para salvar. Distante, a palavra do Pai é sempre imediatamente onipotente, enquanto a do Filho, piedosa antes de ser poderosa, às vezes súplica e falha, como a dos humanos: “Pai, afasta de mim este cálice”.

Procuremos não esquecer que as crenças populares exageram a suposição de que Jesus Cristo, “deus e homem verdadeiro”, foi sempre, fora os anos silenciosos de Nazaré, um nômade. Ele interrompeu uma viagem forçada de seus pais, para nascer; obrigou pastores e reis magos a virem a ele do Oriente; fugiu com a família para o Egito; retornou, e tudo o que fez, entre milagres e pregações, foi entre deslocamentos. Viveu os momentos mais notáveis de sua vida em alguns lugares fora das cidades: barcos no lago, andando sobre as águas, o sermão da montanha, a tentação do deserto, o horto das oliveiras, a morte sobre um monte, a transfiguração em outro e a ascensão aos céus em outro ainda. Mas não esqueçamos também que, sobre a memória de um deus nômade obtida dos evangelhos, as crenças populares multiplicam situações de “quando deus andou no mundo”. Eis uma saga de viagens de Jesus Cristo acompanhado de São Pedro, o deus misericordioso, justo e sábio, seguido de um santo-sanchopança, preconceituoso, tolo e ingênuo.

Deus-Filho, nascido de uma família terrena, ainda que através de recursos divinos, sujeito de uma pátria, pessoa de um povo e morador de pelo menos uma cidade, Nazaré, Cristo é antes de um deus da história, como enfatiza a Igreja pós-conciliar, um ser humano da geografia. Oposto ao Pai, que não tem nome nem próprio, nem biografia e que cria um cosmo mas não uma história humana – já que seu embrião são atos de desobediência dos homens e não da iniciativa do deus criador – Jesus Cristo não é apenas um ser de história, ele vive a sua história. Vive um tempo que s torna paradigma

1 Ver Espaço e Lugar, de Yi-Fu Tuan (São Paulo, Difel, 1983), especialmente os capítulos 2: “Perspectiva experimental”; 4: “Corpo, relações pessoais e valores espaciais”; e 7: “Espaço mítico e lugar”.

de todos os outros e, como os humanos, possui uma biografia exata: nasce, cresce sob o cuidado dos pais, vai à escola, aprende uma profissão, trabalha com o pai, viaja em missão, é denunciado, preso e morto. Mesmo depois de morto e renascido, Jesus volta a ser humano: caminha uma longa estrada conversando com os discípulos de Emaús, em uma das mais comoventes cenas dramáticas dos evangelhos.

Não são muito freqüentes os lugares de que Jesus Cristo é padroeiro, mas eles existem no Brasil e certamente existirão em outros países. Mas é raro o município camponês que não tenha pelo menos uma igreja ou capela de “Bom Jesus” e da “Santa Cruz”; além dos festejos eclesiásticos e populares de Jesus Cristo (Natal,2 Epifania – Festa de Reis, Semana Santa, Corpo de Deus, etc.), é comum que se comemore o “Bom Jesus” no dia 6 de agosto.

A diferença do Pai, um deus de reza mas não de rito, festa ou romaria, e, tal como sua mãe, Jesus Cristo é por excelência um deus de ritos eclesiásticos; não esquecer que a missa é dele, é ele e é sobre sua memória, um ser divino de festa e romaria. E, pelo menos no Brasil, ele é a única das três pessoas da Santíssima Trindade a quem tanto a Igreja quanto as comunidades populares dedicam ciclos completos de festejos ao longo de todo o ano e envolvendo todas as modalidades possíveis de situações rituais: a reza, a folia (pois Santos Reis existem em função do Menino Jesus), a festa, a novena, a procissão, a dança (como a de Santa Cruz) e a romaria. Jesus é um deus do lugar, oposto do Pai, deus do espaço. A Cristo se via, porque antes ele veio. Por isso, ser divino do lugar e de um tempo humano, viaja-se a ele, como em Bom Jesus da Lapa ou de Pirapora; viaja-se em busca dele, de seu lugar, como nas Folias de Santos Reis; viaja-se com ele, como nas procissões de Bom Jesus dos Navegantes ou nas do Corpo de Cristo. Vai-se a ele e se o coloca não apenas na vida mas também física e simbolicamente no corpo (a comunhão, a medalha), na casa (as imagens inevitáveis do Sagrado Coração de Jesus) e no lugar (as capelas tradicionais do Bom Jesus).

Se o Pai se teme e ao Filho se ama, que dizer do Espírito Santo no imaginário popular? Em primeiro lugar, recordemos a peculiaridade brasileira de havê-lo tornado uma divindade próxima, um ser divino e, como Jesus Cristo, padroeiro. Divino e, com menor freqüência, Divina, são nomes próprios comuns entre camponeses do Centro-Sul do País. Mas é difícil amá-lo como ao Filho. Se a figura do pai se opõe ao mesmo tempo à natureza, integralmente criada por ele, e à cultura, de que não participa, como pura divindade; se a figura do Filho se realiza como e na cultura humana (ainda que com preferência pelos lugares e situações da natureza), a figura do Espírito Santo é a mais absolutamente natural das três. Divino sem um corpo humano, como o Filho, ou sem uma forma humanizada, como o Pai, o Espírito Santo é fogo, “língua de fogo” (imagem cara aos pentecostais), mas é também e principalmente uma pomba, “a Pomba do Divino”, a “Pombinha”.

Mais do que o Pai e menos do que o Filho, ele aparece nos evangelhos e se reproduz nas crenças e nos ritos do catolicismo popular como um ser divino nômade: é quem vem a Jesus Cristo quando ele é batizado no rio Jordão e é quem “desce” aos apóstolos no dia de Pentecostes. O Pai cria e julga, o Filho salva e atende (“vinde a mim 2 Entre os camponeses do Centro-Sul do Brasil, o Natal é uma viagem de Deus no mundo dos homens; é a interrupção de uma viagem de seres humanos para o momento do nascimento do ser divino; é o estatuto de uma viagem de magos e supostos reis ao lugar do nascimento miraculoso. Por isso, eles entendem que o “nascimento” deva ser festejado não em um lugar mas na busca ritual de um lugar, logo, como uma folia: sempre um grupo errante de artistas-devotos que sai de um lugar em um dia determinado e deve chegar a um outro, onde há uma festa que celebra o encontro, em um outro dia determinados: 6 de janeiro (20 de janeiro no Rio e 2 de fevereiro no Alto Paraíba, em São Paulo).

todos vós...”). O Espírito Santo ilumina, fortalece, dá os dons e protege coletivamente. Pois no passado a ele se orava contra a peste, a fome e a guerra, e é em boa medida isto o que a memória popular guarda quando o festeja.

Entre o Pai e o Filho, o Santo Espírito é uma figura de deus sujeita a festas mas nunca a romarias. Ora, se essa lógica faz algum sentido, suspeito que ela possa ser aplicada a uma mesma figura santificada. Voltemos ao Filho. Jesus Cristo é momentos, símbolos, pessoas e situações diversas. Ele sugere relações desiguais como o homem devoto e, portanto, formas diferentes de culto. Cristo é sua pessoa: Deus, Homem pertencente ao mesmo tempo a uma trindade divina e a uma família humana. Mas, ao contrário do Pai e do Espírito Santo, a quem falta justamente a humanidade com tudo o que ela implica para que o ser divino possa ser equiparado aos humanos e, portanto, pensado através deles, Jesus é amado e cultuado por meio de ritos de memória de sua biografia terrena. Um pequeno detalhe importante pode ser lembrado aqui: ao contrário de outras religiões, não há no catolicismo qualquer festa de memória cósmica do momento em que Deus-Pai teria criado o mundo e, depois, o homem: o Gênesis é para ser acreditado não para ser festejado. No catolicismo da Igreja e também no do povo, esse momento nuclear das relações deus-homem é deslocado para o Natal – nascimento de Cristo – um breve momento de menos de uma página na Bíblia, tornado no entanto doutrinária e efetivamente o momento zero das reais relações entre o cristão e o sagrado. Não é por mero acaso que o ano litúrgico popular começa, na prática, nele. Homem-deus, Jesus Cristo é uma pessoa humana: tem um corpo e um rosto, supõe-se que belos, mesmo quando desqualificados no momento da Paixão. Sofreu como qualquer homem e teve sede, fome e fadiga. Terá tido desejos? Mas essa pessoa, justamente por ser humana, é múltipla e sugere relações diversas como um ser de culto religioso. Vejamos como.

Seu momento de criança é o Menino Jesus. Entre os camponeses ele, um “santo” de festa e através do Santos Reis que o buscam a cada ano entre casas e campos, é um ser de folia. Na verdade, no mundo rural, pelo menos nas regiões de Minas Gerais, São Paulo e Goiás, o “festejo do Natal” subordina-se aos rituais do ciclo de Santos Reis, e o grande momento popular de culto é o dia da Festa de Santos Reis. E o que é ela senão a ocasião da chegada simbólica da Folia em um lugar onde terminada a viagem – a “jornada” – todos encontram e se encontram diante de um presépio onde o Menino Jesus é ritualmente adorado.3 Mas, adulto, oposto ao Menino, Cristo é um ser da Paixão e, na representação acentuadamente dramática com que os católicos brasileiros exasperam seus irmãos evangélicos, é mais o sofrimento, a solidão e a morte aquilo que se festeja, pois o momento da ressurreição gloriosa é muito mais da Igreja do que do imaginário popular. O Natal festeja um deus que nasce, e a Semana Santa, um homem que morre, esquecida de que ele é oficialmente o deus que vence a morte. Por outro lado, tornado um bom padroeiro, como outros santos, o Bom Jesus é um ser de festa e romaria.

Ao Menino Jesus festivamente se vai, se visita no presépio. Até ele as folias viajam seis ou treze dias todos os anos. O Cristo da Paixão viaja seu suplício pelas ruas, e o momento mais intenso da Semana Santa antiga (o que mais se preserva em antigas cidades) não é outro senão o da Procissão do Encontro, quando o Filho supliciado descobre a Mãe em lágrimas, no instante em que os dois grupos processionais se

3 Remeto o leitor a um pequeno trabalho meu, publicado pela metade no nº 20 de Cadernos de Folclore (INF) e recentemente republicado na íntegra na Revista Goiana de Artes, 4 (1) jan/jun 1983, pp.1-57: A Folia de Reis de Mossâmedes – etnografia de um ritual camponês.

fundem em um. Depois de morto, a ele se visita dentro da igreja, e tais momentos são, repito, afetivamente muito mais fortes do que os da vitória litúrgica de Jesus sobre a morte, pouco representada nos cultos populares. Ao Bom Jesus camponês se vai em romarias, como na Lapa (Bahia), ou se faz uma festa. Mas o sentido dos deslocamentos é desigual: no Natal, um grupo de devotos-artistas jornadeia em busca do Menino Jesus; na romaria, devotos, penitentes ou não, vão em busca de um lugar próprio e único, onde um tipo peculiar de relação com o sagrado é intensamente vivido, por ser “ali”. Assim, qualquer lugar devidamente preparado, do campo ou da cidade, pode ser o “da chegada” e da festa, no ciclo do Natal, enquanto que apenas os centros consagrados de romarias servem a ela.

Temos, portanto, um deus que nasce e provoca uma festa que encerra uma viagem; um deus que morre e provoca uma comemoração ritual do sofrimento; um deus estável entre os homens que provoca festa e romaria, melhor, romarias vividas também como festa.4

Não quero dizer com isto que o tipo de sujeito sagrado sugere ou impõe a norma específica do tipo de seu culto. Mas, tomado o exemplo tão desafiadoramente polissêmico do catolicismo camponês no Centro-Sul do Brasil, não deixa de ser intrigante pensar que há diferentes modalidades de um mesmo sujeito sagrado e mais ainda de relações pensadas e vividas entre tipos de fiéis-devotos e tais tipos de seres a quem esta ou aquela modalidade de culto, como ritual de celebração da própria relação, torna-se única ou pelo menos preferencial.

Descendo de Deus e sua corte, eis que Nossa Senhora, a Virgem Maria, é o ser santificado que abarca a maior pluralidade de formas de celebração popular no mundo camponês. Ela é um ser de festa, de procissão, de romaria, de folia (mais no passado, muito menos agora) de cortejo e de visitação. Tomando seu exemplo, desfiei aqui as principais modalidades de celebração popular no catolicismo, deixando para o fim as duas que, aparentemente opostas, são uma plenamente dela e outra quase inexistente com forma de culto a ela: a reza e o folguedo.5 A reza do terço é uma oração a Maria e, apenas através dela, a qualquer outro ser celestial, inclusive as figuras da Santíssima Trindade. Não esquecer que no catolicismo camponês a reza do terço tanto pode ser todo o rito de um momento quanto pode acompanhar qualquer outro: a procissão, a romaria, a festa (há festas camponesas sem a presença de padres – que é muito comum – em que uma “reza de terço” é todo ou é o principal momento propriamente “religioso”) e a folia: tradicionalmente os devotos-foliões têm de rezar um terço quando é pedido em alguma casa que visitam, e se for anunciado que o motivo é uma promessa o dever de ofício torna-se uma obrigação devota.

No entanto, ao contrário, não conheço muitos folguedos populares do catolicismo dedicados a Nossa Senhora. De reto é preciso recordar aqui uma evidência muito pouco acentuada: forma de culto e desempenho predominantemente masculino, o folguedo, com ou sem dança, é dirigido muito mais a santos masculinos do que a mulheres santificadas. Assim, a Santa Cruz, associada a Cristo na Paixão e não a sua

4 Algumas passagens do notável trabalho de Rubem César Fernandes, Os cavaleiros do Bom Jesus (São Paulo, Brasiliense, 1983), traduzem com rara felicidade o caráter alegre e machamente festivo que subordina o espírito supostamente contrito e penitencial das romarias, pelo menos no Centro-Sul do Brasil. 5 Chamo a atenção para o fato de que os antropólogos, muito menos do que os folcloristas, nunca estiveram particularmente interessados em descrever mais a fundo os diferentes tipos de ritos e festas do catolicismo popular. Aquilo que é feito exaustivamente quando o que se descreve é uma cultura indígena ou uma cerimônia do candomblé, é sempre parcial e fragmentado quando se fala das outras.

mãe, foi no passado e até hoje festejada com e como dança. Do mesmo modo, São Gonçalo do Amarante é festejado no Brasil com uma dança, “folga”, “função”, que em certas regiões de Minas e São Paulo atravessa toda uma noite. Assim também dançava-se o Cururu paulista para São João e os festejos aos santos de negros, que, quando em sua forma completa, envolvem sempre ternos, bandas ou guardas de congos, moçambiques, catupés ou vilões, sujeitos guerreiros de dança e cortejo.

Talvez aí esteja um exemplo único entre nós em que uma figura de mulher, Nossa Senhora do Rosário, é cultuada com folguedos de canto e dança e pode inclusive ser conduzida, como imagem, em estandartes ou mesmo em procissões, acompanhada de grupos de devotos dançantes. Muitas vezes ouvi em Minas Gerais, em São Paulo e em Goiás um mesmo mito recorrente de origem que explica entre os negros devotos do congo e do moçambique por que eles dançam com e para Nossa Senhora do Rosário. Sua imagem bendita surge em uma loca de pedra ou “no oco de uma árvore”. Vão lá o padre e os seus, brancos todos, fazem seu ritos para que ela os acompanhe, e nada conseguem. Vão os congos, negros, a santa sorri, mas fica onde está. Vão os moçambiques, os mais pobres, negros todos, cantam e dançam para ela. A santa desce miraculosamente de onde está e os acompanha.6

Antes de prosseguir essas reflexões sobre tipos de seres sagrados e modos de culto a eles devidos, sugiro um momento de “olhar distanciado”. É desafiador sair por um instante do âmbito do catolicismo camponês e procurar ver como outras religiões e suas variantes no Brasil simbolicamente concebem as trocas adequadas entre o fiel e a divindade, como a partir daí estabelecem uma geografia de lugares e viagens como forma o local de culto.

2. Ir e ficar, viajar, permanecer

Entre os protestantes e mais ainda entre os pentecostais, o templo de Deus é a pessoa e o corpo do fiel. No mundo, fora dele, o único objeto material de respeito mas não ainda de veneração é a Bíblia. O lugar santo é qualquer um onde em nome de Deus “duas ou mais pessoas estejam reunidas”. Portanto, o próprio templo só é santo por causa da comunidade que o habita, e nada há nele que o torne poderoso ou digno de devoção em si mesmo. Pode ser uma casa qualquer que facilmente se adapta aos usos do culto. E, como não há nela objetos de devoção, vai-se dali embora de uma para outra sem dificuldades. Apenas quando a igreja protestante faz de um templo o tempo de sua tradição, ela pode tornar-se um lugar querido, mas nunca devoto no sentido católico da palavra. Também não há lugares santos ou santificados e, como o valor da celebração está no poder da palavra e não do gesto ou de qualquer símbolo além dela, não há um “aonde ir” em busca do sentido do sagrado. Não há procissões nem romarias. Há visitas de preceito a casas de “crentes” onde, de resto, faz-se o mesmo culto devido ao templo. Protestantes e pentecostais reduzem o culto do deus da igreja ao culto na igreja do deus: menos o lugar do que a comunidade. Quando viajam é para qualquer lugar onde haja outras igrejas, templos onde oram sem que o lugar, por ser mais antigo ou consagrado, tenha qualquer valor sobre o poder do sagrado.

6 Remeto o leitor a meu livro A festa do santo de preto, (Rio de Janeiro/ Goiânia, Funarte/Editora da UFG, 1985).

Curiosa divisão entre as duas maiores denominações pentecostais no Brasil. A Congregação Cristã no Brasil abomina qualquer trabalho religioso fora da casa do crente e fora do próprio templo (de resto, todos iguais uns aos outros, sempre que possível). O batismo é feito em tanques dentro do edifício e, ao contrário de São Paulo, eles não pregam em praça pública. A Assembléia de Deus multiplica cultos “ao ar livre” e vai a rios para o batismo. Mas, atenção, vai a qualquer um que sirva para mergulhar sem perigo o corpo do neocrente. Não há um rio único e nada há em qualquer um, a não ser a água de todos, que o torne especialmente propício a um poder religioso qualquer.

Pelo menos nisto é possível fazermos uma aproximação entre duas religiões em quase tudo o mais tão opostas: o protestantismo e o espiritismo kardecista. Porque também entre os espíritas não há, fora o corpo do sujeito e da comunidade de médiuns à volta de uma mesa com toalhas brancas, nada que mereça preceitos de veneração. Mais até do que os evangélicos, sequer os espíritas consideram sua casa de orações e serviços como um templo, tal como os protestantes e, mais ainda, os católicos. Se aos protestantes calvinistas e a quase todas ramas pentecostais abomina o excesso de gestos e símbolos que tornem o lugar e o momento cerimonial do culto mais visíveis e desejados do que o próprio culto, aos espíritas parece abominar até mesmo o culto ao culto, que eles reduzem clinicamente à “sessão”, onde o serviço entre os homens através dos espíritos é mais importante do que rituais dos espíritos humanos à divindade.

Eis-nos diante de sistemas religiosos que deslocam o lócus da fé para o interior do sujeito – vivido como a própria fé entre os evangélicos e como o resultado de um trabalho de desenvolvimento espiritual entre os espíritas – e para a relação direta entre ele e os seres sagrados, sem a mediação de outros sujeitos e de recursos externos a pessoas e palavras proferidas. Tudo o que salva, salva “aqui”, isto é, em qualquer lugar onde de algum modo o fiel sente que vive sua comunhão com seu deus.

O catolicismo da Igreja tradicional e o catolicismo popular, assim como as religiões de origem afro-brasileiras, são sistemas de sacralização de lugares. Mas aqui também há diferenças. Se entre os pentecostais que buscam um rio para o batismo nada há neste ou em qualquer rio que o torne um local preferencial de procuras, pois o que vale é a água e a reprodução fiel de um suposto gesto evangélico, entre os adeptos do candomblé, os rios são o lugar simbólico ou real da presença terrena de tal orixá ou de tal poder. Enquanto isso, para católicos populares, que não batizam em rios e não crêem em geral na morada de seres santificados (mas os perigosos sim, como a “mãe d’água”) dentro das águas, um rio pode ser especialmente lembrado por nele haver aparecido uma imagem santa. Ainda que em teoria um devoto católico camponês possa dizer que o poder da graça depende da qualidade da fé, na prática, entre isso e a experiência religiosa, ele interpõe uma série bastante bem codificada de recursos materialmente simbólicos. Os cultos possuem significações diferenciais e, de acordo com a equação entre a intenção do gesto, entre o lugar e o modo de realização do rito, os efeitos desejados podem ser desiguais. Se não fosse assim, por que então casar em Aparecida do Norte ou batizar um filho supostamente salvo da morte por um milagre em Trindade (Goiás)?

Não significa apenas que em um lugar, uma oração individual ou coletiva tenha mais poder do que em outro, embora isso seja tradicionalmente acreditado. É que todo o universo do cotidiano e o da referência cosmicizante recorta, do mundo imediato, do vizinho, do próximo, do distante, do imaginário, gradações diferenciais de presença do sagrado: o infra-humano, demoníaco ou celestial. É importante lembrar que para a lógica e o imaginário do catolicismo popular a relação de fé não é apenas mediatizada por seres e símbolos entre a pessoa do fiel e a divindade, ele existe dentro de contexto

cuja mediação torna tal relação justamente possível ou, melhor ainda, mais adequadamente realizável. Os lugares possuem padroeiros, e assim as casas, as famílias, os grupos diferenciais da vida cotidiana, as pessoas. Religião do lugar, de trocas entre os seres através de objetos e gestos realizados em situações especiais, o catolicismo camponês sobrepõe a cada comunidade, por pequenas que seja, uma geografia do sagrado que importa a qualquer um de seus habitantes conhecer. Tal curva de estrada é potencialmente perigosa; tal capela é protegida por tal padroeiro que, melhor do que outros, atua favoravelmente em tais casos; tal tempo do ano é mais propício a tal tipo de culto (vai-se muito mais a Aparecida por volta de julho a outubro do que entre novembro e fevereiro). Tais lugares são propícios a tais cultos menos a Quaresma, e assim por diante.

Quanto mais da pessoa à família e da família à vizinhança ou a uma outra qualquer dimensão de “comunistas” reconhecida, tanto mais a experiência da religião se faz por uma dupla oposição:

a) entre a reprodução cultural da rotina da fé (as mesmas rezas de mesmo jeito, nas mesmas ocasiões) versus a ruptura festiva da rotina cotidiana, o que é sentido da própria sucessão de festas como ciclos que se repetem;

b) entre o desejo da residência, da estabilidade, da consagração dos lugares santificados próprios e próximos versus o deslocamento cultura, como folia, cortejo, procissão ou romaria.

Em algumas regiões camponesas mais tradicionais, a proliferação de bairros rurais com diferentes padroeiros e mais os costumes de realização de romarias freqüentes criam uma espécie não tanto de “festa permanente”, como Douglas Teixeira Monteiro a descreveu no Contestado, mas de uma permanência entre festas. Sempre, em algum lugar próximo, alguma coisa está acontecendo, ainda que todas sejam festivamente semelhantes umas às outras. Como um mero ponto de passagem, temos aqui uma oposição intrigante entre os grupos religiosos demograficamente mais importantes no Brasil. De um lado, os que dessacralizam lugares e outros símbolos e, portanto, evitam deslocamentos, viagens ou equivalentes como valor cerimonial. De outro lado, os que sacralizam locais em si, como rios, cachoeiras e equivalentes e os usam genericamente como lugares de atualização de cultos específicos ou que tornam peculiarmente sagrado este ou aquele local específico. Entre esses últimos, os sistemas de real ou suposta origem afro-brasileira viajam a qualquer lugar da natureza para seus cultos, enquanto os católicos deslocam-se para lugares da cultura (esta igreja, aquela capela, esta cidade, etc.) tornada peculiarmente sagrada por algum acontecimento que, ocorrido em geral no domínio da natureza, é trazido para um lugar de cultura que a presença do objeto ou ser sagrado consagra. Assim, os umbandistas vão à beira de qualquer mar, a uma cachoeira qualquer, e é possível que uma lógica de razão prática determina preferências. Mas um devoto católico viaja muitas horas à verdadeira Aparecida do Norte, mesmo tendo do outro lado da praça uma capela de Nossa Senhora Aparecida.7

7 Nossa Senhora da Aparecida é achada no meio de um rio entre as malhas da rede de pescadores e é levada para a cidade e depois para uma igreja. Salvo do ataque de um animal furioso, um homem em Goiás resolve construir a capela do Divino Pai Eterno, origem da cidade e do local de romaria em Goiás.

Em uma primeira síntese teríamos a seguinte disposição:

Dessacralização do lugar + sacralização absoluta do

sujeito

Sacralização de lugares genéricos na natureza

Sacralização de locais específicos da cultura

Qualquer local se presta ao culto, porque ele é a comunidade de fiéis

Tanto o lugar costumeiro quanto os locais até onde se vai para cultos específicos possuem qualidades sagradas próprias

Tantos os locais de culto são sagrados e especialmente devotados a e protegidos por padroeiros quanto certos lugares sagrados são única ou particularmente dotados de poder religioso

Protestantes históricos, pentecostais, espíritas

Candomblé, umbanda (“afro”, de modo geral)

Catolicismo tradicional de Igreja Sistemas do catolicismo popular.

3. Devoto e Narciso: procissão e romaria, reza e festa

Quase sempre quando descrevemos festas católicas – as tradicionais dos sistemas camponeses de crença e culto, as da Igreja tradicional, as da Igreja pós-conciliar – é costume uma oposição entre tipos de celebração em um lugar (missa, novena, reza) e tipos de celebração entre lugares (folias), em busca de algum lugar (romaria) ou através de algum lugar (procissão).

Oura, em sua variação de formas e alternativas do catolicismo parece ser, durante todas as religiões mais visíveis no Brasil, aquela que combina o maior número de formas diferentes de celebrações, podendo fazê-las, inclusive, sucederem-se umas às outras, do que resulta a própria festa católica. Assim, uma Festa do Divino Espírito Santo, a folia precatória de antes dos festejos, a novena, as procissões, a grande missa do domingo e os folguedos, como os ternos de moçambiques e as cavalhadas. Apesar dos esforços da Igreja para separar uma parte propriamente religiosa das outras, folclóricas ou das francamente profanas, para o devoto popular o sentido da festa não é outra coisa senão a sucessão cerimonial de todas estas situações, dentro e fora do âmbito restrito dos ritos da Igreja.

A estrutura de uma grande festa como a “do Divino” ou as festas de Nossa Senhora do Rosário associam situações cerimoniais mais peculiares do que as classificações usuais costumam perceber. Vejamos como. Em primeiro lugar há, para o imaginário popular, uma dimensão de romaria. Ainda que não se vá “ao Divino” com o mesmo espírito devoto com que se vai “a Aparecida”, para uma imensa maioria de famílias camponesas a festa implica ir à festa. Ela importa quase sempre um deslocamento, e a idéia costumeira do “ir à festa”, implicando uma viagem, da rotina até sua ruptura, é sempre essencial. A festa importa ainda a participação do devoto festejador em um número máximo de situações. E, sabemos, desde um ponto de vista popular, o significado religioso dos diferentes momentos de celebração não obedece à lógica da Igreja. Assim, se o ir a uma romaria implica necessariamente o chegar até a Igreja, não raro mais à imagem “da santa” do que ao próprio altar, e “assistir” a uma missa, em uma festa tradicional um momento da chegada da Folia do Divino a uma casa

pode ser mais adequado ao cumprimento de um voto do que a freqüência à comunhão durante a missa.

Por isso mesmo, do ponto de vista laico, toda a festa realiza uma sucessão de diferentes momentos cerimoniais, às vezes aparentemente próximos e, no entanto, opostos. Assim, é freqüente que as grandes festas em louvor a padroeiros de negros possuam a procissão de costume e, em contrapartida, o cortejo, como os do reinado. Esse cortejo, invisível aos olhos de algum observador apressado ou, então, não mais do que uma outra forma de procissão, é na verdade um quase oposto a ela. Pois na procissão uma multidão respeitosa de devotos viaja por perto com seres que simbolicamente materializam o sagrado. Ali se anda, se canta e se reza. No cortejo são as pessoas que desfilam a si próprias. Não há andores, e são eles mesmos, figurantes que tocam, cantam e dançam, os que se adornam para desempenhar um papel para ser visto. Os grandes cortejos de festas de negros possuem sempre figurantes coroados de seu reinado e, mais do que uma saudade coletiva da monarquia, entre reis, príncipes e guerreiros, o cortejo é, como os folguedos tradicionais, das cavalhadas aos moçambiques, um festivo momento de Narciso, que, no entanto, em nada parece conspirar contra o espírito devoto que se revela ser a razão da festa.

Finalmente, as festas mais completas preservam grupos e situações cerimoniais que, à falta de melhor nome, chamarei aqui de folguedos, usando uma expressão cara aos folcloristas. Tal como ocorre dizer-se quando se explica o porquê dos cortejos, esses ritos que se fazem de guerras, de jogos entre rivais, de concorrências pelo melhor desempenho são sempre explicadas como memórias, como dramatizações de algum acontecimento guerreiro ou milagroso onde, de uma maneira ou de outra, uma intervenção celestial está sempre presente e não só torna legítimo o folguedo, vivido com um rito, como justifica sua reprodução ali: naquele exato momento e naquela situação específica de festa.

Em algumas celebrações tradicionais brasileiras são esses grupos cerimoniais os que por costume fazem uma das mais generosas e menos visíveis celebrações: as visitas, “visitações” a pessoas e a famílias no decorrer dos festejos. Assim, ternos de congos e de moçambiques em algumas festas do Centro-Sul reservam uma parte de seu tempo de celebrar e de “festar” para ir cerimonialmente em visita à casa de alguém. Alguém que pode ser um velho dançador do grupo hoje enfermo ou uma pessoa que venha a convocar o terno a sua casa – por “gosto” ou para o pagamento de uma promessa.

Eis-nos agora diante de um breve quadro classificatório um pouco mais completo do que os usuais. Em um primeiro momento, saibamos opor os ritos de culto do domínio específico da Igreja Católica, como a missa, a novena e a procissão, àqueles que ela própria e os artistas devotos populares reconhecem como sendo de um domínio laico. Em um segundo momento, saibamos reconhecer que, fora situações de exceção, o que torna ritual uma cerimônia devota do catolicismo é sua qualidade de deslocamento, de viagem:

a) em busca do lugar sagrado, como na romaria;

b) conduzindo seres simbolicamente sagrados através de espaços profanos, como a procissão;

c) viajando através de lugares com o anúncio de um festejo religioso em algum local, como a folia;

d) fazendo desfilarem pelas ruas pessoas revestidas de uma dignidade especial, como no cortejo;

e) levando símbolos e sentidos de sacralidade à casa do outro, como na visitação;

f) fazendo representar itinerantemente uma memória tida como heróica e/ou religiosa, como no folguedo.

Em qualquer uma dessas situações predomina sempre a idéia de que o culto religioso é nômade: leva as pessoas a seres e poderes celestiais ou, retirando-as por momentos do lugar onde estão, fá-los por um instante conviverem com os homens sua experiência de nômades, dentro ou fora da festa.

Tudo isto sugere que, no catolicismo popular, cada tipo de celebração seja uma espécie de forma pura e também, tal como na relação romaria-procissão, seja sempre peculiarmente o outro lado, o contrário de alguma outra modalidade de ritual, na forma e no sentido. Se alguns são penitenciais, como as romarias, outros serão festivos e revestidos do sentido do júbilo e do louvor. Se alguns são a iniciativa do corpo eclesiástico oficial, como a missa, outros são a esfera de liberdade e criação do laicato, como a folia. Se uns são o rito de consagração do lugar onde se está, outros serão a interminável busca, ciclicamente repetida, de um lugar longe, consagrado. Há sempre uma terra-sem-males em algum lugar.

Ora, creio haver sugerido aqui e ali que as idéias expostas aqui com base em algumas pesquisas de campo conspiram contra a suposição de que romarias são romarias e procissões são procissões, de que novenas são novenas e folias são folias e de que, finalmente, romarias opõem-se diretamente a procissões, assim como natais são o espelho invertido de semanas-santas.

Se enumerei antes a reza, a festa, a folia, a procissão, a romaria, a visitação, o cortejo e o folguedo como situações cerimoniais básicas dos cultos religiosos coletivos do catolicismo popular, o que desejei descrever foi justamente sua característica de situações combinadas que, através de aparentes oposições permite aos devotos uni-los, fazerem-se suceder, articulá-los como um todo que é, justamente, a festa.

Tomemos o exemplo da própria romaria. Simbolicamente penitencial, ela se realiza na verdade como uma grande festa de viagem, chegada e volta, sobretudo quando acontece no tempo ou no dia festivo do santo e do lugar sagrado visitado. Se a romaria é uma viagem a um lugar, ela é mais do que tudo uma chegada a um lugar onde a própria romaria realiza como festa ou se transforma em um momento de festa que se celebra com e entre romeiros. Por isso, toda a romaria completa envolve:

a) uma viagem ao lugar sagrado;

b) ritos de visitação do ser e do local sagrado no interior do lugar consagrado (a imagem do Bom Jesus, na igreja de Bom Jesus, em Bom Jesus de Pirapora);

c) o cumprimento de ritos oficiais da Igreja, pelo menos na missa e na comunhão;

d) a procissão pelas ruas do lugar consagrado com a imagem ou outros símbolos de representação do santo consagrador;8

8 Nas romarias em Trindade (Goiás), há procissões diárias durante a semana da festa, que culmina no primeiro domingo de julho. Na vez em que lá estive, saíam pela madrugada uma procissão dos homens e outra das mulheres. Elas se encontravam em um ponto do percurso e iam juntas até o local do santuário, onde a primeira missa era rezada. Na tarde de domingo, uma grande procissão com a imagem do Divino Pai Eterno desfilava pela cidade e antecedia a grande missa que encerrava os festejos.

e) a vivência do lado festivo da “festa da romaria”, com compras, fotos do lugar, assistência a situações e grupos de artistas, etc.

Assim também, do Círio de Nazaré à mais pequenina festa de padroeiro de um bairro rural estão sempre presentes as mesmas situações rituais combinadas com variações peculiares. Vai-se de algum lugar a outro, consagrado por ser “da festa” e pelo que “ali” se festeja. Há uma procissão antecedida e seguida de rezas. Quando há grupos de devotos-artistas, do lugar ou de fora, há apresentação de folguedos próprios. Há, finalmente, a festa da festa, entre leilões, jogos e forrós.

Mais do que os católicos de outras regiões do mundo, os da América Latina, e os do Brasil peculiarmente, colocam no rito e na celebração tudo e vivem “isto” entre todos: a esperança e o desespero, a glorificação e a súplica, o louvor de Deus, mas também a ostentação da miséria humana, a roupa colorida, Narciso, a música afinada, mas também as chagas, o corpo doente e o pranto ritual. Para que tudo entre todos seja possível de ser vivido, ao contrário de espíritas e protestantes, às vezes seus vizinhos de vida e trabalho, os camponeses católicos preservam um estoque bastante grande e variado de situações cuja síntese é, como vimos: ir de um lugar comum a um lugar sagrado; fazer em um lugar de celebração; fazer circular o sagrado pelo espaço comum da vida cotidiana. Entre a reza e a dança, a folia que antecede a festa e a procissão que a encerra, o que importa em cada caso e qualifica cada situação é a maneira como as variações de culto coletivo do catolicismo popular são combinadas, para produzir, cada uma e todas, semelhança com todas as outras, pois isto é o que as torna legitimamente acreditadas, e que haja entre elas a evidência de sua própria diferença, o que as torna uma maneira particularmente apropriada a um tipo necessariamente peculiar de celebração.

Ouro Preto: arte, antiguidade e artesanato

Às pessoas do Projeto “Interação”, da Pró-Memória.

1. A cultura na rua: Ouro Preto

Ao longe, entre morros verdes, que é o que mais há em Minas, tora o pico do Itacolomy, nada há em volta que diga a quem vem de fora que se vai chegar em uma cidade: Ouro Preto; mais do que Diamantina, Congonhas, São João Dei Rei e todas as outras, empapada de história. De alguns anos para cá, não apenas uma “cidade histórica” mas um lugar “patrimônio cultural da humanidade”, com o aval da Unesco. Por isso mesmo, ainda que a natureza ao redor não antecipe a mineiros e forasteiros qualquer coisa fora do comum, desde que avista da janela a torre da primeira igreja, o olhar do viajante se prepara para espantos. Porque não se chega a Ouro Preto como a qualquer cidade: “a história e a cultura o esperam e o espreitam, homem de fora, seja digno”. Depois é um casario tanto mais antigo quanto mais se desce da rodoviária ao centro. Um ar em tudo de que as pedras, as pessoas, as casas e até os pássaros “resistiam ao tempo”. O arruado das ladeiras em todas as direções mas convergindo ao grande largo cercado por prédios públicos solenes e várias igrejas antigas onde o sagrado parece ser, “ali”, consagrado pelo “peso dos anos”: a praça Tiradentes. Até as casas pobres, quando antigas, exigem que ali se entre com respeito. Encostadas umas às outras, elas são também parte “da história” do lugar e, fora isso, têm todas, segundo seus donos, a sua própria história.

Por isso, entre os que chegam para “conhecer Ouro Preto” há um sentimento geral de que até se veio em uma espécie de romaria cívica. Ao contrário de Congonhas durante os festejos do jubileu do Senhor de Matozinhos, aqui o sagrado é a história e, mesmo na Semana Santa (o que se busca entre as igrejas, que valem mais como museus ou monumentos), é uma espécie rara e diversa de cultura que, como “eventos”, “lugar” ou “objeto”, acredita-se que tenha “preservado” os valores e os símbolos “de nossa história”. Uma cultura guardiã, portanto, de nossa própria identidade nacional.

As companhias de turismo anunciam nos jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo viagens de férias ou feriados a diferentes locais do País. A cada um você vai a uma coisa diferente, às vezes a duas, três. Você pode ir a Foz do Iguaçu — “um espetáculo único da natureza” — com a vantagem adicional de aproveitar os cassinos e as compras do “lado paraguaio”. Pode ir à “Amazônia misteriosa” — promessa de índios e jacarés — ou à “inesquecível Bahia”, onde a esperança de sensualidade exótica acrescida à comida típica e a um rosário de festas escamoteia o “valor da história” e o “peso da cultura”, que são solenes e sérias nas cidades históricas de Minas. Por isso mesmo, ali sempre se vai com intenções nobres, onde cabe melhor o nome de “culturais”. Do mesmo modo como a Caldas Novas em Goiás se vai à pura natureza, às “águas quentes” e à volta delas tudo se faz. Assim como a Campos do Jordão se vai ao “frio”, onde os melhores hotéis anunciam lareiras, e um dos objetos que pelas ruas se

compra com maior prazer são pequenos feixes de uma lenha que quando queimada dá ao ambiente um cheiro europeu de mata de pinheiros.

A Ouro Preto se vai para voltar ao passado, e tudo o que se espera é o encontro com um tipo de cultura que se o faça ressurgir vivo no meio das ruas. Sem serras e sem praias, Ouro Preto se dá a si mesma ao viajante. É a ela, inteira, que se vai. Festas? Que sejam tão religiosas e sobretudo tradicionais quanto tudo ali. Pois já que tudo “ali” parece ser, mais do que em qualquer outro lugar do País, uma inigualável vida coletiva de “vultos” e “pessoas comuns” — senhores e escravos, inconfidentes e governadores do Reino, sacerdotes e poetas — embriagados de história e de religião, que mesmo o que é novo esteja revestido de um sinal unificador: o da tradição. “A Semana Santa em Ouro Preto”, parada no tempo, soleníssima: missas, rezas lentas e procissões de um comovente pesar.

Eis o que sugerem anúncios de jornais e volantes da Turminas.1 Entre a história (o folclore dos senhores) e o folclore (a história dos servos), oficialmente Ouro Preto só pode ser isto: a tradição. Dizer de lá qualquer outra coisa profana um lugar sagrado.2 Se

1 Transcrevo fragmentos do volante colorido da Turminas sobre Ouro Preto. “Ouro Preto exige idas e vindas para se revelar intimamente. Mas é capaz de criar identificações imediatas e impressões inesquecíveis. Assim, caso você disponha de pouco tempo para percorrer suas ruas, onde velhos fantasmas, ávidos de ouro, continuam circulando pelas noites de neblina, cuidando dos tesouros nos quintais das casas centenárias, experimente guiar-se pelo roteiro que segue, não se esquecendo de programar logo outra visita com mais vagar”. “Depois é hora de visitar o Museu da Inconfidência, antigo Palácio da Câmara e Cadeia, com seu mobiliário colonial e lembranças de um passado que se fez História.” 2 Em novembro de 1981, uma equipe do Projeto Cultural Ouro Preto (SPHAN, Pró-Memória, Universidade Federal de Ouro Preto, Prefeitura Municipal de Ouro Preto) publicou um documento coordenado por Luís Felippe Perret Serpa e José Maria Pena. Mais inteligente do que o outro, ele é de algum modo o oposto do volante da Turminas. Ao reconstruir os ciclos da formação arquitetônica e histórica de Ouro Preto, de 1698 até hoje, o documento procura desvelar todo Ouro Preto, primeiro como texto e depois na seqüência de imagens fotográficas que propõe. “Ouro Preto representa nesse processo um símbolo de nossas raízes, testemunho arquitetônico e artístico de nossa história. Desenvolve-se, por parte da intelectualidade brasileira, a ideologia da preservação de nossa identidade cultural, inicialmente sobre a força do conjunto urbano de Ouro Preto. Invade-se a autonomia da cidade e Ouro Preto torna-se cenário, enfoque que se cristaliza até os nossos dias. A Praça Tira- dentes é o símbolo dessa ideologia. O processo de industrialização no Brasil atinge Ouro Preto, por causa de uma riqueza natural, a bauxita. Inicia-se a fase de recuperação (1945), e durante esses anos cristaliza-se o problema contemporâneo brasileiro em Ouro Preto: toda uma ideologia de identidade cultural diante de um novo ciclo econômico, o ciclo do alumínio; até mesmo protagonista principal desse ciclo é uma multinacional: a Alcan. Diante da ideologia das raízes culturais e preservação de nossa identidade, coloca-se um ciclo econômico gerido por uma multinacional. Hoje, Ouro Preto é uma “cidade operária” (‘Ouro Preto: contemporaneidade e preservação’, p. 18 e 19). O documento prossegue com revelações absolutamente ocultas ao turista e que um fim-de-semana festivo de julho esconde, a não ser de quem se aventura a subir os morros e descer as ladeiras pouco atrativas das periferias de uma cidade “oficialmente” reconhecida como existente apenas no interior de seu circuito histórico. “Constrói-se, naturalmente, uma cidade nos morros e encostas em torno da cidade do ciclo do ouro. Esta nova cidade é a que corresponde ao ciclo do alumínio. As atividades econômicas principais da cidade são: no setor secundário, a indústria do alumínio; no setor terciário, as atividades da Universidade. O turismo não tem representatividade econômica para o município. Ouro Preto é um paradigma do problema contemporâneo brasileiro: identidade cultural e desenvolvimento. O que somos e para onde vamos?” (p. 20). A inteligentíssima seqüência de fotos começa com a praça Tiradentes, o grande largo onde parece que toda a história do País poderia estar simbolicamente condensada. Mas depressa desce ao Morro da Queimada, onde um barraco precário aproveita as grandes pedras de um muro ainda em pé (De que século? Feito por que escravos?) para fazer

é assim que a cidade se anuncia, é necessário perguntar se é também assim que ela é vivida. Por debaixo de uma aparência que tudo uniformiza, busca a realidade da própria cultura na variação e na diferença entre formas reais com que categorias diversas de sujeitos vivem coletivamente a experiência cotidiana da produção, da apropriação e da atribuição de significados àquilo que fazem, criam, crêem, transformam, dizem entre si e se acreditam ser: bens materiais, símbolos e valores com que tecem a trama de suas próprias vidas.

2. Um pequeno anúncio de festa

Perdido entre anúncios de cigarro e avisos de acontecimentos aparentemente mais importantes, um pequeno cartaz amarelo convoca quem chega para a:

Festa da Santa Cruz

da Ponte da Barra 1984

A comissão organizadora dos tradicionais festejos de Santa Cruz da Barra tem a honra e a satisfação de convidar o nobre e culto povo ouropretano e ilustres visitantes para participarem das festividades conforme o seguinte Programa.

Abaixo dele — do que deve acontecer na sexta, sábado e domingo, de 20 a 22 de julho — e da relação dos cargos e nomes da festa, a cidade se festeja a si própria:

Salve Ouro Preto, Cidade Monumento Mundial, na passagem de seus 273 anos

A hora é agora, vamos comemorar juntos.

Como é comum acontecer, o apoio à Festa de Santa Cruz é da Secretaria de Turismo de uma gestão da prefeitura municipal, que depois do nome do prefeito assina também o seu lema: “Preservando o passado, fazendo o presente, construindo o futuro”.

Mas na última linha do cartaz, humilde como sucede ser entre os poderosos do País, o logotipo e o nome de uma multinacional comunica a todos que o “apoio cultural” é da “Alcan-Alumínio do Brasil S.A.”. Eis uma primeira surpresa da cultura. Haverá outras. Desçamos às ruas.

3. Uma cidade que dá

Na verdade, para que haja entretenimento e “cultura para todos”, em Ouro Preto as diferenças se apagam aqui, e mais adiante se acentuam. No grande largo central calçado de antiqüíssimas pedras, à volta do monumento a Tiradentes e rodeado de grandes prédios históricos (o antigo Palácio dos Governadores, o da Câmara, a Cadeia,

uma de suas paredes. Mais adiante ela apresenta, na estrada entre Ouro Preto e Mariana, um bairro operário cuja precariedade e feiúra não o distingue muito de qualquer outro, entre Betim e Contagem, à volta de Belo Horizonte. No Morro de Santana um criativo “barraco de lata” aproveita o “lixo industrial da cidade”. Algumas “vistas gerais” de um “outro” Ouro Preto desvelam uma “cidade operária do alumínio” que a Alcan, situada no distrito de Saramenha, faz nascer à volta (mas aparentemente às escondidas) da velha “cidade do ouro”.

a Casa da Ópera, a “dos Contos”), os objetos sagrados valem como profanos e, nas igrejas, os profanos valem como sagrados. Museus e templos transformados uns nos outros guardam peças de “arte e história” considerados única e reveladoras privilegiadas de nossa “identidade nacional”. Mas pelo chão das praças, na mureta dos adros e dentro de lojas e vendas de antiguidade, arte e artesanato, meninos pobres e donos de negócio comerciam, reproduzidos em infinitas cópias baratas, os mesmos objetos. O volante da Turminas oculta de saída, para revelar depois, o rito mais persistente que todos os que chegam procuram cumprir: comprar. Velhas chaves de grandes portas antigas, jogos incompletos de porcelana, utensílios de um suposto cotidiano colonial (onde um penico pintado pode transformar-se em um caro e precioso objeto de centro de mesa) são oferecidos nas casas de antiguidades como “jóias de arte e cultura”. Mas no mesmo antiquário, se ele for mais “popular”, ou na rua, a vinte metros, reproduções de má qualidade dos “Profetas do Aleijadinho” ou xilogravuras com “vistas de Ouro Preto” e mais cinzeiros, potes e castiçais de pedras-sabão (incontáveis, por toda a parte) tornam múltiplas e baratas a antiguidade e dão à arte preços de artesanato.

Quem foi alguma vez a uma romaria católica em Aparecida, Congonhas, Canindé ou Trindade sabe disso. Da mesma maneira como a Ouro Preto se vem à tradição, ali se vai à devoção e, iguais e opostas, as duas coisas não são sequer diferentes. Vai-se ao sagrado em um lugar onde, por causa de algum acontecimento piedosamente acreditado como único e indiscutível (uma “santinha de madeira” colhida na rede por alguns pescadores), ele é simbolicamente mais forte e mais presente. Aos fiéis mais pobres, geralmente os que vão mais vezes “em romarias”, a viagem custa sacrifícios. Mas para todos, saldadas as dívidas com o santo, a romaria é festa. Parte dela: ver (nada mais comovente que uma “sala dos milagres”, nada mais tentador do que um “cirquinho” ou um “rodeio”), parte dela: comer, outra parte: comprar.

A contraparte da igreja é a feira, mas as duas se misturam. Numa se paga a dívida — promessa — na outra se compra a alegria — desejo. Uma parte considerável do dinheiro de quem viaja em romaria é destinado a trazer do lugar santo objetos que sejam tanto seus sinais quanto o sinal de que se foi “ali”. Mesmo entre os mais pobres não há quem volte para a casa sem uma pequena coleção de objetos de oratório, brinquedos, coisas de cozinha e peças de roupa barata que, mais do que necessários porque úteis, são desejados porque são símbolos. Suprema glória: ter dinheiro bastante para pagar a um fotógrafo de praça uma foto da filha, do “parzinho de namorados” ou da “família completa”, com o arremedo de um cenário pintado que comprove que se esteve “ali”. Voltaremos a isto.

Parece difícil que uma “cidade histórica” que se oferece a romarias cívicas e festas religiosas antigas na realidade se dê como um mercado onde, mais do que em qualquer cidade comum, tudo possa ser comprado e vendido, pois todo o centro da “cidade monumento” multiplica lugares de comércio, ali onde o que serviu um dia à vida serve agora à venda. De resto, como poderia uma rara cidade carregada de atrativos para viver, ver e comprar, escapar ao jogo das trocas do capital, que sutilmente (no volante da Turminas tudo parece ser ao mesmo tempo solene e gratuito) rege de muitas maneiras diferentes a ordem das transações não apenas dos produtos diretos de que é origem e guardiã mas, igualmente, da cultura e da história?

Um fim-de-semana de julho ao mesmo tempo recobre de rituais e democratiza essa cidade coberta de igrejas. E não deixa de ser irônico que, justamente ali, no “Dia do Senhor”, a cidade se abra desde cedo como exposição e mercado de tudo. Mas apenas a um olhar apressado ou muito convertido à propaganda das empresas de turismo (cujos ônibus despejam levas de curiosos) que negam à cidade o ser como a tornaram,

justamente para obterem do mito em que a transformam o máximo proveito do lucro, Ouro Preto sugere viver uma mesma vida uniforme e tradicional, entre a cultura e a história. A noite de sábado reage ao museu, e a evidente diferença de intenções com que pessoas e grupos de pessoas vivem “ali” fragmentos da vida da cultura de/em Ouro Preto conspira contra uma suposta ordem que pretendem igualar como se pode ser na cidade e viver ali: seja a vida do morador comum, seja a do viajante-romeiro de um dia ou dois.

4. Festas, feiras, festivais

Desde o escurecer, o largo central é tomado por bandos de jovens vindos de outros lugares, muitos de Belo Horizonte, vários de outras cidades do País. Afinal é julho e é sábado e, embora há anos o Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais não seja mais realizado ali, Ouro Preto tornou-se um ponto de encontro de jovens a quem horroriza o serem confundidos com os turistas. Lanchonetes, bares e restaurantes (as primeiras com nomes sempre modernos, e os últimos com títulos quase sempre senhoriais) que circundam o largo e descem pelas ruas próximas são tomados por casais ou grupos de jovens, casos de amor e amizade que Ouro Preto soleniza. Assim também os lances de escadas nos quatro lados da base do monumento a Tiradentes é um verdadeiro ponto de concentração deles. Vestidos com roupas usadas, “extravagantes” segundo os “do lugar” e os turistas mais mineiros, mas que são o uniforme colorido de sua própria condição, grupos de jovens bebiam, cantavam (havia, espalhados, três ou quatro violões), conversavam fiado, “se curtiam” (alguns entre beijos de espantar os fantasmas dos padres que vagam pela noite) ou “curtiam” simplesmente o momento de “estar ali”. Entre aplausos e deboches, um bêbado pobre, provavelmente um dos “tipos do lugar”, berrava um discurso que ninguém entendia. Por alguns momentos ele conseguiu ser um espetáculo solitário e pateticamente silenciou todos os outros, concentrado no degrau alto de onde falava os olhares de muitos.

Esta festiva e crescente onda de jovens estava em Ouro Preto como estaria em Salvador (apenas com praia e trio elétrico ao redor) ou em Belo Horizonte, para “curtir a gente mesmo, aqui”, como um deles confidenciou. De fato, ocupavam como crêem que são — e encenavam com ênfase o seu modo de ser — os lugares que julgavam mais apropriados da cidade antiga e cujos espaços invadiam de outros usos e símbolos, fazendo com que Ouro Preto em parte se redefinisse, para ser, sendo um “ali” único, apenas um entre outros lugares aonde se vai fazer, com as pequenas variações que cada um sugere ou impõe, as mesmas coisas de um mesmo modo, que intenções e significados aparentemente iguais pretendem tornar universal. Julho sugere Ouro Preto, como janeiro sugere Salvador. Na verdade, os verões, reinado da natureza em qualquer “paraíso tropical”, conspiram contra a cultura e a consciência da história.

Quando em período de festas: como na Semana Santa, em São Benedito ou Tiradentes; eles fazem de suas próprias transas, por momentos entremeados do que fazem os “outros”, o seu festejo. Mais do que para festas, vêm para festivais, como o “de inverno” no passado e, hoje, o fraquíssimo "do vinho” (anunciavam algumas faixas para alguns dias adiante um “de música popular”). Nos fins-de-semana comuns, criam rotinas com que pensam seduzir as regras, frouxas hoje, da rotina local. Evitam cuidadosamente as igrejas, tanto com piedades de fiéis quanto com espantos de turistas,

mas fazem feira nos adros e à volta deles. Quando não dividem quartos com parentes “de lá”, preferem as hospedarias mais baratas e se amontoam em pequenos bandos nos quartos sem banheiro. Alguns acampam e, por uma noite ou duas, há deles quem durma nos cantos de um jardim. Cruzando com os “outros” as mesmas ruas, invadem com sua diferença a especialidade do lugar e, sensíveis a estarem em Ouro Preto mas indiferentes ou mesmo hostis ao que acreditam fazer ali, as “pessoas comuns” compartem gestos, falas, mochilas e músicas com que se identificam, como uma tribo ou uma cultura a qual talvez valha mais a pena ver do que aquilo que se veio ver em Ouro Preto. Estavam abertas no sábado todas lojas de artesanato e antiguidade à volta do largo ou também descendo as ruas. Mas, no horário entre novelas e o Jornal Nacional, estavam vazias de compradores, quase todos adultos e turistas confessos.

Descendo do largo a rua que vai a uma praça e ao adro da igreja de São Francisco de Assis, existe um lugar a que se deu durante julho o nome de “largo da alegria”, que uma grande faixa anunciava. Ali havia ao mesmo tempo: um resto de feira de artesanato, que a manhã de domingo multiplicaria; a sobra de um “festival de vinho”, na verdade uma casa pré-fabricada em forma de tonel onde se vendia barato e em copos de plástico “os melhores vinhos do Sul”; a promessa para mais tarde de um animadíssimo “concurso de música sertaneja”. Do mesmo modo como no largo de Tiradentes, os mesmos jovens, mais do que os turistas e a gente do lugar, tomavam conta do largo da alegria. Entre a feira e o festival, eles aos poucos abandonariam o lugar que turistas mais pobres e adultos e velhos de Ouro Preto ocupariam quando começasse o “concurso de música sertaneja”.

O Largo da Alegria e suas imediações reuniam em um mesmo momento, ou em horas seqüentes, grupos muito diversos de pessoas. Durante todo o dia de sábado, a igreja-museu de São Francisco de Assis estaria aberta à “visitação pública”. Raros os jovens com meias coloridas e chapéus de penas. Ali as pessoas do lugar vendem ou trabalham, e os turistas, também aos pares ou em grupos e com guias, acorrem à “cultura”. Ê a eles que a igreja se destina e, fora datas absolutamente solenes, não há ofícios religiosos. No cair da tarde e no começo da noite, predominam os jovens de fora e, mais à noite, adultos e velhos de fora e do lugar.

Na mesma noite de sábado e durante todo o dia de domingo, um terceiro lugar de intensa concentração de pessoas era um quase oposto do largo central e do “da alegria”, onde havia feira, concurso e festival. Embaixo e em um canto de saída da cidade, entre ruas de casas pobres de pessoas do lugar, à beira do rio do Carmo e na baixada conhecida como Ponte da Barra, realizavam-se os dois dias finais da Festa de Santa Cruz. Muito mais do que nas imediações do “concurso de música sertaneja”, nas horas em que estive na rua da festa não encontrei nenhum dos jovens de fora, a não ser de passagem.

Ao contrário de concursos e festivais, a festa é dita e vivida como “tradicional” e justamente essa tradicionalidade é um de seus pontos fortes.3 Talvez por isso mesmo e

3 Há diferenças sociais muito importantes aí. Elas dão a uma mesma idéia: o poder simbólico do tradicional (aquilo que é antigo, foi vivido e significada por ancestrais legítimos; é consagrado e, portanto, desejado no estado em que existe sem modificações) possui sentidos diversos. Em alguns estudos anteriores procurei demonstrar como, em festas católicas “de santo”, são os festeiros e participantes mais ricos e mais identificados com o zelo por um lugar (uma cidade, uma região, uma igreja) que consideram “seu” e, portanto, ancestralmente carregado dos símbolos de sua própria identidade (a da pessoa, a da família e, mais ainda, a de uma parentela) os que enfatizam o valor da festa como uma “tradição do lugar”, cuja origem religiosa revestida de ser “daqui”, consagra, sacraliza. Sujeitos mais pobres e, mais ainda, os migrantes remotos ou recentes, atribuem maior ênfase ao caráter

apesar da alegria ruidosa da música — primeiro a cargo da Banda de São Bom Jesus de Matozinhos e, depois, do Conjunto “Só Samba” — havia na rua e ao longo do rio apenas pessoas do lugar ou de cidades e arraiais próximos, na maioria pobres. Entre barracas e barraquinhas, as pessoas “festavam”, o que é um comportamento completamente diferente do “curtir” um festival. Compravam pequenos objetos “industriais” trazidos de fora, participavam dos preparativos do que iria acontecer no domingo, a partir da “festiva alvorada”; ouviam a música e alguns ensaiavam dançar na rua quando o conjunto começou a tocar; conversavam ou namoravam com um recato nada atraente para os jovens de fora que, nas ruas de cima, ouviam música, conversavam e “se curtiam”, entre estilos muito diversos. Em algumas barraquinhas de comes-e-bebes alguns aproveitavam para fazer o seu jantar de festa e, como fosse julho, vendia-se mais quentão do que cerveja ou pinga pura.

Também no domingo, um dia muito mais cheio de atrativos de festa do que o sábado, não encontrei lá os jovens e muito menos os turistas que enchiam os outros lugares históricos ou tradicionais da cidade. Ao que tudo indica, a Festa de Santa Cruz não estava integrada no ciclo de festejos oficias do mês de julho. Tradicional e popular demais para poder ser dada a turistas. Os acontecimentos festivos distribuíam-se no fim-de-semana de uma maneira algo semelhante à da comercialização de produtos de antiguidade, arte e artesanato que nos esperam adiante. Vejamos como.

Colocados em conjunto, nos sábados e domingos de julho há acontecimentos cerimoniais promovidos por pessoas que se consideram como sendo “do lugar”, para elas próprias; jogos locais dos times de futebol, as missas, uma festa familiar de aniversário ou casamento e a Festa da Santa Cruz são bons exemplos.4 Há acontecimentos cerimoniais promovidos por pessoas e entidades do lugar para pessoas “de fora”. Festas religiosas maiores, incluídas no “calendário turístico” da Turminas (de que participam também os “do lugar”), pequenos espetáculos de rua ou restaurantes oferecidos aos turistas são exemplos. Assim como o “concurso de música sertaneja”, circos e rodeios são promovidos por pessoas e entidades de fora para as pessoas do propriamente religioso dos festejos e é porque aquilo é “de santo” que tem um valor como tradição, ali ou em qualquer outro lugar. Que a ninguém espante o fato de que romeiros (aqueles que vão ao sagrado em romaria, ao invés de passeá-lo em um seu lugar, em procissão — esta idéia é de Roberto da Matta) são em imensa maioria pessoas das classes populares, para quem o sentido da viagem ao lugar do culto é um sacrifício que o devoto fez para pagar uma promessa ou para atualizar uma devoção. Sobre festas ver: Carlos Rodrigues Brandão, O Divino, O Santo e a Senhora (Rio de Janeiro, Funarte, 1978). Sobre romarias ver: Rubem Cesar Fernandes, Os cavaleiros do Bom Jesus (São Paulo, Brasiliense, 1982); Elizabeth Travassos e Carmen Reginal de Vargas, Romaria do Bom Jesus da Lapa na Bahia (Rio de Janeiro, Funarte/Fundação Cultural do Estado da Bahia, s/d); Daniel Gross, “Ritual and conformity: a religíous pilgrimage to Northeastern Brazil” (Ethnology, abril 1971); Alba Maria Zaular, Os homens de Deus: um estudo dos santos e das festas no catolicismo popular (Rio de Janeiro, Zahar, 1983). 4 Dificilmente alguém terá traduzido melhor o sentido, ao mesmo tempo afetivo e cultural, de acontecimentos que vão de uma briga de galos no fundo de um quintal a uma festa “de santo” como a de Santa Cruz na Ponte da Barra, do que Clifford Geertz. “O que coloca a briga de galos à parte no curso ordinário da vida, que a ergue do reino dos assuntos práticos cotidianos e a cerca com uma aura de importância, não é, como poderia pensar a sociologia funcionalista, o fato de ela reforçar a discriminação do status (esse reforço não é necessário numa sociedade em que cada ato proclama essa discriminação), mas o fato de ela fornecer um comentário metassocial sobre todo o tema de distribuir os seres humanos em categorias hierárquicas fixas e depois organizar a maior parte da existência coletiva em torno dessa distribuição. Sua função, se assim podemos chamá-la, é interpretativa: é uma leitura balinesa da experiência balinesa, uma estória sobre eles que eles contam a si mesmos” (Clifford Geertz, “Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa” em A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 317). Uma interpretação de tal tipo é a que deverá perpassar toda a minha investigação no sentido da cultura a partir da análise de como momentos e fragmentos dela foram vividos em um par de dias, na cidade de Ouro Preto.

lugar, principalmente. Por último, alguns pequenos e grandes eventos festivos são promovidos “em Ouro Preto” por pessoas e instituições de fora para pessoas também de fora da região. Até quando existiu, o Festival de Inverno foi o melhor exemplo, e um atual seria do “Festival do Vinho”.5

A situação poderia ser resumida da seguinte maneira, tomando um evento como exemplo de cada caso:

cerimônias internas cerimônias intermediárias cerimônias externas

promovidos por pessoas do lugar para pessoas do lugar

promovidas por pessoas do lugar para pessoas de fora

promovidas por pessoas de fora para pessoas do lugar

promovido por pessoas de fora para pessoas de fora

Festa de Santa Cruz espetáculos artísticos de rua ou de restaurante

Concurso de Música Sertaneja

Festival do Vinho

Exploremos algumas diferenças. A pequena, pobre mas “antiga e tradicional” Festa de Santa Cruz é uma articulação de ritos religiosos católicos eclesiásticos (missa, novena e procissão), rituais e gestos típicos do catolicismo popular (ternos de congadas, pagamento de promessas) e festejos concentrados entre serviços de trocas de lazer, música, dança, “brincadeiras de meninos” (não raro com concursos e pequenas prendas) e trocas de bens (leilões, barracas de comida, barracas de objetos).

Tal como incontáveis outras pequenas e locais “festas de Igreja”, na cabeça de qualquer participante e mais ainda na de qualquer fiel praticante, a Festa de Santa Cruz é uma devoção coletiva. É um acontecimento religioso de devotos e fiéis, onde o que se “festa” completa necessariamente o que se “reza” durante as situações de culto que, sabemos, começam oito dias antes dos dias finais (sempre um fim-de-semana) da própria “festa”. Festa que para os menos devotos reduz-se a apenas esses dois dias: a véspera e o “dia do santo” que se festeja. Diferente das grandes e também tradicionais festas de Igreja incluídas no calendário de turismo, são acontecimentos locais. No domínio do poder que lhes cabe, as pessoas “daqui mesmo” — promesseiros, devotos, festeiros, festejadores, velhos, adultos, jovens e crianças, famílias — programam, controlam e realizam a festa. Ainda que o convite anuncie que “todos são bem-vindos” e que a Alcan oferece o “apoio cultural”, é entre as próprias pessoas que conhecem os segredos do saber da festa e que são, entre parentes, vizinhos e amigos, uma mesma difusa confraria de participantes locais, que tudo se realiza. Assim, um lavrador vindo de um arraial a muitos quilômetros de distância mas igualmente devoto e aparentando da “gente do lugar” é muito mais familiar ali do que um morador de Ouro Preto habitante das ruas das “pessoas-de-bem”, mais ligado a Belo Horizonte do que à cidade.

5 Faz mais de dez anos que a Universidade Federal de Minas Gerais, em convênio com prefeituras locais e com o apoio de diferentes instituições mineiras e federais, promove em algumas das cidades antigas do estado um festival de inverno em julho. Atividade eminentemente “cultural”, o festival reunia oficinas de estudos, pesquisa e criação, ao lado de concertos, espetáculos teatrais e cinema brasileiro. Durante vários anos o festival de inverno era o “Festival de Ouro Preto” e dirigia-se predominantemente a estudantes universitários de todo o País que viviam, “ali”, o seu festival. Nos últimos anos ele foi transferido para Diamantina e mudou em parte a orientação de clientela e alguns de seus objetivos. Ainda que o festival fosse prioritariamente uma atividade de e entre acadêmicos, houve um esforço para “integrar a comunidade” e convocar como participantes seus habitantes, professores e artistas. Isto equivale a transformar um festival “ali”, em um festival “dali”.

Em suas apenas aparentes contradições, a participação de alguns jovens da própria Ponte da Barra tornava evidente a diferença de sentido que a diversidade de usos e fruições dos momentos e significados de culturas introduz e articula. Eles participam das barracas de jogos (as mais concorridas, depois que quase todos comeram nas outras), de danças e, com menos interesse, do leilão. Eram raros nos momentos propriamente religiosos e se sentiam ali menos à vontade. Assim também, fora os que faziam parte de seus grupos, não estavam presentes nos rituais da banda de música nem nos do terno de congos. De uma configuração complexa e diferenciada de seqüências de situações coletivas, viviam alguns momentos e ocupavam o resto do tempo em participar daquilo que, próximo ao que se fazia na Festa de Santa Cruz, era realizado em outros lugares, pelas mesmas e por outras pessoas. Menos à vontade mas como quem quer se integrar e aprender, alguns dividiam com os jovens de fora locais dos dois largos, visitavam bares, tomavam vinho no “festival” e ocupavam cadeiras do “concurso”. Por serem possivelmente os menos definidos entre todos, eram por certo os mais livres. Não habitavam dentro de Ouro Preto um “mundo de cultura” apenas mas arriscavam-se a todos.

Para ser uma cidade histórica e, por isso mesmo, “de turismo”, Ouro Preto precisa realizar-se em atrativos. Não basta que as pessoas rigorosamente cheguem ali para assistir a maneira como a arquitetura dos palácios, casas e igrejas preservou uma fatia importante de “nossa história”. Tal como eu disse algumas linhas antes, na romaria católica, depois que se “cumpre”, se “festa”. A diversão (ver, curtir, comprar, comer) sucede inevitavelmente a devoção, a não ser que o devoto romeiro seja fanático, rigorosamente religioso ou muito pobre. Assim, é preciso que também haja o que “viver”, além do que se “vê” culturalmente. Não é outra a razão pela qual cidades como Ouro Preto, Congonhas e Diamantina são anunciadas através de seus “encantos” (do doce mistério das ruas à doçura da “comida mineira”). Ora, como não dá para alimentar “encantos” através de promoções oficiais, é necessário — e também lucrativamente útil para as pessoas do lugar — criar situações estáveis de oferta de serviços e produtos que tornem atrativo o próprio “lugar” e seus “lugares” e ocupem como diversão o longo tempo que separa os cultos religiosos populares do culto à cultura da história transformada em tradição. Por isso, há bares e restaurantes em quantidade e neles são servidos comidas e pequenos espetáculos. Por isso também, mais do que em outras cidades de Minas Gerais, grupos populares de rituais católicos como os congos de dançantes negros são melhor preservados. Isto é, tendem a parecer mais fiéis às “tradições do folclore” de que são parte e mito. Em muitos casos, tanto em Ouro Preto quanto em outras cidades do País, são eles os que mais depressa aprendem as regras que misturam a devoção ritualmente festiva e corporada ao negócio da arte cênica e passam com sabedoria mas também com graves riscos — do ritual ao espetáculo.6

6 Lástima que um dos mais brilhantes estudos sobre esta questão não tenha sido até hoje publicado. Trata-se da dissertação de mestrado apresentada ao Museu Nacional por Regina de Paula Santos Prado, Todo o ano tem: a festa na sociedade camponesa (Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1980, xerox). Em alguns estudos sobre festas católicas e o trabalho de grupos rituais populares, procuro também analisar o processo de transferência do ritual ao espetáculo. Fora O Divino, o Santo e a Senhora, ver Sacerdotes de viola: rituais religiosos do catolicismo popular em São Paulo e Minas Gerais (Petrópolis, Vozes, 1 981) e A festa do santo de preto: as congadas na festa de Nossa Senhora do Rosário em Catalão, Goiás, Rio de Janeiro/Goiânia, Funarte/UFG, 1985. Discutindo festas de grupos tarascos do estado de Michoacan, no México, Néstor Garcia Canclini volta criativamente ao assunto. De modo mais dramático do que eu mesmo — possivelmente porque entre indígenas que velam em 2 de novembro seus mortos na ilha de Janítzio e milhares de turistas nacionais e norte-americanos que vão “ali” vê-los e fotografá-los, tenha visto uma transgressão maior do sentido — ele denuncia mercantilização do ritual étnico.

Esses e outros pequenos espetáculos promovidos e exercidos por pessoas e grupos artísticos, folclóricos e/ou culturais da cidade e das cercanias e oferecidos principalmente para os que vêm de fora e querem, entre outras coisas, “ver aquilo” são uma parte do que chamei aqui de cerimônias intermediárias.

Sua contraparte é também muito freqüente: eventos de evidente intenção comercial são patrocinados por pessoas e grupos de fora, muitas vezes por distribuidores de produtos de larga venda, como cigarros ou bebidas, outras vezes por pequenos grupos empresariais de diversões. Eles chegam a Ouro Preto e “promovem” para os da cidade e redondezas: “concursos”, “circos”, “rodeios” e outros “espetáculos populares”.7 Dificilmente um turista vindo também “de fora” terá interesse em participar de qualquer um desses eventos “de roça”, e os jovens visitantes que por ventura se atrevam a assistir, por momentos que seja, ao “concurso de música sertaneja”, fazem-no como sujeitos alheios ao código e aos significados do que acontece “ali” naquele momento. Chegam para curtir por instantes algo estranho — e que justamente é tão familiar para os adultos e velhos do lugar, acostumados à música sertaneja — apenas porque ocupa um espaço da noite de sábado “ali”, em Ouro Preto. Não é difícil que se sintam obrigados a trata com desdém aquilo de que participam, para demonstrar a eles próprios e aos de “seu mundo” que estão ali sem serem dali. Comportamento oposto vários deles terão tido alguns meses mais tarde nos rituais do “Rock in Rio”, quando então, com exagerado entusiasmo, confessarão que estão ali porque são daquilo: devotos de um outro tipo de culto.

O Festival do Vinho e, mais ainda, a rotina cerimonial do percurso da “visita a Ouro Preto” e as grandes festas “tradicionais” estão abertos a todos, mas, “ali”, são intencionalmente oferecidos a quem vem “de fora”. Exploremos mais essas relações diferenciais de participação no que acontece na cidade em um fim-de-semana.

Ninguém do lugar, a não ser para acompanhar um parente ou amigo visitante, percorre por conta própria os “locais históricos e culturais de Ouro Preto”. Patrimônio da cidade, eles existem para os que chegam dispostos a cultuá-los e, muito embora os moradores da cidade os conheçam, evidentemente não os percorrem mais uma vez conhecidos.8 Estão tão cotidianamente inseridos em seu todo de “cultura e história”, que

“Uma festa se transforma primeiro em feira e depois em espetáculo. Um espetáculo interurbano, nacional e mesmo internacional, conforme o seu alcance turístico, Foi deixado para trás o tempo das festas comunitárias, chegaram os empresários que as converteram em festas para os outros. São os espectadores dos atores e é entregue a profissionais a organização dos divertimentos. Em vez dos encarregados ou administradores (que no caso brasileiro correspondem aos festeiros-CRB), um grupo de técnicos prepara o cenário, os auto-falantes, a iluminação, a colocação do espetáculo em cena. Os camponeses, os indígenas, os artesãos tornam-se parte deste espetáculo para turistas, devendo estilizar-se ou tornar-se um divertimento. Os turistas também são um espetáculo para os habitantes que ‘vão à praça’ pela curiosidade de ver os estranhos, de ver algo estranho. Este jogo de observações de longínquo pode acabar sendo no seu conjunto um show para espectadores ainda mais distantes: as fotos pelas quais os habitantes de Janítzio cobram para posar, o cinema e a televisão que nos últimos anos se incorporaram como parte ‘natural’ do dia dos mortos vêm fazendo deste acontecimento, que as filosofias ocidentais consideram como o mais solitário do homem, um evento da comunicação de massa” (As culturas populares no capitalismo, São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 125). 7 Pelo menos por alguns aspectos, pelo menos por alguns sentidos, pelo menos por uma certa diferença de usos e intenções de quem controla, de quem faz e de quem vai para ver, tais espetáculos, muitas vezes incorporados a pequenas festas locais, são a sua contrapartida. Mas, pelo que vimos na nota anterior, podem ser também a antevisão de seu destino. Remeto o leitor ao trabalho de José Guilherme Magnani, Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade, São Paulo, Brasiliense, 1984. 8 Que são os “lugares de turismo” para as próprias pessoas do lugar? Lembro-me que, carioca, fui conhecer o Pão de Açúcar aos 19 anos, e mesmo assim porque praticava escaladas e, para isso, ele sempre

não necessitam fazer sazonalmente o percurso romeiro de suas partes: igrejas, palácios, logradouros. Nada conspira mais contra o culto da história do que conviver cotidianamente com seus seres, objetos e símbolos. Veremos adiante que artistas e artesões locais utilizarão seus “motivos” como objeto e tema de trabalho. Da mesma maneira, para empregados da prefeitura, assim como para os pequenos guias, meninos pobres da cidade, estar ali em um fim-de-semana equivale a estar no trabalho: para os primeiros possivelmente o mais aborrecido, para os últimos provavelmente o mais lucrativo.

Por seu turno, os grandes festejos tradicionais, de que a “Semana Santa em Ouro Preto” é o melhor exemplo, porque congregam como participantes as mais diversas categorias de pessoas “do lugar” e “de fora”, tendem a ser cada vez mais articulados, de ano para ano, de modo a comportar diferenças intencionais de participação. Para as autoridades eclesiásticas, os fiéis membros de irmandades e confrarias e para as inúmeras outras pessoas religiosas da cidade e de outras próximas, a Semana Santa não é apenas um acontecimento religioso; ela é o mais importante momento cerimonial de um calendário litúrgico que de certo modo se divide em suas grandes partes: “antes” e “depois da Páscoa”. Por isso mesmo, muito mais do que no caso das “festas de santo”, como a “de Santa Cruz” ou a “de São Benedito”, são as próprias autoridades religiosas as que tudo promovem, qualificam e controlam. Aqui o “cultural” equivale à “religião”.

Ainda que em maioria católicos, os turistas que chegam a Ouro Preto em caravanas que as empresas de turismo promovem não vêm movidos por um igual espírito religioso. No fundo, é preceito canônico que cada católico procure viver a Semana Santa na própria paróquia de que faz parte, pois ela é a sua comunidade local de fé. Participar das cerimônias rituais da Semana Santa em Ouro Preto significa vivê-las como uma rara “experiência de cultura”. Dificilmente estarão imbuídos dos sentimentos de pesar e dor que a igreja codifica e prescreve para até o momento do anúncio da ressurreição de Cristo. Se para os devotos do lugar a festa vale como culto, e o sinal dele é a dor; para o turista o culto vale como festa, e o símbolo dela é a alegria da rara novidade. Deixarão de comer carne, fazer o jejum de preceito e evitar as delícias do sexo na “Sexta-feira Santa”? Condutas absolutamente inquestionáveis para qualquer lavrador devoto vindo de um arraial próximo. Evitarão as cerimônias mais tristes e menos culturalmente interessantes mas não perderão procissão alguma. Talvez apenas uma pequena fração de turistas comungue na missa de domingo. Mas, se houver naquele ano, irão como a um rito com suas máquinas fotográficas aos lugares onde os meninos e jovens da cidade vão “malhar o Judas”. Aqui a “religião” significa “cultura”, e o que se vive vale menos por ser uma “Semana Santa” do que por sê-la “em Ouro Preto”. Não faltarão jovens, e para eles os bares e outros locais coletivos de alegria e “curtição” terão de permanecer abertos. Alguns donos terão problemas de consciência na sexta-feira: “Abrir ou não?” “Servir ou não hambúrgueres?” “Vender ou não bebidas alcoólicas?”

Entre os jovens que chegam à cidade por conta própria, separados de grupos de turistas e sem suas famílias, é possível que alguns queiram “seguir” as cerimônias religiosas. Serão uma imensa minoria. Um número maior deles poderá desejar viver o “cultural” da “Semana Santa em Ouro Preto”, como os turistas confessam. Mas quase todos apenas aproveitarão o “Feriado da Semana Santa” para conhecer e “curtir” Ouro Preto. Atraídos momentaneamente por esta ou aquela cerimônia religiosa mais visível,

foi uma das melhores montanhas do Rio. Conheci o Corcovado dois anos mais tarde e voltei ali raríssimas vezes.

preferirão criar e viver seus próprios ritos, que, indiferentes ao calendário, cabem tanto na Páscoa quanto nos intervalos dos festivais de julho. possível que apenas o “Carnaval em Ouro Preto” os envolva plenamente e, aí sim, virão para vivê-lo intensamente “ali”.

Mesmo conhecendo as regras católicas de evitações para esses dias — como o trabalhar no “Dia do Senhor” — pequenos guias, comerciantes pobres e artesãos irão aproveitá-los para exercer um máximo da dimensão propriamente mercantil de seu próprio trabalho. Os mais piedosos possivelmente evitarão “vender” na Sexta-feira Santa, mas mesmo essa prática perde depressa o seu poder nas cidades de turismo de “história” e “cultura”. Como costuma acontecer, de alguns anos para cá, em cidades onde os festejos do calendário católico atraem visitantes mais do que devotos, é possível que haja pequenos conflitos na orientação das relações entre as autoridades religiosas e as culturais.

Retornemos desta breve digressão sobre como desigualmente uma mesma festa religiosa é conotada e vivida, à descrição de alguns momentos da manhã de domingo, acordada com os fogos dos festeiros de Santa Cruz na Ponte da Barra.

Embora toda Ouro Preto seja anunciada e se ofereça como uma relíquia urbana a ser visitada, são as igrejas o lugar e o objeto de mais intensa e motivada visitação. E justamente ali, ao contrário do que acontece na quase totalidade das cidades não-incluídas em mapas e roteiros turísticos, cujos templos de qualquer religião servem apenas a seus cultos, em Ouro Preto as pequenas e grandes igrejas católicas coloniais são revestidas de significados diferentes, para que cada uma, e principalmente o conjunto, sirva a intenções e desejos desiguais. Algumas transformam-se em museus, como a de São Francisco de Assis, possivelmente a mais bela de todas e a que guarda mais trabalhos do Aleijadinho. Outras, igrejas cujo poder se divide entre o eclesiástico e o público, diocese, prefeitura, SPHAN, etc.) abrem-se tanto a grandes cultos solenes em dias festivos quanto à visitação pública. Finalmente, um terceiro grupo de igrejas serve com prioridade aos usos religiosos das pessoas do lugar, embora sejam também freqüentadas por visitantes.9

Portanto, igrejas barrocas um dia erigidas em uma quantidade demograficamente muito maior do que a necessidade, por diferentes categorias de sujeitos sociais da Colônia — escravos, negros e mulatos, livres e brancos, senhores de minas e terras — e para abrigar cultos e interesses de confrarias e irmandades que os congregavam e que eram quase toda a possibilidade de corporação estável da vida social e política do passado, dois séculos depois redefinem o sentido de seus usos para servir a interesses diversos de outras (ou as mesmas, redefinidas também?) categorias de pessoas de Ouro Preto e de fora. Na igreja de Nossa Senhora da Conceição há “missas de domingo”, assistidas por pessoas da própria cidade e raros turistas. Como em incontáveis outras igrejas mineiras, lêem-se ali na manhã de domingo as orações de O domingo e cantam-se os mesmos cantos pós-conciliares cujos ritmo e letra parecem não muito apropriados à solenidade dos prédios onde ecoam. Ao contrário do que acontece em Nossa Senhora

9 O volante colorido da Turminas convida o viajante a “descer” pela cidade, de igreja em igreja. “Descendo a rua do Ouvidor você alcançará a Igreja de São Francisco de Assis, obra-prima do Aleijadinho. Em seu interior, o painel do teto da nave, representando a Glorificação da Virgem, é de autoria do Mestre Manuel da costa Ataíde. Continue descendo. Você poderá ver as igrejas das e Perdões, Mercês de Baixo e chegar à Matriz de Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias, onde o Museu Aleijadinho, repositório de rico acervo barroco, ocupa amplas salas. Vale a pena caminhar até a Ponte e ao Chafariz de Manha, a musa de Gonzaga, antes de seguir para a Igreja de Santa Ifigênia, passando pela ladeira do Vira-e-Saia até o Alto da Cruz. A Capela do Padre Faria, lá no fundo, com sua rica e exuberante talha, fecha o roteiro da Paróquia de Antônio Dias.”

da Conceição e em outras capelas menos notáveis da cidade e dos arraiais próximos, as “igrejas históricas” esvaziam-se de rotinas religiosas, enquanto recuperam símbolos e objetos artísticos e arquitetônicos de um passado de lugar de religião como espetáculo de cultura. Observei em várias delas pessoas, pares e grupos de visitantes. É natural que se guarde uma espécie de respeito silencioso, mas de modo algum o local é tratado como consagrado, ainda que culturalmente seja, para todos, religioso. Ninguém reza ali, e seria muito estranho que um turista católico se ajoelhasse diante do altar, embora alguns esparramem pelo peito um “em-nome-do-pai” envergonhado mais do que fervoroso. As pessoas vêm para conhecer, para se admirar e, por isso, meninos-guia da cidade e especialistas que acompanham as excursões possuem discursos prontos, que tudo valorizam, entre relatos de grandeza a histórias de mistérios. A própria visita torna-se o rito. Há uma seqüência lógica que o guia cumpre e, em pequenos grupos, de altar em altar, ouvindo atentos e perguntando, os visitantes quase se confundem de longe com grupos de romeiros. Mas eles fotografam, documentam e, do lado de fora, algumas vezes compram os objetos que os artesãos e os comerciantes espalham na mureta dos adros ou mesmo pelo chão. Um pequeno detalhe revela o resíduo de sagrado que mesmo o turista não-religioso observa. Dentro da igreja é ela, seus santos, altares e pinturas o que se filma ou fotografa. Mas do lado de fora muitas pessoas fazem da fachada o cenário diante do qual se fotografam ou filmam a si próprias.

O caso-limite de museificação é o da igreja de São Francisco de Assis e o da matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias (a outra) onde há um museu de arte sacra de um “Museu do Aleijadinho”. Ali se paga na porta um ingresso, porque se vai visitar um museu que fica dentro de uma igreja. Não é apenas uma cultura revestida de religiosidade aquilo que se vai ver. Não é tampouco uma pura e simples arte religiosa produzida por algum artista notável, como a “igreja da Pampulha” em Belo Horizonte, que tem traços de Portinari. Ë a opulência que reveste uma cultura sacralizada. Vai-se em busca de objetos de ouro, sinais terrenos da glória, do raro. Acompanhando por momentos um pequeno grupo de turistas, ouvi duas mulheres reclamarem do pagamento na porta. “Afinal”, dizia uma delas, “ainda é uma igreja”.

Na mesma manhã de domingo em que fiéis da cidade e turistas de fora distribuem-se por igrejas — o primeiro lugar aonde se vai ou a primeira coisa que se visita em tal dia — os jovens procuram os recantos “de natureza” na periferia de Ouro Preto ou retornam aos mesmos largos, praças, bares e adros do sábado. Mas o domingo reserva surpresas. De repente, primeiro aos poucos, depois em massa, um grupo de meninos e jovens com bicicletas e motos ocupa boa parte do largo do centro, entre o antigo palácio do governo e o monumento a Tiradentes. Ouro Preto era surpreendentemente, naquela manhã, o lugar de chegada de um pequeno rally. Agora são eles os que parecem desafiar não apenas os mortos e os vivos ilustres do lugar mas até mesmo os jovens de calça jeans e mochila, contestadores também mas, comparados com eles, silenciosos e pedestres.

Se fosse possível subir a um helicóptero e olhar de cima toda a cidade por um momento, o domingo revelaria em diferentes situações, de acordo com o correr das horas do dia, uma multiplicidade de experiências do que se poderia chamar: “estar em Ouro Preto”. A indiferença mineira dos moradores tradicionais, a quem aborrecem turistas, jovens “hippies” e “motoqueiros” e que da missa dominical voltam a suas casas e preparam almoços notáveis; a peregrinação ritualizada de pares e grupos de turistas, que primeiro vêem e, depois, comem e compram; os festejos de todo o dia na Ponte da Barra; as pequenas cerimônias entre eles e para eles próprios, com que s jovens de fora ocupam a cidade e o tempo; a multiplicação dos lugares de venda de antiguidade, arte e

artesanato; o trabalho dos que limpam o resto de festas, festivais e concursos da noite anterior e I, reparam praças e largos para os de domingo; a rotina de casas pobres, fundos de quintais, vendas e bares da periferia destinada aos operários do alumínio.

Os intervalos entre “visitar” o que há para ser visto e “participar” do que existe para ser vivido, da igreja ao festival, são preenchidos nas ruas e nas praças por dois tipos de cerimônias a que a maior parte das pessoas presentes se dedica, como eu observei antes, com empenho: comer (e seu par indispensável, beber) e comprar.

5. Antiguidade, arte e artesanato

E, dado que o ofício da compra mobiliza uma estrutura de trocas equivalente à das festas e festejos, passemos por um momento de um plano ao outro, mantendo o mesmo cenário.

Impossível ir embora de Ouro Preto sem uma “lembrança”, quando se é pobre, sem uma “relíquia” ou uma “obra de arte”, quando se é rico, sem algum objeto de “cultura popular”, quando se é intelectual sem muito dinheiro. Boa parte da cidade é um mercado do “tradicional” na manhã de domingo.10

Na escadaria do adro da igreja-museu de São Francisco de Assis, três homens expõem em pequenos estojos de seda branca coleções de pedras “preciosas” de várias cores. Faltam justamente as mais nobres, como os diamantes, as esmeraldas e os rubis, mas quem esperaria encontrá-las em um chão de escada numa “feira de cultura” de fim-de-semana? Por dez mil cruzeiros o viajante pode levar um berilo; por um pouco mais um topázio ou uma água marinha. Se tiver mais dinheiro, pode comprar um estojo com quatro ou seis qualidades de pequenas gemas. Por um pouco mais ainda — e isso um deles tira do bolso, enrolado em um lenço branco, com olhares de surpresa — uma pedra “bruta”, ainda não lapidada pela sabedoria do artesão.

Mas esses pequenos preciosos objetos tão próximos do reino da natureza, são as vendas mais raras, do mesmo modo como o outro que alguns ourives e joalheiros vendem aos que podem pagar. Em Ouro Preto o que todos buscam é a antiguidade, a arte e o artesanato, produtos de uma cultura antiga que se preserva ou de um trabalho novo que pretende copiar do antigo o aspecto e o sentido.11 Em algum lugar anunciados

10 Depois de “ver”, o visitante é convocado a “comprar”. Eis como a Turminas descreve o que nem sempre se encontra com tanta facilidade, entre ruas e lojas. “A cidade tem um dos mais típicos artesanatos de Minas. As lojas oferecem grande variedade de objetos em taquara, sisal, prata, ouro, cobre, pedras preciosas, madeira e couro. Os visitantes nunca deixam de se encantar com as características peças em pedra-sabão em suas múltiplas tonalidades, constantemente recriadas pelas artistas. Nas galerias e ateliês, pintores, desenhistas, gravadores e escultores comprovam a vocação tradicional da cidade das artes. No Mercado Velho, as histórias dos tropeiros têm o sabor dos maravilhosos doces caseiros da região.” 11 “Difícil separar aqui a fronteira entra a arte e o artesanato. Mesmo entre seus próprios produtores de Ouro Preto as palavras se confundem. Um pintor ou escultor letrado chamará invariavelmente arte o que faz. Um artesão de pedra-sabão ou madeira, que produz por conta própria e insiste em garantir a originalidade do que cria, poderá também preferir chamar-se artista, nome na verdade mais comum do que artesão. De modo semelhante Maria Rosilene Barbosa Alvim encontrou entre ourives e operários do ouro em Juazeiro do Norte, na Bahia, a definição de arte reservada àqueles que não só ainda detêm, pelo

como “únicos” ou “originais” os objetos de “artesanato local” que muito depressa se multiplicam, uma vez descobertos como bons produtos.

Em algum momento um artista da cidade ou mesmo de fora terá criado uma coleção de seis ou sete xilogravuras “típicas”. Algumas procuram ter cenas comoventes (um menino com a cabeça sobre os joelhos, aos farrapos, parece chorar); outras solenizam “vistas de Ouro Preto”. Há literalmente cópias delas por toda a parte. As mesmas “obras de arte” existem em preto-e-branco ou uniformemente coloridas com tons de aquarela. Nas lojas de artesanato mais finas, entre o largo do centro e as ruas próximas, elas custam de duas a cinco vezes o preço cobrado nas lojas mais populares ou nas mãos de vendedores de ruas e praças. Uma loja tinha-as penduradas em um cordão, como num varal. Ao lado dele, elas se amontoavam sobre uma cadeira. “Em liquidação” custavam menos do que um misto- quente ou uma garrafa de cerveja. No largo da Alegria meninos vendiam-nos por um preço equivalente mas faziam-no variar de acordo “com a cara do freguês”, como um deles me disse. A um grupo de inocentes turistas de fala francesa eu as vi sendo vendidas por preços de “arte”, no adro de uma das igrejas mais afastadas. Convertida pelo comprador em valor de dólar, a fala esperta do rapaz vendedor deve ter soado como uma ninharia. Barateadas porque múltiplas e de fácil reprodução, diante do turista ignorante das regras do lugar, a arte subverte-as por um momento e recupera pelo menos parte da dimensão mercantil de um suposto valor original.

O turista pode viajar trinta e poucos quilômetros adiante e comprar belíssimos tapetes de sisal em Cachoeira do Brumado. Mas em Ouro Preto, fora xilogravuras e raros objetos iguais de couro ou madeira, o que há para adquirir são utensílios de pedra-sabão. Muito mais do que as “visitas de Ouro Preto”, pequenos potes com ou sem tampas, panelas, castiçais, pratos, cinzeiros e, mais raras, imagens de profetas, santos ou anjos são vendidos por todo canto: em todas as lojas de arte-e-artesanato (onde a qualidade e a originalidade do objeto varia de acordo com o grau de requinte atribuído à loja), nas ruas e nas praças, assim como nos adros de algumas igrejas, compradas a vendedores intermediários (meninos, jovens, adultos ou velhos) ou diretamente das mãos do próprio artesão, que, no caso, fará questão de se anunciar como autor do que vende. Ao longo da mureta do adro da igreja de São Francisco de Paula contei cerca de 30 vendedores. Eles expõem objetos que variam muito pouco de um para o outro. Vendem quase tudo muito barato (as peças menores custam o preço de dois cafezinhos) e embrulham o objeto em pedaços de folhas de jornais. Nas tardes-noites dos domingos, os preços descem, à medida que levas de turistas começam a deixar a cidade, para que o “encalhe” seja pequeno, e o prejuízo, menor.

menos em parte, o controle sobre o processo completo de criação do que fazem como também o fazem de modo próprio, original, com sua “inteligência”, com sua “arte”. “A categoria artista, como ela é definida pelos operários, reforça ainda mais, a posse da arte como algo incorporado ao próprio trabalhador. Os indivíduos que são capazes de fazer uma atividade ‘sozinhos’ estão incluí- dos na categoria de artistas, podendo através da transformação da matéria- prima, fazer um objeto onde a sua ‘inteligência’ é fundamental. Sua individualidade é imprescindível para que possua uma arte. A forma relacional: trabalhador/posse dos meios de trabalho, ou artista/arte, está presente em todas as definições da arte e do artista. Na categoria artista, tem-se a especificação deste como o indivíduo que tem arte, um saber. .“ (Maria Rosilene Alvim, “Artesanato, tradição e mudança social — um estudo a partir da ‘arte do ouro’ de Juazeiro do Norte”, em O artesão tradicional e seu papel na sociedade contemporânea, Rio de Janeiro, Funarte, 1983, p. 57). No mesmo livro, Vera de Vives define adiante o artesão tradicional como “aquele que emprega e transmite, em seu trabalho, valores, técnicas e signos amadurecidos e aceitos no sistema cultural a que ele pertence” (p. 133).

Uma lista sumária do que se pode considerar como “de Ouro Preto” tomaria a seguinte figura:

a. antiguidades reais de alto Custo, comercializadas em lojas especializadas ou diretamente das mãos de colecionadores ou moradores locais;

b. antiguidades supostas, alguma francamente forjada, vendidas em lojas de artesanato, nas de antiguidade ou de particulares;

c. objetos de arte assim definidos por seus criadores e/ou vendedores e assim reconhecidos consensualmente como jóias finas, quadros, imagens ou outras esculturas, onde o valor do produto é dado não apenas por uma suposta “qualidade” diferencial, se comparados com os objetos de artesanato, mas sobretudo por sua apregoada originalidade — são objetos únicos ou tidos como tal;

d. objetos de artesanato “do lugar”, de que os “de pedra-sabão” são os mais comuns.12

A respeito desses últimos uma descrição mais rigorosa (que não Pretendo fazer aqui) poderia estabelecer diferenças. Há objetos definidos pelo próprio criador como “de artesanato” (mas seu companheiro de trabalho na oficina pode, com a mesma desenvoltura, considerá-lo como “de arte”), produzidos em unidades discretas por um só artesão ou por uma só família e/ou equipe. Próximos a outros pelo estilo mas diversos pela qualidade, eles são mais raros e caros. Há objetos cuja multiplicação uniformizante os torna comuns e baratos. São eles os que se confundem com as “lembranças”, e não são poucos os que ostentam, gravada em baixo-relevo, sua própria condição: “Lembrança de Ouro Preto”. São fabricados em massa em oficinas da cidade ou são trazidos de fora para ser vendidos como “dali”.

O artista erudito (pintor, escultor, ourives, santeiro) de Ouro Preto ou que vem viver em Ouro Preto para criar “ali” é o exato oposto do produtor coletivo-anônimo de objetos uniformes de “artesanato de massa”. Esse artista é o criador mais próximo do 12 Mais adiante terei de enfrentar a questão dos nomes, difícil desafio a quem necessita classificar. Observo em Ouro Preto, como de resto em outras cidades e regiões do País, um processo em tudo semelhante — mas apenas talvez não tão intenso — ao que Néstor Garcia Canclini encontrou no México. Ele o identifica como uma passagem do étnico ao típico, onde a primeira categoria quer traduzir a arte ou o artesanato que significam modos de vida e sentidos (valor, identidade etc.) próprios de culturas específicas e são, portanto, a possibilidade simbólica de afirmação de sua diferença, de sua peculiaridade interna, onde a segunda categoria denuncia a dissolução do próprio ou apropriados. Isto é, a transformação da diferença na uniformidade, através da imposição de interesses de mercado capitalista sobre intenções antecedentes de criação popular. Aos olhos do turista, do empresário controlador e, finalmente, do próprio artista, o que se compra, o que circula e o que se cria não são objetos cuja arte está na pessoa do criador e na tradução pessoal de um modo original de cultura, mas objetos produzidos em massa, padrozinados e típicos: não mais a especificidade da cerâmica dos artesãos de Tzintzuntzan, na beira do lago de Pátzcuaro (onde eu morei um dos melhores anos de minha vida), mas a cerâmica nacional: “mexicana”. “O típico é o resultado da abolição das diferenças, da subordinação a um tipo comum dos traços específicos de cada comunidade. Pode-se argumentar que o turista necessita desta simplificação do real, porque ele não viaja como um investigador da realidade. Mas a simplificação mercantil das culturas tradicionais, que de modo semelhante ao que ocorre na imprensa e na televisão são chamadas de populares, quase sempre supõe que os seus espectadores estejam abaixo do coeficiente intelectual que eles realmente possuem e que o turismo ou o entretenimento são lugares onde ninguém quer pensar” (Néstor Garcia Canclini, As culturas populares no capitalismo, São Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 87-88). Atento ao processo crescente de “tipificação” do artesanato em Ouro Preto, chamei aqui de regional ao que Canclini chama étnico, e de típico a este artesanato já suficientemente “nacionalizado” e, portanto, desvestido dos sinais de pessoalidade e diferença que preservam na arte sua própria condição,

artesão popular solitário ou familiar que produz uma a uma as suas “peças” e busca na qualidade peculiar e na diferença um valor que valha a assinatura de quem descobre que faz o original. Uma classificação sumária que procurasse dar conta de categorias de criadores do que se vende na cidade em um fim-de-semana deveria colocar em um extremo o colecionador-especialista (profissional ou amador) e o artista letrado cujas obras, assinadas, atestam, mais do que o preço da arte, a diferença entre eles e o artesão “popular”; no outro extremo poderiam ficar os vendedores simples da cidade e de fora (os que nada criam e compram pra revender) e os empregados-artesãos de oficinas de produção de artesanato de massa; a meio caminho estariam os artesãos solitários ou familiares de que falei antes, de pedra-sabão ao ouro em pó. Voltarei a isto.

É necessário lembrar que do mesmo modo como há artistas, colecionadores e artesãos de Ouro Preto e aqueles que vivem em Ouro Preto, assim também há pessoas e equipes de artesãos e de vendedores que vêm em fim-de-semana ou em grandes datas festivas a Ouro Preto, para comercializar produtos de artesanato:

a. definidos como sendo da região ou de áreas geográficas e culturalmente próximas;

b. definidos claramente como tendo vindo de outras regiões do País (chapéus de couro do Nordeste podem surgir nos adros nos festejos de São Benedito);

c. indefinidos, ou seja, não mais explicados e oferecidos por causa de sua especificidade geográfica e/ou “cultural”.

Antiguidades “do tempo colonial”, arte e artesanato “do lugar”, objetos de ouro e pedras preciosas de pequeno valor, eis o que há para ser vendido-e-comprado na cidade. Objetos que se dão à venda e que, em conjunto, querem ser parte da natureza e da cultura, da história e das tradições de Ouro Preto. São a fração materializada de um “antigo” ou de um “próprio” da região, que o viajante pode levar sem remorsos, com restos da “típica comida mineira” (certamente mais ancestralmente “mineira” ali) e mais uma boa garrafa de licor ou aguardente.

É evidente que os compradores também se classificam e, de passagem, creio haver insinuado isto. Se a um colecionador nacional ou estrangeiro exigente e sabedor interessa o que é “autêntico”, aos compradores de rua o interesse recai diferencialmente sobre o que é “típico”, mesmo que possa ser comprado também na rodoviária de Belo Horizonte. Visitantes intelectualizados, de “nível universitário” em maioria, assim como alguns dentre os jovens com quem convivi, em boa medida procuram nas lojas e nas ruas o “verdadeiro artesanato de Ouro Preto”. Falam em cultura popular e cuidam de separar entre o que vêem: um artesanato “de massa” de um outro, originalmente “popular”. Comprá-lo, por exemplo, “na mão do artesão” e não “em qualquer loja” pode ser um pequeno sinal de sabedoria.

Pelo fato de que enfatizam muito aquilo que consideram o seu objeto de estudo, alguns pesquisadores de cultura popular antissepticamente separam do que existe e circula de fato apenas algumas frações do que parece possuir, “ali”, uma existência autêntica. Esse modo de ver, necessário para que certos aprofundamentos do conhecimento sobre a cultura material e seus ritos de troca sejam obtidos, escorrega no entanto no engano de não colocar o que se analisa no campo das relações sociais, artísticas e simbólicas (que valem umas pelas outras e se significam umas através das outras) das transações que tornam possíveis as articulações de cada espaço de relações de tal campo. Seria ingênuo acreditar, por exemplo, que apenas objetos de uma

“verdadeira cultura popular” circulam em Ouro Preto ou, o que é pior, que entre outros eles são os únicos “autênticos”. Surpresas: os inúmeros jovens “de fora” misturam raras compras de artesanato local com as de produtos que consideram, eles próprios, típicos de seu universo “jovem” de arte e de identidade. Por isso, ali mesmo no largo da Alegria, concorrendo com a banca de pedras preciosas, as de xilogravuras e as de objetos de pedra-sabão, há pelo menos sete ou oito bancas de um suposto legítimo “artesanato latino-americano” (flautas, sacolas e suéteres, mas também pulseiras e colares), ao lado de outros objetos cuja circulação uniforme estende-se hoje por todo o País e para o qual alguns ainda preferem o nostálgico título de “artesanato hippie” (das pequenas pulseiras e cintas de lá ou cordão entretecidos, a blusas e saias, de pulseiras e pingentes e pequenos broches com a cara — mineira — de Milton Nascimento).

Em direção oposta quase, as “pessoas simples” do lugar e dos arraiais de perto, e entre elas inúmeros artesãos que vendem aos de fora o que é “do lugar”, compram aos vendedores “de fora” objetos de uma típica indústria de cultura de massa que nem sequer reclama mais o ser, de algum modo, “típica” ou “artesanal”. Por isso não há evidentemente xilogravuras de Ouro Preto nem utensílios de pedra-sabão, madeira ou couro nas barracas de venda ou de leilão da Festa de Santa Cruz na Ponte da Barra. Há “coisas de plástico”, pano barato e metal vagabundo; roupas vindas por atacado de São Paulo, panelas e ferramentas, sandálias de plástico e, também de plástico, bonecos e pequenas “Nossas Senhoras de Aparecida” enfurnadas em aparelhos de TV.

Temos aqui dois dilemas que uma estranha vocação, a etnográfica, a só encontrar em lugares consagrados como Ouro Preto o “puro” e o “autêntico” — seja como resíduo de uma história que o lugar preserva, seja como atualidade de uma cultura e, melhor ainda, de uma cultura popular que preserva a autenticidade do lugar — costuma não descrever. Primeiro, as pessoas do lugar consagrado e, mais ainda, suas pessoas mais culturalmente populares produzem sua arte e seus artesanatos populares. Mas, com a evidência do que acontece nas ruas, lojas e feiras de festas, profanam-se enquanto consumidores. Isso porque não adquirem nem usam em suas casas e vidas objetos de uma “cultura autêntica”. Vendem-se ao reinado do kitsch. Segundo, não apenas por causa dos jovens que inundam o lugar e criam ostensivamente situações de uma aparente jovem “cultura universal”, um artesanato correspondente ao de “feira hippie” de qualquer cidade brasileira ameaça desbancar o primeiro do “tradicional”. Explico-me a seguir. A proximidade física de situações de mercantilização fácil da cultura-à-venda em uma cidade que se percorre a pé sem problemas em uma manhã de domingo desafia o pensar sobre que princípios e regras regulam a circulação mais corriqueira de bens simbólicos. Que códigos e interesses regulam trocas onde justamente a diversidade de produtos e intenções de consumo parece ser o desafio a um lugar de “cultura” e turismo em que uma uniformidade regida pelo primado do “tradicional” é um suposto básico? Ora, para que Ouro Preto seja efetivamente um lugar de história-e-cultura atraente, é indispensável que preserve uma “tradição autêntica”, algo que conote a peculiaridade de sua cultura em sua história. Mas, para que as pessoas reais de Ouro Preto possam realizar concretamente seus desejos e para uma quantidade maior de pessoas de fora queira estar em Ouro Preto, é necessário que esse lugar consagrado se abra àquilo que invade e profana o que lhe parece ser mais peculiar.

A partir de objetos de antiguidade, arte e artesanato repensemos as mesmas diferenças que nos acompanharam na descrição do uso ritual dos lugares da cidade. Há objetos que parecem circular preferencialmente de dentro para fora, enquanto outros circulam preferencialmente de fora para dentro. Vimos que os da primeira categoria são feitos por artistas e artesãos “do lugar”, segundo padrões tidos ali como tradicionais,

característicos e originais e são comprados por pessoas vindas de fora. Vimos que os da segunda categoria são trazidos por pessoas de fora e vendidos às pessoas de Ouro Preto e a pessoas em Ouro Preto. De modo muito simplificado, temos portanto as seguintes relações:

objetos de antiguidade, arte e artesanato preservados ou produzidos na região e vendidos preferencialmente para pessoas de fora

objetos de arte e artesanato produzidos por pessoas de fora e vendidos preferencialmente a pessoas de fora e, com menor intensidade, do lugar

objetos semi-industrializados ou já totalmente industrializados, produzidos fora e vendidos preferencialmente a pessoas do lugar

peças antigas, obras de joalheria, artesanato “típico da região”13

produzido dentro e consumido fora

artesanato “latino-americano” ou artesanato “hippie”

produzido fora e consumido dentro e fora

objetos kitsch, utensílios de uso pessoal e doméstico

produzido fora e consumido dentro

O interesse desta discussão não é apresentar etnograficamente a cultura popular de Ouro Preto” em seu processo de produção (como usualmente fazem os folcloristas, alguns de maneira notável) ou em seu complicado processo de circulação. O que é importante aqui é mostrar como pessoas e objetos trocam-se entre si e como, dentro de um mesmo suposto contexto cultural, circulam entre vários sujeitos de culturas ou entre modos desiguais de produção, circulação e significação da própria cultura. Por isso mesmo, eu quis apresentar as diferentes pessoas envolvidas com criar-vender-comprar, da maneira como acredito que elas convivem com as tramas dessas e de outras relações concretas em diferentes posições. É tentador para uma pesquisa sobre “o artesão popular de Minas Gerais”, apresentá-lo como um sábio guardião consciente de uma tradição que aos pobres e subalternos é confiado preservar sem “distorções”, esquecida de que em sua casa ele tem — quando pode comprar — elefantes de louça sobre a mesa e um pingüim de porcelana em qualquer cômoda. Afinal, que é que certas pessoas que criam cultura querem e usam prática e simbolicamente, como objetos cotidianos de cultura?

Colocados na dupla e real condição de criadores e/ou vendedores consumidores de antiguidade, arte e artesanato, nossos sujeitos poderiam ser classificados da seguinte maneira.

a. Raros artistas letrados de obras pessoais assinadas de/em Ouro Preto, consumidores de arte local e de antiguidade e, especialmente, de objetos de arte vindos de fora da região.

b. Raros colecionadores especialistas de antiguidades locais, vendedores de antiquários e consumidores do que também vendem; consumidores de arte vinda de fora e raramente de objetos locais de artesanato popular.

13 Distinguir entre os jovens e fazer justiça à diferença. A pequena mas importante industrialização do município atrai operários. Famílias, adultos e jovens que migram do campo para a cidade e de outras regiões para a de Ouro Preto em busca de trabalho nas fábricas. Jovens, pobres, não raro subempregados, mas que sabem que apenas como exceção retornarão “pra roça”, são os que depressa procuram esquecer como eram e aprender a ser “da cidade”. Mas não é deles que falo aqui. Há em Ouro Preto uma quantidade relativamente grande de jovens da Universidade Federal de Ouro Preto e, como em tantas outras cidades “pequenas” com uma alta densidade de estudantes “de fora”, sua presença não deixa de ter repercussões. No entanto poucos dentre eles estavam presentes em julho, tempo de férias e é, portanto, para jovens igualmente estudantes, mas “ali”, “em férias”, que tais produtos são vendidos.

c. Pessoas e famílias que vivem apenas ou também de produção e comercialização de artesanato e são consideradas por moradores e estudiosos como criadores locais de arte popular; em geral não usam — a não ser como utensílios domésticos e não como objetos de adorno — o que criam e não são consumidores de objetos equivalentes feitos por outras pessoas; costumam consumir em proporção crescente objetos e utensílios industrializados trazidos de fora para Ouro Preto; não esquecer que aqui estão tanto os artesãos populares que ainda controlam o processo de produção de seu trabalho e que costumam afirmar a originalidade artística do que criam quanto os artesãos que produzem sob encomenda, em quantidade, ou que são empregados de oficinas locais na produção de objetos de pedra-sabão.

d. Produtores e/ou vendedores de arte ou artesanato “típico”: “latino-americano” ou “hippie”; vendem e compram dentro de seu próprio “universo de criação”; raramente consomem artesanato local e, menos ainda, objetos de arte e antiguidade; tal como os sujeitos das categorias a e b, abominam os objetos kitsch, cujo consumo, sabemos, restringe-se prioritariamente aos artesãos populares ou a outros sujeitos de mesma condição de classe.

e. Turistas confessos (individuais, conjugais, familiares e coletivos) cuja diferença fundamental, comparados com os outros, é que são puros consumidores do que há para ver, comer e comprar; nada levam para vender e nada vendem, mas é a eles que se destinam quase todos os produtos; são os que adquirem em maior quantidade os objetos “da cultura local”: antiguidade, arte e, principalmente, o artesanato regional ou típico.

f. Comerciantes de kitsch (mereceriam um nome melhor, mas não o encontrei); de alguma maneira são o oposto do turista; chegam de fora como ele mas não lhes interessa ver, comer e comprar coisa alguma “de Ouro Preto”; quando podem, trazem sua própria comida, e não é raro que, quando inveterados vendedores “de festa”, durmam em suas próprias kombis; vêm vender não aos turistas, como vimos, mas às pessoas do lugar, que, em boa medida, criam e reproduzem a cultura tradicional e/ou popular que o turista vive e compra.

Com evidência haverá tipos intermediários que não consegui reconhecer. O que importa compreender é que não existe uma relação simples, direta e mecânica de transações de objetos de cultura, como pesquisas sobre o “artesanato brasileiro” insistem em sugerir. Que faz o artesão quando não está criando? Que é que ele vende? Como e a quem? Que compra ele e por quê? Como ele existe, não como sujeito unilateral, visto apenas pelo olhar que o torna um “tipo puro”, mas como pessoa que habita os vários planos de sua cultura?

Não será estranho observar neste momento que dois tipos de sujeitos aparentemente polares são os que parecem possuir menos poder de barganha e menor grau de liberdade nas relações de troca de objetos de cultura. De um lado os muito ricos e “cultos”, vindos de fora, a quem obrigatoriamente interessa apenas a “antiguidade autêntica”, a “verdadeira arte” e, em menor proporção, o artesanato mais raro e caro. De outro lado, os muito pobres e “populares” do Lugar, cujo consumo do supérfluo restringe-se à compra de objetos industrializados vindos de fora.

Ampliemos o quadro de algumas páginas atrás. Dividamos, em primeiro lugar, os domínios de produção-circulação de cultura-à-venda em: regional e kitsch. Procedamos à subdivisão precária e distribuamos suas relações entre quem faz, quem vende, quem compra e quem evita.

regional

arte erudita de/em Ouro Preto Antiguidades regionais Artesanato popular

produzida por artistas de/em Ouro Preto

produzidas por artistas ou artesãos (antiguidade “recente”), ou preservadas por colecionadores ou moradores (antiguidade “colonial”)

produzido por artesãos populares: a. autônomos e criadores; b. empresariados e reprodutores

comercializada pelo próprio criador ou por vendedores de lojas de arte e antiguidade

comercializadas por moradores isolados ou por donos e especialistas em antiguidade

comercializado pelo próprio criador, por compradores pobres ou por donos de lojas de artesanato regional

vendida a turistas ricos e “cultos”

vendidas a turistas ricos e “cultos” vendido a turistas em geral

evitada por turistas pobres, jovens de fora e sujeitos populares

evitadas por turistas pobres, jovens de fora e sujeitos populares

quando de má qualidade, evitado por turistas cultos, evitado por pessoas da cidade

de dentro para fora

típica kitsch

artesanato continental (estilo “latino-americano”)

artesanato nacional (estilos: “hippie”, “naturalista” etc.)

objetos de indústria de cultura de massa

produzido por artesãos de outros países ou por latino-americanos no Brasil

produzido por jovens artesãos de fora da região

produzidos em oficinas e indústrias de objetos de massa, de fora

comercializado por jovens de fora em bancas de ruas, seus próprios criadores ou intermediários

comercializado por jovens de fora em bancas de rua, seus próprios criadores ou intermediários14

comercializados em lojas populares e em barracas de feira e de festas

vendido a jovens visitantes e jovens “modernos” da cidade15

vendido a jovens visitantes e jovens “modernos” da cidade

vendidos a pessoas pobres, “populares” da cidade e da região

evitado por turistas em geral, evitado por pessoas populares da cidade

evitado por turistas em geral, evitado por pessoas populares da cidade

evitados por turistas em geral e por jovens de fora

de fora para dentro

14 Alguns artesãos do “típico” produzem ali mesmo, diante do “público”, seus objetos. Fazem pequenas pulseiras de pano ou em latão, entalham madeiras e, a pedido, podem gravar o nome do comprador na “obra”. Curiosa situação em que o artista não assina mais o seu nome, sinal de sua pessoa criadora no trabalho que faz, mas assinala o de quem compra. Raros artesãos populares trabalham também em público. Lembro que em feiras e exposições de artesanato patrocinadas por órgãos públicos, instituições patronais e outras, é crescente o hábito de reservar espaços para a construção de pequenas situações de oficina onde as pessoas que costumeiramente criam em seus lugares de origem são convocados a vir criar na frente de que as vê. 15 Um estudante do mestrado em antropologia social realiza no momento uma pesquisa em Belo Horizonte a respeito de artistas e artesãos populares já plenamente urbanizados que criam e não vendem. Ou seja, a quem interessa apenas o fazer para ter, para consumir ele próprio o que cria, de modo não necessariamente utilitário, ou para compartir ali mesmo, entre sujeitos de seu próprio mundo de cultura e no âmbito da classe, sua própria criação.

Algumas linhas atrás eu dizia que dentre os vários tipos de consumidores visíveis de uma cultura de fruição — aquela que social e simbolicamente existe como arte, antiguidade e artesanato — há dois tipos de polares cujo espaço de opção é mínimo, e não apenas por razões econômicas diretas: os ricos vindos de fora, a quem interessa só o que é “único”; e os pobres do lugar, a quem motiva apenas o que é “múltiplo”. Os outros distribuem-se nos intervalos dos limites dados pelos dois tipos extremos (onde estaria eu, a quem uma pura intenção de pesquisa não livrou de sair da cidade na noite de domingo com uma modesta coleção de objetos de artesãos “do lugar” e, confesso, com dois colares “hippies” para minha filha?). Com mais detalhes, uma descrição mais adequada poderia retomar a relação de tipos criadores-consumidores e desdobrá-la ainda. Haverá novos tipos nas ruas? Haverá novas modalidades de trocas de bens e significados entre eles? Vejamos isto, retomando agora com mais vagar as relações entre criadores e/ou vendedores.

De saída sabemos que os “tipos puros” são aqui o limite (um mais oculto, outro mais visível): o puro criador-que-não vende X o puro vendedor-que-não-cria. Mais do que “puros”, os que os observam de dentro das regras do campo de trocas consideram-nos “incompletos”; uns, plenamente amadores, não querem comercializar o que criam; outros, plenamente exploradores (e aqui artesãos-operários e turistas se juntam para condená-los), não sabem criar o que vendem.

Em uma ponta da meada está o artista e/ou artesão que cria (pinta, borda, esculpe, entalha, escreve etc.) “por amor à arte”. Um recorte de classe se impõe. Há em Ouro Preto — como de resto em qualquer cidade do País — mais criadores gratuitos da classe média para cima, do que dela para baixo. Pintores ou pianistas “remediados” e habilidosos poderão viver toda uma existência sem pensar em comercializar o que fazem, o que dificilmente deixará de acontecer com um lavrador ou pedreiro, desde quando descobrem que sabem criar e que o que fazem tem um valor como mercadoria complementar ou substitutivo do que fazem como trabalho profissional. Artista ou artesão, esse criador-não-vendedor coloca-se na verdade à margem das regras do campo de trocas de bens simbólicos, pelo simples fato de que seus objetos de arte ou artesanato não transitam por todos os ciclos que as regras do campo codificam.16

Mais freqüente, ou pelo menos mais visível na cidade, é o criador exclusivo que vende o que produz e só vende o que produz. Enquanto os primeiros não se relacionam com o comprador de qualquer maneira e são apenas consumidores no mercado dos bens simbólicos, este outro dispensa o intermediário e, artista ou artesão, é também um vendedor direto. Na primeira exposição não-anunciada na sala de casa ou nos fundos da oficina familiar, ou do ourives, ou do artesão de pedras menos nobres, comercializa a “criação própria” e faz dela um momento final do ato de criar. Já que para uns é inútil e, para outros, impensável não vender a própria arte, que ela seja comercializada “por conta própria”, com rituais de troca onde o dinheiro possa aparecer como intruso acidental e onde a garantia pessoal da autenticidade e da unicidade salve o criador de se representar para si mesmo e dar-se ao outro como um comerciante.

Tanto o artista pobre quanto o artesão muito pobre vendem diretamente o que criam por razões de estratégia de mercado, segundo as explicações de alguns deles. A dispensa do vendedor intermediário reduz o território de trânsito da obra mas livra o criador de dividir com ele parte do lucro. No entanto, principalmente entre os sujeitos populares, artesãos criativos que se reclamam o serem, a seu modo, artistas, o controle

16 A respeito da identidade e da ideologia de artistas populares remeto o leitor ao trabalho de Lélia Coelho Frota, Mitopoética de 9 artistas brasileiros, Rio de Janeiro, Funarte, 1978.

sobre o processo completo de sua própria produção aparece com um suposto que legitima sua condição.17

Como quem viaja do herói ao vilão, o oposto social do criador exclusivo é o vendedor exclusivo, dono de loja ou não. Comerciante estabelecido em Ouro Preto ou pequeno atravessador de vendas de rua, é ele quem compra, aceita em consignação ou encomenda objetos de antiguidade, arte e artesanato. Embrião da atividade capitalista nos negócios da cultura é o sujeito que acaba definindo com maior poder de barganha as regras da circulação dos bens de fruição. Artistas letrados “deixam obras em consignação”. Se não recebem no ato dinheiro algum pelo que ainda não venderam, pelo menos garantem por isso mesmo uma certa nobreza de relações que, uma vez mais, os salva de submeter a vocação da arte à baixeza do comércio. Dependendo de graus de autonomia muito variáveis, a relação dos artesãos populares com o comerciante é de dependência. Eles aceitam encomendas e produzem para lojas — às vezes até mesmo para “atacadistas de artesanato” de fora da região — por preços mínimos ou então vendem o que fazem por conta própria a diferentes lojas ou intermediários, com um poder de barganha reduzido. Entre outras coisas, pelo simples fato de que seu ofício se multiplica, e o produto dele existe em abundância.

Entre o puro criador-que-vende-o-que-cria-e-não-comercializa com nem através de intermediários, e o puro comerciante-não-criador, estão as categorias de criadores-vendedores que já nos são pelo menos em parte conhecidas. A seu modo, oposto ao criador autônomo, o caso extremo de servidão criadora é o do artesão de oficina; ele é contratado em Ouro Preto para fazer em massa objetos de pedra-sabão a troco de salário, como um outro qualquer. Alienado como ele dos meios de produção, ele o é também da própria autonomia da criação; porque não cria e repete os mesmos padrões. Isto é, produz estilos e submete sua capacidade de criar às regras do fazer de um “dono do negócio”. É evidente que essa submissão corresponde a um processo de crescente subordinação do trabalho artístico — individual, original, criativo e diferenciado segundo padrões de uma cultura — à reprodução da arte e do artesanato como produtos “populares” de circulação massificada. Este é o momento e o sentido em que algo antes genuinamente popular transforma-se impositivamente no típico, no sentido dado a esta palavra por Néstor Garcia Canclini — popular como capaz de expressar criativamente significados, valores e modos de vida de segmentos culturais diferenciados e definidos das classes e capaz de sugerir ou afirmar, portanto, alguma coisa que de ver com sua própria identidade; típico como um suposto popular e tradicional, mas sem já possuir mais, justamente, as características enunciadas acima.

Uma distribuição de todos os tipos de criadores e comerciantes de arte ou artesanato em Ouro Preto, através de suas relações de autonomia-subordinação nos “negócios de cultura”, sugere as seguintes categorias:

17 De muitos modos, seja por conta própria, seja através do controle de órgãos oficiais, artistas e artesãos populares defendem uma relativa autonomia de produção e circulação de seus objetos através da formação de cooperativas. Em Minas Gerais mesmo há iniciativas empresariais e governamentais e, na Cidade de Goiás, há uma interessante experiência conduzida por pessoas da Igreja. De qualquer maneira é necessário não esquecer que é sempre difícil o convívio da cooperativa com as regras dominantes do capitalismo. Qualquer que seja sua origem, a cooperativa de artistas e artesãos ou se transforma ela própria em uma pequena empresa, onde fórmulas apenas na aparência igualitária ocultam o controle do capital sobre o trabalho, ou se preservam (quando sobrevivem) como a face frágil de comercialização cujas trocas internas (entre os membros) podem ser ainda igualitárias, mas cujas trocas externas (as do mercado dos produtos) termina por submeter-se não só comercialmente mas até ética e esteticamente ao poder e, mais ainda, ao estilo do capital.

• criador autônomo amador cria e não vende

• criador profissional autônomo cria e vende por sua conta, sempre a particulares

• criador profissional autônomo, vendedor de livre escolha

cria e vende por sua conta, inclusive a comerciantes, por encomenda

• criador profissional não-autônomo cria e vende sempre a comerciantes revendedores

• criador cativo operário de oficinas de produção de artesanato

• comerciante-criador vende o que cria e compra de outros para vender

• comerciante profissional encomenda, compra e recebe em consignação para vender

• produtor comerciante produz através do trabalho de assalariados e vende o que produz a outros comerciantes

Alguns estudos sobre a arte barroca de Ouro Preto eliminam, com plenos direitos, os criadores do passado e os de hoje de um artesanato tipicamente popular. Eliminam, na maioria dos casos, as relações sociais entre diferentes sujeitos de poder, dinheiro e arte, que tornavam justamente possível as tramas de trocas para que igrejas fossem construídas e santos fossem feitos. Assim também, de modo não muito diferente de como fazem os volantes da Turminas, tudo u que existe “ali”, multiforme, vivo e real nos fins-de-semana a que são convocados os turistas é banido do texto de pesquisas de folcloristas, sempre que não seja o que é justamente “tradicional”, “popular”, “típico da região”. Lojas de antiguidade, arte e artesanato são incluídas, porque “ali”, mineiramente se comercializa o que deve ser comprado em Ouro Preto. Mas todo o processo por meio do qual, sob diversas formas de controle e expropriação, o trabalho do criador sai de suas mãos e vai parar nas prateleiras torna-se invisível. Criadores, comerciantes e consumidores fazem parte de uma mesma trama indissociável de relações, onde o interesse comum da troca traça as regras que classificam uns e outros e, dentro de cada categoria e entre elas, define os graus de liberdade e subordinação entre todos. E é através delas que devem ser buscadas as razões pelas quais o artesão vende barato o produto de um trabalho cada vez mais anônimo e banalizado. Mas também através delas é que será preciso compreender porque esse mesmo artesão prefere a feíssima passadeira de plástico no corredor da casa ao tapete de sisal cuja arte leva o turista de Ouro Preto e Cachoeira do Brumado.

Tentemos um quadro de síntese mais complicada. Seria possível agora juntar esquematicamente os dois momentos das trocas, aqui brevemente descritas, entre os tipos de pessoas que em meio a ritos de festa e compra povoam um fim-de-semana em Ouro Preto?

6. As utilizações da cultura

Pequenas divisões com que tenho trabalhado até aqui, como a de antiguidade, arte e artesanato, ou a de cerimônias cívicas e cerimônia religiosa, não são as mais importantes. Indicadores de lugares, situações e objetos, servem apenas para vestir, revestir e indicar no palco o local, o produto do trabalho ou um momento do drama que um fim-de-semana festeja em Ouro Preto. Outras são mais importantes e é sobre elas que a atenção deve se prender um pouco mais, antes de deixarmos a noite de domingo da cidade. Nos próprios modos diferenciais de se ser e estar em Ouro Preto e, mais ainda, na maneira como as pessoas, mineiramente ou não, se reconhecem e se classificam lá. Uma outra: erudito X popular, aquela que separa tanto o artesão pobre e anônimo, fabricante de pedra-sabão, do artista letrado, pintor que assina o que faz e vende o que assina, quanto o jovem universitário de Belo Horizonte ou o turista e o vigário que conhecem e estudam a “vida de Aleijadinho”, do rapaz operário semiletrado que de noite se divide entre o Concurso de Música Sertaneja e a Festa de Santa Cruz e também a moça empregada doméstica que a custo faz “supletivo” e na feira da festa compra um pôster “do Roberto Carlos”.

Arte e artefatos finos, eruditos e caros +

antiguidades “autênticas”

Arte e artesanato “típicos”, difundidos e baratos, de

estilo “hippie” ou “latino-americano”

Arte e artesanato populares, locais ou tipificados como “do

lugar”, comuns e baratos

Utensílios e “artesanato” de

indústria cultural: estilo kitsch

Festividades tradicionalmente eruditas e solenes ou reservadas: encontros e seminários culturais, festividades cívicas, grandes festas locais sob controle direto da Igreja

Festivais e festas urbanos e modernamente eruditos; encontros de estudantes, festivais de música ou de produtos, situações de “curtição de jovens” em Ouro Preto

Festejos e festas tradicionais populares principalmente religiosos e realizadas à margem do controle direto da Igreja

Promoções empresariais festivas “para o povo do lugar”: festivais, concursos, circos

Exemplo em julho: Festival de Inverno da UEMG (no passado); Encontro de Estudantes de História, em Mariana

Exemplo em julho: Festival de música popular, Festival de Vinho, situações livres de curtições de jovens em Ouro Preto, rally em Ouro Preto

Exemplo em julho: Festa de Santa Cruz na Ponte da Barra

Exemplo em julho: Concurso de Música Sertaneja, som-pop na Festa de Santa Cruz, circo-rodeio.

Produção oficial ou civil erudita; controle predominantemente erudito

Produção civil com ajuda de entidades oficiais, erudita: controle e fruição eruditos

Sujeitos das classes populares locais ausentes ou ocupando, com o trabalho profissional ou artístico, uma posição subalterna

Sujeitos das classes populares ausentes ou marginalmente presentes

Produção popular, em geral de estilo comunitário; controle e fruição populares, não raro com submissão mais ampla a controles externos ao grupo popular produtor (irmandade, povoado, etc.)

Produção agenciada de interesse comercial declarado ou oculto; controle empresarial e fruição predominantemente popular

Tendência à ênfase sobre a tradicionalidade: “quanto mais mineiro melhor”

Tendência à ênfase sobre a modernidade, a universalização

Tendência à ênfase na preservação da tradicionalidade popular

Tendência à ênfase em uma renovação de tradicionalidade popular; a mesma música sertaneja mas com marcada influência da indústria fonográfica

Oposição mais difícil principalmente nos campos distantes dos extremos, mas a que foi necessário recorrer aqui com freqüência.

No correr de tais oposições é possível trabalhar com exemplos locais cuja utilização analítica não é pequena. Assim como podemos opor mais superficialmente a Semana Santa e a Festa de Santa Cruz ao Concurso de Música Sertaneja e ao Festival do Vinho, separando um domínio de celebração do sagrado de um outro, de festejo profano de rua, assim também é possível dizer, em um nível mais relevante, que a Semana Santa opõe-se à Festa da Santa Cruz de modo semelhante ao como o antigo Festival de Inverno opõe-se a uma noite de espetáculo do circo-rodeio ou, com menor rigor, ao Concurso de Música Sertaneja.

A observação da conduta de atores de diferentes classes e categorias sociais de/em Ouro Preto na Semana Santa e na Festa da Santa Cruz denuncia uma evidência significativa em tais oposições. À margem ou circulando entre autoridades do lugar e de fora, há pessoas pobres nos dois ciclos de celebrações religiosas. Na Semana Santa — cujo poder social e simbólico de produção de seqüências de ritos, de controle da participação e de atribuição legítima de sentido ao que acontece reparte-se entre autoridades da Igreja católica, da prefeitura municipal e da Turminas — as pessoas “comuns” dividem-se entre assistentes marginais, empregados e funcionários rotineiros (os que não têm folga nem na festa) e participantes subalternos. Enquanto na Festa de Santa Cruz, mesmo com o patrocínio da Alcan e da prefeitura e com o controle à distância tanto das autoridades da Igreja quanto da delegacia policial, as mesmas pessoas pobres da cidade e do campo vivem o que se faz e acontece como coisa sua, como algo social e simbolicamente popular. E isso é dito entre todos com muita naturalidade, quando os moradores da Ponte da Barra distinguem a festa à qual eles assistem, da qual participam e a que eles fazem. Todas elas de uma mesma igreja católica e todas em Ouro Preto.

A separação entre a Semana Santa e a Festa de Santa Cruz (de que as pequenas “festas de padroeiros” dos arraiais de perto são exemplos mais sábios) subsiste na diferença que a própria ideologia popular estabelece entre “uma festa nossa” (das pessoas e entre os símbolos e significados da classe, em seu lugar social de realização da vida) e “uma festa da Igreja, aonde nós vamos”.

Certamente elas próprias não usarão essa última palavra, mas popular tem ali um duplo sentido:

a. é o processo e o produto da iniciativa, do imaginário religioso, do trabalho coletivo e da fruição motivada de pessoas que oscilam, em Ouro Preto, entre o pequeno comerciante estabelecido nas proximidades da Ponte da Barra, o operário do alumínio, o desempregado crônico e o lavrador dos povoados das cercanias;

b. é, hoje, mesmo que no passado tenha sido dever e direito exclusivos da Igreja, a iniciativa de sujeitos da Igreja católica e se realiza quase à margem de sua presença oficial.

Assim, se de um lado a idéia de popular opõe categorias sociais de pessoas (operários, lavradores, pequenos profissionais “de periferia” presentes e atuantes X turistas, jovens universitários, profissionais “de alto nível”, grandes comerciantes e fazendeiros, ausentes ou distantes), de outro lado a mesma idéia opõe categorias de atores religiosos: tipos de atores sociais revestidos de diferenças e significações a partir da maneira como desigualmente se inscrevem no corpo de trabalho, de poder e de

atribuição de sentido da Igreja católica, onde uma pequena confraria de agentes eclesiásticos separa-se e opõe-se a uma missa de leigos: os “fiéis”.

Ora, essas separações tipológicas trabalham contra e a favor de uma evidência estatística que não deve ser escondida. Momento algum, a não ser em situações extremamente fechadas e exclusivistas do ponto de vista do poder social, privilegia o controle absoluto, a participação reservada e a significação ortodoxa única do que acontece “ali”, na festa ou na celebração. Sabemos todos que é a Igreja católica, em Ouro Preto sob a égide da pessoa jurídica e canônica da diocese de Mariana e suas paróquias, quem legitimamente proclama e programa o que é e o como se vive, “ali”, uma Semana Santa. Mas todos sabemos também que qualquer negro de Cachoeira do Brumado sentir-se-á convocado, pelo simples fato de ser “dali” e de ser “um católico devoto”, a ir participar das missas e das procissões. E, obediente aos ditames da Igreja, ele o fará — participando ou não de uma confraria de São Benedito — a partir de um quadro referencial de símbolos e significados que dinamicamente combina e articula elementos equivalentes do saber e dos valores da Igreja com os seus próprios, os de sua confraria popular de devotos negros, os de sua comunidade em Cachoeira do Brumado, os de sua categoria social de lavrador, os de sua cultura religiosa, parte do sistema de símbolos com que a confraria, a comunidade, a família, os negros “de lá” e o sistema local de um catolicismo popular significam suas próprias vidas, as inter-relações entre elas e outras — que outros e os mesmos valores de cultura refletem — suas posições nos diferentes sistemas da vida social, que se cruzam e recortam de e sobre tais configurações de símbolos. Símbolos que nesse caso impregnam de valores do sagrado seus estilos e motivações peculiares de vida, seus sentimentos do mundo, seu ethos de classe e as identidades que combinam, naquele homem, o ser devoto católico, o negro de São Benedito, o lavrador mineiro, a pessoa do Arraial de São Sebastião e o “chefe” de uma família “do lugar”.

Assim, tanto na Semana Santa quanto na Festa de Santa Cruz, pessoas das classes populares e, portanto, produtoras e reprodutoras do que costumeiramente chamados de uma cultura popular, integram-se na teia dos acontecimentos, situações e significados do que se crê, pensa, faz e vive “ali”. Mas, para nosso caso muito específico, é justamente a diferença do como participam o que interessa.

Na maior parte dos casos os sujeitos presentes “do povo” estão na Semana Santa ou em uma grande e solene Festa de Corpus Christi, cumprindo ordens e realizando, através de trabalho produtivo ou simbólico (o que aqui separa por momentos o lixeiro que pela manha varre as ruas do Sábado de Aleluia do irmão de São Benedito que na tarde de domingo passará por ali na procissão da ressurreição) que, invisível, discreto ou subalternamente destacado, torna possível o festejo. Estarão — e isso se faz com crescente intensidade — aproveitando a ocasião em que o sagrado, ano a ano, convoca mais o turista curioso do que o devoto piedoso, para incrementar o comércio usual de venda popular de bens e serviços — do artesanato à comilança — de que uma parcela demograficamente pequena, mas culturalmente ainda relevante da população local vive ou com o que reparte a vida. Estarão, mais em outras grandes festas solenes do que em qualquer um dos dias da Semana Santa, colocando como “o folclore de Ouro Preto” sua fração de presença coletiva e subalternamente atrativa e pitoresca. (Minas Gerais tem mais de 600 ternos ou guardas de congos e moçambiques).

Mesmo que uma festa de Igreja em que os ternos de congos são convocados a se apresentarem não seja deles, como ela é em Santa Cruz e é, mais ainda, na quietude mineiramente rural de um povoado, a presença do trabalho ritual de grupos e pessoas “do povo do lugar” é o que em boa medida serve aos interesses empresariais — não raro

revestidos como culturais, nunca esquecer — de deslocar cerimônias festivas de uma motivação tradicionalmente religiosa e vivida através de sua sucessão de rituais, para a dimensão de um espetáculo. Algo que se transfere do ser vivido-e-visto pelas pessoas do lugar para alguma coisa que é para ser vista-e-vivida por quem paga e vem de fora. E é esse “para ser visto por quem vem” aquilo que subordina e modifica, primeiro o próprio desempenho coletivo do trabalho religioso popular e, depois, pouco a pouco, o seu próprio sentido.

Pois, entre outras coisas, no estabelecer ritualmente a diferença, no significá-la e significar contextos e relações de contextos de trocas entre categorias diferenciais de pessoas e, depois, no consagrar simbólica e afetivamente o domínio de poderes e sentidos em que tudo isso se passa, dentro e depois do que acontece “ali”, está a força da festa e de suas seqüências de celebrações.

De modo semelhante a como uma manhã comum de domingo em julho distribui pelos cantos, ruas e praças adequados da cidade as pessoas e os grupos de pessoas e a diferença de objetos de antiguidade, arte e artesanato, assim como a diversidade de valores e razões de sua compra-e-venda, a sucessão anual de celebrações religiosas, cívicas ou culturais redistribui pelos mesmos e outros cantos e caminhos de Ouro Preto as mesmas e outras pessoas. Retenhamos daqui em diante mais a atenção sobre o atores sociais populares. Aqueles a quem a própria celebração festivamente rouba por um momento à rotina do processo do trabalho e reinveste, por algum tempo, de outros gestos, poderes e identidades: nosso lavrador negro também devoto de São Benedito, um operário também exímio dançador do Congo ou o artesão de objetos de madeira, que entre o Natal e os Santos Reis faz de seu corpo sua própria arte e se reinventa devotamente como um folião dos Três Reis Magos.

Pois é essa articulação entre culturas em “um lugar” ou de interação entre as diferentes culturas “do lugar” em um momento o que faz a atualidade do poder simbólico (e simbolicamente turístico) de Ouro Preto, uma cidade agora “do alumínio”, que não quer, sentimental e interessadamente, esquecer que veio “do ouro”. Uma configuração de objetos, sujeitos e símbolos existentes em qualquer cidade, mas intencionalmente dada a ser mais visível em um lugar obrigado a isso, como Ouro Preto. Seres e coisas que entre si criam e trocam significados contidos nos mesmos e em diversos gestos e condutas que se abrem a leituras, “ali” e “depois”, muito diferentes Leituras cuja síntese cotidianamente feita e revista por seus habitantes produtores ao mesmo tempo oculta e revela, como cultura e identidade, diferentes maneiras de se ser de Ouro Preto ou de ali se viver e estar em uma vida inteira ou em alguns momentos de uma festa de julho.

Primeiro é necessário que Ouro Preto seja “cidade histórica”, “berço de nossa cultura”, um lugar único e, portanto, misticamente carregado de um perfil de diferenciação, para ser, depois, capaz de tornar culturalmente múltiplas em seu cotidiano justamente as diferenças e as oposições que são, ao mesmo tempo, o seu problema e a sua condição.

Depois de perder na periferia sua ilusória aparência de “passado colonial” no correr dos anos e sob a ameaça de transferir-se um dia de “história” para “industrial” ou “dormitório”, a cidade renova-se hoje e se atualiza em termos francamente capitalistas — algo que a exagerada sacralidade histórica e religiosa da tradição oculta ou reveste — para ser um grande cenário de natureza, história e cultura que, em seu todo, pode finalmente apresentar-se como um espetáculo até onde se vai. “Um espetáculo de cultura” que re-semantiza os antigos e cria novos sujeitos, objetos e rituais, que, como

vimos, a todo momento, no entrecruzamento entre o que se faz, vende, compra, vê e vive, geram preservam por vacação e renovam por necessidade de público os momentos e as situações em que, de maneiras diversas e diversamente significativas, é possível e atraente, afinal, vir-se de longe para “viver a cultura em Ouro Preto”.

Ibirité: a cultura da ausência

Aos amigos do “interação”

1. Entre chácaras e dormitórios

Um oposto de Ouro Preto em Minas Gerais é Ibirité, apenas por engano algum viajante desavisado iria fazer turismo ali. Apenas por conveniência ou cumplicidade algum estudante universitário virá “fazer pesquisa”. Então será preciso que o motorista do ônibus alaranjado que faz a linha entre Belo Horizonte e o município diga: “é aqui”. O ponto final é o lugar que as pessoas de lá chamam de “sede”; pouco maior do que alguns bairros-dormitórios, que, mais próximos de Belo Horizonte, Betim e Contagem, ameaçam crescer mais do que o que foi até algum tempo atrás o único arruado do município de Ibirité semelhante a uma cidade.

Nem bem desaparecem os prédios e as chaminés da Cidade Industrial, o ônibus passa por Barreiro Velho (no passado, tal como Ibirité ainda hoje, um arrabaldo à parte, separado de Belo Horizonte). Depois, mais alguns morros e curvas e a paisagem finalmente começa a ser campestre, mas não há nada em volta que mereça do viajante levantar os olhos do jornal.1

Até poucos anos atrás o município foi habitado por raros donos de fazenda, sitiantes e, em número crescente, chacareiros, divididos entre a criação de gado leiteiro, uma lavoura decadente de milho e feijão e a produção de hortaliças, hoje sua base econômica.2 Mas agora, tal como acontece em toda a região à volta da Cidade Industrial, muito depressa Ibirité é invadida por famílias de moradores migrantes, sujeitos vindos da roça para a fábrica ou o subemprego, acostumados à “periferia”.3

1 O município de Ibirité faz parte da Zona Metalúrgica de Minas Gerais, onde está também a capital, Belo Horizonte. Junto com outros 13 municípios compõe a Região Metropolitana de Belo Horizonte, popularmente a Grande BH. Faz fronteira com a própria capital, Betim e Contagem, e é esta a área de maior concentração de seus bairros-dormitórios. Em direção oposta, limita-se com Igarapé e Brumadinho, e esta é a direção das áreas ainda agrícolas e especialmente hortigranjeiras de Ibirité. 2 De acordo com os dados oficiais, uma população de pouco menos de 50 mil habitantes é ainda predominantemente rural, cerca de 66% por volta de 1980. Cerca de 31% das pessoas ativas dedicavam-se diretamente a atividades de agricultura, pecuária, extrativismo e silvicultura; 37%, ao trabalho industrial (dentro e principalmente fora de Ibirité); e 32%, a atividades de comércio e serviços. Essas percentagens muito depressa tendem a tomar direções urbanas e operárias. De acordo com os mesmos censos, quase 60% da população local estão em faixas etárias entre O e 19 anos. Até o momento presente, Ibirité é o principal produtor mineiro de salsa e cebolinha, chuchu, beterraba, almeirão e alface. Essa produção ocupa, no entanto, apenas 9% da área total das terras do município, e há uma predominância acentuada de propriedades rurais de menos de 5Oha. Introduzida por imigrantes portugueses e italianos no começo do século XX, a atividade hortigranjeira foi modernizada recentemente, após a chegada de algumas famílias de japoneses (Estado de Minas Gerais, Município de Ibirité, IGA, 1980, mapa do município). 3 Muito recente, o município de Ibirité foi criado em 1962. Além da “sede”, possui os distritos de Sarzedo e Parque Durval de Barros. “A partir de 1944, o impulso dado à industrialização na direção oeste de Belo Horizonte teve reflexos em Ibirité, que passou a exercer a função de cidade-dormitório, para parte da população ocupada nos setores secundário e terciário, da Região Metropolitana de Belo Horizonte. A

Portanto, há uma divisão muito acentuada entre tipos polares de pessoas, de paisagens e de modos de vida. De um lado, os antigos povoadores rurais e seus descendentes hortigranjeiros; de outro, os atuais moradores dos bairros-dormitórios: operários de siderúrgicas e indústrias, operários da construção civil, sub- e desempregados crônicos. Na verdade, entre esses dois tipos de famílias de povoadores demograficamente mais importantes e fora os que residem seja na “sede”, seja em Sarzedo, Durval de Barros, Mário Campos e outros bairros e vivem do trabalho no próprio município, há em Ibirité um tipo novo e completamente diverso de povoador. Entre morros próximos à “Lagoa da Petrobrás” (suja e poluída), a meio caminho entre a “sede” e Sarzedo, uma paisagem mais amena e vegetada abriga chácaras e casas de campo de famílias de classe média para cima. Famílias que, querendo fugir de Belo Horizonte, não podem pagar o preço dos terrenos de periferias nobres e mais ricas. No principal loteamento uma placa anuncia: “Quinta das Jandaias”.4 Umas mais simples, outras curiosamente suntuosas, essas casas de campo sugerem a aparência de uma vida inusitada entre bairros de chacareiros e de operários: grandes gramados verdes e limpos, mesmo nos meses de seca, algumas quadras de tênis, casas de “tijolos à vista”, cercas de alamandas e de primaveras, um punhado de fruteiras, algumas palmeiras e coqueiros. Em dias de semana, à exceção de operários da construção civil e jardineiros, não vi qualquer outra pessoa nas chácaras para onde os lucros do capital convidam gerentes e patrões de fim-de-semana, depois de haverem expulsado antes operários e biscateiros em direção aos bairros-dormitórios de perto, onde casas quase sempre sem reboco, erguidas sobre morros e lama, abrigam o cansaço coletivo do trabalho.

Subindo à volta de Sarzedo, da “sede” e de outros distritos e bairros, de que o mais importante é Durval de Barros, “vilas” de pobres amontoam casas novas. Nos loteamentos mais recentes espalham-nos ainda, umas distantes das outras. Fora as mais antigas, elas são habitadas antes de estarem prontas, e algumas levam anos até estarem revestidas, com portas e janelas definitivas e um jardim precário. Várias não têm ainda o telhado sobre o teto de laje, coisa que o dono considera uma conquista notável. Lotes de 10x20 que as máquinas de alguma imobiliária limpam de matos e capins, entre ruas também de terra. Mas é preciso dizer que, fora as de algumas famílias mais novas e menos plenamente ocupadas no trabalho, não há ali barracos aos pedaços, feitos de restos de obras e indústrias e que a primeira chuva destrói. Muitas delas são propriedade de um “dono” (a casa e o lote), e uma pequena indústria “de aluguel” timidamente começa a surgir na região.

“Melhor longe no que é seu do que perto no que é dos outros”, confidenciava um morador de casa nova, repetindo uma frase certamente comum entre eles.

Eu havia dito que ao contrário dos bairros-dormitórios mais antigos, próximos à fronteira com Contagem e Betim, os mais recentes têm apenas algumas primeiras casas pioneiras espalhadas entre lotes vagos e ruas de terra ruim, que desembocam uma ponta na estrada e outra em largos vazios, sonhando um dia ser praças. Ruas que em julho são ocupação da área onde hoje se localiza o distrito de Parque Durval de Barros foi uma conseqüência direta dessa industrialização” (idem). 4 “Quinta das Jandaias”. Vista de longe são doces e azuladas as águas da “lagoa da Petrobrás”, mas elas apenas servem como irrigadouro de segurança de uma refinaria próxima. Os morros e vales de perto, restos de alguma antiga fazenda, em tudo se transformam. Aos pobres da “periferia”: “Durval de Barros”; aos que podem possuir chácaras de recreio: “Quinta das Jandaias”. Antigas veredas, trilhas de gado e pasto revestem-se de outros nomes e ganham outras paisagens. Uma variação de usos de classe re-semantiza todo o loteamento. Depressa são apagados os traços e sinais cio lugar do trabalho rural que ali se faz, a não ser aqueles que, reescritos, possam valorizar, no local de “recreio”, uma memória do “antigo”.

de uma fina poeira vermelha, que as chuvas de março transformam em pequenos rios de lama. Maneiras erradas de lidar com a terra nessas encostas de que se tiram primeiro os matos e, depois, até mesmo a cobertura rasteira e a camada de solo fértil entre as lâminas de tratores, provocam erosões aqui e ali. Delícia dos meninos em férias, que se metem nos buracos à beira dos caminhos e ali constroem esconderijos e cidades de brinquedo. Susto dos adultos, porque quando maiores e mais vorazes poderão em qualquer janeiro engolir até mesmo casas, como já aconteceu em Durval de Barros.

Como se fossem casas de chácaras construídas em morros sem plantações, muitas delas, inconclusas, não têm cercas. As que as possuem são fios mal-esticados de arame farpado ou paliçadas precárias de bambu. Algumas são construídas em pouco tempo, não raro por sistemas espontâneos de mutirões, quando várias famílias se unem e com o trabalho de todos levantam-nas em fins-de-semana. Mesmo as que ocupam lotes maiores não têm ainda nem os jardins que muitas vilas do BNH ostentam, nem os quintais com algumas fruteiras e o amontoado de objetos velhos, tão ao gosto dos mineiros. Vi aqui e ali roseiras, plantas ligeiras de flores da roça, alguns pés de mandioca, bananeiras, raros limoeiros e pés de laranja. Moradores de emergência no que é “seu”, ainda não há nos bairros mais recentes tempo c recursos para que nos ermos dos morros os donos pobres comecem a fazer o lento trabalho de transformar e estabelecer no detalhe a diferença de fachadas, quintais e jardins.5

Os custos dos arremates são os mais caros — “a gente sofre é no acabamento”, dizia um deles — e o tempo disponível para tudo o que vai além do indispensável é muito pouco, para corpos de homens e mulheres que as fábricas consomem “das 7 às 6”. Assim, as condições de “dar um trato” tanto nas casas quanto nas construções comunais — a igrejinha, o salão comunitário e mesmo um campo de futebol decente — são muito

5 “Entremos num recanto descurado e mísere do município de Osasco. Talvez seja o bairro que se abriga atrás das refinarias da Via Castelo Branco. A fábrica absorveu e desfigurou o bairro, imprimindo o seu selo de esqualidez às ruas e às casas cujas cores rouba e cuja fisionomia rói. Quando o trator raspa esses claros de terra vermelha, arranca a camada de terra-mãe, que é fértil e que tem húmus, condenando o solo à esterilidade. Nunca mais o morador poderá plantar nele uma simples bataneira, e os mananciais de água secam. Assim começam os loteamentos populares, já de início roubados de sua terra-mãe. Os tratores abriram gangrenas incuráveis ao redor das fábricas, onde se aninham as moradias. Quando o novo morador chega, começa por comprar tábuas velhas de construção e erguer o seu barraco, ficando-lhe desde o início uma dívida que orçava em 1978 em três mil cruzeiros, mais de três meses de trabalho, portanto. Aqui, a desordem da extrema pobreza faz crescer essas tábuas sobre barrancos a pique de acesso difícil porque a enxurrada cava abismos nos sopés. Restou a cor morta da terra despojada de húmus, a cor da madeira apodrecida. Todo o colorido foi sugado pelos cartazes da indústria, pelos letreiros, pelo verde do ajardinamento de seus declives. A iluminação fria do mercúrio roubou a noite do bairro, roubou o negrume que rodeia o sono e ameniza o cansaço. No entanto, dê-se tempo ao tempo. Depois da absorção do bairro pela fábrica há um movimento contrário, lento, inexorável de desabsorção. A casa vai crescendo junto ao poço, ganhando cômodos de tijolos, alterando sua fachada. Isso pode levar dez, quinze anos. A rua vai ganhando uma fisionomia tão peculiar que às vezes já não identificamos uma série de casas planejadas e outrora idênticas. Temos observado esse movimento lento e contínuo de diferenciação seja nos bairros de Goiás, planejados pelo BNH, como a Vila Redenção, seja na zona mais esquálida de Osasco. Há uma composição paciente e constante da casa no sentido de arrancá-la à ‘racionalização’ e ao código imposto. Em abril e maio algumas ruas mudam de cor: o milho e as abóboras ostentam sua folhagem amarelada nos mínimos espaços possíveis. Se o bairro pudesse ele seria meni-rural, pois ainda vive tão atraído pelo rural que resiste muito ao cimento, ao cimentado no quintal que cobre a terra, que amordaça a planta, que queima a sola dos pés, preferindo o terreno bem batido, onde um dia poderá nascer uma roseira, um pé de laranja, um capim” (Ecléa Bosi, “Problemas ligados à cultura das classes pobres”, em A cultura do povo, São Paulo, Cortez e Moraes/EDTJC, 1979, pp. 3 1-32).

limitadas. Por isso mesmo, por toda a parte há um igual ar de “periferia” e de “clandestino”, de inacabado. Conquistas feitas sobre o barro com instrumentos de pobres e de improviso, pouco a pouco. Mesmo nos bairros-dormitórios mais antigos, não há praças construídas boas de se estar. Entre as casas e as ruas há terrenos baldios, buracos, ermos de poeira e lama. Por isso é tão importante uma capela de paredes brancas, lisa e sem nenhum outro atrativo a não ser a sombra e o aconchego que dá por dentro, ao lado de seu “salão paroquial”. Ë ali, nos bares — primeiro “vendas” onde se bebe — e de vez em quando nos “parquinhos de diversão”, quando eles acampam em um desses bairros, que uma vida coletiva precária se inaugura.

Os “problemas” dos bairros são quase sempre os mesmos: saneamento e especialmente a água, a luz elétrica e o transporte. Ë em boa medida para “lutar” por eles que os moradores se reúnem nas associações que nos esperam mais adiante.

À volta dessas vilas de improviso, em direção oposta a Belo Horizonte, Contagem e Betim, predominam as inúmeras pequenas propriedades de hortigranjeiros. Bem ao contrário dos bairros-dormitórios, elas evitam os morros quando podem e preferem várzeas com subidas suaves. Alguns contrastes nesse município de pequena extensão e ameaçado de ser engolido pela Grande BH são visíveis a uma única viagem que corte suas terras. Se em um sentido ele é dividido pela diferença entre as vilas de residência, mas não do trabalho, de levas crescentes de operários e as chácaras de residência e trabalho de famílias de horticultores, em outro sentido ele é simplesmente dividido pela “linha do trem”, que passa por ali dia e noite em enormes comboios de minério, que sem nunca parar na estação de Ibirité, vão de Minas a algum porto do mar.

De um lado, terras planas ou levemente onduladas, aradas ou verdes de hortas molhadas por meio de irrigação artificial; de outros morros estéreis, erodidos, vazios de vegetação e, entre os mais recentemente ocupados, também de casas e pessoas. De um lado uma silenciosa e intensa atividade familiar que submete os corpos dóceis de grupos domésticos inteiros, agachados, estáveis, produtivos e rotineiros; de outro lado, da manhã à noite, ruas e casas vazias, a não ser por alguns velhos, mães e crianças, em meses de férias. De um lado, casas antigas, algumas muitas vezes vindas e arrumadas de uma geração para outra, residências mineiras da “gente da roça” que a pequena prosperidade hortigranjeira transformou de “ranchos” em “casas de verdade”; de outro lado, casas novas de tijolos e improvisos. Vimos antes que ardilosamente Ouro Preto engana o visitante. Uma geografia feita de acasos e intenções torna visível a parte histórica da cidade e oculta atrás de morros a periferia operária. Em Ibirité é o contrário, a periferia-dormitório dos operários cerca a sede do município, e as casas-chácaras dos “ricos” escondem-se atrás de morros, à volta da lagoa.

Ora, dentro de um mesmo município tão acentuadamente repartido entre uma metade bastante tradicional de camponeses horticultores e uma outra de migrantes operários, ativos ou “na reserva”, algumas primeiras perguntas poderiam ser estas: Que tipos diversos de pessoas, famílias e vidas coletivas habitam a região? Que tipos diferenciais de culturas elas criam e reproduzem “ali”?

O trabalho operário é quase todo realizado fora do município. Nele há pequenas fabriquetas de plásticos, metais e móveis e, quase na “sede”, um matadouro de frangos.6

6 São as seguintes as principais pequenas indústrias de Ibirité: Plastibi (Plástico Ibirité Ltda.), Arpema (artefatos em pedra e madeira), Comércio e Indústria José Rocha, Frangolândia (abatedouro de aves), Metalpress Industrial Ltda.

Assim, a horticultura é o trabalho e o artesanato de Ibirité. Um ofício fino sobre canteiros de terra escura, arada e gradeada com instrumentos que aproximam o lavrador do artesão. Um tipo de trabalho agrícola que, mais do que todos os outros da região próxima, pode ser feito todos os dias durante todo o ano e por todos os membros do grupo doméstico. Comparado com a “lida do gado”, que se reserva mais aos homens e menos às mulheres e mais aos adultos do que às crianças e adolescentes, e comparado ainda com a lavoura costumeira de milho-e-feijão, a horta cansa menos o corpo — a não ser “os quartos”, entre os mais velhos, por causa da posição a que obriga. Segundo alguns, essa é a razão por que mulheres e crianças parecem se dar melhor nos canteiros de salsa e cebolinha do que os homens. Mas eis um tipo de lavoura fina que se aparentemente “dá menos trabalho e cansa menos o corpo” parece exigir cuidados permanentes maiores e um saber camponês mais diferenciado.

Em várias pequenas propriedades vi famílias inteiras trabalhando: homens e jovens com enxadas fazendo a limpa entre pés de alface ou salsa, outros fazendo ou arrumando canteiros vazios para o plantio da cebolinha. Homens, velhos e mulheres colhendo o chuchu e colocando depois as unidades em caixotes que são levados ao Ceasa. Mulheres, adultos, velhos e crianças debruçados sobre canteiros, semeando, “cuidando”, colhendo. Homens arrumando os canhões de irrigação dos canteiros, outros reformando partes dos imensos caramanchões de chuchu ou as estacas de outras hortaliças. Raras as máquinas, mesmo os tratores pequenos que encontrei em alguns sítios na direção de Feixo do Funil, na quase fronteira com o município de Brumadinho, onde há bastante mais lavouras de grãos.

As propriedades de horticultura oscilam entre pouco mais do que um grande quintal mineiro e pouco menos do que dois a dez hectares. Várias famílias são de “donos” do lugar e dos instrumentos do trabalho, mas algumas outras arrendam a terra onde produzem. O que se colhe não é comercializado em Ibirité. Aqui um exemplo evidente de como a proximidade de um grande centro de comércio anula as condições de comercialização local da produção das comunidades periféricas. Não há no município feiras ou mercados de produtos perecíveis. Uma vez colhidos, eles são transportados de imediato para Belo Horizonte e daí distribuídos para todo o estado e para outros. Menos atrativos do que o “vinho” ou mesmo o “arroz”, que em várias cidades do Sul do País e do Centro provocam suas “festas”, os pequenos amarrados de salsa e cebolinha ou os caixotes de outros legumes e hortaliças não deixam qualquer traço no município, e fora de seus canteiros e da paisagem das chácaras suas presenças são invisíveis. Portanto — e nisso não quero fazer nenhum jogo de palavras — muito embora Ibirité viva da cultura hortigranjeira, fora do domínio direto de seu local de cultivo ela não deixa no lugar sinal visível algum de sua presença na cultura.

Até 1980, Ibirité possuía apenas um hospital de serviços públicos (grande parte da população local recorre aos de Belo Horizonte, Contagem e Betim). Há oito escolas públicas estaduais, sete municipais e duas particulares. “Há que se destacar o complexo educacional da Fazenda do Rosário, idealizado pela educadora Helena Antipoff. Esse complexo atende a vários níveis educacionais, voltando-se predominantemente para os moradores do meio rural. Dentre suas atividades, destacam-se a formação de recursos humanos, o ensino de 1.0 e 2.0 grau, o atendimento para crianças excepcionais sub- e superdotadas. A partir de 1981, está previsto o funcionamento de cursos de Agrimensura e Agro-Pecuária, para a formação de técnicos de nível médio. Sua área de influência estende-se a todo o estado” (Mapa de Ibirité).

2. Crianças e jovens: o trabalho e o estudo

Crianças e adolescentes filhos de hortigranjeiros, sejam eles “donos” ou arrendatários, trabalham desde muito cedo. A uniformidade de um trabalho, feito quase sempre sem o uso de grande força física e sem instrumentos pesados ou perigosos, reduz as diferenças da divisão sexual e etária do trabalho nas chácaras. Seu saber, diferenciado de um para outro tipo de cultivo, facilmente se aprende, e a “lida” nos canteiros é rotineira, relativamente leve e apropriada para o tamanho do corpo e das mãos de crianças, muito mais do que qualquer outra lavoura. Assim, desde os quatro ou cinco anos, meninas e meninos agachados e descalços amarram cebolinha. Fazem os feixes com que eles são levados à venda e começam por ali, e mais o trabalho fácil dos canteiros, uma primeira atividade em grande medida reservada a eles. Não vi crianças trabalhando sozinhas. Na verdade, ou vi grupos domésticos trabalhando juntos, ou apenas os adultos e, então, quase sempre homens. A atividade familiar rotineiramente corporada parece ser a regra e, segundo a fala dos chefes de família com quem conversei, esta é a única condição de possibilidade de uma produção hortigranjeira economicamente estável. Apenas homens e adultos não “dão conta” da multiplicidade de tarefas que, ao contrário do que acontece com lavouras de cereais, não conhecem meses de “vagantes” e diferencialmente ocupam o trabalho familiar todos os dias do ano inteiro. Por outro lado, é pequena a força de trabalho assalariada disponível para o trabalho rural em uma região quase suburbana, onde já o adolescente tem os olhos postos na cidade e na fábrica. Mesmo que fosse fácil obtê-la, a rentabilidade do produto colhido não compensaria o trabalho “pago”.

Por isso a horticultura sugere ser o limite mais intenso da atividade camponesa, isto é, o trabalho essencialmente familiar. Como em uma oficina de trabalho artesão, ora várias pessoas dos dois sexos e de diferentes idades fazem o mesmo trabalho — como quando é preciso com urgência amarrar cebolinha — ora a um só tempo distribuem-se entre tipos diferentes de serviços. As crianças e os adolescentes convivem com os pais e outras pessoas mais velhos do grupo doméstico o dia quase inteiro, O teor de tal convivência é o trabalho: ele é a atividade e o assunto. Muito mais do que acontece nos bairros-dormitórios, o ensino do trabalho é familiar e, portanto, o local privilegiado do aprendizado de um ofício que até poucos anos atrás sucedia uma geração à outra, é o próprio coletivo, realizado dentro da propriedade da família.

A Emater ronda de perto a região, e as escolas do município costumam realizar experiências de “horta escolar”. Mas o conhecimento necessário ao trabalho hortigranjeiro é reconhecido como uma espécie também de propriedade familiar cujo saber circula entre seus membros no correr das situações cotidianas do próprio exercício doméstico do ofício e cujo ensino é um dever dos pais para com os filhos. A não ser em casos pouco comuns (pais hortigranjeiros mais ricos, crianças doentes ou deficientes) todo menino e toda menina das chácaras é um trabalhador familiar precoce, e o tempo do trabalho cotidiano domina, em importância real atribuída e em intensidade, e do “estudo na escola” e também o do lazer. Durante os oito meses do ano letivo, por cinco manhãs ou tardes em cada semana, as crianças e os adolescentes “vão à escola”. São pequenos os índices de não-estudantes menores em idade escolar. Como em todo o País, eles são maiores nos do segundo grau. São relativamente altos os índices de evasão escolar e, mais ainda, os de repetência. Os pais são unânimes: o tempo reservado à escola e ao “dever pra casa” é roubado ao trabalho necessário, mas para a imensa maioria deles o estudo dos filhos é prioritário mesmo que não ultrapasse as salas de aula do “primeiro grau”. Segundo professores de escolas que reúnem nas mesmas salas de

aula, crianças e adolescentes de famílias operárias e hortigranjeiros, é entre os dessas últimas que há menos repetentes e evadidos precoces.

Algumas hipóteses. Em primeiro lugar, a evidência de que, sobretudo entre as famílias proprietárias o mesmo modo cotidiano de trabalho que invade parte do tempo do estudo reproduz condições de uma vida familiar mais ordeiramente rotineira e estável. Ao contrário do que veremos ocorrer nos bairros-dormitórios, algumas famílias convivem com a mesma terra, o mesmo município e a mesma proximidade de uma mesma cultura local e de uma mesma escola por muitos anos; em alguns casos, por duas, três ou mais gerações. Em segundo lugar é preciso não esquecer as condições sócio-afetivas que envolvem o mundo relacional e simbólico de tais crianças. Famílias onde os números de “separação e desajustes” são muito menores do que nos bairros-dormitórios; parentelas que, a despeito dos efeitos relativamente desagregadores da proximidade da capital e da imposição de regras do capital, mantêm-se ainda geográfica e efetivamente próximas e criam em cada casa e entre elas climas de segurança e aconchego que a própria ciência precisa descobrir para compreender razões e modos de ser de sua cultura. Famílias e vizinhos ligados por laços de parentela e vizinhança muito pequenos, do ponto de vista do trabalho (cada uma o exerce por sua conta, no interior de sua propriedade), mas ainda intensos e muito significativos em termos do que é possível trocar nas outras esferas da vida social. Enfim, uma vida ainda rural, mesmo quando cercada do urbano, e que, na preservação da unidade familiar como grupo de trabalho efetivo, simbólico e produtivo, garante condições de estabilidade camponesa há menos de 40 quilômetros de Belo Horizonte. Ora, dessa vida camponesa não há mais expressões culturais que possam atrair folcloristas. Ao contrário, são os migrantes dos bairros operários vindos de outras comunidades rurais as pessoas que retomam a iniciativa de recriar por perto grupos rituais do catolicismo popular, como os de folias de Santos Reis. Mas, no substrato de uma aparente cultura invisível, as vizinhanças de hortigranjeiros preservam um modo de vida peculiar, que mais adiante será preciso considerar. Comunidades de trabalhadores silenciosos, não há ali mais qualquer grupo de congos, foliões ou folgazões. Raras as festas “de santo” e muito empobrecidas em tudo: não há mais cantos peculiares, danças e rituais do trabalho, como nos antigos mutirões. Ao contrário de povoações próximas a cidades com pelo menos dois séculos de vida, como Sabará, Raposos e Caetés, não existe sequer uma saga pública que conte, entre mitos e lendas, a pequena história coletiva da população rural do lugar. Também, ao contrário do que acontece em alguns outros municípios mineiros próximos, não há qualquer tipo de trabalho artesanal dirigido à produção de utensílios de uso local ou para venda, como exemplos “típicos” da “cultura mineira”.

O que mais impressiona a quem passa por esses terrenos de chuchu, salsa e cebolinha e, mais ainda, quem entra nessas pequenas chácaras é uma imagem de rotina e ordem que traduz a necessidade de um aproveitamento absolutamente racional de quase todo tempo e espaço disponíveis. A própria paisagem do conjunto é uniforme: as mesmas cercas de arame farpado, algumas cobertas com pés de bucha, os mesmos grandes caramanchões de chuchu; as mesmas parcelas de canteiros de hortaliças; os caminhos e trilhas entre uma parte e outra da propriedade; as mesmas casas simples e galpões de guarda de instrumentos. O empilhado dos caixotes igualmente uniformes, onde se coloca a colheita do dia. Entre esses lugares e objetos — casa, canteiros e caixotes — diferentes famílias parecem estar sempre realizando, nos mesmos momentos, um mesmo trabalho. Tal ordem visível do espaço de cada parcela hortigranjeira e de todas elas, dentro de uma mesma vizinhança, reflete-se, do mesmo modo, como um tempo ordenado que a todos liberta do relógio da fábrica e também do

desassossego do subemprego, à custa de submetê-los a uma rotina de trabalho familiar que, seguro e quase aconchegante, parece ser igualmente opressor.7

Contratempos são os da natureza, como um período de chuvas fortes, “fora do tempo”, ou a oscilação dos preços do mercado em Belo Horizonte, fora a doença súbita de alguma pessoa do grupo doméstico. Não há aqui lugar para as greves que dos operários da construção civil aos metalúrgicos sacodem de vez em quando a Grande BH.8

As famílias hortigranjeiras vivem no presente o momento crítico de sua própria reprodução. Um grupo doméstico reduzido à família nuclear ocupa, por exemplo, o trabalho de cinco a sete pessoas permanentemente em uma chácara de proporções médias. À exceção das ainda “grandes” — cada vez em menor número — as propriedades hortigranjeiras não podem ser mais divididas entre herdeiros porque claramente perderiam sua condição de garantir o trabalho e a subsistência mesmo de uma família com cinco pessoas (mãe, pai e três filhos). Os mesmos princípios de estratégia de exploração capitalista que em aparência facilitam e avalizam a comercialização imediata da produção hortigranjeira (toda ela vendida “na certeza” e, em muitos casos, “apanhada na porta”) tendem a inviabilizar as garantias e facilidades que reproduzem por agora em seu benefício. No limite mais favorável, famílias de hortigranjeiros mantêm ainda em pleno trabalho um grupo doméstico de até dez pessoas. Em condições menos favoráveis, a garantia das possibilidades do trabalho familiar exige a saída de filhos jovens, casados ou não, da chácara, do trabalho horticultor e até mesmo de Ibirité, em direção à indústria e aos bairros operários.

Conversei com adolescentes e jovens. Os mais moços são e querem estar ainda indefinidos. Eles têm tempo para resolver o destino e não sabem que fora e à volta de suas vidas o cerco das fábricas e o aperto das chácaras se antecipa e resolve por eles. Mas os mais velhos sabem e, mais do que isso, desejam. Raros os que conseguem ainda conceber um futuro “ali mesmo”: em Ibirité e na chácara. Os que se prendem é por falta de coragem de imaginar para daqui há pouco uma saída inicialmente difícil e necessária. Mas a maioria deles sabe que precisa e deseja dar esse vôo. Reconhecem que estão apenas provisoriamente ainda junto aos pais, alguns freqüentando os últimos anos de um 2.° grau, e todos no trabalho hortigranjeiro. Um trabalho operário em Belo Horizonte, Betim ou Contagem duro e regrado mas com dinheiro certo no fim do mês e — o inconfessado — livre da tutela carinhosa e opressora da família camponesa é, menos do que o horizonte, um desejo intenso, um devaneio.

As mesmas professoras que afirmam haver menos evasão e repetência entre as crianças das hortas contaram que, comparados com os filhos de operários, os das

7 Em um estudo muito recente, fruto de pesquisa de campo realizada junto a operários de empresas de produção de carvão no Alto Jequitinhonha, entre ex-camponeses “groteiros” uma intensa nostalgia dos tempos anteriores é unânime. Mesmo quando reconhecem que “a empresa é unia mãe” e que agora, sem precisarem migrar “do Vale” como antes, eles possuem “emprego fixo” com “salário garantido no fim do mês”, todos os trabalhadores do carvão reclamam das regras do trabalho: o horário, a vigilância impiedosa do feitor, a urgência do produzir, a obrigação de trabalhar todos os dias menos aos domingos. Não havia apenas uma melhor qualidade de vida porque o camponês groteiro trabalhava “no que era seu” (muitos ainda conservam suas propriedades pequenas no vão das grotas), mas porque a medida do tempo e as regras do trabalho eram o poder do “dono” da propriedade e chefe da família. Ver Posseiros e despossuídos — a reeducação do homem do campo em novas condições de trabalho (dissertação de mestrado, UFMG, Belo Horizonte, Faculdade de Educação, 1985, xerox). 8 Ver a respeito o oportuno trabalho de Maria Piedade Alves Furtado: O operário da construção em construção (dissertação de mestrado, UFMG, Faculdade de Educação, Belo Horizonte, 1984, xerox). Uma análise quase única a respeito de uma greve de operário da construção civil.

famílias hortigranjeiras são menos espontâneos, têm mais dificuldades em “acompanhar a turma” (então por que repetem menos?) e não conseguem esconder uma certa “vergonha” pela profissão do pai e o trabalho da família. Isto é o contrário da atitude dos filhos de operários “com carteira assinada”, que anunciam com vaidade a ocupação paterna e também a da mãe, quando ela é igualmente operária e não empregada doméstica ou semelhante. “Aqui ser operário dá status”, concluiu uma professora, e foi aprovada por todas as outras na reunião.

Uma insistência maior entre os pais hortigranjeiros do que entre os operários para que seus filhos estudem e ultrapassem, se possível, as classes do 1º grau deve estar também associada à antevisão de que, embora sua força de trabalho seja necessária agora na reprodução da vida familiar camponesa, mais adiante ela terá de ser deslocada para o trabalho “na cidade”, mesmo que os “mais velhos” continuem por algum tempo ainda “vivendo da lavoura”. A meio caminho geográfico e social entre municípios de vocação agrária, mas ainda não hortigranjeira e a região mais intensamente industrializada de Minas, o pequeno campesinato de Ibirité não faz mais do que repetir o que já ocorreu em outras áreas próximas. Pouco a pouco os integrantes do grupo doméstico são divididos e classificados: nos dois extremos, os muito meninos e os muito velhos reservam-se à vida e ao trabalho na horta; os jovens e adultos dividem-se entre os que ainda ficam e os que já saem, seja através do casamento (já que dificilmente uma “outra família” cabe dentro da mesma propriedade), seja para o trabalho “fora”. Essa estratégia que obriga a família camponesa a dispensar alguns de seus membros para que ela própria preserve unido e produtivo o núcleo de sua composição não é a exceção mas a regra, e há vários estudos sobre o assunto.9

Pelo menos em alguns aspectos a vida cotidiana das crianças e dos adolescentes dos bairros-dormitórios é o oposto da rotina diária da vida nas chácaras. Algumas escolas que freqüentam juntos os aproxima; tudo o mais os separa. Não que meninos e jovens dos “bairros” estejam desobrigados do trabalho. Feitas as contas, são trabalhadores tão precoces quanto os das hortas. Mas, fora casos raros, como quando o pai é dono de algum tipo de “oficina de concerto” ou “toca uma venda”, os filhos-homens trabalham por conta própria, fora do controle da família e, em maioria, exercem as múltiplas formas do trabalho invisível das periferias. As meninas arrumam a casa e fazem comida quando a mãe trabalha fora. Não raro crianças “maiores” cuidam dos “menores” e, mesmo quando por desemprego ou outro motivo a mãe se ocupa apenas “do lar”, meninas e adolescentes as ajudam sempre. Os meninos entram mais tarde no trabalho. Muito mais do que nas chácaras, não há “serviço” rotineiro para eles em casa, e o que poderão vir a fazer “fora” exige mais idade. Dividindo o tempo do trabalho com o lazer “de periferia” e o da escola, meninos e sobretudo adolescentes fazem biscates nas ruas ou empregam-se, menos em Ibirité, mais em Belo Horizonte (quando jovens, sobretudo, e é quando vários deixam seus “estudos”), Contagem, Betim e outros municípios da Grande BH. A ordem da ocupação precoce no mercado invisível ou real do trabalho é mais ou menos a seguinte:

9 A respeito das estratégias de herança e redistribuição da terra entre pequenos proprietários do Sul de Minas Gerais, ver, de Margarida Maria Moura, Os herdeiros da terra: parentesco e herança numa área rural (São Paulo, Hucitec, 1978). A respeito das estratégias de distribuição da família camponesa na propriedade e no trabalho agropastoril ao longo de seu ciclo de vida, remeto o leitor a um estudo que fiz no interior de Goiás: “Parentes e parceiros — relação de produção e relações de parentesco entre camponeses de Goiás”, em Colcha de retalhos — estudos sobre a família no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 91-132),

1. Meninas ocupam-se desde cedo do trabalho doméstico, ajudando as mães, quando estas não trabalham “fora”, ou respondendo por quase todo o trabalho da casa, em caso contrário; freqüentam a escola com mais regularidade do que os meninos (repetem menos e saem menos da escola) e deixam a casa e o município para trabalhar fora mais tarde e menos do que os meninos; a ocupação de empregada doméstica é uma das que parece absorvê-las regularmente mais cedo e é também uma das melhores estratégias de saída de Ibirité.

2. Meninos, mais do que meninas, deslocam-se precocemente em busca de algum “serviço” em Ibirité ou fora do município; raros os empregados “fichados” no comércio ou na indústria; muitos estabilizam-se em alguma modalidade usual de subemprego, como os serviços de engraxate, de carregador de feira ou de “catador de papel” (atividade comum nas periferias).

3. Meninos e meninas não-ocupados regular e intensamente no trabalho — principalmente fora de casa, do bairro e de Ibirité — dividem seu tempo cotidiano entre a escola e um lazer de quintal, rua e “lote-vago”; não há ou são poucas as “tarefas de casa” mandadas pela escola.

4. Mais do que pela escola, a luta dos jovens dos bairros operários é por um “emprego”, um “trabalho” que os arranque de uma situação de “biscate” e os torne plenamente empregados “fichados”. Esse é o momento em que, cedo em muitos casos, o rapaz ou a moça se reconhecem como trabalhadores que ainda estudam, mais do que como estudantes que já trabalham. A partir de então é o trabalho quem determinará o destino da vida e não a escola. Alguns a deixarão para sempre, outros oscilarão entre anos de estudo e anos de vacância, outros — e a tendência é crescente — voltarão aos estudos de um “supletivo” tão logo vejam relativamente consolidada sua situação de emprego. A esperança de “alguma coisa melhor”, que o estudo continuado poderá trazer e garantir, redefinirá então o “valor do ensino”.

Chama a atenção a ausência de crianças e adolescentes brincando “fora de casa” nas áreas de chácaras, mesmo em um mês de férias como julho. Chama mais ainda a atenção a quantidade deles perambulando pelas ruas de pó e buracos dos bairros operários. Por toda a parte há deles nos quintais e, mais ainda, em ladeiras e lotes. Quase sempre os vi brincando de “puxar” ou de “construir”. Brincadeiras calmas, feitas em pequenos grupos, às vezes quase como um trabalho cujo produto fosse seu próprio prazer: puxar por um barbante latas de cerveja que valem como tratores ou pequenos carrinhos ou caminhões, quase sempre velhos e incompletos; construir imitações de “fazendinhas”, de casa ou de cidades; catar objetos perdidos ou jogados fora, como lixo (brincadeira que antecede o subtrabalho de muitos), jogar bola de pique, conversar. Não vi por onde andei parques ou áreas de lazer para crianças e não sei se elas os prefeririam a seus lotes e ruas onde, entre poeira e dejetos, parece ser mais fácil imaginar o de que brincar e poder sonhar o que não é possível ser.

A um primeiro olhar, poucos lugares do País serão tão “pobres de cultura” •(essa estranha expressão) quanto os bairros-dormitórios. Levas aos poucos chegadas de migrantes de várias regiões de Minas, em tudo parece que com o cheiro da terra de onde vieram perderam também costumes, ritos, saberes e modos de ser. Por outro lado, ao contrário do que é possível criar e repetir nas comunidades rurais ainda estáveis ou nessas cidades regidas pela tradição, como Ouro Preto, que é que se pode realizar de espontâneo, de próprio e, mais ainda, de propriamente “popular”, nesses espaços de vizinhança onde em julho se chega e sai com o escuro e os cansaço? E o que vale para

Ibirité vale também para a periferia de Ouro Preto e seus bairros-dormitórios tão pobres quanto os de Ibirité.

Ao falar das relações de criar-vender-comprar objetos de arte e artesanato em Ouro Preto, falei de uma produção cultural kitsch de que se alimentam as pessoas e as famílias pobres da região, algumas das quais criam e vendem a arte e criam o artesanato de lá. Descrever o emaranhado de lugares e símbolos com que os moradores de Durval de Barros, por exemplo, convivem, sugere falar de uma vida kitsch, uma versão carente de ritos e mais despojada de bens e tempo dado ao prazer do símbolo do que aquela que Hoggart descreveu entre os moradores proletários dos bairros pobres da Inglaterra contemporânea.10

A questão do tempo disponível é aqui fundamental. Ele é muito reduzido na vida cotidiana. Ë dado ao trabalho vendido e ao tempo exíguo de repor no corpo a condição de dar-se outra vez. Ë preciso sempre sair cedo e, como é longo o trajeto da fábrica em que muitos trabalham até o bairro em que vivem, quase todos chegam, homens e mulheres, operários ou empregados, muito tarde e cansados. Como de costume, as mulheres casadas e as mães sobretudo saem do trabalho caseiro feito não raro de madrugada e voltam a ele antes e depois do dia de trabalho “fora”. Os homens trabalham menos em casa, embora haja sempre, em moradias precárias e inacabadas, um “servicinho” e fazer. E como ali há, fora o lugar “na frente da televisão”, poucos recantos aconchegantes, muitos se deixam ficar por bares e vendas.

Não é apenas de relações familiares, vicinais e de grupos de interesse, tradicionalmente densas e significativas, que se necessita para “preservar uma cultura” para compartilhá-la no cotidiano e recriar seus termos. É também de um conjunto concreto e motivadamente real de condições de vida pessoal e coletiva. Não é apenas porque “ternos de congos” não têm função nas vilas de periferia que eles desaparecem pouco depois de migrarem com seus devotos e artistas das roças e arraiais de onde vieram. Em muitos lugares à volta de Belo Horizonte eles não apenas continuam vivos como até renascem e se multiplicam.11 É que é mais fácil criar e manter um time de futebol: mais gente deseja, mais jovens participam, é mais rápido fazer o campo do que a capela, são mais semanais os dias de seus ritos: seus jogos. Mas é também porque o tempo é pouco e reordenado de acordo com a lógica da fábrica e do bairro-dormitório que é mais fácil “torcer” do que “jogar”, do que “fazer”. Mais fácil ouvir pelo rádio de pilha as notícias do Atlético, do América ou do Cruzeiro, que de longe os outros fazem e põem a funcionar, e substituir o nome do santo (sem que o coração o saiba) pelo do ídolo em nome de quem se vai ao estádio.

Não é apenas com produtos materiais de plástico, pano ou metal barato que uma suposta indústria de massa invade as feiras e as festas tanto em Ouro Preto quanto em Ibirité. Ë também, e cada vez mais, com palavras, promessas, músicas e uma qualidade especial de enlace entre a emissora e o ouvinte, que as rádios da Grande BH com

10 Um paralelo oportuno pode ser feito, com a leitura do livro de Richard Hoggart: The uses of iliteracy (Pelican Book, 1971). Existe uma tradução portuguesa, cujo pesado jargão de Portugal pode tornar estranha a leitura ao leitor brasileiro. Mas, para quem queira conhecer um modo ao mesmo tempo seriamente denso e fascinante de descrição da vida das classes populares, a leitura do livro é indispensável: As utilizações da cultura — aspectos da vida cultural da classe trabalhadora (Lisboa, Editorial Presença, 1973). 11 Ternos, bandas e grupos de dançadores de Congos e Moçambiques de Minas Gerais organizaram uma verdadeira associação estadual. Por volta de 1980, havia registrados mais de 500 grupos de várias regiões do estado, segundo pesquisa realizada pela Universidade Católica de Minas Gerais. Alguns deles, dentre os mais ativos, eram de bandas e ternos antigos ou recriados em cidades da periferia de Belo Horizonte.

sabedoria destinam aos moradores pobres dos bairros operários: cedo na manhã, antes de eles saírem (quando então anunciam “a hora” a todo instante) e, principalmente, entre o fim da tarde e a noite.

Em algumas emissoras predominam de manhã e no fim do dia os programas sertanejos, cuja audiência é ainda muito grande mesmo entre alguns jovens. Mas eles aos poucos cedem lugar a programas tipicamente “suburbanos”: músicas que vão de Sidney Magal a Roberto Carlos, horóscopos, notícias policiais dramatizadas, horários musicais baseados em escolhas de ouvintes que, sorteados, concorrem também a pequenos brindes.12 O programa de rádio é destinado a um você coletivo que a todo momento, no entanto, se individualiza, O telefone toca, aos ouvidos de todos uma mulher (quase sempre são moças e mulheres, principalmente ao longo do dia) e o locutor conversam. Falam do lugar, de seus problemas, da vida dela, de música, de ídolos e de prêmios. Todos se irmanam, e ninguém está só.

Para muitos, alguns programas de TV são sagrados, como novelas de fim de tarde e o Sílvio Santos aos domingos. Nos bares, algumas rodas de dominó entre os mais velhos e de jogos de baralho. Os mais jovens rodeiam mesas de sinuca e sonham com a chegada, “ali”, dos aparelhos eletrônicos disponíveis em Belo Horizonte.

Passar da infância à adolescência e dela à juventude é transitar de um universo mais local e mesmo artesanal de símbolos e significados para um outro, mais universalmente “jovem” e, sabemos todos, mais absolutamente promovido e controlado à distância por diferentes agências de serviços e símbolos da indústria cultural.

Curioso observar detalhes a que nem sempre estão atentos os investigadores. À exceção das raras pessoas que fazem isso por gosto ou profissão, quando jovens ou adultos operários, no bairro-dormitório são as crianças e os velhos os artesãos do lugar. São eles os que ainda ou já donos de um tempo dilatado do ócio lidam com os objetos disponíveis e os transformam. Algumas páginas atrás descrevi a intensa atividade em que vi meninos e meninas entretidos em criar para brincar. Sem saber, eles tudo transformam e, à medida que os produtos da natureza desaparecem (madeira, pedrinhas redondas, bichos fáceis, frutas e sementes), as crianças lançam mão dos dejetos da cidade e misturam restos de tábuas com latas e plásticos para fazer seus brinquedos: pipas, carrinhos, casas e cidades. Porque ainda não há razões para ambicionar o modo de vida do outro, as crianças querem ser dali. Mas os jovens dos bairros em tudo preferem imitar a cidade, e chega a ser intrigante observar como alguns deles convivem com a nostalgia de uma cultura rural de onde vários vieram crianças e, ao mesmo tempo, a vocação de ser apressadamente urbanos e modernos. No terreno ao lado de algum “salão comunitário” saberão organizar uma “festinha de São João” (cujo modelo já é o de Belo Horizonte ou o da Escola Estadual e não mais o de algum arraial de origem) e, entre bandeirolas e quentões, gostarão de dançar com as moças no “forró”. Mas no correr dos fins-de-semana do resto do ano preferem as roupas, os símbolos e as músicas “jovens”. A cidade lhes “fez a cabeça” e agora ostentam uma identidade cujos fundamentos sociais ignoram, mas de cuja cultura participam com a devoção da identidade mais do que com prazer apenas. Meio constrangido e obediente, é possível que algum deles ainda participe de uma companhia de Santos Reis de que o pai ou padrinho sejam o mestre. Mas em maioria têm motivos para sonhar com um posto na

12 Um estudo sobre o estado atual das agências de indústria cultural no Brasil acaba de ser publicado no n.° 15 dos Cadernos no IFCH, da Unicamp. É de autoria do sociólogo Sérgio Miceli: “Entre no ar em Belíndia – a indústria cultural hoje” (Campinas, outubro de 1984).

bateria de um bloco de carnaval ou de escola de samba e, mais ainda, em uma pequena banda local de rock.

Da casa à capela, vimos como os lugares coletivos de estar são muito precários. Campos de futebol de terra vermelha disputam espaços com os parquinhos de diversão que rondam sempre as vilas operárias. Como tudo o que chega lá, eles são a sobra de algo que foi melhor um dia: alguns aparelhos decadentes, como carrosséis e, no limite do esplendor, uma velha roda-gigante. Mas isso é para as tardes de sábado e domingo das crianças. O que dá lucro aos parquinhos são os jogos de azar que funcionam livremente nos fins-de-semana e durante as noites. Jogos de destreza, como o tiro ao alvo e o jogo de laçar maços de cigarros; jogos de sorte que dão de prêmios brinquedos e objetos kitsch, garrafas de vinho vagabundo ou maço de cigarros.

A televisão, o rádio (muitas vezes ligados “o dia inteiro”), os jornais ricos em notícias de crimes, as revistas baratas de histórias de amor, para as moças, e “de sacanagem”, para os jovens. Conversas sobre “tudo isso” e, mais, sobre “os problemas do lugar” e o futebol. O crediário fácil para que se compre sem parar cosméticos e roupas “na moda”. O medo de todos: o desemprego. O terror: a perda da saúde, que para os pobres das vilas-dormitórios tem menos o gosto da dor e mais o das filas intermináveis e maus tratos do INPS, a solidão dos hospitais, os descontos de salário e a ameaça de desemprego: a fronteira entre uma vida pobre, mas estável e o perigo da miséria.

É muito perigoso afirmar que exatamente assim vivem as pessoas dos bairros operários em Ibirité. Na realidade, comparadas com as das chácaras, as famílias parecem “menos unidas”, e suas relações de parentesco e de vizinhança parecem ser mais frágeis e esporádicas. No entanto, essa pode ser apenas a aparência. A família nuclear estável ainda é a base da vida e das relações da maioria, O fato de que agora marido e mulher trabalham “fora” e cada um “em seu emprego” apenas atualiza as regras da convivência e dos pequenos poderes domésticos. Ilusoriamente mais livres do que os meninos e jovens hortigranjeiros, os daqui vivem também ainda “em família” e para ela. Separados dos pais para o trabalho, trabalham para a família. Conversei com pessoas em algumas casas de migrantes. Encontrei ali a mesma estratégia de sobrevivência dos grupos domésticos vindos para Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Como sempre, há algumas pessoas desempregadas (não são baixos os índices de maridos precocemente aposentados), todos os que podem trabalham e o dinheiro que alguns ganham serve ao sustento de toda a família.13

Do mesmo modo como entre os pais hortigranjeiros, as famílias operárias desejam o estudo dos filhos e lutam por escolas em seus “loteamentos”. Mas há mais do que entre os moradores das chácaras, várias crianças e muitos adolescentes fora das escolas. Segundo os professores, a razão principal não é a falta de vagas, como seria mais fácil supor, mas a saída precoce dos estudos em direção ao trabalho, primeiro, um concorrente relativo e, depois, absoluto.

Nem todas as pessoas dos bairros-dormitórios estão igualmente envolvidas no tipo de vida que sumariamente descrevi aqui. Um cotidiano repartido entre o trabalho operário e o subemprego, entre a rotina da fábrica e o lazer de massa é a regra nos bairros-dormitórios. Mas pelo menos três tipos de moradores acrescentam ao trabalho operário comum outras experiências de relações com pessoas, grupos e símbolos dentro

13 O estudo de Eunice Ribeiro Durhan a respeito de migrantes para a cidade de São Paulo poderia ser proveitoso aqui. Ver A caminho da cidade. (São Paulo, Perspectiva, 1978).

e fora do círculo do bairro. Entre outros tipos, é preciso estar atentos a eles, porque nestes locais sociais de mínimossimbólicos eles tornam visível e vivida a alternativa de viver a cultura como algo mais do que um ser dado ao trabalho e à recuperação de seu desgaste.

1. Os que participam de atividades promovidas por segmentos locais da Igreja católica (comunidades eclesiais de base, círculos bíblicos e outros grupos e associações), por partidos políticos e por agremiações locais, de que em Ibirité as “associações de moradores” são as mais importantes.

2. As pessoas ou famílias solidamente convertidas a alguma Igreja de tipo pentecostal (“de crente”) ou, com menor intensidade, protestante ou próxima (como os Adventistas do 7.° Dia ou as Testemunhas de Jeová), cujos prédios — de pequenas casas improvisadas a igrejas novas — espalham-se por toda a parte e organizam reuniões e cultos durante quase toda a semana.

3. Aqueles que possuem interesses e compromissos culturais, políticos e/ou religiosos fora do bairro e vivem parte de seus tempos livres do trabalho mais em função de tais relacionamentos “fora” do que em função do que acontece na vizinhança.

3. Viver/participar

Pelo menos no que é possível, revertamos um primeiro olhar. Aparentemente pobre, artificial e sem qualquer organicidade, uma intensa vida cotidiana “de periferia” e sua cultura, só na superfície imposta “de fora” e vazias de significados próprios, constituem, na realidade, um laboratório de carências. Algo onde o trabalho local cotidiano de moradores antigos e novos moradores articula, com a mescla dos símbolos, ritos e valores antecedentes (os rurais) e os aprendidos na vida da cidade, aqueles que agora é preciso e necessário recriar nos bairros-dormitórios para revestir de sentido uma outra vida, tida com unanimidade pelos mais velhos como uma perda de tudo, tido pelos mais jovens como muito dura, mas sem atraente e dasafiadora. Eles não querem voltar a nada; querem “ir em frente”, e a algazarra dos lugares de lazer onde se reúnem traduz isto mais do que desordem ou violência.

É bem verdade que por toda a parte parece reinar uma ideologia do individualismo utilitário, primeiro na esfera de cada morador, interessado em tirar de uma “vida dura” o máximo proveito e, depois, de cada família, armada dia a dia de pequenas estratégias de uma sobrevivência difícil. É verdade também que, comparados com os municípios e arraiais mineiros ainda “ricos de tradição”, Ibirité e seus bairros-dormitórios parecem tão vazios de vida e cultura quanto seus terrenos baldios. Divididos entre a TV e o rádio (esse último de muito forte penetração), a venda, o forró, o parque de diversões (raríssimos circos), o show e o cinema além de Ibirité, os próprios jovens reconhecem que quase tudo o que interessa vem de fora, e mesmo o que se faz ali vale por ser uma imitação não raro precária do que é sempre melhor “fora daqui”. No entanto, é necessário lembrar que onde a própria vida expropriada de tempo, sentido e saúde consegue reorganizar-se coletivamente, surgem ainda, aqui e ali, grupos mineiros de tradições rurais, como as pequenas folias de Santos Reis de que eu já havia falado. Muito mais importante do que isto, que é ainda a exceção efêmera, é o fato de que, “imitando” ou não o que é fácil aprender com a cidade, das crianças aos velhos, formas

novas de vida coletiva e de sua tradução como trabalho da cultura renascem em algumas partes. Um terreno de umbanda, uma comunidade eclesial de base relativamente autônoma ou a mínima experiência religiosa que um agente pentecostal resolve inaugurar com a criação de uma “nova Igreja”, são exemplos, se olhados com vagar. Do mesmo modo, os grupos de lazer, do futebol ao samba, do forró ao clubinho de jovens. Espaços sociais de ocupação do tempo livre que, para serem vividos como prazer demandam muito trabalho e exigem a ordem interna da vida local.

O quadro que apresento não deve ser muito preciso. Sugiro tomá-lo como uma aproximação em que represento as principais relações familiares, vicinais e institucionais das pessoas dos bairros-dormitórios ao longo de seus ciclos de vida. Válido em princípio para sujeitos de ambos os sexos, ele se aplica mais ao caso dos homens.

Nos horários que não são vividos “fora”, durante o dia de trabalho, todas estão sempre fazendo alguma coisa nos bairros. Mesmo que sejam poucos e precários os locais de uma convivência mais ampla que a da família, onde é possível, os moradores se reúnem. Mas, sobretudo entre pesquisadores preocupados com a difícil questão da “participação popular”, é ilusório imaginar que muitas pessoas estão envolvidas com o que seria possível chamar de “o lado mais sério” dessa participação. De uma pequena equipe de “grupo de igreja” à de uma “associação de moradores”, os que as organizam (sejam eles “de dentro” ou “de fora” do bairro) sabem o quanto é difícil não tanto iniciar “um trabalho” coletivo e comprometido quanto fazê-lo continuar.

Ciclo etário

Relações familiares Relação escola-trabalho Relações vicinais Instituições de envolvimento e de

participação

0 a 5 anos

Dependência absoluta da família; em casa quase todo o tempo (fora as crianças levadas para creches)

Fora do trabalho e da escola

Muito reduzidas, limitadas ao círculo familiar e aos vizinhos diretos

Inexistentes

5 a 10 anos

Aumento de uma relativa autonomia frente à família; transferência progressiva do interesse dela para grupos de iguais

Trabalhos caseiros; começo do trabalho fora para alguns; início da vida escolar; término dela para vários

Ampliadas ao círculo de amigos vizinhos e, menos intensas, da escola

Reduzidas ainda; participação em atividades da escola e de Igreja para alguns

10 a 15 anos

Ampliação de uma relativa autonomia familiar; participação mais intensa na “vida fora de casa”; domínio paterno ainda grande

Trabalhos caseiros para as meninas; começo de período de trabalho semi ou profissional para os meninos; saída da escola para vários no ou após o 1º ciclo; 2º ciclo para outros

Muito ampliadas, sobretudo no caso dos meninos; os que já trabalham fora começam a ter relações de interesse além dos limites do próprio bairro

Ampliadas mas ainda pequena; participação em grêmios escolares ou em instituições de Igreja (para poucos e, em geral obrigados pelos pais)

15 a 20 autonomia e, em vários casos progressiva independência familiar; para alguns; a saída da casa e mesmo do bairro via trabalho ou

domínio progressivo do trabalho; vários já são trabalhadores exclusivos (semi ou pleno emprego); redução progressiva da

muito ampliadas e em vários casos progressivamente estendidas a outros locais do município e de fora: definida

início de uma participação autônoma: grupos de jovens institucionais, times de futebol etc., para alguns; começo de uma vida

casamento importância da escola; depois dos 18 anos muitos estarão fora da escola

transferência de interesses da família e da escola para outras áreas sociais de relações

institucional militante: Igrejas, associações locais ou de fora

20 a 30 independência definida da família de origem, sobretudo para os filhos que trabalham e vivem fora; autonomia ampliada entre os que ainda “vivem em casa”; muitos constituem suas próprias famílias e têm seus filhos nesta faixa etária

praticamente todos fora da escola e plenamente incluídos no trabalho: doméstico para várias mulheres casadas e com filhos pequenos, profissionais para os outros; a “luta pelo emprego” é a questão fundamental; alguns voltarão ao estudo em supletivos ou cursos profissionalizantes

autônomas no caso dos homens; variável no de mulheres; formação de novas famílias, saída do bairro no caso de muitos; chegada ao bairro no caso de famílias neo-locais

participação diferenciada: clubes de futebol, de outras formas de lazer; Igrejas (seus grupos de militância); associações do lugar ou de fora (para uma minoria mais ativamente participante)

30 a 50 envolvimento intenso com a própria família, no caso da maioria; desligamento progressivo da família de origem, sobretudo após a morte dos pais ou em caso de mudança de bairro

raros retardatários estudam ainda: cursos de alfabetização; pleno trabalho como meta: mulheres divididas entre o trabalho doméstico e o profissional; homens no trabalho (muitos operários) e ou em busca dele; desemprego para os mais velhos ou casos de aposentadoria precoce

autônomas mas reduzidas ao âmbito familiar e aos vizinhos próximos, no caso de esposas e mães; bares, vendas etc., no caso dos homens.

em parte como na faixa etária anterior; transferência, para muitos, do envolvimento com grupos de lazer a grupos de trabalho religioso, vicinal (associações de moradores), político ou sindical

50 + retração progressiva da vida ao âmbito familiar, principalmente em casos desemprego e aposentadoria; tendência a uma progressiva dependência dos filhos

apenas em casos de exceção, há pessoas ainda ligadas ao estudo; trabalho em período crítico: desemprego crescente, aposentadoria etc.

início de retração a pequenos grupos de amigos do próprio lugar, a grupos de parentes etc.

principalmente no caso dos homens, começo de retração de participação institucional

Por isso mesmo, as professoras das escolas lamentam sempre a pequena freqüência de pais dos alunos nas reuniões da “associação de pais e mestres”, do mesmo modo como os dirigentes de associações de moradores reclamam que, no fim das contas, seus participantes costumeiros acabam sendo só os da própria “diretoria”.

Mas, no caso específico de Ibirité, as associações de moradores lograram um grau de envolvimento e participação que merece ser seriamente considerado. Em parte foi iniciativa delas a criação de um “Projeto Interação”, da Pró-Memória, que envolveu no município profissionais do lugar e de fora, ao lado de recursos da Secretaria de Cultura do Ministério da Educação. Durante muito tempo em várias cidades do País tais associações foram iniciativas de famílias de classe média, funcionavam em seus bairros e atendiam a seus interesses. É relativamente recente não tanto a criação de associações de moradores de vilas e bairros “da periferia” quanto sua crescente difusão. Algumas vezes associadas a iniciativas de grupos “de leigos” da Igreja católica, outras vezes autônomas desde a origem, tais agrupamentos institucionalizados de moradores existem

hoje em dia com graus muito variáveis de poder local e de sentido social e/ou político da atividade, em quase todos os bairros operários do País.

De algum modo elas poderiam ser localizadas a meio caminho entre as pequenas agências locais de trabalho comunitário, sob iniciativa confessional (CEBs, círculos bíblicos etc.), e os raros e rarefeitos grupos locais de trabalho essencialmente político, como as células locais de partidos. Diferem igualmente de agências de mediação trazidas por instituições governamentais (como a “escola estadual” ou o “posto de saúde”), semi-oficiais, (como clubes e núcleos da LBA) ou, ainda, civis — sem fins lucrativos como as “experiências de educação popular” que volta e meia um grupo militante de estudantes universitários traz a uma “periferia”.

Em princípio são entidades jurídicas autônomas, criadas e dirigidas por “moradores” do próprio lugar, com a previsão estatutária de que suas diretorias se sucedem regularmente após eleições entre todos os moradores associados. Eleita, é tarefa da diretoria organizar frentes de trabalho que, por conta própria ou por pressão junto “às autoridades”, dêem conta de solucionar os principais “problemas do bairro”. Via de regra eles se resumem à questão de saneamento, saúde, transporte, segurança, bem-estar (incluindo lazer) e educação.

Campanhas pela melhoria das “linhas de ônibus”, pela “luz elétrica”, pela “água encanada” ou por “melhores escolas” resultam em benefícios que de qualquer maneira chegariam um dia ao “lugar”, segundo os interesses combinados do poder e do capital, mas que, por pressão “dos moradores organizados” não raro chegam mais cedo e em melhores condições.

Em Ibirité, associações de moradores de vários bairros-dormitórios reuniram-se em uma “federação” que em pouco tempo ampliou muito seu poder de representação e barganha. Num primeiro momento, ainda não politicamente divididas, nas últimas eleições municipais as associações de moradores passaram de uma ação restritamente “social” a uma atividade também política. Em parte como sugestão de grupos de profissionais e estudantes de Belo Horizonte que participavam como assessores do trabalho de algumas delas e da própria Federação das Associações de Moradores de Ibirité, elas resolveram lançar como seu candidato a prefeito um jovem médico da cidade cujo trabalho voluntário nos bairros já era muito reconhecido.

Em um município tradicionalmente feudo de partidos “de situação”, pela primeira vez um trabalho político organizado “de oposição” resultou em uma arrasadora vitória política. O médico candidato foi eleito, e o partido de oposição fez a maioria da câmara de vereadores. A partir de então, iniciou-se uma experiência de governo local onde as autoridades recém-constituídas reconheciam-se como porta-vozes das intenções e dos projetos das populações pobres hortigranjeiras e operários, organizadas através de suas associações e congregadas na Federação.

Desde antes, havia lá experiências no local, “trabalho comunitário” que articulavam diretorias de associações, estudantes e profissionais de Belo Horizonte assim como pessoas interessadas das próprias comunidades, entre as quais professores das escolas municipais de Ibirité. A meio caminho entre os grupos políticos com representantes ou núcleos no local e as unidades mais tradicionais (como a “turma do bar”) de ocupação do raro tempo dado culturalmente ao ócio, tais grupos — não raro efêmeros — de “trabalho comunitário” são um dos únicos espaços de modernização coletiva dos sinais locais da cultura não-contaminados pela indústria cultural.

Pirenópolis: a Semana Santa

Para Rubem Alves,

mestre nisso:

saber e sentir

Programa para Semana Santa na Paróquia de N. Senhora do Rosário de Pirenópolis no ano de 1988

Índice do texto

Sexta-feira às 18:30 horas Dia 25 de março Dasdores Procissão de Nossa Senhora das Dores Trajeto pela Rua Coronel Luiz Augusto – Rua Mestre Propício – Praça da Matriz – Emanoel Jaime Lopes Sábado – Passos Dia 26 de março

às 19:00 horas – às 20:00 horas –

às 21:00 horas –

Missa na Igreja do Bonfim Procissão de Passos – Trajeto: Av. Dr. Olavo Batista – Rua Félix Jaime – Destino Igreja da Matriz (Ó Miserere – Motetos) Senhor Deus, Perdão

1. Uma breve semiologia do sentimento

2. Quaresma (“coresma”): jejuar, submeter-se

3. Os dois primeiros dias: prenúncios do sofrer

Domingo de Ramos Dia 27 de março

às 8:00 horas –

às 8:30 horas –

às 9:00 horas –

às 18:00 horas –

Igreja do Bonfim – Benção das Palmas Procissão das Palmas – Trajeto: Av. Aurora – R. Félix Jaime Missa de Ramos na Matriz de N. S. do Rosário. Participação da Irmandade do Santíssimo Sacramento Procissão de N. Senhora

4. O Domingo de Ramos: júbilo efêmero - everdescer

às 18:30 horas –

às 20:00 horas –

Dasdores, saindo da Matriz, pela Praça Emanoel Jaime Lopes Procissão de N. Sr. dos Passos, pela Rua Cel. Luiz Augusto. Participação da Irmandade do Santíssimo Sacramento Missa na Igreja da Matriz

Segunda-feira Dia 28 de março

às 19:00 horas – às 20:00 horas –

Missa na Matriz Procissão de retorno (confissões)

5. Segunda-feira – arrependimento: ser mulher

Terça e Quarta Dia 29 e 30 de março

às 19:00 horas –

Missa e confissões

6. A terça-feira e a quarta: silêncio e ensaio

Quinta-feira Dia 31 de março

às 19:00 horas –

Missa Solene Cantada (de Caloora) (Dirigator Domine) Lava-Pés Domitumini, Procissão dentro da Igreja Início da Adoração Desnudamento dos altares (Moteto de Passos) (Adoração do Santíssimo) Durante toda a noite até às 3 horas da tarde de Sexta-feira com a Participação da Irmandade do Santíssimo

7. Quinta-feira Santa: o sofrimento - narciso

Sexta-feira Dia 1º de abril –

às 14:30 horas – às 15:00 horas –

– – –

às 19:00 horas – às 20:00 horas –

Paixão de Cristo Via Sacra na Matriz Cerimonial litúrgico Adoração da Cruz Comunhão dos Fiéis (Participação da Irmandade do Santíssimo) Descida da Cruz Procissão do Enterro Trajeto: Rua Cel. Luiz Augusto – Mestre Propício – Largo da Matriz (Irmandade do Santíssimo)

8. Sexta-feira Maior: cortejar a morte – desalento e pompa

Sábado Santo Dia 02 de abril

às 18:00 horas –

às 21:00 horas – –

Reunião da Irmandade do Santíssimo Sacramento – Eleição da nova mesa Diretora Cerimônia Litúrgica Bênção do Fogo

9. Sábado Santo: a linguagem do limiar

– – – – –

às 24:00 horas –

Leituras Aleluia Bênção da Água Renovação do Batismo Ladainha de Todos os Santos Segue ofertório e comunhão Cânticos entoados pelo Coral Procissão de Aleluia – Trajeto: Rua Cel. Luiz Augusto – Mestre Propício – Largo da Matriz – (Cântico Ressurreição) (Banda de Música) (Participação da Irmandade das Almas de N. S. do Rosário)

Domingo da Ressurreição Dia 3 de abril

9:00 e 19:00 horas –

Missas na Matriz

10. Domingo da Ressurreição: retorno à vida – do Cristo renascido ao Divino por chegar

Pirenópolis, 22 de março de 1988 Frei Primo Carrara – vigário Pompeu Christovam de Pina – tesoureiro

Campinas, 22 de novembro de 1988 Carlos Rodrigues Brandão – pesquisador

(escrito à mão no final do programa) Domingo de Aleluia às 09:00 horas – Missa Comum às 12:00 horas – Saída da Folia (Matriz) às 13:00 horas – Queima do Judas às 18:00 horas – Chegada da Folia Casa do Imperador 14 (Reunião na casa do Festeiro – Imperador)

1. Uma breve semiologia do sentimento

Não é difícil tornar idéias convertidas em crenças pouco divergentes e menos inocentemente perigosas. Pensar é sempre muito limitado, e crer, mais ainda.

Na e através da religião, crenças e idéias tendem a conciliar, a pôr em comum para explicar a desigualdade, símbolos e significados divergentes. Tudo o que se pensa tende a ser ecumênico um dia, e lidar com o jogo fácil da diferença consentida e da uniformidade imposta sempre foi o espírito e a força da religião.

Difícil é lidar com algo mais sutil, menos nominável, mais coreográfico e ritual. Menos controlável, portanto: o sentimento humano vivido dentro e fora, como e contra a religião. E sobre ele que falo aqui e numa situação rotineiramente inesperada: como as

pessoas de uma antiga cidade colonial do estado de Goiás vivem sentimentos próximos, vizinhos e opostos durante os dias da Semana Santa. A que sentir são conduzidas as pessoas? Em nome de quê? Como se dá o jogo tão humano de conciliar gestos e afetos que vão da piedade por um homem-deus que morre ao júbilo inevitável de Narciso, pela evidência de que o espetáculo de arte com que a comunidade de devotos de Pirenópolis festeja a “Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo” é, creio, quase único e às vezes perfeito? Como lidar culturalmente com o sentir? Como criar na cidade os estados que o comportem?

Este trabalho foi escrito como parte do projeto de pesquisa coordenado por Rubem Cesar Fernandes: “A paixão brasileira”. Ele e eu somos membros do mesmo Instituto de Estudos da Religião, um dia fundado, entre outros, por um comum querido amigo: Rubem Alves, a quem eu quis dedicar este trabalho.

Estive em Pirenópolis durante a Semana Santa e também em algumas outras semanas nos anos de 1987 e 1988, enquanto fui professor visitante da Universidade Federal de Goiás. Com alguns alunos realizei uma experiência “Oficina de Pesquisa”, e vários deles me acompanharam trabalhando nessa pesquisa, da qual alguns participaram como auxiliares. Quero agradecer à Isabel (Bel), à Mônica e à Simone, à Cleide e ao Walter. O mesmo vale para Carlos Fernando, do Núcleo de Apoio às Iniciativas Culturais da Universidade Federal de Goiás e também para a Marise. A Oficina de Pesquisa e esta pesquisa estiveram vinculados ao “Núcleo”, e a ajuda deles foi sempre oportuna e importante. Não sei o que pensarão as pessoas de Pirenópolis quando um dia lerem este relatório. Gostarão das fotos, imagino, mas tenho dúvidas sobre o texto. Antes que tenhamos sobre o que discutir, quero também agradecer a todos e especialmente a Pompeu Christovam de Pina.

Primavera de 1988

2. Quaresma (“coresma”): jejuar, submeter-se

A Quaresma — “coresma”, como às vezes nos sertões do lugar se pronuncia — serve à espera: quarenta dias para o que há de vir, todos os anos. Provação que atesta a fé, ela é a medida do devoto. A Quaresma torna visível uma qualidade de ser fiel que aos antigos era a regra — os mais velhos lembram com pesar — e que agora é a rara exceção, cada vez mais. Serve para dizer no corpo, na contenção pública dos gestos, na ostentação mansa e persistente do que não se faz “nela”, a vontade de submeter o desejo de tudo à norma de preceito. Por isso serve para atestar aos próprios olhos da alma, aos da família, aos dos vizinhos, quem ainda é cristão católico, quem não o é “muito” e quem já não o é. Serve para mostrar quem “cumpre”.

São quarenta dias antes da “Semana Santa”. As festas de santos padroeiros são suspensas. Todas as outras devem sê-lo também. Passou o tempo do ciclo do Natal, mais festejado no antes e depois das Folias de Santos Reis do que no seu próprio dia. Passaram outras festas religiosas do começo do ano, de que a mais notável é a de São Sebastião, do meio ‘pro’ fim de janeiro, em Goiás mais “do povo da roça” que do “da cidade”. Passou o Carnaval, tempo de excessos que os santos começam a purificar pelos pecadores nas “cinzas” da Quarta—Feira e continuam pelos dias da Quaresma, especialmente todas as sexta-feiras, quando então tudo o que fica proibido deve sê-lo

mais ainda: o prazer ligeiro do sexo, a carne, a comida farta, o mal qualquer aos animais, a música profana, os prazeres da vida, enfim. “Lembra-te que és pó”.

Em Pirenópolis, na beira das águas limpas do rio das Almas, cercada das alturas dos montes Pireneus, os mais altos de um círculo sem fim no Planalto Central, há de algum tempo para cá duas festas opostas e conjugadas: a do “povo do lugar” e a “dos turistas”. O Carnaval, a festa do “Aniversário de Pirenópolis” e outras pequenas festividades profanas aproximam os que moram nas casas antigas das ruas de pedra dos que acampam em barracas na beira do Almas. Mas as outras festas os separam, e entre alguns elas criam uma relação imposta quase insuportável. Pois, enquanto os “do lugar” comemoram com ritos e provações a memória da Páscoa, eis que os “de fora” acampam por toda a parte, bebem, “ferreiam” e, dizem os mais severos, pecam como se este tempo santo fosse como qualquer um.

A Quaresma são, dentre os 365 do ano, os quarenta dias de penitência coletiva. Há outros no correr dele, mas são curtos e não existe outra seqüência igual de momentos de privação do prazer. O Advento, tempo eclesial de espera do Natal, é quase alegre, mas a Quaresma deve ser vivida com intenções e sinais de uma pesarosa espera: um deus que nasceu homem faz muitos anos vai morrer daqui a alguns dias. A Quaresma é uma restrição dos sentidos para que a memória não deixe de lembrar isto. Os mais rigorosos, os dos sítios e fazendas muito mais do que os da cidade, procuram abster-se dos pequenos prazeres permitidos em outros tempos: o que não é pecado fora da Quaresma é seu desrespeito nela. Os que se amam não se casam, e não se deve sequer “ficar noivo”. Um jejum pelo menos moderado se recomenda a todos os dias e mais ainda nas sexta-feiras, quando também é preceito não comer carne alguma a não ser a de peixe. Quem é devoto o bastante come a comida do “sustento” e evita a do prazer: a carne e os doces. Mesmo alguns trabalhos rurais comuns em outras épocas são evitados nela, e a seqüência dos tempos da natureza ajuda a que assim seja: o arroz, o feijão e o milho foram colhidos, e a terra espera por algum tempo em repouso o trato de uma nova safra. É melhor que se evite castrar animais. Assusta aos mais velhos que os jovens cada vez mais queiram fazer deste “tempo santo” um igual aos outros e prolongar em bailes e forrós os vícios do Carnaval. É difícil fazer qualquer coisa contra, porque tal como a guitarra elétrica abafa a viola caipira, os sons e a razão do mal ensurdecem as palavras do bem. Eis porque o fim-do-mundo está próximo, e este é um dos raros pontos em que os velhos católicos “de tradição” concordam ainda com os parentes e vizinhos convertidos “a crente”, a “pentecoste”.

3. Os dois primeiros dias: prenúncios do sofrer

Em Pirenópolis a Semana Santa começa na segunda-feira ou antes ainda, na sexta-feira, oito dias antes da outra sexta, a “santa” ou “maior”, quando tudo deve ser silêncio, memória do morto e arrependimento. Na primeira sexta festeja-se em Pirenópolis a antecipação da dor que Maria mãe de Jesus Cristo irá sentir; irá sofrer como um punhal enterrado no peito. Por isso, entre o final da tarde e o começo da noite a antiga imagem particularmente bela, de uma “Nossa Senhora Dasdores” é conduzida dentro de uma pequena procissão da igreja do Bonfim à velha igreja da antiga Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte. Até pouco tempo atrás, a procissão era acompanhada de meia orquestra e meio coro, e eles ao longo do trajeto entoavam os

motetos das dores hoje silenciados, e razão para que alguns músicos do lugar temam que os dos passos, da procissão do dia seguinte, sigam o mesmo destino.

Como em outras cidades goianas e mineiras de antigas minas de ouro e pedras, onde até hoje se festeja a Semana Santa de acordo com “a tradição dos antigos”, o que importa é multiplicar ritos que misturem imagens, gestos, símbolos e sentidos revestidos de um duplo significado: que sejam representações visivelmente próximas dos seres sagrados e acontecimentos notáveis de todos os católicos em princípio; que criem situações cerimoniais peculiares, que o tempo da história na exclusividade preservada do lugar tornou duplamente consagradas. Há festejos de “Semana Santa” por toda a parte, mas nunca como em Ouro Preto, em Diamantina, em Vila Boa de Goiás e em Pirenópolis. Pois trata-se de chamar à cena de uma semana a cada ano imagens únicas, velhas roupas de “irmãos do Santíssimo Sacramento”, velas enormes, óleos, palmas verdes, motetos, gestos de contrição e tempos de silêncio dados à contemplação, que os mais velhos querem ainda fervorosa. Eis que em suas imagens de dor absoluta, de sofrimento e morte, os seres mais sagrados dos mitos do lugar: Jesus Cristo e Maria serão mostrados para serem vistos outra vez, para serem adorados.

Mas por alguns momentos eles estão escondidos, e um Cristo oculto é conduzido em procissão: vai, mas é para não ser visto. Pois como o “Sábado dos Passos” não é ainda o dia em que Jesus condenado carrega pelas ruas da cidade a sua cruz, a imagem em que ele faz imóvel justamente isto é deslocada de uma igreja para a outra, entre panos oculta do olhar devoto ou curioso. Como se fosse um grande cubo de madeira escura e panos roxos, um estranho andor esconde um dia antes a imagem da mãe e, no sábado, a do filho. Sempre que há procissões separadas, a de Jesus Cristo é muito mais solene e mais acompanhada que a de Maria. Na noite de sábado, a descida da imagem oculta sucede a missa, que nesse ano o vigário resolveu rezar na porta da igreja do Bonfim.

Antes da saída, o coro e a pequena meia orquestra que nos acompanhará todo o tempo entoando um primeiro moteto, conhecido entre os artistas-devotos do lugar como Pater Mi, Tal como os outros oito entoados ao longo do trajeto que de uma igreja desce à outra, ele é triste e pesaroso, um quase-pranto que se canta a várias vozes, enquanto de um lado e de outro dos artistas, do andor e de irmãos do Santíssimo com mastros e cruzes, duas fileiras de fiéis — contritos alguns, divertidos outros — descem ladeira abaixo, ora silenciosos à escuta do coro, ora entretidos com a reza solitária de um terço ou com a conversa que mesmo na procissão de antevéspera do drama reconta os casos profanos do dia e da semana.

A cidade se enfeita e se enfeitará — não tanto quanto alguns dias mais tarde para a solene e “Grandiosa Festa do Divino Espírito Santo”. Ao longo da rua e de outras por onde passarão cortejos e procissões, o costume manda que se coloquem arranjos de velas e flores na sacada de velhas janelas. Veremos que a cidade preserva o costume antigo de edificar pequenos locais de “passos” onde a procissão pára, e por um momento um moteto é tristemente entoado.

O cenário na noite quente e iluminada das estrelas de março em Goiás é belo, e é difícil fazê-lo servir ao pesar, à preparação do fiel ao drama que o vigário insiste em que não é apenas representado, como os escolares fazem em Vinte e um de Abril ou em Treze de maio, mas revivido como um ato em que os gestos da memória servem ao que lhe dá sentido: a fé. Quando a procissão chega ao adro da igreja matriz, a imagem escondida por um momento é retida no início da nave. Dispostas agora em dois grupos opostos de cantores, as pessoas do coro se alternam, cantando partes de duas músicas

tradicionais, reservadas apenas para este momento da Semana Santa; Ó Miserere (ainda um moteto) e “Senhor Deus, Perdão”.

Algo que se repetirá por toda a semana começa acontecer aqui: os artistas estão atentos a seu ofício, alguns fiéis fazem em silêncio o coro ao pesar contrito que se imagina haver sido no passado o de todos. Os outros, entre curiosos assistentes “do lugar”, dos patrimônios e das fazendas, ou entre os primeiros visitantes chegados de mais longe, assistem sem contrição ao que se faz. Essa assistência de não-conhecedores ou de sabedores precários do sentido dos gestos do rito estará presente em todos os outros momentos solenes dos festejos e aumentará bastante do sábado ao outro domingo. A ela em parte se dirige o que é feito, ainda que do padre aos artistas do coro se saiba que sua cumplicidade devota é cada vez mais suspeita. Quantos deles, por exemplo, adentram a igreja em busca do ritual solitário do “beijamento” das imagens, que a seguir por um momento são deixadas dormir na escuridão secular da sacristia?

Falei antes de um desejo de preservação de uma dupla “tradição” (a palavra tem um peso solene em Pirenópolis e é muito usada para estabelecer inúmeras diferenças entre uma solene maneira adequada de se ser e todas as outras) que as pessoas que fazem a Semana Santa católica em Pirenópolis insistem em acentuar. E colocam em evidência ostensiva. Temos a partir daí um contraste muito visível, mesmo cm Goiás, para ser esquecido nessa semana de ritos de memória. Nas várias vilas da periferia da cidade de Goiânia assim como nas cidades-sedes de municípios de dioceses e paróquias renovadoras — ditas também: “pós-conciliares”, “populares”, “comprometidas com o povo”, “avançadas”, “do Evangelho” em toda uma ampla área do Centro-Oeste cujo foco mais forte está entre a de Goiânia e a da Cidade de Goiás e que adentra boa parte do território do novo estado do Tocantins (Porto Nacional) e por amplas regiões do Mato Grosso (São Félix do Araguaia) e do Pará (Conceição do Araguaia e Marabá), o cerimonial do “Drama da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo” é de tal sorte relido, que alguns sentidos dados ao que se comemora parecem de fato invertidos aos olhos de uma Igreja mais “conservadora”. Todo um feixe seqüente de acontecimentos de um passado da história humana profana e religiosa (em Roma e na Bíblia) é rememorado pelo que traduz e vale: religiosa, litúrgica, social e politicamente hoje. Pelo que significa na história presente e entre os homens de agora. Homens tidos como outrora e hoje situados em campos de opostos: os pobres e oprimidos a quem o deus morto deixou prometida a terra, a Terra e a salvação, e os ricos e opressores, inimigos tanto no passado de um Pilatos quanto no presente da UDR; os inimigos de Deus e do “povo da caminhada”. Aqueles que, diz-se então com mais ênfase nos ritos reatualizados da Semana Santa, mataram um dia e seguem assassinando o Cristo no povo que o segue e que em um mesmo “Povo de Deus” se confunde com ele no sofrimento e na esperança. Eis que aqui a memória do rito antigo — o sofrimento de Cristo no Horto das Oliveiras, sua prisão e julgamento, o “calvário” e a morte na cruz. A dor inigualável de Maria, o retorno glorioso de entre os mortos, a “última ceia” não revivem um mito fundador com uma morte seguida de uma ressurreição, mas sim a certeza de sua atualidade transfigurada em um enfrentamento entre forças do bem e do mal, tão divididas e opostas hoje quanto “nos tempos de Cristo”. Cristo é qualquer injustiçado, e a “Paixão” é qualquer ato presente de injustiça e opressão.

Por isso mesmo e para horror dos de Pirenópolis, os gestos e lugares das cerimônias religiosas se despojam. As palavras ditas agora em um português popular, permitem novas leituras: a história dos conflitos bíblicos não está concluída com os feitos antigos que a comunidade de fiéis rememora; não basta agora a cada um viver a virtude plena de sua vida individual e esperar a redenção post mortem prometida pelo

que “morreu e voltou de entre os mortos”. A mesma história não cessa de acontecer, e a “Paixão de Cristo” se revive na Semana Santa como a “Paixão do Povo de Deus”, que não apenas “segue” mas prefigura o próprio “Salvador” em seu sofrimento, em sua fé e em sua esperança.

Os objetos usados nas celebrações são os do trabalho, tornados símbolos religiosos “da caminhada”. Gestos antigos revisitados: mãos erguidas para o alto na hora do Pai-Nosso, abraços e falas de uma terna solidariedade entre vestes do dia-a-dia e cruzes feitas de qualquer madeira próxima; cânticos de clamor pela justiça presente acompanham procissões sem qualquer solenidade. O município de Pirenópolis faz parte da diocese de Anápolis, desde muito tempo oposta às ações e às idéias da Igreja progressista. Os valores da “tradição do lugar” são bastante mais fortes do que qualquer desejo individual ou organizado de “renovação”. Por motivos diversos mas de algum modo cúmplices, a Igreja e a cidade preservam aquilo que com razões desiguais consideram seu bem mais sagrado: a tradição. E é isso o que se coloca nas ruas, nos adros e nas igrejas do lugar.

Tudo apela para manter estável o passado, das imagens que homens e mulheres carregam aos motetos que se canta e ao cálice do vinho na missa. Eis que os objetos, os gestos e as fórmulas — em latim, de preferência — do culto católico são eles mesmos santificados. Esta é, sabemos todos, uma velha polêmica entre católicos e protestantes, e uma polêmica nova entre aqueles e os católicos progressistas. Mas tais objetos que se veneram e com que se venera valem também porque são a melhor e mais visível materialização de um valor de antigo, de supostamente colonial e colonialmente peculiar, numa região de serrados e sertões onde sobrou muito pouco dos velhos arraiais do ouro para deixar nos olhos dos visitantes e no coração dos moradores o saber e o sabor da vida e dos símbolos de dois séculos atrás. Tudo o que é a “tradição do lugar” dá a tudo o mais, inclusive a Deus, seu valor, pois é sagrado o que se reveste de uma matéria inacabável e de uma memória inesquecível.

As duas imagens na sexta e no sábado escondidas e nos outros dias postas diante de todos valem na cidade como um signo visível de um duplo passado digno de veneração: o de uma Igreja imemorial que atesta frente a outras a virtude da veracidade única de sua excelência, por causa do que preserva, regida pelo poder consagrado da tradição de si mesma. Tradição religiosa que torna o que a origem e a história tornaram sagrado, um bem igualmente solene e venerável, por ser único e milagrosamente fixado no tempo, enquanto tido à volta “muda”.

A sua volta, entre Brasília e Goiânia, em qualquer lugar todos Podem pôr nas ruas imagens de santos, velas acesas, cantos e rezas. Mas não como aqui, onde há imagens únicas de Mestre Athaide, roupagens guardadas há 150 anos para este único momento; mastros e bandeiras que os avós conduziram e conduzem agora os netos; motetos dos músicos da região acompanhados de flauta e violino; expressões e gestos do olhar e das mãos que todos gostariam fossem os mesmos dos primeiros supostos fervorosos descendentes goianos, dos pioneiros paulistas e portugueses, povoadores dos sertões, do Arraial das Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte desde 1734. Em Pirenópolis, a Semana Santa exige roupas de uma cor diversa, cânticos próprios e objetos de museu. Por uma semana, eles tomam corpos e as vozes individuais e coletivas das pessoas para subir à cena. Mais do que apenas dados à mostra, como em uma parada escolar do Sete de Setembro, ei-los que são para serem venerados, visitados com respeito e arrependimento — algumas pessoas irão chorar à passagem do “Cristo Morto” — tocados com remorso e temor: beijo que se dá no madeiro da cruz, nos pés de um deus jazente. Mas, depois dos 40 dias da Quaresma, a partir de ontem, Sexta-Feira

“Dasdores”, que é que festejam as pessoas de Pirenópolis? Eles costumam dizer que é aquilo que a Igreja católica sugere aos homens ter sido o maior e mais injusto sofrimento por que um homem já passou. Sofrimento e morte indispensáveis a um projeto divino de salvação da humanidade, numa história miticamente conhecida de todos. Supõe-se que ela seja vivida entre tradições, surpresas, assombros, avanços e recuos (o de Pedro, o de Pilatos), gestos imensos e gestos mesquinhos (ninguém mais desgraçado do que Judas que será “malhado” no domingo). Situações em tudo previstas pelo próprio deus-homem “que vai morrer” e repetidas aqui como uma seqüência de pequenos e longos ritos católicos, que os mais velhos, devotos, conhecem de cor e que devem ser repetidos a cada ano com um mesmo e novo estatuto de emoção, sofrimento e júbilo, ao final.

Uma Semana Santa “completa” como a de Pirenópolis, de uma sexta-feira a um domingo, rememora cada um dos dias por suposto equivalentes aos da história acontecida. Em Pirenópolis, as pessoas que vivem e realizam mais definidamente a Semana Santa dizem que não representam, como a réplica do acontecimento evangélico, mas o celebram através de uma seqüência diária de ritos litúrgicos de templo, praça e rua. Elas pretendem rememorar tais acontecimentos, substituindo o “drama” (como ele é praticado teatralmente em “Nova Jerusalém” e imitado em menor escala em uma infinidade de cidades do País) pela celebração que enuncia o sentido dos fatos acontecidos e é, passo a passo, a leitura (mas não o drama) de sua memória, Não é um mero jogo de palavras dizer que a Semana Santa em Pirenópolis, ao contrário do que acontece onde ela é literalmente uma representação, não é feita para emocionar as pessoas devotas mas para sugerir emoções. Aqui não se “crucifica” um ator-Cristo entre outros atores e diante de uma platéia cúmplice. Aqui se rememora entre imagens seqüentes de Jesus Cristo (humilhado, crucificado, morto e triunfante) os ritos litúrgicos e não-teatrais de sua “paixão”, “morte e ressurreição”.

Desde suas primeiras procissões de sexta e sábado, o cordão de velas acesas, os cantos muito tristes, as palavras do padre, o envolvimento misterioso das imagens carregadas a custo em andores, o ritmo do andar lento do cortejo, todo esse conjunto de gestos, objetos e situações solenes tende a instituir não tanto uma dor crescente até a explosão de euforia da meia-noite do outro sábado para o domingo, mas uma espécie coletiva de reverente devoção contrita. Algo mais coletivamente “pesado” do que individualmente “triste”, regido por um insistente convite ao reconhecimento (“Veja o que fizeram”) e ao arrependimento (“Foi por você, também”).

Não é muito fácil descrever o arranjo dos sentimentos partilhados pelas pessoas que vêm para viver os ritos mais do que apenas para assisti-los: aqueles que são considerados, entre o padre vigário, seus auxiliares de igreja-e-sacristia, os artistas do coro e da orquestra e outros devotos costumeiros, a pequena comunidade cada vez mais reduzida dos que sabem fazer e sabem sentir o que e como é devido, a cada momento.

Um pequeno contraste poderia ajudar. Ele seria a oposição entre o sentir do sofrimento de um outro para não ser vivido como a “minha dor” e a glória de seu desdobramento em uma “terceira pessoa” — o “Divino Espírito Santo” — a ser partilhada por todos do lugar como uma coletiva imensa euforia sagrada.

Já no domingo da Ressurreição, as duas folias do Divino saem às ruas, com fogos e festas, da casa do imperador do Divino, o “festeiro do ano”. Vários dias mais tarde, seu retorno é muito solenizado, quando chegam à porta de entrada da casa e ao altar “do Divino” na sala da casa do imperador. Essa cerimônia de “chegada das folias” costuma demorar horas, muitas mais do que as cerimônias da Semana Santa. Ora, tudo o

que acontece nessa Semana é regido pelo saber, o controle e a presença central do sacerdote, enquanto quase tudo o que acontecerá da “saída das folias” em diante, na “festa do Divino”, partilhada entre leigos católicos da cidade e “da roça”, e o padre um ator menos importante. Tive a oportunidade de estar presente ia “chegada” das folias em 1988. A Festa do Divino é regida pela alegria, pelo júbilo, pelo excesso de gastos, de festejos de rua (as conhecidíssimas “Cavalhadas de Pirenópolis”) e de disposições profanas ao prazer (que o padre condenará com inútil veemência, atacando sempre mais os “de fora” que estarão longe e não o escutam). Mas alguns de seus momentos são muito tocantes. São para emocionar fundo, e há mesmo uma regra cultural que sugere aos principais envolvidos, homens todos, algumas lágrimas, quando não, muitas. Na porta de fora da casa, o imperador recebe a “Folia” ao lado da esposa. Ouve em silêncio seu demoradíssimo “cantorio”, recebe das mãos do alferes a “Bandeira do Divino” e, após ordens cantadas pelo “mestre da folia”, entra pela casa adentro em direção ao “altar do Divino” seguido de todos os outros. É ali, sob a emoção de um novo cantorio “na frente do altar”, que ele chora, e na manhã do dia em que estive presente, chorava também o “mestre” e choravam dois ou três foliões mais velhos. Nada havia na música cantada ou nos gestos obrigatórios que sugerisse isso. Ao contrário, o canto pede do Espírito Santo as bênçãos sobre “o senhor e sua família”; as pessoas relatam a viagem e “saúdam” o “dono da casa”. Logo depois, terminada a cerimônia central da “chegada”, todos estarão cantando e dançando no “terreiro da casa” um alegre “chá”. Nele os homens em coro pedirão ao “dono” nada menos do que fartura de “pinga”, para que o resto da cerimônia se celebre como as regras da festa mandam que seja.

Sem a presença do sacerdote e sem ritos que sugiram uma devoção exagerada, o que a “chegada” faz é solenizar ao extremo o feixe de afetos que liga as pessoas uma às outras, através do que está acontecendo. Pois é deles que se trata: de suas vidas, de sua casa e da “família” e, oposto ao Cristo da Semana Santa, o Divino Espírito Santo não está ali “pregado na bandeira” para ser exaltado com fervor — deixemos isso para os momentos de igreja, sob o comando do padre, em outros instantes da festa — mas para tolerantemente solenizar a euforia reinante e “abençoar” seus atores. Não haverá em toda a Festa do Divino, assim como nos longos dias e noites da Semana Santa, as cenas de emoção não-contida que vi acontecer nas romarias a Aparecida do Norte ou a Trindade, a grande romaria anual goiana ao Divino Pai Eterno: o gesto eloqüente da devoção visível, derramada, traduzido como alguma coisa pessoal, mas ritualmente regida pelos preceitos •da cultura do catolicismo popular, entre a fé desesperada e um esperançoso desespero pessoal. O olhar “revirado”, os lábios trêmulos, contritos entre as falas da reza, as mãos mais trêmulas ainda, apertando uma vela ou desfiando as contas do terço: fração de uma promessa feita por um “voto valido”, o esforço de esticar as mãos e o braço para alcançar com a ponta dos dedos que seja o madeiro de uma cruz, uma fita pendente, a veste de um santo. O gesto de fé suplicante, eis tudo. Diverso tanto quanto o possível dos cantos com viola e pandeiro, do esvoaçar alegre de bandeiras vermelhas, dos abraços que sucedem as rezas das mulheres ante o “altar do Divino” e antecedem os passos de dança macha da catira, regada a pinga no terreiro da casa, onde, depois da moda triste, os versos safados do recortado da catira insidiosamente farão penetrar na casa do imperador, a menos de seis metros do altar na sala, as sugestões e os símbolos de uma eterna luta de poderes do sexo entre o homem e a mulher.

Diverso também de como as pessoas vivem o sentimento dos dias de dor da Semana Santa em Pirenópolis. Pois, se a regra sugere a súplica ou a gratidão piedosa em qualquer romaria, assim como o excesso devoto do júbilo na festa do Divino, ela sugere um vago arrependimento, pelo menos até a meia-noite do sábado “de Aleluia”. Não

devem haver aqui, neste cortejo que oculta e carrega sexta e sábado “dasdores” e “dos passos” as imagens de mãe e filho, sinal de rosto e corpo de que os devotos vivem com uma similitude equivalente àquilo que se diz haver acontecido entre filho e mãe na “paixão e morte”. Não se precisa estar triste e, em absoluto, ninguém deve representar-se desesperado, muito embora no cortejo se solenize o começo de um drama de dor inigualável. Representa-se a dor do outro como reverência, e é exatamente essa espécie simples de transfiguração de sentimentos pessoais sugeridos pelo drama vivido como rito o que faz a especificidade da Semana Santa, entre outros tempos festivos da vida religiosa do catolicismo. Reverenciar com “respeito e devoção” (o padre repetirá muitas vezes essa fórmula de orientação do sentir, o sofrimento redentor de Jesus Cristo e a dor exemplar de Maria Santíssima) é o que o cristão devoto deve viver como uma obrigação de culto que atesta a fé.

É bem possível que uma expressão tornada coletiva de dor e de empatia pelo sofrimento de “Cristo e Maria” tenha sido a norma no passado, e há relatos em Pirenópolis que autorizam a pensar assim. Digamos que, então, a contrição devota dominava a reverência, a expressão pessoal e comunitária do arrependimento era mais exigida e mais demonstrada. Mas hoje em dia seria ridículo e chamaria desagradavelmente a atenção de todos, a começar pelo padre vigário, se alguma seguidora do cortejo “dasdores” ou “dos passos” descesse a ladeira entre uma igreja e outra aos prantos e com gestos de dor ou de arrependimento cúmplice. Ela feriria a própria lógica que torna possível e desejável justamente o sentir da devoção como reverência participante, a meio caminho entre a contrição e o gesto religioso tornado rotina da cultura. Feriria essa norma do afeto através do excesso daquilo mesmo que, contido, cantado ou silenciado, deve ser o sentimento de todos. Seu exagero expressivo de fé e de arrependimento seria por certo mais respeitado do que a atitude debochada de um par de turistas que, ignorante do sentido do cortejo e curioso de sua estranheza, o invadisse com risos e falas altas. Mas seria igualmente liminar, indesejado.

Eis que tudo deve ser feito e vivido com e como uma demonstração regida pelas regras de uma piedosa reverência, devida mais à memória coletiva do que se rememora haver acontecido um dia do que à repetição do que teriam vivido e sentido seus atores reais. Mas tudo isso é possível porque em Pirenópolis a tradição preserva tudo o que se vive nas ruas e igrejas como arte. É com ela e com suas pequenas alianças e conflitos locais com os preceitos da religião (há sempre uma tensão entre o desejo de arte dos devotos-artistas do coro e da orquestra e os do padre) que tudo é para ser lembrado, celebrado e não para ser vivido, revivido. Pois aquilo que se diz e canta o é com um rigor ensaiado: é solene. Nem rusticamente espontâneo como nos ritos de “roça” dos camponeses do lugar, nem aos jorros, como em certos instantes dos cultos dos “crentes” pentecostais ou dos figurantes — bichos e pessoas — das brigas de galo em Bali. Solene e respeitosamente, que nada jorre, nem sentimento, nem gesto, a não ser, lento e quase sensual, o vinho do vidro ao cálice do padre.

Como lidar com contrários tão próximos? É para festejar “a maior dor do mundo” que as pessoas estão aqui, juntas, mas elas outra vez se reuniram, e o sentimento do reencontro é alegria. Tal como profanamente no Carnaval ou, dubiamente, na Festa do Divino, na Semana Santa, os de fora vêm a Pirenópolis, e os que saíram do lugar voltam. Estão juntos e estarão mais ainda entre a quinta e o domingo. Nativos do lugar, parentes migrantes para Anápolis, Goiânia ou Brasília voltam e voltarão a Pirenópolis e, como sempre, isto é “o melhor da festa”. Pois mesmo uma mãe devota ao extremo, dividida entre a cumplicidade pela dor do “Filho de Maria” e a alegria de ter outra vez à volta da mesa seus filhos reparte sentimentos

opostos: os da devoção obrigatória da ‘Semana Santa” e os da festa profana do “feriadão”. Então, ainda que cada momento deva ser vivido a seu tempo, há em todos uma pressa pela “hora da aleluia”, quando o júbilo se soma ao júbilo, e as pessoas podem unificar na alegria um sentimento só, afinal consentido pela própria Igreja e, mais humano do que o arrependimento e a dor, vivido como alívio e alegria.

Do lado de fora da igreja do Bonfim, os integrantes do coral e da banda de música conversam entre eles e brincam, enquanto esperam a hora do cortejo do Senhor dos Passos. Durante todo o trajeto do cortejo, eles podem ser discretamente “profanos”, desde que na hora do desempenho cumpram com rigor as regras do culto e de sua arte. Podem fazer pequenas brincadeiras entre eles, desde que não quebrem com exageros de falas e risos o “respeito” devido ao momento. Muitas cantoras não conhecem a letra do que cantam em latim, e todos sabem que o que dizem no canto é para ser entoado e ouvido, é para “criar um clima”, não para ser sentido e entendido. Como entre artistas e outros devotos não se sabe o que se diz no canto, as pessoas ouvem um som conhecido sem se preocuparem em decifrar a fala. Exatamente o oposto dos “cantorios” populares das folias do Divino, onde cada palavra é dita em português do lugar, onde cada frase enuncia algo conhecido de todos, onde várias quadras contêm ordenações de conduta que devem ser seguidas à risca por todos ou por alguns. Durante o cortejo ouve-se um som triste, quase choroso, e as pessoas devem calar-se para ouvir “aquilo” não-decifrado a não ser como um código de fé que fala por si mesmo e é reconhecido como a música que as tradições de Pirenópolis reservam àqueles e a outros próximos momentos únicos.

Ora, o que os artistas devotos parecem sentir enquanto tocam e fazem o canto dos motetos é a euforia ou o pesar que mede entre eles a qualidade do desempenho. O jovem maestro rege a orquestra voltado de costas para ela enquanto caminha. Faz lentos os movimentos com as mãos e numa delas carrega uma vela acessa que o vento aqui e ali apaga. Cantando o terceiro moteto, ele reclama da afinação do coro. Os tenores respondem de imediato que eles estão “perfeitos” e olham com suspeitas para o lado dos contraltos, que se defendem antes que alguém levante qualquer suspeita contra eles. Durante vários passos entre o terceiro e o quarto moteto, para o qual o maestro conclama uma trégua provisória, os grupos de vozes murmuram acusações e empurram a culpa, reconhecendo que de fato o conjunto não está afinado. Eis o que importa corrigir de imediato, porque essa é a preocupação das duas equipes de artistas a quem a “Semana Santa ciii Pirenópolis” deve quase todo o seu cerimonial. Ë a perfeição do desempenho artístico e não a evidência da devoção o que se espera de músicos e cantores, assim como do próprio padre os fiéis esperam mais o acerto no fazer as coisas e, se possível, homilias breves e interessantes do que qualquer figuração pessoalmente convincente de que ele, sacerdote em nome “do crucificado”, revive o sofrimento de Cristo como algo mais do que uma piedosa e eficiente reverência profissional.

4. O Domingo de Ramos: júbilo efêmero — everdescer

Há gestos antecipados. Dias antes ou na véspera do Domingo de Ramos as mulheres colhem flores no jardim — elas já adornaram antes as janelas na passagem dos cortejos de sexta e sábado — e os homens arrancam ramos de palmeiras nas ruas da cidade e nos campos perto. Na falta de palmeiras trazem folhas de coqueiro e até mesmo

de bananeira. Alguns enfeitam as ruas nesse dia único de júbilo efêmero, entre o pesar da espera e a representação do sofrimento nos dias seguintes, até o outro domingo. Outros ramos, menores e mais cuidadosamente escolhidos serão enfeitados com flores e fitas, serão levados para serem “benzidos” pelo padre ao fim das missas e serão conduzidos festivamente na “Procissão de Ramos”, tal como se crê que foi feito quando o “Rei dos Judeus” apareceu em Jerusalém montado em um jumento.

Os dois domingos da “semana” são a face invertida de todos os outros dias: são dados à glória oposta ao sofrimento e à humilhação, assim como à alegria oposta ao pesar e à dor. São dias de júbilo, um enunciado como efêmero, porque apenas precede, histórica e simbolicamente, o sofrimento e a crucificação de Jesus Cristo; o outro como duradouro, porque anuncia o triunfo definitivo do bem sobre o mal e da vida que nos é prometida sobre a morte que a morte do deus humano destrói. Mas apenas o dia do domingo é de festa e júbilo; a noite devolve todos ao escuro e à sugestão do sofrimento. Por agora as cerimônias substituem ritos noturnos de sexta e sábado, e seu roxo, pelo verde e o dia claro da manhã de domingo. Pela primeira e última vez até o fim da noite do outro sábado, a banda de música, livre de cantores e de motetos pesarosos, toca dobrados. Eles são alegres, e as pessoas podem ser divertidas ou “jubilosas”, que é o nome religioso da mesma coisa. A procissão quer ser a metáfora dos acontecimentos do dia da “entrada triunfal de Cristo em Jerusalém”. Mas ninguém o representa, e as pessoas que descem as, mesmas ladeiras e portam ramos nas mãos não gritam “hosanas” e “aleluias”. Os próprios dobrados, alegres na manhã de sol, são mais profanos do que religiosos.

No sermão da missa dentro da igreja do Bonfim, que, antes da procissão, por meia hora, mais parece um bosque de folhas e flores do que, um templo, o padre não deixará de lembrar que tal como “o de Jerusalém”, todo o júbilo terreno é ilusório. O mesmo povo que proclama “Cristo Rei” o abandonará, como Pedro, ou o trairá com desejos de morte, como Judas. Por isso mesmo, dos homens não há o que esperar senão o efêmero e o pecado, e apenas o que pode haver neles de eterno e virtude vem da Graça do deus que se dá à morte, ou vem do desejo humano de imitar tal deus como o próprio Pedro depois de arrependido e reconvertido sob o poder do mesmo Espírito Santo.

Três são os elementos da natureza incorporados às cerimônias da Semana Santa: os ramos de palmeiras ou semelhantes, o vinho-sangue da eucaristia e o “fogo-novo” do outro sábado. Poderiam ser acrescidos o pão da hóstia que se festeja na “instituição da Eucaristia” e a água com que o sacerdote lava os pés dos devotos convocados a ser por um momento a réplica dos apóstolos. Seus destinos simbólicos são desiguais. Os ramos são “bentos”, “benzidos”, e são levados para casa. Guardados, eles valem como objetos de proteção da casa e de seus moradores, e é a esse uso que os fiéis dão a máxima importância. O vinho e o pão são consagrados na “Quinta-Feira Santa” e ali, mais do que nas missas “comuns”, celebra-se duplamente o rito da “instituição da eucaristia”. Finalmente, o “fogo novo” acende uma vela que queimará junto ao altar até os festejos do ‘Domingo de Pentecostes e vale como símbolo do “homem novo” redimido pelo Cristo e reunificado na Igreja.

A maneira como o sacerdote define esses objetos sacralizados ajuda a compreender diferenças de sentidos e de sentimentos católicos para o próprio sagrado. O padre se apresenta como senhor dos sacramentos: ele consagra “corpo e sangue de Cristo” e, com a ajuda de auxiliares, os distribui nas missas; ele ouve os pecados e os perdoa; celebra os matrimônios e faz os batizados. Ainda que sobre alguns sacramentos a doutrina da Igreja considere sacerdotes os leigos envolvidos (como no próprio matrimônio), no correr da prática é o padre o autor principal, e os ritos da Semana Santa

servem para colocar a evidência dessa posição excelente em seus momentos de maior esplendor. Mas ele concede aos fiéis o “sacramental”. Longe de ser respeitosamente solene como no momento da “consagração”, ele é benévolo quando, após as missas do Domingo de Ramos, joga a água benta sobre pessoas e ramos de palmeiras. Depois avisa a todos que aqueles rumos e tudo o mais a que a Igreja concede um equivalente valor não são, como os sacramentos, um elo ao mesmo tempo simbólico e material do veio através do qual a Igreja une o homem à divindade e realiza naquele os desígnios benfazejos de Deus. Os ramos “valem” como objeto de devoção e devem ser tratados como tal: não venerados como a hóstia santa mas cuidados com “respeito”, porque sem serem sagrados são sacralizados, e sem o poder de salvarem o fiel da perdição protegem-no no correr da vida. Por isso, depois de “bentos”, o vigário pede que sejam guardados em um lugar digno da casa de um ano para o outro, quando então o velho deve ser queimado, e um novo, trazido para a casa. Que o ramo todo ou pedaço dele seja posto ao lado de um enfermo. Que um pequeno pedaço seja queimado acompanhado de uma prece dita de momento, quando na hora do perigo; quando no começo de uma tempestade, por exemplo.

Ei-nos pelas mãos do sacerdote entre a religião e a magia, o que ele próprio não reconhece mas os “crentes” denunciam com horror. Todos sabem que, para inúmeros fiéis presentes, o valor de estar “ali”, quando “isto” ou “aquilo” acontece, assim como o valor de fazer gestos como “beijar os pés da cruz” ou os do “senhor morto” está justamente na acumulação de semelhantes e diversos sinais mágicos dos símbolos religiosos de quem o devoto espera na verdade mais a proteção divina contra os perigos do dia-a-dia do que a “salvação eterna”, essa coisa abstrata e longínqua.

Este talvez seja um fio de diferença entre a maneira como o vigário espera que as pessoas participantes sintam e vivam a seqüência de celebrações da Semana Santa e o modo como elas próprias se incorporam a tudo o que acontece. Uma classificação provisória das alternativas de freqüência à liturgia da Semana Santa ajuda a compreender como cada um participa dos ritos. Uma primeira modalidade é a que o próprio padre vigário, seus auxiliares imediatos e os devotos das confrarias mais chegadas aos preceitos da Igreja proclamam e procuram viver: o eixo de todo o sistema de crenças e cultos litúrgicos está centrado na Igreja institucional e submetido em tudo à produção e à oferta de sacramentos como bens exclusivos ou preferenciais de salvação do fiel. Uma segunda é a do fiel devoto praticante de uma sucessão ordenada de momentos cerimoniais da “vida da Igreja”, mas não participante ativo dela, sendo mais submisso a crenças e situações cotidianas de culto do catolicismo popular do que às da própria Igreja local. Entre tais devotos, uma lógica devocional faz um outro recorte nas cerimônias da Semana Santa. Não importa tanto a leitura completa da seqüência de cerimônias e o significado que, uma a uma, todas dão ao sentido exemplarmente redentor que a Igreja atribui ao que festeja. Importa o envolvimento pessoal em alguns momentos devotamente marcantes e, por isso mesmo, tidos como fontes de bens e poderes de proteção. Por isso, um momento de “adoração” à imagem do “Senhor Morto” pode valer mais do que o instante da consagração na missa de domingo. Uma procissão serve para saldar a dívida de uma promessa feita, quando se vai por ela sem sapatos com uma vela acesa e rezando um terço. Esse fragmento individual de presença carregada de emoção torna-se o eixo significante da experiência de participação, pelo menos “naquele ano”.

Um terceiro modo de participação já foi sugerido aqui, quando eu falei das equipes de devotos artistas e os acompanhei por alguns passos e músicas. Sem que neles deixe de haver o interesse propriamente religioso e um desejo devoto semelhante ao dos

“irmãos do Santíssimo Sacramento”, são eles os que investem a presença nos ritos motivada mais pela realização da arte e a preservação das “tradições de Pirenópolis”, através de seu exercício, do que propriamente na participação devota nas cerimônias, “como qualquer um”. Ë para eles e é através de seu trabalho musical que a Semana Santa vale por ser “em Pirenópolis”. Mesmo que o próprio vigário não seja um agente ativo nisso e às vezes do altar pareça dar sinais de cansaço pela demora a que obrigam os ritos longos e ditos em latim, é dos artistas devotos que se cobra a guarda de uma religiosidade onde não tanto a fé, mas a reprodução de seus gestos cerimoniais solenemente antigos é o que importa. Porque o que vale “ali” não é tanto a experiência individual da fé quanto a encenação coletiva dela como tradição, mesmo que dentre todos poucos entendam o que se faz e diz, e um certo ranço do antigo sacrifique a atualidade do fervor — como entre as comunidades eclesiais de base, como entre os pentecostais — em nome da autenticidade do rigor cerimonial.

Uma última maneira de viver os acontecimentos de rua e Igreja na Semana Santa tem, no limite mais próximo, o católico de vida religiosa esporádica, que durante a Semana Santa cumpre aos fragmentos os “preceitos da Igreja” e depois se deixa “acompanhando” os momentos de liturgia mais expressiva. Tem limite mais distanciado o visitante que acrescenta aos interesses do “feriadão” alguns instantes de observação curiosa da “festa”.

A alegria efêmera do Domingo de Ramos dá à noite lugar à volta das cores escuras e da exaltação pública do arrependimento. Sem os panos que as recobriam, as imagens de Cristo e de Nossa Senhora “Dasdores” são levados em duas procissões que se fundem adiante, a um encontro nas ruas da cidade. Celebra-se a última vez em que o Salvador e sua mãe teriam se visto antes que ela ajudasse outros a desceram seu corpo morto da cruz. Por uma primeira vez, uma divisão de gênero separa homens e mulheres. Saem estas antes e em procissão menor com a figura de Maria. Saem os homens com a de Cristo, momentos após; saem com a banda o coro e o corpo uniformizado dos “irmãos do Santíssimo”. Tal como antes, oito motetos devem ser cantados, mas agora mais solenes, em pontos demarcados e decorados para isso: os “passos do encontro”. Reunidas as duas procissões em uma só, ela desfila pelas ruas de volta à igreja matriz. Em uma das “paradas” e após o canto de um moteto, o padre vigário faz na rua uma homilia. Veremos um pouco à frente como a mulher é eleita o ser da confissão dos pecados. Mas no sermão dessa noite o padre faz sua defesa. No drama da morte de Jesus Cristo houve homens bons e maus, a seu favor e contra ele. Mas de Maria a Madalena, todas as mulheres foram boas e favoráveis.

5. Segunda-feira: arrependimento — ser mulher

Aqui, onde até o deus dos homens é um macho, tudo o que é mais sagrado, mais solene e mais decisivo exige o padre, os irmãos do Santíssimo Sacramento, os outros homens da linha laica de frente da Igreja e um acompanhamento coadjuvante de mulheres.

Na noite de ontem, no começo da Procissão do Encontro, elas saíram pela porta lateral da matriz com a imagem da “Dasdores”, sem roupas especiais, sem banda nem coro: um pequeno séqüito de acompanhantes da imagem de uma mulher. Minutos mais

tarde, pela porta da frente, os homens saíram com a imagem de Jesus Cristo, os engalanados “irmãos do Santíssimo”, a banda de música e o coral.

Na noite de uma segunda-feira, vazia de efeitos e rituais, saiu da matriz rumo à igreja do Bonfim, de volta, a menor procissão, um quase invisível cortejo furtivo e silencioso. Ele devolveu “ao Bonfim” a imagem do Senhor dos Passos, uma vez mais oculta entre seus panos roxos. Os homens carregam o andor, pesado demais para os braços e a piedade das mulheres, mas elas são quase todos os acompanhantes. Sem o coro de artistas, as mulheres cantam do meio para o fim do caminho os cantos comuns da Igreja, nem tão solenes e latinizados como os do coral, nem tão atualizados quanto os que outras mulheres cantam nas procissões “renovadas” da periferia de Goiânia, na “Romaria da Terra” ou em Vila Boa de Goiás.

Devolvida a imagem, as mulheres vivem um desses raros momentos menores em que elas por um instante reinam na Igreja. Aí são os homens, raros e maridos em maioria, os acompanhantes. O que se canta é um longo rogatório piedoso, cuja música somente se entoa nesse dia: “Santo Deus”. É uma longa litania de arrependimentos onde a mulher que “puxa” o “cantorio” de todas as outras enumera cada um dos instrumentos de tortura do “condenado”, enquanto vinte e poucas respondentes dizem entre cada quadra: “Perdão, Senhor piedoso, clemente e cheio de amor”. É pela coroa de espinho, pelos cravos de ferro ruim, pela cruz abjeta, pelos impropérios, pela flagelação, pelos escárnios, pela morte infamante e por tudo o mais que, humilhante e torturador, foi imposto a um deus-homem redentor, que o canto das mulheres suplica o perdão, depois de reconhecer sua parte e culpa em tudo o que foi feito.

E é justamente aqui, sem a pompa de coro-e-orquestra, sem o latim e o incenso, que o canto arrastado das mulheres cria um clima efetivo bastante mais contrito. Seria um exagero injusto pensar que o coro dos artistas faz com tons e palavras de sofrimento e súplica um espetáculo para ser visto e admirado pelos homens presentes, enquanto, sem platéia, o coral devoto das mulheres aspira de fato a ser ouvido por um deus-homem distante, mas presente no sentimento delas por ele?

Após a breve euforia verde do Domingo de Ramos e passando pela longa e solene Procissão do Encontro, Pirenópolis é devolvida do júbilo e da grandeza dada ao prenúncio da dor ao sentimento da contrição. “Arrependei-vos” é tudo o que se lembra. Culpa, arrependimento e confissão é o que conta agora. Antes do novo júbilo que no próximo domingo devolverá homens e mulheres ao limiar profano da vida cotidiana, entre grandes “almoços da Páscoa”, “malhações” debochadas do Judas e a saída alegríssima da Folia do Divino, é com perdão celestial que todos contam, é sobre ele que o padre falará com gravidade durante os dois dias antes da quarta-feira, é por causa dele que as mulheres — especialistas culturais e religiosas nas artes difíceis do arrependimento e do perdão — dominarão a cena durante o tempo dos atos menores da festa.

Lembro-me de haver dito em algum escrito mais antigo que a ética do catolicismo camponês aproxima e opõe preceitos de virtude e honra aos de pecado e desonra. E essa relação de princípios e regras demarcatórias de identidade e conduta, provindas de códigos diferentes ou de regiões opostas de um mesmo código, aquilo que faculta a um pai de família exemplar o punir com a violência e até mesmo com a morte o autor parente, conhecido ou estranho, de um ato de suposta ou real desonra contra ele e, especialmente, contra alguém da metade feminina de sua família. Pois eis que o pecado se apaga; é confessado em silêncio e, confessado, é esquecido. E “lavado da alma”, pois, sendo cometido por e entre homens contra um deus “justo e

misericordioso” (mais “justo” entre os pentecostais da região, mais “misericordioso” entre os católicos), é para ser perdoado. Pois a principal função humanizadora de um deus criador na pessoa do Pai, redentor na do Filho e protetor na do Espírito Santo é reproduzir pelos séculos até o “final dos tempos” as condições da vida fecunda sobre a Terra, é pacientemente repetir até o final da vida terrena de cada “homem pecador” a seqüência infinita dos perdões que garantam no coração dos vivos a esperança inapagável da salvação.

Mas, ao contrário, questão entre homens, não raro por causa e através das mulheres, a desonra não se apaga a não ser com a intenção pública do gesto de justa reparação que obriga o ofensor à encenação do arrependimento frente ao ofendido. Ou, mais grave e imperdoável, obriga ao ato parcial ou absoluto da vingança pessoal ou familiar. Oposta ao perdão, a vingança apenas repõe o equilíbrio da relação entre pessoas quando uma falta tida como justa e necessária responde à outra, ofensora, ainda que realizá-la signifique um pecado, como a desobediência assumida ao “não matarás”, ao “amai ao próximo” ou ao “perdoai aos que vos ofenderem”.

A mulher deve ser honrada em si mesma e pelos homens, e estes têm na guarda de tal honra um dos preceitos básicos de seu corpo de virtudes machas. A ela cabe ser virtuosa e honrada, e os qualificadores disso entre os homens do sertão são: pureza e recato. O homem é fiador e guardião delas em boa medida, porque é também o usuário mais interessado. Mas, sendo a mulher em princípio o sujeito do gênero menos visivelmente pecador (mulheres podem “ter parte com o diabo”, mas nunca as “de minha família”), é justamente ela a mais culturalmente obrigada aos ritos públicos do arrependimento. Eis que na própria missa de hoje o padre vigário insistia junto às mulheres a que convocassem seus maridos e filhos para as filas das confissões. Ordem pelo visto quase inútil, pois as mulheres eram sete entre cada dez pessoas na igreja, e quase todas as pacientes pessoas pesarosas das filas de confissão. Na noite da quarta após a missa, discretamente contei os presentes na longa fila do confessionário. Eram 42 “pecadores”: 35 mulheres de todas as idades, classes e tipos e 7 homens, nenhum deles visivelmente das famílias “de bem”; quatro meninos e três adultos com roupas e gestos mansos de “gente do povo”.

O que deveria ser vivido como a norma dos dias do cotidiano, segundo a lógica da ética da Igreja católica, é intensamente proclamado para ser realizado com rara intensidade nestes dias de Semana Santa. Vimos que após a missa de segunda-feira, vazia de homens e de importância, cabe a um coro não-profissional de mulheres devotas o cantar uma longa litania de absoluto arrependimento. Num dos passos da Procissão do Encontro, vimos também como o vigário enumerou os homens do passado culpados da “morte de Cristo” e, ato seguinte, disse que todas as mulheres de então — inclusive a de Pilatos — nada tiveram de ver com o “crime horrendo”, e várias viveram aqueles tempos inigualáveis de maldade e injustiça divididas entre o bem e o perdão. Mas às mulheres de agora compete cantar a litania de reconhecimento da culpa pelo que houve entre os homens do passado e pedir, em nome mais delas hoje do que deles antes, o perdão divino. Ritos de confissão individuais e coletivos, enunciados pela teologia católica como universais, divididos pela cultura de tal sorte que se tornem próprios às mulheres e estranhos aos homens.

As mulheres lembram, os homens repetem. É bom para a ordem dos preceitos que as mulheres em geral, as casadas mais, e mais ainda as velhas e viúvas, passem boa parte da vida de joelhos, contritas, batam no peito, revirem os olhos voltados para o céu e chorem de uma sentida emoção. Que saibam de cor e cantem quando preciso e digam os cânticos e as falas de arrependimento, de pedido de perdão. Aos homens compete o

júbilo, por isso, embora dominem como atores quase todas as cenas de cerimônias de todas as festividades, deles é muito mais a Folia dos Santos Reis, viageira e alegre, do que a Novena de Natal, caseira e quieta, mais a Festa do Divino do que a Semana Santa, e nela é deles mais o Domingo de Ramos e o da Ressurreição, a Quinta-feira Santa e a Sexta-feira “Maior”. Eles são os que ficam de pé, os que se vestem de festa sempre e em conjunto. Na Semana Santa são os irmãos do Santíssimo, vestidos de opas vermelhas e cobertos de uma imponente santidade; são os apóstolos e o vigário. Este alterna cores e vestes e reina como o grande ator de tudo. Das mulheres, apenas a “Verônica” se cobre com vestes “do tempo de Cristo”, na procissão em que canta.

Dias depois, nos festejos do Divino, os homens fazem toda a festa à qual as mulheres assistem ou para a qual trabalham nos fundos de quintais. Os homens são os foliões do Divino, são os cavalheiros de cristãos e mouros. E são quase todos os cerca de 400 “mascarados”, arruaceiros a cavalo dois dias pelas ruas da cidade (já que eles saem disfarçados, algumas moças da cidade arrumam cavalos, mascaram-se e saem também: o que os mais tradicionais não aceitam em absoluto, dizendo que “mulher aqui estraga tudo e arrasa a tradição”). Nas cerimônias da própria Semana Santa, ei-los em massa fora das “filas de confissão”, os corpos de pé, entre velas e incensos, uma disfarçada altivez, mas visível o bastante para não ser ainda um pecado.

Não se pense que a seqüência da Semana Santa obriga as mulheres aos ritos contritos da Quinta-feira da Paixão e dá de lambuja aos homens o “Sábado de Aleluia” e o Domingo da Páscoa. O que quero lembrar é que, entre sugestões e/ou exigências de sentimentos e gestos iguais e diferentes, aos homens se permite submeter quase todos os sinais cristãos da piedade e da contrição ao solene e ao altivo, enquanto na mulher é justamente isso o que em tudo deve submeter-se às curvaturas silenciosas da contrição. Por isso, humildes, as mulheres devem ser sempre apolíneas — a moça camponesa ainda pode dançar, mas a “mulher” nunca — enquanto os homens podem ser francamente dionisíacos, sem que o modo, não raro grosseira e ostensivamente “macho” de fazer sua parte da festa católica, em nada seja condenado, desde que realizado no momento certo e com o repertório adequado de gestos coletivos e falas.

Convocadas a ser confessantes muito mais do que festivas, as mulheres devem por norma da cultura, enunciada como preceito de religião, ser identificadas com os sentimentos que traduzam suas virtudes, a começar pelo recato e pela humildade. Aos homens corresponde na festa o desejo do excesso. E ela apenas torna metáfora no gesto da dança, na bebedeira ritual de cerveja ou pinga, no leilão e nos jogos, o que a eles a cultura faculta viver fora dela, ora como intenção: é virtude cristã ser bom e fazer o bem, mas é necessário mostrar-se sempre “um homem”.

Seja-me permitida uma breve digressão. Em Nietzsche tanto o apolíneo quanto o dionisíaco da arte grega são dimensões do estado de embriaguez. Mas, enquanto o primeiro intensifica o desejo do olhar, o outro intensifica o sistema inteiro dos afetos. A lembrança não é fortuita: enquanto dentro dos limites toleráveis e codificados de tal maneira que valham como condutas cerimoniais religiosas, aos homens se permite jogar com todo o corpo nos ritos da festa, às mulheres se obriga que virtuosamente contenham o corpo e falem apenas através da fala e do olhar. Elas são as rezadeiras imobilizadas, as cantoras e as olhadeiras de tudo. São depois seu comentário. As mulheres devem ser sérias, precisam carregar o lado de penitência de tudo e solenizam pelos homens, entre eles, o momento do pesar. E mesmo entre os homens a presença de uma mulher, sobretudo quando “uma senhora” ou “uma velha”, repõe depressa o respeito. As falas de sexo e deboche mudam, os gestos livres e não raros grosseiros também: há um modo masculino de ser diante das mulheres que aproxima os homens delas, e a transgressão

dele pode ser muito ofensiva, pois a mulher é um ser de recato que exige do homem sua contraparte: a evidência entre eles e para ela do respeito.

Confessantes toda segunda e terça — algumas retardatárias deixarão isso para os dias seguintes — elas com certeza dizem aos padres que as ouvem seus próprios pequenos pecados de cozinha, quarto e fundo de quintal. Mas há de ser por toda a cidade que se confessam. E na absolvição que dois homens lhes dão — o vigário e deus — tenho razões para acreditar que toda Pirenópolis se reconhece perdoada e pronta para os grandes dias de memória do sofrimento. Na manhã de quarta-feira o vigário lamentava que cada vez menos os homens acorrem às filas do confessionário, o que lhe parece absurdo, pois é evidente que nunca se pecou tanto quanto agora. Terá um deus-homem morrido em vão?

6. A terça-feira e a quarta: silêncio e ensaio

Há apenas missas comuns na terça e na quarta; há confissões e ensaios. Mais, do que a própria segunda, estes dois dias preparam os quatro grandes e verdadeiros dias da Semana Santa; da Quinta- feira ao Domingo da Páscoa. A cidade está vazia de “visitantes” e até mesmo de, “pirenopolinos ausentes”. Alguns começarão a chegar na noite de quarta; muitos, entre a quinta e a sexta, Vindos para reviver a festa da Semana Santa ou para seu “feriadão”, essas pessoas chegantes aumentarão muito o “movimento” de Pirenópolis até a tarde do Domingo, quando os festejos do final da Semana Santa se confundem com os do começo da Festa do Divino.

As missas desses dois dias servem para um breve olhar sobre uma geografia do sentimento. Do ponto de vista dos agentes da Igreja, todos os que estão presentes na “matriz” em momentos de novena, de missa ou de outras formas de devoção coletiva, deveriam ser, de uma maneira ou de outra, participantes. Como esta e outras igrejas de Pirenópolis são o que resta de um passado colonial que deixou poucos vestígios em Goiás e como a igreja de Nossa Senhora do Rosário é muito bonita por dentro (pinturas notáveis de Mestre Athaíde) são muito freqüentes as visitas de turistas. Nada impede que venham e que tirem fotos, desde que estejam vestidos (principalmente as mulheres, é claro) com recato e demonstrem respeito.

Durante os ritos oficiais do “Programa da Semana Santa”, entende-se que a conduta de todos deva ser regida por algo mais do que o respeito: pela devoção. Isso o vigário repete várias vezes, em um crescendo que sobe da segunda ao sábado e se mistura com concessões religiosas ao júbilo a partir da meia-noite, domingo adentro. A igreja é muito grande, e dizem as pessoas do lugar que ela e as outras atestam “a grandeza dos tempos do ouro na capitania” e a “fé de nossos antepassados”. Uma rivalidade antiga com Vila Boa de Goiás é o melhor parâmetro para tais avaliações. A Semana Santa em Pirenópolis não é oficialmente inscrita no “Calendário Turístico” da Goiastur e da Embratur, como a de Vila Boa de Goiás, para onde a cada ano acorrem mais e mais turistas, alguns do Rio de Janeiro e de São Paulo. Não há em Pirenópolis o complicado jogo de oposições de usos e significados da e sobre a Semana Santa que em Goiás velha divide a “linha da diocese” da “linha da OVAT”.

A igreja não é como o teatro, como o cinema ou mesmo como o bar: ela é aberta, e sua regra é “entrada franca” pelo menos nos horários de usos e cultos. Fora os locais

reservados à vida interna do templo, como a sacristia, reino do sacerdote, do sacristão, de algumas beatas e de outros católicos, auxiliares e membros de confrarias, entende-se que entre cachorros e humanos todos podem vir à igreja e ocupar o lugar que bem queiram. Esse direito do devoto ou “de qualquer um” vale tanto, em teoria, nos dias “comuns” (a própria Igreja católica usa esse termo para vários domingos entre as grandes festas) quanto para os dias de comemorações mais motivadas.

Enquanto os fiéis e outros assistentes chegam e ocupam lugares, nos locais ocultos ou reservados as alquimias dos cultos são realizadas, O sacerdote e os irmãos do Santíssimo vestem suas roupas especiais. Disse em algum lugar que durante todas as celebrações internas da Semana Santa, eles, os homens vestidos de apóstolos para o “lava-pés” e alguns anjinhos e a “Verônica” — cantora solitária — serão os únicos vestidos a rigor, isto é, com roupas que indicam uma posição, que imitam personagens da época, que se prestam à encenação oficial do rito e de seu drama. Algumas mulheres, sempre muito mais obrigadas à discrição, usam a antiga mantilha que cobre a cabeça e descobre a beata assídua ou as fitas pendentes pelo pescoço com a medalha de um santo, que revela a adesão voluntária a alguma irmandade ou associação pia da Igreja. Aos lados do núcleo da nave, à volta do altar, ali se preparam os que fazem os trabalhos ativos da missa e das outras cerimônias. Outros que adentram a esses recantos de reserva vêm para ajudar por um momento. Chegam para falar com algum dos iniciados e auxiliares ou para “bisbilhotar” (crianças e turistas em maioria), sendo não raro convidados a sair pelos que se vestem de cores, acendem incensos ou fiscalizam os últimos preparativos para a missa. O sacerdote ocupa o lugar de todos os olhares, é rodeado pela guarda dos irmãos do Santíssimo e demarca o distanciamento devido a todas as outras categorias de presentes. No extremo oposto ao altar e no alto fica o lugar do coro e da pequena orquestra. Fisicamente acima do altar e do vigário, o grupo de músicos dialoga com ele o tempo todo.

As aproximações e os afastamentos do altar e da pessoa do sacerdote revelam o jogo duplo das intenções manifestas do desejo de familiaridade com os sinais do sagrado — Deus está por toda a parte, todos sabem, mas ali ele está mais — e de tornar isso visível como uma discreta forma de poder. O direito de “estar perto”, às margens do lugar para onde devem convergir todos os olhares e atenções. Estar “ali”, à volta do padre e do altar, de onde partem as falas que consagram e ensinam as lições religiosas da vida devota e decente. De onde parte, com toques de campanhia ou gestos solenes, como na consagração, os sinais que ordenam as posições de todos os outros ou pelo menos dos que sabem como se deve estar a cada momento: sentado, de pé ou de joelhos. Essas três posições são sempre seguidas pelos mais próximos do altar, menos pelo sacerdote, de pé diante dele quase todo o tempo. Fora os irmãos do Santíssimo, com opas, ternos escuros e grandes velas acesas em grandes castiçais, estão à volta do altar outros membros de irmandades e associações de menor valor ritual durante a Semana Santa. Ficam também casais ou fiéis solitários reconhecidos de público como das “boas famílias” do lugar, antigos clãs de devotos mais consagrados aos serviços e às ajudas à Igreja. Ficam, finalmente, as pessoas que, mesmo quando “simples”, são fiéis exemplares a meio caminho entre o vigário e o devoto comum.

Um ar de solene sacralidade rodeia esse primeiro círculo de iniciados. As pessoas mais próximas, dadas a uma visibilidade obrigatória ao olhar de todos os outros (ao contrário dos artistas do coro e da orquestra que se fazem ouvir sem poderem ser vistos pelos fiéis comuns) necessitam ser a imagem cúmplice de uma fidelidade mais solene: estão ali porque devem estar, como os irmãos do Santíssimo, ou porque por direito foram alçadas ao redor do “Santíssimo”. Mas estão ali também porque sabem,

presumivelmente mais do que os outros, os comportamentos dos rituais. São os que devem responder de perto às falas do vigário; fora os do coral, são os que devem saber cantar melhor os cânticos antigos e novos de cada passagem dos cultos: mais do que os outros, são os que se comportam com os sinais mais adequados do respeito e da devoção, tudo o que se espera de quem pode estar “ali”.

Uma suposta mulher religiosa que no cumprimento de uma promessa tenha viajado descalça o percurso de uma procissão ou tenha carregado o andor de um santo por um momento não deveria obrigatoriamente estar à volta do altar, a não ser que sua promessa inclua isto, o que não é comum. Ela se deixará ficar em um dos bancos coletivos da nave central, poderá “assistir à missa” com uma vela acesa nas mãos, e é provável que viva a cerimônia com uma emoção maior do que os outros, a começar pelo próprio sacerdote e os “irmãos”. Afinal, tal como o imperador do Divino que deixamos entre lágrimas algumas páginas atrás, ela associa aos ritos católicos coletivos da crença religiosa em Pirenópolis uma razão sua, um investimento individual que qualifica o próprio significado do rito vivido e o sobrecarrega de um outro sentido. Algo que no caso específico do “promesseiro” em geral traduz-se como uma demonstração pública de maior “sentimento” durante a procissão, a novena ou a missa, e como um visível alívio, cumprido o voto. Não nos esqueçamos de que “fazer promessa” é um costume católico ainda muito comum em regiões do País como Pirenópolis, e que muitas pessoas passam boa parte de seus dias a cada ano envolvidas com promessas feitas à espera de que o “pedido” se cumpra, com promessas devidas por pagar e com promessas pagas.

É dessa demonstração de maior respeito para com as “coisas de Deus” e de melhor saber das condutas rituais que os outros presentes estão diferencialmente dispensados. Pois os que escolheram estar à volta do olhar de Deus e o do vigário são os que mais devem controlar a expressão de emoções individuais e os que devem mostrar mais ao padre e a todos a norma de como deve ser o respeito devido. Estar ali obriga ao gesto social da devoção canônica, mas não ao gesto pessoal de seu exagero. A distância do altar cria a individualidade, isto é, torna possível o viver a missa, por exemplo, como uma realização de uma maneira pessoal de devoção. São comuns as mulheres com terços que desfiam entre as mãos durante a missa, ou durante uma cerimônia como o “lava-pés”, ou o erguimento solene da cruz na Quinta-feira Santa. Espalhadas pela nave ou pelos corredores ao lado, muitas pessoas apenas “assistem à missa”. Testemunham com suas presenças o que está acontecendo, sem se envolverem a não ser em momentos em que a conduta de todos é mais do que conhecida, como: “fazer o Nome-do-Pai” no começo da missa, pôr-se de joelhos na consagração, rezar o Pai-Nosso em seu momento, fazer de novo o “Nome-do-Pai” ao final, na “bênção do padre”. É impensável uma conduta distanciada à volta do altar, e o padre chamará com energia a atenção das raras crianças que falem por perto. Mas algumas conversas entre boca e ouvido são toleradas nos corredores laterais ou nos bancos do fundo, do mesmo modo como no alto do “coro” os artistas conversam entre eles sobre o desempenho da última música, a não ser nos momentos mais “sagrados” da cerimônia. Há namoros na igreja; sempre houve.

Há sem dúvida uma obrigação geral de deferência, pelo menos de respeito e, se possível, de participação motivada e devota. Mas não de uma atuação contrita, a não ser quando razões ou estilos excepcionalmente individuais o exijam. O próprio vigário, quando nas homilias “clama” por mais devoção, fé, respeito e arrependimento, não faz dele mesmo a figura de tais orientações da conduta fiel. Fora dos momentos de ritos de igreja ou rua, mesmo na quinta e na sexta-feira, ele estará normalmente afável e alegre: não carrega nos ombros e não desenha no rosto os sinais do que se diz e ele diz naqueles dias. Se ele “carrega sua cruz” não a dá a ver. Tais sentimentos pessoais traduzidos

como semiologia religiosa significam: mais presença nos cultos “de preceito” durante a Semana Santa; a confissão e a comunhão pascal (ele insistirá nisso como “um dever do cristão”), uma maior obediência aos “mandamentos de Deus e da Igreja” e (por que não?) uma maior disposição para com o “dízimo”. Que todos os outros sigam o seu exemplo e sejam como ele: pontual nos cultos, sabedor da seqüência dos ritos, participante e reverente, sem ser em momento algum extremado.

Há um paralelo oportuno aqui. Tudo o que descrevi nesta breve geografia social da experiência religiosa durante solenidades ao mesmo tempo excepcionais e de rotina é completamente diverso de como as pessoas devem ser e devem representar devocionalmente a “força da fé” entre os membros dos pequenos grupos católicos de Renovação Carismática.

Entre os “carismáticos”, dos quais todas as frentes e linhas da Igreja progressista desconfiam, o que se reverte é a própria lógica e a encenação individual e coletiva do sentir, como evidência pessoal e pública de uma fé duplamente assumida: antes como um cristão católico, agora também como um católico-carismático. Em primeiro lugar, todos devem participar, principalmente nas pequenas reuniões de culto restritas ao grupo. Uma disposição diferencial de presença, como a missa de terça-feira, é impossível, pois o mais difícil é estar “ali” no culto carismático, apresentar-se como um de seus integrantes assumidos — novatos ou veteranos — e deixar-se excluir do calor do clima e das regras de envolvimento pessoal rigidamente efetivo, O código carismático não obriga o fiel à deferência respeitosa e não autoriza a contrição ou o júbilo exagerado como uma apenas tolerada exceção. Ao contrário, estar presente significa, tal como entre os vários grupos de pentecostais evangélicos de Pirenópolis, comover-se e dar a deus e aos homens a dramaticidade pessoal de tal comoção sagrada: orar em altas vozes, abraçar-se com outros irmãos de fé, falar “em línguas”, chorar abundantemente, dar gritos eufóricos de “aleluia”! Isto figura o estar individualmente possuído pelo próprio Espírito Santo, aquele que os católicos não-carismáticos (a começar pelo vigário e pelo imperador do Divino) festejarão 40 dias depois com grandes pompas e gastos mas sem o mesmo fervor dramatizado, isto é, sem o reconhecimento de que a própria divindade festejada os possui individual, como um dom e carismático. Pois estar “invadido pelo poder do Espírito Santo” significa justamente exagerar o que nos outros são os sinais “comuns” da devoção católica tradicional. E é essa falta de fé traduzida como ausência dos sinais de seus efeitos o que traça a fronteira entre possuir ou não na própria pessoa o carisma, realizado interior e dramaticamente como a evidência posse cognitiva e sentimental de um ou de alguns dos “nove dons Espírito Santo”.

Um código de excessos justapõe à quietude cerimonial da vida religiosa não-carismática os sinais de uma fórmula de devoção individual tornada costume na comunidade sectária. Fórmula de fé e ato onde a rotina de preceitos conhecidos como os da “Igreja de Pirenópolis” ou onde sua leitura como gestos pessoais e comunitários de “compromisso com o povo”, como na Igreja da diocese de Goiás, devem ser revividos carregados justamente de gestos exagerados de afeição sagrada. A individualidade que na Igreja comum permite afastamento das regras da devoção e mesmo do respeito, na medida em que o corpo do sujeito presente está intencionalmente menos próximo dos locais mais sagrados, tem entre os carismáticos um sentido oposto. Mesmo que existam regras revisitadas de coletivização dos cultos regidos pelo afeto e seu drama visível, é dado a cada um, em momentos devidos, o poder de externar a fé e a esperança, o sentimento da devoção e da caridade divina, de acordo com intensidades muito individuais e teatralização disso tudo na pessoa do fiel e em sua equipe de fé. Mais do

que tudo, ter fé é não ser costumeiramente respeitoso, mas fervorosamente exagerado: dar-se justo ao exagero, demonstrar “fé e poder”, ser dramaticamente eloqüente, “dar o testemunho”.

Retornemos a nossa terça-feira, mas não aqui na igreja matriz. Nada se faz hoje e nada se fará mesmo nos dias mais “quentes” dos ritos de espera, morte e ressurreição que traduza como gestualidade coletiva o vagar do fiel desde a dor e o sofrimento empático até o júbilo festivo que ateste, na alegria do corpo e do rosto, o sentimento de que a pessoa do fiel crê que um deus-homem-morto voltou da morte e trouxe a “todos os justos” a certeza da “salvação eterna” da alma individual “junto a Deus” e mais a realização plena disso como “ressurreição da carne”, dogma da fé católica que o vigário acrescentará a seus sermões de sábado em diante.

Não há uma variação visível de sentimentos de/entre todos, a não ser nos limites quase sutis em que isso possa ser culturalmente vivido durante algumas cerimônias. As pessoas estarão mais contidas até a meia-noite de sábado; serão devolvidas dos ritos de dor e amargura para os de glória e euforia daí em diante quando os que observaram com mais rigor os preceitos da Quaresma voltarão à mesa farta, seu imediato prêmio terreno, e a uma soltura maior dos corpos. Veremos adiante que a meia-noite da “ressurreição” marca mais uma desejada volta legítima aos prazeres do profano do que uma passagem religiosa de um estado de emoções a outro. Será então quando o brado ritual de “Aleluia!” estabelecerá de novo, num ano mais, a ruptura simbólica entre a dor e a euforia, entre a morte e a vida, entre o silêncio e a palavra, o desespero e a esperança, a religião vivida à volta do sacerdote e reverente, solene e contida, e seu limite deliciosamente profano entre a “malhação do Judas” e o começo dos “festejos do Divino”. Saídos da solenidade que não obriga o fiel e as outras “pessoas de respeito” a mais do que uma deferência gestual, todos serão — devotos ou não — festivamente transportados da seqüência de solenidades, no dizer de Roberto da Matta, à mascarada sagrada (o Judas, a Folia do Divino) ou profana (os bailes e derivados “depois do aleluia”). O melhor nome dessa passagem é alívio, e é por ele que todos esperam desde essa terça e da quarta-feira que antecipa de imediato os dois dias da grande dor.

7. Quinta-feira Santa: o sofrimento — Narciso

Solenidade significa em Pirenópolis a cerimônia com que se celebra algo, em geral uma memória. Hoje significa a lembrança da “Santa Ceia”, da “última ceia”, com o “lava-pés” e, depois, com a “instituição da Eucaristia”. O preceito-e-sentimento lembrados agora são a humildade e seu equivalente: o despojamento. Em Goiás Velha D. Tomás Balduíno estará sem dúvida associando isto e o que mais isto lembre ao compromisso: “compromisso com o outro”, “compromisso com o povo”. Mas em Pirenópolis em uma festiva Igreja pré-conciliar cujos leigos da linha de frente estão apegados à guarda das tradições locais, solenidade significa também e essencialmente ser solene, fazer solenemente. Isto é igual a proceder de modo cerimonialmente demorado, lento e, dentro do possível, regido por princípios do tipo: “era assim que faziam os nossos antepassados”. Quase tudo o que agora já não se faz mais “como antes” é avaliado como uma perigosa desqualificação que empobrece tanto a cultura regida por uma fração da pequena elite local quanto o sentimento de que assim deve proceder o “bom católico”. Fazer tudo com o requinte adequado e cumprir a seqüência

exata da tradição, ainda que à falta de folhetos de uma cerimônia mais apropriada ao momento, coral e orquestra entoem uma “Missa de Natal” em plena Quinta-feira Santa. Levar a tudo o toque de um esplendor possível, mesmo que com roupas, alfaias e objetos de culto desbotados e envelhecidos. Sem cair no exercício fácil de “representação dramática”, como já se faz “e qualquer periferia” da cidade grande, solenizar dramaticamente todos os gestos da procissão e das cerimônias de dentro da Igreja, faladas em português, cantadas em latim, impregnadas do odor do incenso e da luz de muitas velas quando elas voltam a ser acesas.

A notável violinista da pequena orquestra, também soprano do coral, me chama a um canto no alto do lugar do coro da igreja de Nossa Senhora do Rosário logo após a meia missa de hoje e antes do início do ritual da “adoração”. Ela me pede que apague da fita que acabei de gravar o que foi cantado enquanto os artistas devotos entoavam e tocavam, acompanhando a procissão interna que faz a volta pelos corredores ao redor da nave.

“Foi horrível! Meu Deus, um horror! em todos esses anos eu nunca vi isso acontecer aqui em Pirenópolis. Você apague, por favor, não leve esse horror com você. Não Viu? Os tenores [homens e mulheres] perderam o tom. Eles saíram do tom e foram assim até o fim. Um horror! Eu parei de cantar de vergonha. Uma vergonha!”

Eu era testemunha de uma muda tensão entre os tenores e os outros grupos de cantores, algo que explodiu em protestos do maestro em uma procissão anterior e que chegou ao limite do suportável na cerimônia solene da Quinta-feira Santa. Horas antes, o fabriqueiro da matriz, um advogado querido e conhecido e que também é reconhecido como o grande mestre de cerimônias de tudo o que se faz nas ruas e dentro das igrejas, conhecendo como ninguém em Pirenópolis todos os detalhes da seqüência de rituais, reclamava comigo da queda de qualidade do trabalho artístico da pequena orquestra, da Banda Phoenix e do coral. Porque aqui, como em outras cidades, os mais velhos e mais qualificados morreram, outros foram de Pirenópolis para cidades maiores e voltam por ocasião das festas, mas sem tempo para ensaios; outros, os mais jovens, “perderam o interesse por essas coisas antigas”. A própria banda tem cada vez mais jovens aprendizes e cada vez menos especialistas em seu instrumento.

Mas, entre as observações entristecidas do fabriqueiro e o desabafo da violinista-soprano, o padre usara quase todo o tempo da prédica principal do dia para falar sobre “o significado da cerimônia do lava-pés”. Não apenas como um “símbolo de humildade”, mas também como “uma mensagem de serviço” para a “vida de todo o cristão”. Ele acabara de lavar e beijar os pés de doze meninos vestidos de apóstolos, com o nome de cada um escrito no manto branco. Esta é uma das cenas representadas, a partir do texto dos evangelhos, em Pirenópolis sem ser dramatizada. Mas onde está a diferença? Na redução a um simplificador de uma acreditada história real cujos detalhes ficaram escritos. Assim, o padre se envolve de toalha branca, toma nas mãos um jarro, lava e beija os pés dos apóstolos, um após o outro, até o fim. O conhecido diálogo de Pedro com Cristo não é repetido, ele faz parte do drama que se lê no Evangelho do dia, não do rito que o reveste de um sentido cerimonial: “Tu não me lavarás os pés, Senhor”/”Se eu não te lavar os pés não terás parte comigo”! “Então lava-me não apenas os pés mas as mãos e a cabeça” etc.

A disposição de alguns locais e objetos delineia bem essa linha tênue entre a cerimônia ritual e o drama representado. O altar dos outros dias é substituído por uma mesa redonda (Rei Artur ou Jesus Cristo?) onde se arma uma cena de ceia judaica. Esta ceia não é apresentada por atores, mas serve à missa que naquele momento é a memória

da “instituição da Eucaristia”. A missa soleníssima que se entremeia com o “lava-pés” e é interrompida com a consagração do pão e do vinho começara com o cortejo. interno cujos desafinos levaram a soprano-violinista a seu horror sagrado. O cortejo conduz sob um pálio o sacerdote precedido e seguido do corpo de irmãos do Santíssimo e dos “doze apóstolos”. A mesa-altar é demoradamente incensada no momento em que coro e orquestra entoam um Kirie, cuja grandeza em nada acentua os símbolos de humildade que se representou e as palavras ditas sobre tal sentimento cristão e seus vizinhos.

Ora, isso pode parecer uma banalidade, mas não é. Lembrei-me alhures de que essas cerimônias e a não-refreada pompa com que os centros de tradições da Igreja católica querem significar um modo cerimonialmente honroso e tradicional de se viver com solenidade a experiência religiosa da fé. Segundo seus guardiões, tudo deve ser assim por ser isso uma reserva cultural primorosa de ricas tradições antigas, que apenas por atos de profanação dos ritos sagrados são modernizadas. Por ser também, vimos, a repetição anual de pormenores e do todo de uma “mostra” peculiar e terrivelmente ameaçada de desaparecimento de “nossa cultura”, no que se crê em Pirenópolis que ela tem mais autêntico (a palavra possui conotações muito enfáticas na cidade). Por isso mesmo, revesti-la ano após ano da mesma antiga pompa cerimonial recupera o verdadeiro sentido da experiência coletiva da dramaticidade da fé católica, ainda que como “mensagem” — no sentido mais progressista da palavra — tudo aquilo possa estar sendo cada vez menos compreendido pela própria assistência local mais jovem e menos afeita aos significados e aos cultos do passado revestidos de sentido religioso.

De uma maneira diferente de como temos visto acontecer em Goiás com os que seguem “a linha da Igreja popular”, ali onde a idéia de despojamento induz a uma releitura comprometida da “História Sagrada” e ao conseqüente abandono pastoral e litúrgico dos símbolos e sinais da matéria social do poder, em Pirenópolis a humildade e o despojamento não contradizem a pompa e a solenidade enfática com que tudo é feito e vivido. E regido mais pelo envolvimento com a arte do que com uma piedade despojada. Isso porque eles valem como intenções do sujeito e não como a ritualização de si mesmos na cultura. São virtudes “do coração” que importa buscar e possuir, sem que isso induza a transformações sociais e políticas na vida entre as pessoas e mesmo nas disposições de “testemunho” (palavra-chave na diocese de Goiás) da comunidade religiosa e de seus fracionamentos.

Desnudados os altares durante a adoração da pessoa de Cristo, tem início a adoração do Santíssimo Sacramento, exposto pelo padre e velado durante toda a tarde e durante a noite de quinta para sexta até as três horas da tarde do dia em que se festeja a “Paixão de Cristo”.

Não acredito que os desejos de culto a uma pompa tradicional que transforma em solenidade para ser vista e ouvida quase tudo o que é celebrado na Semana Santa em Pirenópolis tal como eles são vividos e muito defendidos pelos responsáveis imediatos dos “festejos” e também pelos artistas locais do coro e da banda sejam iguais aos dos outros católicos do lugar. Adianto-me por um momento ao dia da “Paixão”, para aproximar a fúria da violinista-soprano para com o desafino inesperado dos tenores na procissão interna da igreja matriz, ao sofrimento da moça que fará amanhã na Procissão do Enterro o papel de “Verônica”. Uma vez a cada ano uma moça da cidade é escolhida para ser a “Verônica”. Ela deve ser reconhecidamente uma “moça virgem”, e um costume antigo maldosamente insinua que se por acaso chover durante a Procissão do Enterro e, pior, enquanto ela estiver entoando uma das vezes do “canto da Verônica”, sua virgindade poderá ser posta em questão. A “Verônica” é uma das personagens principais de toda a Semana Santa e mais do que outros seu desempenho é realizado

debaixo de muita tensão. Não foi diferente em 1988. A moça segue o cortejo com o “Senhor Morto” ao longo das tuas da cidade. Acompanha um auxiliar com um banquinho. Ela conduz nas mãos um pano enrolado com a figura do morto. Tal como nos motetos de procissões anteriores, de tempos em tempos todos param. A “Verônica” sobe então ao palco do banquinho e entoa seu canto, à medida que lentamente desenrola o pano, de tal sorte que as notas finais coincidam com o pano todo aberto. Desde a primeira vez na noite a moça estava visivelmente preocupada. A voz lhe tremia e havia instantes em que parecia que ela ia interromper o canto solitário. “Eu não vou poder continuar”, eu a ouvi segredando ao amigo acompanhante de todo o percurso. “Não está saindo direito, e eu sei que não vou agüentar”. Mas agüentou.

Porque, se não é preciso que tudo seja religiosamente contrito, santo se possível, é indispensável que tudo seja solenemente perfeito. Os olhos de Deus são humanos o bastante para perdoar qualquer falha que nesta antiga boca de sertão se cometa em seu louvor. O vigário está mais preocupado com seu próprio desempenho e com o respeito dos circunstantes do que com a qualidade artística do trabalho dos especialistas de canto e de instrumentos. Mas entre eles e as pessoas “que entendem” há uma atenção rigorosamente concentrada no avaliar o rigor do acerto e a qualidade da atuação de todos e de cada um a cada momento. Porque se sabe que qualquer que seja o sentido do momento cerimonial do que se vive — dor, arrependimento, abandono, despojamento, júbilo, glória — é indispensável que se faça como um espetáculo perfeito. Isto é a evidência da qualidade do que se chama em Pirenópolis: tradição. Pois é com um incontido desejo de Narciso que se festeja a “Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo” e o que descrevo a seguir, ao falar da sexta-feira é o melhor exemplo.

8. Sexta-feira Maior: cortejar a morte — desalento e pompa

Muita coisa pensada e feita pelos católicos de Pirenópolis serve à crítica de seus rivais, os irmãos evangélicos. Mas uma os horroriza ao extremo: eles colocam em um caixão com sedas e flores a imagem de um Jesus Cristo morto e passeiam com ela pelas ruas da cidade.

Entre católicos e protestantes a questão do “culto das imagens” ainda não morreu. Mas, se há divergências a respeito do uso de imagens de santos, seres humanos que sequer são reconhecidos pelos evangélicos da cidade, elas aumentam muito quando o sujeito representado é o próprio “Deus Encarnado”. De acordo com as tradições católicas de toda a região, nada mais natural do que tornar visíveis, palpáveis, dadas ao olhar e ao tato as representações das pessoas imóveis de Deus e seus santos, assim como o drama de frações de suas vidas. Se o vigário insiste em que a pessoa venerável de Jesus Cristo está na Hóstia Santa, no Santíssimo Sacramento ao qual se dedicaram longas horas de “adoração”, ele pode ser também lembrado em suas imagens. Lidar cerimonialmente com elas é uma maneira de trazê-lo visível ao coração dos humanos. É uma maneira também de fazê-lo sentir que é amado ali de uma maneira efusivamente particular.

Ninguém espera milagre algum nesses dias, é preciso insistir. Eles não são para isto, como são os de julho, na Romaria do Divino Pai Eterno em Trindade. Mesmo o pagamento de promessas não é freqüente durante procissões, cortejos e cerimônias internas da Semana Santa. Quando perguntei a algumas pessoas por que elas beijavam o

“madeiro da cruz” ou então “os pés do Senhor Morto”, as respostas variavam muito pouco: para pedir proteção, para adorar a Jesus Cristo, para cumprir com um preceito do devoto. A pessoa de Cristo que vimos escondida entre panos na descida de uma igreja a outra no Sábado e depois viajando ao encontro de Maria Santíssima e ainda ausente como imagem, sendo honrado com ramos dobrados e erguido na cruz dentro da matriz e dado, no caixão, morto, à “adoração dos fiéis” reveste-se de uma seqüência de situações que refazem momentos da história de seu “drama” (“Drama da Paixão” é o nome usado com freqüência) ao mesmo tempo que também facultam ao fiel o vir estar nestes dias mais próximos “de Jesus Cristo” do que em outros: incorporando-se ao drama, revivendo-o como um também personagem. Escolhendo publicamente o lado do bem, como se simbólica e teatralmente estivesse ali; louvando-o com ramos, apoiando-o na agonia da espera da traição e da entrega, partilhando com ele o suplício da cruz, levando-o pelas ruas ao lugar do enterro, explodindo de alegria diante de sua volta “triunfal” do “entre os mortos”. Apenas, vimos, tudo isto é vivido aqui como uma cerimônia grandiosa que sublinha o sentimento cristão com a arte que em tudo o envolve e que convoca os fiéis católicos, como assistentes ou participantes laterais, não só a virem ver, como poderia ser o caso do turista, mas a se verem a si próprios fazendo a sua parte na celebração litúrgica do drama.

Algumas pequenas crenças persistentes no limite entre a história sagrada e a brincadeira profana dão bem a mostra dessa maneira quase mágica de lidar com os acontecimentos representados durante a Semana Santa. Entre camponeses de Goiás, o dia da Sexta-feira da Paixão de Cristo é único entre todos os dias do ano. Nada se faz que lembre o trabalho, algumas pessoas jejuam ao extremo, é um dia de orações e de uma lembrança supostamente coberta de dor. É o dia – e não os três dias dos Evangelhos – em que Jesus Cristo está morto (horror para os protestantes, para quem ele esteve e está sempre vivo e misericordiosamente ativo e glorioso, devendo ser lembrado assim e somente assim). Logo, se deus morreu, na Sexta-feira não há “juiz no mundo” e por isso alguns meninos e rapazes do interior aproveitam para fazer estripulias, mais e com menor culpa do que em outros dias.

A cruz com a imagem em tamanho natural é erguida dentro da igreja. Há um local no chão a pouco mais de duzentos anos reservado para isto. Antes o vigário comanda uma Via-Sacra dentro da igreja matriz. Um pequeno cortejo viaja de um a outro dos 14 quadros que refazem geograficamente a história cuja memória se reconta nestes dias. Em Pirenópolis, não é tanto a Via-Sacra o que se soleniza, como acontece em outras cidades antigas, como Congonhas, em Minas Gerais, onde o rito da síntese do Drama da Paixão é demoradamente feito nas ruas. Aqui é mais o momento do erguimento e da adoração da cruz. É ele quem atesta a todos o ato da morte: Jesus Cristo “traído”, “julgado”, “condenado”, “ultrajado”, “torturado” está agora morto, e essa longa passagem do Evangelho é lida de maneira teatralizada, a várias vozes de atores do lugar.

Cumprindo os ritos da evidência da morte, o “Senhor Morto” (uma das várias figuras santificadas de Jesus Cristo, não esqueçamos, como tal, um tipo peculiar de veneração) é dado a uma forma estranha de adoração. Estranha porquanto naquele momento é mais a própria cruz e o que ela representa como instrumento terreno de suplício, revestida de ser símbolo divino de salvação do homem, aquilo que se adora. O próprio programa convida a uma “adoração da Cruz”, do mesmo modo como ontem convocava pessoas e confrarias à “Adoração do Santíssimo”. Os fiéis fazem uma longa fila dupla e chegam para beijar o “madeiro da cruz”, disponível à visitação devota até o começo da noite, quando, após a oferta de comunhão aos fiéis, a cruz é descida de seu

lugar. É então que o corpo de madeira móvel de Cristo é retirado dela e colocado no caixão.

Um curioso jogo de relações e inversões de papéis simbólicos pode ser descrito aqui. No “drama” representando “A Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo” a figura histórica dos maus é afastada. Como em Pirenópolis não se faz o teatro da história mas o drama de sua memória; como, portanto, não se representa a própria cena da Santa Ceia como o jogo completo nas personagens e a traição de Judas; como não se teatraliza a prisão de Cristo (momento simbolicamente central na Semana Santa da Cidade de Goiás, com a “Procissão dos Farricocos”, ponto alto do programa turístico) e seu julgamento; como também sua “morte infame” não é dada como “espetáculo vivo” mas apenas relida no rito da Via-Sacra e no erguimento da cruz dentro da igreja matriz, não há atores de fato mas sim personagens que se alternam entre reproduzir instantes abreviados dos acontecimentos, como no lava-pés, e metaforizar outras passagens, como a leitura evangélica dos grandes momentos e sua representação com símbolos e situações rituais. Assim, não havendo o jogo de todos os atores e o papel em que se envolveram bons (Cristo, Maria, Madalena, João Evangelista), liminares (Pedro, o “Bom Ladrão”) e maus (os sacerdotes judeus, Judas, Pilatos, o “Mau Ladrão”, os guardas), os segundos e os últimos são referidos em leituras mas retirados de cena como personagens. Aparecem como imagens os principais: Jesus Cristo e Maria sob a forma de objetos santificados (a “Hóstia Santa” e a “Santa Cruz”); ou como atores que por um momento representam (o vigário como Cristo, e os rapazes como apóstolos, no lava-pés, a “Verônica”).

É exatamente a Procissão do Enterro o momento que marca o desaparecimento simbólico dos maus. Consumado o drama, a memória deles se retira de cena, à exceção de um: Judas, que será profana e festivamente “malhado” no domingo. Ficam os bons e é deles a procissão inteira do Enterro. A morte sai a passear pelas ruas de Pirenópolis. Agora, sim, representa-se um enterro não como se supõe que teria sido no dia da morte de Jesus Cristo mas como em parte se faz segundo as normas funerárias da cultura goiana. Houve na igreja o velório do morto, dado de novo à adoração. Para muitas pessoas, adorar o Senhor Morto e beijar com contrição seus pés de madeira é o momento supremo de confissão pública de fé católica. Agora Jesus transita dentro de um caixão com flores, sedas e arminhos cuidadosamente adornado, tão cheio de sinais de luxo e riqueza quanto seria certo esperar o oposto – a crer nos evangelhos – quando da morte real de Jesus Cristo. Conduzido do alto de seu caixão como em um andor por quatro irmãos do Santíssimo Sacramento, Jesus faz um último desfile pelas mesmas ruas por onde antes passou a Procissão do Encontro. Estranho que, tão exposto, nas ruas e dentro da igreja matriz, como sujeito e símbolo paradigmático do sofrimento, a figura humana de Cristo interrompe aqui sua presença em cortejos. A partir de sábado cessam as procissões e não se dá ao “Rei da Glória”, retornado da morte, lugar algum em qualquer cortejo. Eles retornarão durante a Festa do Divino Espírito Santo, quando alegre e triunfalmente a figura prateada da “Pombinha do Divino” tomará o lugar do Nazareno.

Uma única outra imagem acompanha a Procissão do Enterro: a de Nossa Senhora das Dores. A procissão é muito maior do que as outras e mais do que todas divide os presentes em um núcleo de personagens-atores, dos quais a mais importe é a moça “Verônica”, que deixamos entre cantos e desesperos algumas páginas atrás, um acompanhamento aumentado de fiéis participantes e pequena multidão de visitantes e outros curiosos, estes mais postados ao longo das calçadas do que dentro do cortejo do enterro. Mesmo entre esses últimos, há agora uma espécie de clima de maior respeito.

Tudo atinge nesta noite um ponto de máxima solenização. Trata-se da morte agora. E na pessoa de um deus deitado em um caixão é ela quem se dá a ver aos olhos temerosos dos humanos.

Já que os sinais da morte não podem ser escondidos, nem a dos homens, nem a de um deus, eles devem ser revestidos de bastante beleza. Esta é a noite das melhores roupas, das vestes de gala, dos envolvimentos do corpo com o que há de melhor. Alguns “anjinhos” com vestidos de seda e longas asas brancas estão presentes hoje, e estariam na procissão gloriosa de amanhã, não houvesse chovido tanto logo depois do “Aleluia”. Uma vez mais os cantores e os instrumentos se esmeram. É fácil notar que cantam com muito mais apuro do que nos outros dias. O momento é mais solene, é a assistência ao espetáculo muito maior. Bem compreensível o desespero de “Verônica”. Ela ameaça falhar no momento culminante e, diferente de todos, canta metida em uma desolada solidão.

Tudo convergiu para este momento de consumação da fatalidade, para que ele de supremo desalento culmine na “glória única da ressurreição”. Eis porque de certa maneira a morte e seu culto humano são aqui um engodo: sabe-se que neste caso única ela vale só por três dias, sintetizados em menos de dois: parte da Sexta-feira da Paixão e todo o Sábado. As cerimônias de hoje em tudo lembram com horror o crime dos homens contra eles mesmos na morte abjeta de um deus humanizado. Mas tudo se dá de tal maneira, que o horror dos fatos transubstancia-se, como o vinho no sangue de Cristo, em uma seqüência solene de ritos regidos pela grandiosidade. A morte já veio vencida.

A leitura de longa passagem profética de Isaías diante da cruz sugere, antes da morte, que seria pouco, no caso, o nível mais degradado da objeção. Por um momento, o vigário lê a passagem em que o “dado-para-sofrer” se apresenta como um ser rejeitado, abjeto, infrahumano, humilhado até a morte... “e morte de cruz”.

Reitera-se a morte, sua lenta espera. É preciso que seu instante supremos seja solenemente antecedido da memória solenizada das despedidas (a Santa Ceia, o Encontro), da prisão e do julgamento, do cerimonial das torturas (um Deus despido, escarrado, esbofeteado) da caminhada humilhante ao Calvário, da crucificação e, então, da lenta morte que os atores do texto relêem no Evangelho.

Uma vez mais, e mais ainda agora, tudo o que acontece toca diferencialmente as pessoas, e às vezes, tal como na própria vida, uma simples pequena diferença de presença ou distanciamento modifica o teor do direito ou do dever de sentir isto ou aquilo. Durante a longa leitura da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, os irmãos do Santíssimo, à volta da cena – da cruz plantada, portanto – precisam ser graves e recobrem a tristeza de uma imóvel solenidade nos gestos do corpo. Mas sete metros à direita, nos bancos da sacristia, onde esperam sua hora de sair na procissão, outros irmãos do Santíssimo conversam e riem. Do mesmo modo, as pessoas mais próximas parecem viver com bastante intensidade o sentido da leitura, mais do que aquelas que, distanciadas, vieram para ver os que vêm e contemplas o espetáculo que representam. Quando a pequena “Verônica” completar seu último canto, abraçará com alívio o amigo acompanhante: um deus está morto, mas ela conseguiu “chegar até o fim” e, mesmo decepcionada com a qualidade de seu desempenho (“eu sei que eu podia fazer muito melhor, eu sei”), está alegre, exultante mesmo.

Aos fiéis devotos que estão ali movidos pelos desejo da fé as cerimônias parecem tocar fundo. É a eles que o vigário não precisa pedir respeito porque ei-los além da deferência: são uma fração pequena mas intensamente contrita de tudo o que acontece. Sem serem em nada atores importantes e sendo vários deles pessoas pobres,

vindas dos patrimônios, “da roça”, pode-se dizer que são os que vivem o drama. Sem serem, portanto, atores oficiais, sugerem ser as personagens mais reais do que de fato se pretende celebrar ali.

Aos organizadores dos eventos, guardas locais das “tradições de Pirenópolis” e mais os atores e artistas devotos, o que importa é sabermos a qualidade do desempenho. Mais do que no júbilo solitário de “Verônica”, a Procissão do Enterro será festejada com alegria se tudo sair bem, isto é, se o espetáculo da morte, posto com grandeza nas ruas, houver sido perfeito. Entre eles, aqueles que com o poder litúrgico de que são investidos fazem a festa do drama, uma inocultável vocação de Narciso submete todos os sentimentos que a Paixão sugere. “Isto fizemos”, eles se parecem dizer e aos que os vieram ver, pois no fundo é disso que se trata. “Somos assim!” Eis o que conta, afinal: a preocupação do maestro com o coro e a banda, a das mães dos anjinhos com o desempenho dos filhos e dos pais da moça “Verônica” com o canto da filha, a do fabriqueiro com a ordem de todos e a solene pompa de tudo. Um homem-deus foi escarnecido, morto e sepultado, mas o milagre é que isto é dito lembrado com a enorme euforia da beleza.

9. Sábado Santo: a linguagem do limiar

Na tarde de Sexta e na manhã do Sábado, um maestro nascido em Pirenópolis, professor de música na Universidade Federal de Goiás, reuniu em sua casa, ao redor do piano, a maior parte dos componentes do coro e mais alguns dos melhores cantores desta cidade goiana de devotos, músicos e boêmios. Acontece que oficialmente não se havia previsto nada de especial para a missa solene da Ressurreição, e ela seria acompanhada apenas pelas músicas costumeiras de qualquer Domingo. Em português, suprema profanação às regras do lugar. Por isso, chefiados por ele, alguns familiares e amigos ensaiaram uma missa em latim. Na noite da grande missa em que o vigário jura que um deus morto voltou da morte com a promessa da vida a todos, o coro acrescido dos convidados de improviso entoou a missa ensaiada. Sem a orquestra, apenas com o pequeno órgão tocado pelo maestro, sem todos os integrantes oficiais do coro, o grupo de artistas fez o que pôde. Mas logo no começo da missa uma tempestade inesperada distanciou ainda mais a voz dos cantores dos ouvidos dos fiéis, e apenas os que estavam no lugar do coro ou nas partes baixas próximas da igreja puderam ouvir o resultado artisticamente excelente do trabalho. A tempestade impediu também a saída da Procissão de Aleluia, e os ritos do júbilo ficaram pela metade neste ano da Graça de 1988.

A Quinta-feira Santa e a Sexta-feira da Paixão são dois dias bastante definidos. Assim também o Domingo da Ressurreição, vivido mais como o “Domingo da Páscoa”; o retorno de todos à família, à comilança e ao profano sem pecados. Mas o “Sábado de Aleluia”, hoje o “Sábado Santo”, acabou gerando uma ambigüidade difícil de lidar entre as determinações da Igreja Católica e os costumes da cultura local. Até algum tempo atrás, vencida a viagem penitencial da Quaresma e vividos os dias de dor e luto da “paixão e morte”, já a manhã de Sábado devolvia todos à alegria “do Aleluia!”. A própria expressão antiga: “romper o Aleluia”, como um grito de jubilosa volta aos excessos permitidos, contidos da Quaresma à Sexta-feira, traduzia bem essa volta à euforia generosa da vida e de sua celebração. Jesus Cristo estava outra vez tão vivo

quanto qualquer um, e os ritos da Igreja substituíam finalmente as madeiras da matraca pelo toque festivo dos sinos e pela fúria roceira dos rojões que a Festa do Divino irá multiplicar muitas vezes. O Sábado de Aleluia antecedia já, na alegria de todos, o Domingo da Páscoa. E, assim, dois dias de glória, família e euforia, sucediam três dias de luto e pesar.

Depois das mudanças pós-conciliares, o sábado agora é “Santo”, e a Igreja luta para submeter as antigas tradições do lugar. Até mesmo a malhação do Judas foi transferida para a manhã de domingo. Mas há uma diferença fundamental: a Sexta-feira é a memória da morte recém-realizada e aparentemente vencedora. Lembremos que ela começa com o percurso da Via-Sacra, recapitulação na geografia interna da Igreja de toda a história da morte de Jesus Cristo, e termina com a cerimônia de seu enterro público. O Sábado antecede o logro da vida (“Onde está, morte, a tua vitória? Onde o teu aguilhão?”). Os fiéis viveram no Domingo de Ramos o verde das folhas de palmeira; na Quinta-feira Santa, a transformação do vinho e do pão no “sangue e corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo”; adoraram a “Santa Cruz” (um objeto tornado sagrado e que tem seus dias de festa no calendário litúrgico e no popular). Vivem agora o tempo do fogo: do “fogo novo”.

Mestra me lidar com extremos de símbolos com que a vida se refaz física e socialmente, a Igreja repõe hoje não a ordem que a morte provisória de Cristo comprometeu mas a alegria, a possibilidade do profano, o retorno consentido ao direito legítimo dos pequenos prazeres com que em Pirenópolis, como por toda a parte, mesmo o cristão “de preceito” esquece tanto o peso difícil da glória quanto a carga humilhante da dor. Uma vez mais lidamos com o dado de que o sentimento não é sentido, ele é convencionado. Fruto de um contrato entre sócios de significados, ele pode ser qualquer um, qualquer coisa, desde que enunciado dentro do código de preceitos que torne a necessidade uma virtude e o excesso um consentimento, quando vivido no momento certo, de maneira adequada. Não explícito e tornado costume é a ameaça vizinha em nome da qual o vigário e os mais velhos condenam o que fazem nos dias “santos” os turistas de Brasília e Goiânia. Enunciado como o excesso contido depois da devoção realizada, ele transforma em prazer compartido o que sem ele seria apenas a reprodução da necessidade.

Mas, antes de autorizar o retorno do cristão ao prazer, a proposta da Igreja para o Sábado Santo é a renovação. Em muito pouco tempo a morte será vencida na volta viva do deus sepultado. Será possível esquecê-la, sob a condição de que nela o fiel mate a si o “homem velho” e “renasça com o Cristo”. A si mesma a Igreja atribui esse poder regenerador e por isso quase todos os seus ritos desse dia liminar entre a morte e a vida, entre o luto e o branco, entre a dor e a euforia, são dirigidos a simbolizar a idéia de renovação, de renascimento.

Todo o dia de Sábado prepara isto: a Igreja é revestida para que na missa em que à meia-noite se brada o “Aleluia!” deus vença a morte, e o homem novo suja das cinzas do velho. Por isso, é nesse dia que os elementos da natureza usados na cerimônia do Batismo (o nascimento cristão em cada indivíduo) são abençoados: o fogo, a água e o óleo. Terminada essa sucessão de bênçãos feitas no interior da igreja matriz e aceso o fogo da grande vela que ao lado do altar queimará até o Domingo de Pentecostes, o vigário oficia a cerimônia de Renovação do Batismo.

Já há muitos turistas na cidade. As areias dos dois lados do rio estão cheias de barracas. Os mais retardatários chegaram entre a noite de Quinta e a manhã de Sexta. Eles antecipam entre cervejas e roupas de banho o retorno ao prazer. Aos olhos das

pessoas da cidade e da Igreja eles ofendem as tradições do lugar, tanto quanto um clima sagrado que toda a Semana, vimos, esforçou-se por trazer até o clímax desses dois dias de um suposto máximo pesar. Mas os ritos da noite de Sábado aproximam os dois lados. E de suas barracas nas margens do rio das Almas ou esparramados pelos bares os visitantes ouvirão o troar das rouqueiras cujos estrondos à meia-noite anunciam a explosão solene da vida na volta triunfal de Cristo.

De onde viemos? Onde estamos? Para onde vamos? Viemos da Quaresma e dos dias que antecedem o prenúncio da dor na expectativa do que irá acontecer na Sexta e no Sábado; viemos do júbilo efêmero com a memória do momento em que o povo celebra em Jesus Cristo o seu rei; à entrada de Jerusalém. Mas como esse mesmo povo irá depois “entregá-lo”, “traí-lo” e, diante do poder romano, preferir o perdão dado a um criminoso e não “a este justo” (o vigário lembrará isto com ênfase). Eis que somos convocados a nos identificar não só com os autores e atores próximos da “Paixão e Morte” mas com toda a “humanidade pecadora”, em nome de quem tudo o que aqui se rememora aconteceu. Ei-nos entre o arrependimento e o pensar que aqui se vive solenemente como uma deferência respeitosa. Um breve par de dias dá à idéia de morte e a seu símbolo um duplo sentido: ela vence momentaneamente um homem-deus, para depois ser definitivamente vencida por um deus-homem que com isto nos salva, desde que o queiramos, com a vontade da fé e o rigor da conduta cristã. Agora o limiar entre a vitória da morte e da vida sugere não a expectativa ansiosa mas a renovação. Revificado o cristão, ele pode agora renascer “com o Cristo”, e é isto o que o “romper da aleluia” anuncia. Por isso mesmo, tudo na missa desta meia-noite realiza uma completa oposição ao que se viveu até aqui na semana, fora a manhã e a tarde do primeiro Sábado. Sendo os mesmos os ritos e as orações canônicas, algumas cores, os gestos efusivos e as palavras variáveis, invertem-se os sentimentos. Opostos aos motetos, os cantos da missa são jubilosos, e apenas a tempestade impediu a descrição neste relatório de pesquisa de uma procissão, que, tal como a missa, faz no mesmo percurso das duas outras o caminho simbólico de sua negação.

As pessoas se abraçam, estão vivas. Deus também. Viajemos com todos de volta ao profano.

10. Domingo da Ressurreição: retorno à vida – do Cristo renascido ao Divino por

chegar

A Festa do Divino Espírito Santo é de um imperador e de sua corte de auxiliares e homenageados. Todos os anos eles, “irmãos na sorte”, são sorteados em uma cerimônia tocante para os que dela participam, quase no final da festa de mais um ano. Ao imperador e a seus auxiliares falta fazer a festa, da qual o padre vigário participa como sacerdote oficiante. Em nome deles saem as duas folias do Divino Espírito Santo. Uma vagando a cavalo pelos sertões e outra a pé pela cidade. Às duas toca a tarefa de anunciar a festa, distribuir bênçãos antecipadas de casa em casa e arrecadar as prendas, dons de todos os que pagam a festa servidos como comida, objetos de uso cerimonial ou vendidos nos leilões do Divino. Há um programa impresso, e de alguns anos para cá, artistas de Goiânia são convidados a fazê-lo cada vez mais bonito. Como a do Divino, a Semana Santa é uma festa de Igreja, mas, mais do que ela, é uma festividade da Igreja. Quem a convoca e anuncia é o próprio vigário – ele oficia todos os ritos de maior

importância. Festeiro e sacerdote, é ele pessoalmente quem responde por tudo, desde os preparativos remotos. Essas tarefas ele as divide com o fabriqueiro-tesoureiro da equipe, com alguns outros auxiliares voluntários, com os irmãos do Santíssimo mais ativos e com algumas mulheres de sacristia. Não há programas impressos e pregados nas paredes e pelos bares da cidade e de outras de perto, como a Festa do Divino. Mas havia um programa mimeografado com o anúncio de cada dia. Havia também um outro, e eu consegui uma cópia dele, feita em carbono. Melhor do que o impresso, este era um programa detalhado, com a distribuição pormenorizada dos acontecimentos cerimoniais de cada dia e o percurso das procissões. Eu o transcrevi aqui nas primeiras páginas e fiz o índice do que escrevi ao acompanhar cada dia. Quero chamar a atenção para as últimas linhas. A parte oficial, antes de que o vigário a assinasse, previa apenas duas “missas na Matriz”: missas festivas mas comuns, porquanto entende-se em Pirenópolis que a grande e solene Missa da Ressurreição é a da Meia-Noite, saudada este ano com rojões e trovoadas. O complemento à mão do “programa” previa ainda:

1º- saída da Folia do Divino da matriz pelas ruas da cidade;

2º- a queima do Judas;

3º- a chegada da Folia na casa do Imperador, de onde dias depois a sairiam as duas folias para retornarem já nos dias da “semana da Festa do Divino”;

4º- uma reunião na casa do Imperador. Fora até mesmo da parte do programa escrita a mão, estava prevista uma primeira reunião dos “cavaleiros das cavalhadas”.

E, como a Igreja não consegue controlar mais a conduta debochada dos turistas mais jovens nem as iniciativas profanas que não resistem a esperar a meia-noite do Sábado e a euforia da Ressurreição, na porta do Teatro Pireneos (o mais antigo de Goiás) anunciava-se o “Show do Grupo Língua Solta” para o Sábado, dia 2. Também o Sábado estava reservado para o “torneio de futebol” promovido pela prefeitura nas areias da margem direita do Almas. Havia ainda na manhã de Domingo um “festival de catiras”. Assim, com esporte, dança e mascarada, a alegria cristã e o direito ao prazer profano reinvadiam de símbolos e desejos a cidade.

O Domingo de Páscoa (enunciado a mão no programa como “de Aleluia” e não “da Ressurreição”) devolve as pessoas à família. Tal como o 25 de dezembro, este é um dia dedicado à convivência familiar: as crianças ganham seus “ovos de Páscoa”, e uma ceia farta marca, para jejuantes e não jejuantes, o fim dos dias de preceitos de privação do desejo. Mas há um outro sentido a que é preciso voltar.

Ainda que o lembrado seja sempre a figura humana de um sujeito masculino, Jesus Cristo, e os ritos mais importantes sejam dirigidos por homens secundados por coros e corpos de mulheres auxiliares, existe uma certa dominância de sentimentos que as pessoas de Pirenópolis identificam com o feminino: a dor, o pesar, o arrependimento, a privação, a deferência respeitosa, a empatia para com o sofrimento, a expectativa. Sabemos que em Pirenópolis a Semana Santa é sucedida pela maior festa da cidade e, sem dúvida uma das maiores de todo o estado de Goiás. Oposta a essa seqüência de dias de sentimentos associados francamente à mulher, a Festa do Divino é mais do masculino; ela é ostensivamente macha em tudo. Creio que de passagem falei antes sobre isso. Hoje mesmo, a meio caminho entre o fim de uma e o começo de outra, somam as mulheres de novo devolvidas às casas, cozinhas e quintais, e reinam os homens. Fora a missa, são ritos entre homens tudo o que se faz a partir do Domingo: a saída da Folia do Divino (não há mulheres nela a não ser como assistentes distantes), a malhação do Judas (violenta e debochada), o torneio de futebol (esporádico, em outros

anos não há), a reunião dos cavaleiros das cavalhadas e o torneio de catira (em Goiás dançada sempre só por homens e muito exaltadora de uma masculinidade sertaneja).

Eis que o profano se retorna com sentimentos que fazem da euforia o limite de seu próprio excesso. O vigário pede na missa que haja respeito em tudo, pois teme que depois de tantos dias de piedosa “purificação” os homens do lugar imitem os “de fora” e depressa voltem aos desejos e prazeres pelos quais um dia “o justo” morreu. Volta-se ao profano dividindo o dia entre as pequenas festividades familiares da “ceia da Páscoa” (com mais freqüência um almoço, mesmo porque muitos retornam a Goiânia, Brasília e outras cidades antes da noite) e as cerimônias de alegria e deboche. Deboche, brincadeira, solturas do corpo e do espírito, eis a que os homens se convocam, cumprindo com rigor os preceitos do pesar. Se antes bebiam os “de fora”, turistas e visitantes indesejados, mais movidos pelos prazeres do “feriadão” da Semana Santa do que por seus preceitos religiosos de “Semana Santa”, agora bebem todos, e que não falte cachaça entre catireiros, malhadores, cavaleiros e foliões. Os irmãos do Santíssimo guardam por muitos dias as suas opas, brilha ao lado do altar a vela do “fogo novo”, o vigário se retira de cena e a cidade convoca a ela o imperador do Divino. Pelos mesmos pecados que fora de hora os “de fora” eram condenados, agora muitos homens casados e “de respeito” de Pirenópolis são devolvidos sem o senso da culpa, ao prazer da vida.

Eis um dos mais perfeitos segredos da experiência católica, quando ela consegue unir a norma da Igreja com os princípios do jogo entre pesar e prazer, entre virtudes e desejo do catolicismo popular. Se durante os dias de preparo e vivência da memória da dor da Semana Santa homens e mulheres são convocados à contenção, à penitência mesmo; a ser sóbrios, pesarosos e tristes, todos sabem que o valor disso é bom não porque salva a alma, mas porque apenas serve como um breve tempo ritual de intervalo entre outros, da mesma festa, de outras e dos dias de rotina, quando o cristão pode devolver-se ao excesso, ao profano, quase à profanação. Uma euforia consentida que a cultura sertaneja e já urbana de Pirenópolis sabe separar do indevido, da ruptura com códigos que ela aprende da Igreja e da vida e quem sem cessar, mesmo aqui, onde é tão forte a guarda da tradição, reescreve sempre. Seja para pôr-se também em guarda contra o que vindo “de fora” a ameaça, seja para livrar-se de um rigor, que mesmo quando torna a vida santa – como entre os protestantes e os católicos mais rigorosos – a torna individual e coletivamente insuportável. A Semana Santa é também vista como o espelho invertido do Carnaval.

Não que todos os dias sejam nas ruas como este domingo. Outros serão, como os dias das Cavalhadas de Pirenópolis, os do próprio Carnaval, os dos feriados prolongados e os de festas partidárias de vitórias em eleições sobre os inimigos. Mas neste domingo é sob a forma de deboche, de desatino limitado e de excesso em tudo o que era antes contido, controlado, que a alegria retorna. A malhação do Judas poderia ser o melhor exemplo. Os meninos convidados antes a sentirem no coração a dor da pena do sofrimento de Cristo, agora devolvem agressivamente, na pessoa mascarada do Judas, toda a violência: arrancar pedaços, rasgar, queimar, chutar com os pés, destruir. Alguém lê o “testamento do Judas” e nele não há mais do que deboche de conhecidos entre conhecidos. Pois trata-se de reduzir as distâncias. Se os “de fora” não sabem viver porque separam da vida o sagrado (em que são vistos não crendo) do profano, e a contrição do júbilo, e a dor da alegria, aqui trata-se de aproximar uns dos outros, sob a condição de submeter o que é preceitualmente triste ao que é permissivamente prazeroso. A Folia do Divino é uma tarefa entre amigos e é uma devoção popular ancestral. Vale como rito de fé e como oração de bênção entre iguais. Toca fundo, vimos, e com seus cantos sem fim chora-se em Pirenópolis muito mais do que no

momento em que o vigário lê a passagem da morte infamante de Cristo. Mas nem por isso há nela o que proíba ser “regada a pinga”; e vimos que um dos deveres de um “bom imperador” é ter uma grande quantidade de garrafões de “pinga” estocados.

Porque em tudo, mesmo nos momentos mais dirigidos à pesa- rosa introspecção, um duplo jogo de emoções permeia a semiologia do sentimento: de um lado, a vivência do afeto sugerido pelo rito, a dor, a miséria humana, o arrependimento; de outro lado, o contra- afeto da vivência “daquilo” transfigurado como arte, como um rito que jubilosa e narcisicamente tudo transforma em espetáculo.

Não venceu, a vida, a morte? Pois que vença, a alegria, a tristeza. Mas como viver isso sem que o desejo do excesso vença também, afinal, o princípio religioso do temor e do arrependimento?

Oliveira e Machado: os senhores do gesto — memória e esquecimento

Para Titane, dita também Ana íris. Uns precisam falar e escrever, a outros basta o dom do silêncio e o canto.

O preto no branco: sobre o retrato do negro

Não basta vê-los escuros, como são. É preciso torná-los disformes, algo entre o grotesco e o horrendo. Seres da noite, que evoquem a falta da luz e sugiram o que seja símbolo das trevas. Trazidos para serem servos, que então o próprio corpo justifique a servidão: pouco inteligente, mas forte e resistente para o trabalho; duro para os ofícios nobres do branco, inclusive os do sexo e da guerra, mas sujeitos apenas a qualquer esforço que ao branco não lhe pareça bem. Há destinos, pensava-se, pensa-se ainda, que se inscrevem na pele, e isso deve ser irremovível. Um corpo, no entanto ágil e até belo à distância, como tudo o que sendo negro atrai para longe a harmonia ou provoca nojo de perto: a pantera, o gato preto e o urubu.

A meio caminho entre o ser humano realizado em plenitude na pessoa genérica e no corpo alvo do branco e o reino infra-humano dos animais próximos, que o negro seja a exata pessoa do animal humanizado. Tudo o que parece justificar essa posição liminar — serve também um humano animalizado — caí fácil na lógica da desqualificação do ser negro.

Esses corpos e rostos não são apenas feios, onde o branco é belo. Não são perigosos em suas formas mais extremas, isto é, mais propriamente negras, onde o branco é o modelo do bem, da norma. Eles são em tudo o desvalor, porque ao olho que julga como Narciso, um mal do corpo puxa outro. Se são feios, são ameaçadores: são disformes, sujos. São corpos dados à ruindade: “coisa ruim”. Malcheirosos como sina da espécie: “todo negro fede”. Claro, qual o odor da escolha de povos escuros enegrecidos pelos séculos de servidão?

De resto, basta ver como a vida cotidiana completa na cultura o que se quer crer que a natureza começou a fazer para separar a norma da imperfeição. Se são em si feios, sujos e mal-cheirosos, cobrem-se disso e completam com o penteado as roupas e os sapatos a figura desvalida, o perfil desgraçado de um ser que não foi feito por um deus, pelo destino ou pela natureza para ser mais do que “isso”. É preciso imaginá-los sempre aos farrapos. E sabemos que choca muito menos ver um negro “esfarrapado” do que um branco, mesmo que de mesma classe e viajando um mesmo destino. Sempre houve no Brasil músicas populares, versos e provérbios que nunca perdoaram o negro por tentar “corrigir-se”, ao passar de sua natureza à cultura do homem branco. É quando ele passa do animal ao arremedo. Basta educar o olho e o olfato para reconhecer que há um jeito negro de andar, de sentar, de vestir, sentir e ser. Como se em todas as coisas nominadas, para além e aquém da norma culta, houvesse um tamanho exagerado de pé, uma forma

animalmente grosseira e deseducada da mão, uma extensão de tal animalidade ao volume bestial da boca e do nariz: quanto mais grossos e desiguais em relação aos “lábios finos” e ao “nariz afilado” do branco ariano tanto mais “negros”, “de negros”. O rosto escuro e passível de ser pensado como violentamente disforme e perigoso em si mesmo. O emaranhado da “carapinha” selvagem, melhor, do cabelo “ruim” e incapaz do trato, algo cujo único destino de salvação é ser “esticado”, “alisado”, tornado mais semelhante ao do branco, o que condena o negro a escapar à sina do bicho (mas quase todos os animais domésticos e selvagens têm pêlos lisos) para a farsa da falta. Tudo o que ele não tiver no e como corpo diante da norma branca deve ser buscado no branco. “Branquear”, “alisar”: a pele mais clara os lábios mais finos, os cabelos mais lisos, ainda não tanto um branco, já não mais um negro.

Eis como a norma branca desenhava no passado e não raro imagina ainda hoje o negro e o antevê para ser visto. Mesmo quando “arrumado”, justamente isso não passa de um disfarce, pois o branco se dá à mostra e realça no tecido do corpo o que dê mais evidência aos sinais visíveis do seu ser. Mesmo quando busca na praia um bronzeado para “pegar uma cor” o que ele deseja nunca é aproximar-se do negro — limite perverso da escala de cores realizada nos homens — mas dar ao branco seu tom ideal. Basta pensar como a idéia de “moreno” é oposta quando aplicada ao branco ou ao negro: num, ela qualifica para melhor o estado do ser, noutro ela disfarça com o nome que sugere ao ser o “ser” menos, o estigma de sua própria condição. A alteração para mais escuro na pele do branco significa realçar o valor da cor da pele segundo critérios culturais variáveis de beleza: “bronzear”. No negro o que muda disfarça a sina de uma condição inscrita no corpo e na identidade: “branquear”.

Em algum lugar eu disse que, com o uso da servidão dos povos africanos, criou-se no Brasil uma estética utilitária da exterioridade do corpo do negro muito antes e com muito mais rigor de detalhes do que para o conhecimento das diferenças entre brancos. O senhor-de-escravos conhecia melhor os dentes de seus servos que os de suas filhas. Gostaria de voltar agora a esta idéia.

Havia seres de beleza: os brancos e os bichos — a cor suave cantada em serenatas das alvas moças brancas, delícia dos poetas; os homens senhoriais que os quadros a óleo e os retratos mostram vestidos de barba e veludo; os bichos, primeiro os da selva — o que pode ser mais belo que uma onça? — e depois os tornados domésticos, por muito tempo símbolos mais do poder do que do trabalho — o senhor branco é melhor quando em cima de um cavalo de raça. Mesmo as feíssimas mulheres nobres, de condessas e imperatrizes, cobriam-se de rendas para que algum pintor estrangeiro de passagem as eternizasse. Mas, entre rendas e retratos, não havia mesmo muito o que conhecer sobre esses rostos alvos de damas e domadores dos sertões de dentro. Esses corpos de resto vestidos demais de disfarces da nobreza falsa e do poder, imitadores demais da metrópole para serem por alguma razão interessantes. Por isso os viajantes europeus desde a Colônia aos começos da República pouco se interessam por suas figuras. Eles conhecem o jogo. Preferem a nudez dos índios e mesmo o corpo dos negros. Debret, por exemplo. Mas o índio é o rosto estranho, curiosamente pintado e naturalmente belo, que sugere ser desenhado de perto, visto sob o efeito mágico da diferença. Enquanto os negros são corpos ao longe, são a moldura que segue o branco, às vezes no Rio de Janeiro vestidos de suas imitações, trajados de veludo, acompanhando à missa a família de um senhor. Negros do ganho no ofício das ruas, negros seminus — mas jamais com a graça dos índios — no rigor das minas. Eis que o negro africano trazido ao Brasil ou o negro já nascido aqui se dá como um corpo no trabalho ou na ginga do folguedo, raro como um rosto vivo, de frente, como um olhar.

A não ser quando pitoresco, como os rostos de negros de “várias nações”, em Debret. A não ser no caso quase único e notável do Christiano Jr. que pela primeira vez, um a um, fotografa rostos e olhares de negros no final do século XIX (Escravos brasileiros do século XIX, ex libris, 1988). Sujeito do trabalho escravo no passado, sujeito do trabalho mais servil ou do subemprego degradante hoje, a figura do negro é quase sempre coletiva: aos grupos, acompanhando senhores, no trabalho, na folga, na porta da igreja, atados à vida dada ao outro, que o branco e o feitor mestiço de perto vigiam, que o “capitão-do-mato” recupera quando algum acaso deseja a individualidade do homem livre. Como era o rosto de Zumbi? Corpos tornados próximos apenas quando pitorescos, fora, uma vez mais, a exceção exemplar de Christiano Jr. As mulheres vestidas das memórias degradadas da África que vieram a fazer da “baiana” o “tipo brasileiro” mais exportável.

Vistos de perto não são rostos de ver, mas de espantar. São servos, mas temíveis, nunca nobres e dando à cara o ar do livre, como os índios desenhados pelos viajantes, mesmo depois de “civilizados” (ver Debret, uma vez mais). Isto é a face do ser do negro, primeiro nesses desenhos, registros inocentes rabiscados de passagem, depois nos livros de uma falsa ciência, que por alguns enganosos anos tentou associar a feição da testa, da distância entre os olhos, da linha de união dos lábios, da conformação da cabeça ou das orelhas à identidade; a essa estranha matriz do ser chamada caráter, ou mesmo ao destino. Depois — e disso somos contemporâneos, comparsas silenciosos, cúmplices — nos registros policiais e nas folhas que os jornais dedicam aos crimes de toda espécie. Os negros e os mestiços são quase sempre os criminosos do país, pois eis que quase todas as fotografias de criminosos são de mestiços e negros. Rostos que o desenho no passado e a fotografia hoje buscam degradar: disformes, violentos, inquestionavelmente perigosos.

Mesmo hoje. Observei em anos seguidos que nas filmagens das escolas de samba no Rio de Janeiro são as brancas e as mulatas do destaque” figuras perfeitas, pintadas com esmero para os minutos de glórias, “sambando no asfaltos” ou sobre pedestais móveis quando podem pagar o preço das fantasias mais caras. As negras, ei-las em massa entre as “baianas”, adoráveis corpos volumosos, suarentos, uma deliciosa exaltação do movimento carregado de cores, onde o que importa é justamente o próprio movimento coletivo. Raras negras e muito mais mulatas são corpos individualizados de que a câmara se aproxima para sugerir, na nudez industrialmente erótica, uma sensualidade tropical, excitante. Mas é preciso que a câmara suba a um “destaque” para que o rosto supere a bunda ou os peitos e finalmente diga alguma coisa, enquanto as letras do nome aparecem embaixo. Rostos sugerem nomes. Quem conhece o das “baianas”?

Voltemos dois passos. Mesmo quando rostos de perto há entre brancos e negros uma diferença fundamental. Tomo de empréstimo algumas idéias de Manoela Carneiro da Cunha (Ser escravo, ser olhado — Escravos brasileiros: XXIII a XXX). Entre quem contrata um fotógrafo para que o retrate e quem é fotografado ao acaso ou à força, existe a oposição entre dar a ver e ser visto. Um é sujeito de seu retrato, mostra-se, dá-se a conhecer, distribui-se pelo papel e pode fazer-se retratar quantas vezes queira ou possa pagar, até quando a figura dada na foto realize seu desejo narciso de espelho. Assim o senhor branco se retratava, assim hoje os que podem se retratam. O negro de antes, escravo, ou o de hoje em memória, “marginal”, é para ser visto. A pintura não o retratava, a foto raramente o retrata; antes, uma desfigurada condição servil, hoje a serviço de alguma condição marginal. Manuela é originalmente sábia no que observa:

Aqui o escravo é visto, não se dá a ver. É visto sob formas que o despersonalizam de duas maneiras, mostrando-os seja como um tipo, seja como uma função. Não é o rosto único do retrato que se busca no típico, mas a generalidade que permite reconhecê-lo como um “negro mina”, “gabão”, “cabinda”, “crioulo”. Enquanto tipo, ele está ali como sinal de uma categoria que o subsume, outra coisa que não ele, maior do que ele, e na qual sua especificidade [por mais que seu rosto, único, seja indelével no retrato] se torna irrelevante. (XXIII).

De certos desvios do olhar não ficamos livres até hoje. Nos jornais e revistas negros são, repito, ainda mais o corpo do que o rosto, mais o tipo e, mais ainda, a junção, do que a pessoa. Num país onde negros “puros” são milhões, é o rosto do branco, qualquer que seja, sobretudo quando mulher, o que se dá a ver. Menos as mulatas e sempre mulheres, a não ser que algum seja de um cantor profissional ou jogador de futebol. Raros os negros de fotos dadas a ver: o rosto. E alguns poucos se multiplicam monotonamente, Milton Nascimento e Pelé talvez sejam dados a ver mais do que todos os outros negros do país juntos. Qual o negro, qual a negra sem função a não ser densidade ou a beleza do rosto que aparece retratada por ser só isto: a imagem de um momento do ser da gente do Brasil? Onde mesmo hoje brancos são retratos de pessoas, negros são corpos de tipos: são sujeitos do gesto coletivo, da ginga e do movimento, dos jogos do dorso impossíveis ao branco, do disfarce, da capoeira e do candomblé. Muitas vezes com os pés descalços (sinal do ser escravo no passado, negros alforriados logo compravam sapatos), devem ter grandes mãos ásperas e pronunciar palavras incompreensíveis, de uma perigosa sedução sempre associada ao malefício, à feitiçaria e à simulação. Melhor por um lado, pois eis que suas ágeis figuras luminosas de escuridão zombam da imobilidade impotente dos brancos. Pior por outro, porque quase não deixaram e pouco deixam o registro de suas faces, de seu olhar. Como respeitar quem não se dá a ver de frente?

Faço uma pausa para lembrar aqui uma dessas observações terrivelmente sérias, de tão brincalhonas, pois nela o que eu disse aqui até agora aparece às avessas, isto é, em sua face verdadeira. Eu documentaria para uma série de fotos sobre o olhar do negro (Projeto “Negro Olhar”, Funarte) e para minha pesquisa sobre ritos de negros do catolicismo popular. Ele os revela de outro modo, e eu lamento que as condições de edição do livro não permitam fazer as palavras acompanharem a série de fotos em que majestosa e solenemente os negros de Oliveira, de quem falo aqui, dão-se a ver. Pois bem, em um momento eu faria fotos de perto de um capitão dançante de terno de moçambiques: Pepita, tido também como o melhor ritimista das escolas de samba do lugar. Ele se deixou fotografar com gosto, mas, debochado, sugeriu que eu fizesse a foto de longe, de corpo inteiro e, se possível, pegando outros de suas “guardas”. Disse: “Pra que retrato de cara de negro? Pros brancos é tudo igual. É uma cara feia só. E depois, fotografia de negro só sai é negra mesmo. Não dá pra ver nada, por mais que você queira. Ë só a dentadura no meio daquele ‘negrume’“. Este pequeno estudo a respeito de gestos cerimoniais de negros no meio da rua, nos cortejos do reinado de seus santos padroeiros, na festa de Nossa Senhora do Rosário em Oliveira, é sobre Pepita e outros mestres, capitães, reis e pessoas da corte do reinado. Pois entre eles, pelo menos em seus dias de festa, a situação é outra. Eles se dão a ver. E uma festa de negros na rua e, tanto em Oliveira quanto em várias outras cidades de Minas Gerais, considera-se um sinal de empobrecimento cerimonial a diminuição de negros e o aumento de brancos e mulatos nos ternos de moçambiques e congos, de vilões e catupés.

Dão-se ostensivamente a ver, disputam o lugar na frente da máquina, alegram-se muito diante de qualquer sinal de preferência do fotógrafo. Ao contrário dos da

assistência, vestidos de roupa comum e sem disfarces de guerreiros ou realeza. Alguém poderia dizer que é justamente por isso. Comuns, pessoas da assistência não-assumidas como personagem, nada teriam a oferecer senão o rosto e a cor da pele de cujos estigmas, sobretudo quando fora da família, da vizinhança e da fração mais escura da classe, já é duro suportar. Revestidos de sedas e veludos, com coroas, carmim no rosto, falsos chapéus dos nobres da Colônia e espadas, dão a ver justamente isto: o disfarce branco sobre o corpo negro. Não é só no carnaval das escolas de samba que os “pobres e pretos” gostam das cores e papéis da nobreza. Isso é mais ilusoriamente visível nas festas tradicionais de negros católicos. Mas é também porque nelas, finalmente, eles se livram por uma trinca de dias da desconfiança que precisam ter diante do olhar, da máquina, mais ainda, do outro. A pessoa teme, a personagem não.

Quase todas as festas “de santo de preto” no Brasil são uma imensa nostalgia da realeza: seus símbolos, seu tempo mítico, seus sujeitos. Uma intrigante oposição não deve ser esquecida aqui. A Igreja oficial e, portanto, os brancos e frações da elite desde a Colônia até hoje, coroam Nossa Senhora, principalmente; essa “coroação” é até hoje um piedoso — e piegas, confessemos rito católico oficial da Igreja. Os negros não: desde quando escravos eles se coroam a si próprios. E se no Candomblé alguns iniciados vestem coroas porque elas são de seus orixás, nos ritos católicos há reis e rainhas indispensáveis com vestes de arminho e coroas. De lata que sejam, e são, mas coroas e uma realeza não raro com várias personagens vestidas de nobres acompanham séqüitos de monarcas: “congos”, “gingas”, “pequenos”, “perpétuos” ou não, em cortejos de “reinado” que quando ainda sobrevivem, como em cidades de Minas Gerais, são o ponto alto da festa do santo padroeiro.

Já que há uma Princesa Isabel, branca e imóvel em festas como a de Itapira ou de Oliveira, e já que há na maior parte delas um par de reis congos, é costume lembrar-se a razão da realeza como a dupla memória de uma origem africana de que se conhece por certo muito mais o mito indispensável do que a história necessária, versus a de um “tempo do cativeiro”, seguido do instante memorável da “alforria”, que em algumas cidades desloca a própria festa de São Benedito para um “13 de maio”.

Neusa Santos Souza (Tornar-se negro, Graal, 1983) insiste em como o negro rejeita de muitas maneiras o aspecto exterior de seu ser-negro e o disfarça quando pode. E preciso um raro grau de consciência e valor de identidade para que essa rejeição assumida ou sofrida em silêncio se inverta, e a cor e o corpo do negro venha a ser sentido como um valor de beleza sem o dever do disfarce. Pode ser e já se falou muito sobre o assunto. Mas, a menos que tudo isto seja uma outra maneira sutil de “fazer-se como o branco”, esses negros do reinado das festas populares parecem ter mais de ver com o desejo de realçar o lado negro do seu ser. Pois a própria realeza da festa é afirmada como negra e como africana. São guerreiros africanos, e em alguns ternos de Minas eles pesquisam suas origens. Em 1988, em Oliveira, um par de irmãos de uma família que tem procurado recuperar para a festa a memória mais africana possível de todos os sentidos e gestos, redesenhou as roupas dos reis congos e saiu às ruas com vestes real ou supostamente africanas.

Entre os dançadores das festas de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, é possível ver como a alegria estampada no rosto, nos dentes e no olhar é um gesto espontâneo e parte da própria oração que o movimento do corpo completa e à qual o canto das quadras quer menos dar sentido do que marcar a euforia do ritmo.

A mescla mais visível nos ritos de negros católicos é o solene e o alegre. Entre os brancos, entre os senhores do passado, segundo os termos da própria cultura erudita,

parece sempre impositivo separar uma coisa da outra. Quando eles queriam fugir ao dever de se fingirem contritos e solenes, iam “cantar e bailar nas festas do populacho”. Não é à toa que se tornou costume no Brasil opor as festas de mascarada, com o Carnaval, às de solenidade, como a Semana Santa ou o Sete de Setembro.

Se quisermos classificar os gestos individuais e/ou coletivos executados com maior freqüência durante cerimônias restritas ou públicas de equipes rituais de negros, dentro de festas católicas tradicionais a santos padroeiros, eles poderiam em princípio ser distribuídos dii seguinte maneira:

gestos devocionais expressivos, dirigidos a Deus ou a uma entidade santificada do tipo prece:

gestos cerimoniais trocados entre categorias de atores de equipes rituais e/ou outras personagens

da festa, do tipo cumprimento:

1. Oração suplicante individual, corporada (apenas o grupo ritual) ou coletiva (ela e uma assistência coadjuvante) rezada, cantada ou também gestualizada.

2. gestos individuais, corporados ou coletivos de reiteração de subalternidade ou sujeição de um ator ou sua equipe frente a outro (um mestre, um rei, um padre) ou a outro grupo: “eu peço — sua bênção”; “eu reconheço a sua paternidade”; “eu sou um ser inferior hierárquico e atesto isso em público”.

3. Oração laudatória, com as características da anterior, mas com expressão verbal, rítmica e gestual de reconhecimento e júbilo,

4. gestos individuais (em maioria), corporados ou coletivos (muito raros) de evidência de superioridade e direitos de deferência cerimonial: “eu lhe dou a minha bênção”; “eu sou seu mestre” etc.; “você me deve deferência, e eu reconheço isso”.

5. Oração de identidade, expressivamente indicadora de uma relação de compromisso entre o sujeito-ator ou a equipe ritual e a entidade celestial (“Deus é nosso Pai, São Benedito é nosso padrinho”).

6. gestos individuais, corporados ou coletivos de reciprocidade ritual: “somos iguais e irmãos”; “somos de uma mesma categoria hierárquica ritual e proclamamos isso de público”.

As descrições a seguir abordam de modo mais motivado, mas não exclusivo seqüências gestuais da coluna da direita.

A cena se passa da seguinte maneira: dois ternos de dançadores do Moçambique e do Catupé vão à casa de uma das rainhas da Festa de Nossa Senhora do Rosário. O que em outras festas católicas de padroeiros de negros não há mais ou há em um dia só, como em Machado, também em Minas, Oliveira multiplica por vários dias. Há um “Reinado” dedicado a cada santo em cada dia. Fora o par de reis congos, há pares de reis e rainhas “pequenos”, brancos quase sempre, entre meninos, jovens e adultos cujas famílias ajudam com dinheiro o correr da festa. Existem outras personagens menores a cada noite, e algumas são fixas, como uma possível loura Princesa Isabel. Os ternos de moçambiques, catupés e vilões distribuem-se pela cidade com a missão de buscá-los, cada um ou o par, em sua casa e levá-los à praça principal da cidade, onde ali, perto dos mastros erguidos aos padroeiros, um palanque os espera para que as mesmas e outras personagens a cada noite da festa façam os mesmos e outros gestos de pequena cerimônia festivamente “real”. Assim, um cortejo vai às casas buscar pares de reis por um dia. Ao chegar lá, o terno espera do lado de fora e às vezes também o capitão, sabedor do rito e mestre principal de cerimônias. Mas pode ser que ele entre na casa quando convidado, de onde sai acompanhado dos reis. Quando o capitão sabe fazer, ele

transforma o rápido momento de incorporação dos reis “pequenos” ao cortejo que os levará junto com outros à praça em uma bela cerimônia breve de deferência.

Ele toma a mão direita da “rainha pequena” e, cantando o louvor devido à personagem que incorpora ao cortejo, beija sua mão direita, coloca seu dorso na testa, na nuca, quando então faz a volta do corpo sobre o braço erguido da rainha, antes de devolvê-la, com vênias, a seu corpo. Ele canta o que faz, diz louvores, enuncia nomes, títulos, fala da excelência do momento. Trata-se de um jogo imediato de papéis entre um capitão e reis — ele por muito tempo, eles por um dia — entre guerreiros dançantes e uma corte de nobres.

Aqui começa o jogo da memória e do esquecimento. Não se espera da menina ou da moça branca que elas saibam o que fazer, como e por quê. Ela estende a mão servil da rainha e deixa que aconteça. O capitão conduz o gesto e o culto. Mas, entre eles, supostos mestres do rito, espera-se que todos saibam como proceder, e a finura do conhecimento dos mínimos gestos separa qualidades de sabedores.

Senhores do gesto, entende-se entre esses negros devotos que um capitão de terno não deve apenas saber comandar seus guerreiros dançantes; não deve apenas dominar a dança e o canto que ele inicia e os outros em coro, entre instrumentos, devem completar. Entende-se, entre os da muito reduzida confraria de especialistas dos ritos de negros católicos, que ele deve saber fazer com graça, no momento certo, o gesto único necessário.

Então, aquele que sabe gestuar toma na sua a mão do outro, que não sabe, que sabe menos. Toma-a, comanda o que é agora um gesto feito a dois. Um cumprimento agora entre dois capitães, que deve marcar para eles e diante dos outros uma espécie de cerimoniosa solidariedade, nessas equipes rituais onde são tantas as afirmações públicas de “irmandade” quanto às acusações de desavenças, conflitos e rupturas de alianças. Um gesto que não seja apenas de fraternidade entre negros devotos, artistas da festa do santo, mas de uma cumplicidade pública, pois ele demonstra a todos não apenas que aqueles são e se respeitam como mestres e irmãos de fé e ofício mas os separa dos outros. Daqueles que não são ou não sabem ser tanto quanto eles, além de devotos, sabedores dos segredos de quem deve ser por isso chamado: “capitão”, “mestre”, “chefe”.

Entre os dois, o que não conhece a seqüência precisa é conduzido pelo saber do outro, e o perigo disso é que ele não consegue evitar que todos saibam que ele é um bom capitão mas não tanto assim, porque ele não domina os pequenos gestos mais secretos, a sutileza da cerimônia, aquilo que distingue o comandante comum de uma equipe do respeitado raro especialista, O capitão de moçambiques toma sorridente a mão do outro “chefe” e comanda a seqüência completa da cerimônia: levar as duas mãos juntas até perto da boca; colocá-las na testa, sobre a cabeça e na nuca; de novo sobre a cabeça, quando então o corpo deve fazer uma delicada meia volta em torno de seu eixo. O outro repete como quem acabou de aprender ou de lembrar.

Quanto mais uma seqüência popular de rituais conduzidos por várias equipes de irmãos aliados e rivais for passível de ser suspeitada como um campo de trocas entre a religião e a feitiçaria, tanto mais é necessário mediá-lo de gestos assim, cujo sentido não é outro senão a respeitosa deferência, o reconhecimento do “irmão”, a afirmação da cumplicidade, o estabelecimento ritual da diferença entre um nós de negros sabedores e um campo de outros, incorporados ou não às cerimônias da festa (como a Princesa Isabel ou a Rainha Grande), mas excluídos do círculo restrito dos devotos iniciados ou

excluídos até de uma participação qualquer como personagem dos ritos de rua ou praça, como a assistência curiosa.

A tal ponto é o sinal da evidente deferência o que se quer enunciar aqui, que o mesmo gesto, com mínimas variantes, é realizado entre supostos iguais, como dois capitães de terno, e também entre diferentes, como vi sendo feito entre uma filha e sua mãe; ela por um ano rainha conga, a mãe, mãe também de um capitão de congo e viúva de outro comandante muito conhecido na cidade.

Há então uma motivada diversidade de sinais, de acordo com os atores envolvidos. Sabemos que não se imagina que as moças brancas, convocadas por uma festa como rainhas do reinado, saibam os gestos tidos como próprios dos negros. Elas não devem saber e, por isso mesmo, respeitosamente senhoras da reverência do negro, são conduzidas. São gestuadas e servem ao desempenho solene e teatralizado do artista-devoto que duplamente as conduzem. Rainhas são servas, servidas por ele, que as utiliza por um momento como coadjuvantes de seu desempenho aos olhos de todos.

Quando o gesto de deferência é feito entre dois atores de posto e saber igual, é que ele assume a feição de um ato simbólico que atesta uma igualdade entre dois mestres do ofício.

Outro momento do mesmo gesto. Uma mulher de mais de cem anos, de uma estirpe muito antiga de sujeitos da festa, está sentada numa cadeira de um palco. Ela não usa roupas como fantasia, a não ser um turbante semelhante ao pano do vestido. Assiste a tudo durante um momento do final da festa, quando cada terno de moçambiques, acompanhado de ternos de catupés e vilões, desce seu mastro com a bandeira e o leva embora até a próxima festa, um ano depois. A mulher velha parece estar ali para isso mesmo; para ser honrada.

O capitão de moçambiques estende a mão. É ela quem a toma primeiro, quem a beija e leva ao alto e à parte de trás da cabeça. Ele deverá fazer o mesmo de pé e deverá girar o corpo à volta das mãos unidas sobre a cabeça. Os dois trocam cumprimentos e fazem isso no canto da praça, cerimonialmente. Um gesto de “respeito”, o mestre diz, mas de dupla direção, de reconhecimento recíproco, portanto. Todos ali podem ser devotos, e muitos são “irmãos de fé”, mas só os que sabem fazer certo e completo o gesto múltiplo de benção e respeito entre os devotos-artistas se alça a essa linha de frente da confraria de irmãos. Outros negros de ternos ou da assistência e mesmo alguns brancos chegam para cumprimentar a velha. Mas eles fazem isso como “qualquer um”: com um aperto de mãos com um pedido comum de “bênção”. A eles a velha dá depressa o gesto, mas aos que sabem a seqüência rigorosa e sabem como devem fazê-la ali, agora, ela se entrega ao rigor de um breve rito que, diferente dos outros cumprimentos corriqueiros, é também para ser visto, para ser admirado.

O bastão de comando na mão, a cruz, as fitas: o capitão põe a mão da velha na sua e sobre a cabeça; demora o rito de olhar arregalado os céus, eleva o bastão e simula como se aquilo fosse o momento único de uma espécie de bênção maior do que todas. Logo depois ele me diz que se trata de um gesto religioso, pois, apesar de ser muito parecido ao que o capitão branco do outro terno fez com a menina Rainha Pequena, aqui se trata de tornar visível que entre a velha e o capitão há algo mais do que a simulação pública e cúmplice da deferência. Entre os dois passa uma forma peculiar de poder que, católica na figura e “afro” no segredo (ele pertence, junto com a irmã, a um terno que busca mais do que todos os outros “o resgate das tradições dos africanos”), implica uma forma mágica de energia, segundo o seu próprio juízo. Tal como vi acontecer em terreiros do candomblé de Salvador e do Rio de Janeiro, esses gestos entre desiguais

irmanados (mãe-de-santo e filha, mestre e subalterno ritual) ou entre supostos iguais em cargo, poder e saber (dois capitães de guarda de moçambiques) soleniza muito um rito dual de troca de deferência subalterna e/ou de evidência de reciprocidade com mais de um sentido: 1º — tornar evidente, pública, diante dos outros da confraria ou da assistência a norma dos relacionamentos cerimoniais, em geral atualizados como respeito subalterno, deferência recíproca e reconhecimento de superioridade hierárquica; 2° — fazer passar, através do gesto em um rito, algum tipo de força, bênção ou energia benéfica; 3º — demarcar simbolicamente tipos de aproximações e distanciamentos, como os que separam, na mesma confraria de devotos-artistas, os mestres dos atores subalternos e, num plano mais abrangente, todos eles, figurantes do ritual religioso, e a assistência, negra ou não.

Façamos um paralelo que pode ser útil. Entre camponeses brancos, várias formas de celebração religiosa coletiva são também demorados rituais. Não muito diferentes das cerimônias das festas populares de padroeiros negros, eles são realizados com reza familiar, vicinal ou pública, com cantos, toques de instrumentos, viagens celebrativas e até pequenos cortejos, como as procissões rurais. Mas os gestos são simples, algumas vezes apressados, quase invisíveis. É como se, não tendo nada a esconder, eles nada tivessem para mostrar. Pequenas saudações contritas diante de altares de santos; modos peculiares de segurar e tocar a viola; gestos contidos de deferência entre “irmãos” e outros atores ou participantes. Mesmo quando há danças, elas são muito mais de violas do que de tambores e caixas, e mais dos pés do que dos quadris ou de todo o corpo. Não há requebros nas danças sagradas (como o São Gonçalo) nem nas profanas (como o cateretê). Gestos devotos ou respeitosos entre a pessoa e a divindade ou de pessoa a pessoa que apenas em quase nada solenizam um pouco mais os gestos cotidianos de respeito, devoção ou deferência.

Mas não os negros. De saída, enquanto os camponeses brancos viajam devotamente, tocam, cantam e dançam com suas roupas comuns quase sempre, sabemos que em suas festas tradicionais os negros se vestem de nobres, sempre que podem. E vimos que há em suas cerimônias religiosas, quando é possível tornar isso uma celebração, uma inevitável vocação à realeza. Ei-los não apenas devotos e “foliões”, como os camponeses brancos de São Paulo e Minas Gerais, mas reis e rainhas, guerreiros, mestres, capitães, generais, condes e tudo o mais que o nobre e a realeza de uma monarquia de desejos da memória possa sugerir.

E, vimos, o que separa bem um capitão razoável de um mestre é não tanto a capacidade visível de comandar e pôr nas ruas um repertório adequado e infindável de versos de músicas devotas quanto o saber fazer-se também um ator notável, isto é: alguém para ser cerimonialmente posto em destaque entre todos. Temos aqui exemplos de gestos exagerados com o bastão de comando (inexistentes em todos os ritos populares de camponeses brancos), com a própria gestualidade corporal do mando, para que uma posição cerimonial de comando seja não apenas conhecida (as roupas diferentes já dizem isto), mas tornada exageradamente expressiva, um símbolo do que se é: mais do que um devoto, um chefe; mais do que um chefe, um mestre; mais do que um mestre, um nobre. No exercício do ofício. Não importa discutir aqui as razões históricas deste tão difundido desejo de realeza entre os negros católicos. De resto podemos desconfiar que com outros nomes e símbolos ele é também um dos feixes simbólicos de sentido nas variações de sistemas de crença e culto afro-brasileiro. Volto a uma oposição já enunciada aqui e muito evidente até hoje nas religiões populares no Brasil. Enquanto, desde o catolicismo colonial até as ramas mais tradicionais do catolicismo de agora, senhores e nobres são convidados a se despojarem de sinais

coletivos e individuais de poder e nobreza e, humildes e despojados, a se colocarem diante de seres sagrados cristãos revestidos de uma exagerada realeza (“Cristo Rei”, “Nossa Senhora, Rainha do Brasil”), os negros do Rosário humanizam ao máximo seus santos e se figuram eles próprios de nobres e reis. É norma entre os da TFP reconhecerem-se servos de Deus e “Escravos de Maria”, uma santa tornada Rainha dos Céus, enquanto em Oliveira, reis, guerreiros e nobres desfilam pelas ruas com estandartes de São Benedito (um suposto santo negro de negros, e santo porque foi sempre servo) e de Nossa Senhora do Rosário, tão carinhosamente próxima e mãe, que com um pouco mais de milagre desceria da imagem colorida e dançaria com eles na rua.

Às vezes não são só os gestos de evidência de nobreza e comando e os de respeitosa deferência que devem ser expressivamente exagerados. Os de uma suplicante devoção também, quase no estilo afro.

Um capitão de moçambiques vem pelas ruas de Oliveira à frente de seu terno. Os dias da festa estão terminando, e falta a última cerimônia de “descida dos mastros”. Eles foram cerimonialmente “levantados” vários dias antes, no começo dos festejos a Nossa Senhora do Rosário. No começo do grupo de dançantes e cantores-instrumentistas que o seguem pelas ruas, ele cria ou repete cantos e propõe versos que os outros repetem ou prosseguem. De passagem, pode brincar com um amigo que porventura encontre na rua durante o cortejo. Assim, fardado de guerreiro, ele é cuidadosamente majestoso, mas também algo galhofeiro e alterna gestos em uma ou noutra direção quando assim o deseja. Nisto realiza a norma do que se espera que em festas como as de Nossa Senhora do Rosário, os negros representem: a dramatização de uma nobreza devota versus uma matreirice galhofa, ridícula no branco, supostamente apropriada ao negro; um comportamento religioso e marcial versus um jeito de ginga nos movimentos do corpo.

Ao se aproximar do mastro que deve “descer” e carregar o capitão, converte-se em mais respeitoso: ele deve reverenciar o mastro, a bandeira e o que eles significam. Cercados dos outros, aproxima-se dele e o envolve com as mãos; põe-se de joelhos e toca a madeira com a testa. Melhor, ele descansa por um momento a cabeça no mastro como em uma oração silenciosa e solitária. Simula estar concentrado, esquecido do que se faz a sua volta e, no entanto, é evidente que ele dramatiza esse breve momento de devoção.

Os outros de seu terno continuam cantando e tocando. Depois, quando acabar a música e houver um momento de espera cênica (esses lentos intervalos vazios entre uma fração de rito e outra, quando eles demoram muito) outros atores de seu grupo poderão fazer o mesmo gesto de devoção diante do mastro. Ele nunca será tão solenemente exagerado, pois a regra é que nos outros ele seja mesmo um arremedo apressado, quase vergonhoso, do que o mestre fez antes com todo o direito à expressão pública a que o posto na festa obriga e atribui. De algum modo ele o faz por todos e são raros os outros grupos que repetem. O capitão pode mesmo observar esta seqüência ritual de devoção ao santo padroeiro diante de outros mastros — eles são oito ou nove — e, assim, não apenas estará expressando louvor aos padroeiros de outros ternos como estará prolongando um direito inquestionável de dar-se a ver. Não tão atrativos para a assistência quanto os lances do cortejo com seus cantos de marcha, passos de semidança e toques ruidosos de caixas, tambores, são no entanto seus tempos mais secretamente cerimoniais. Reservados ao desempenho solo dos mestres e seus próximos, são o instante da diferença.

A expressão do rosto e do resto do corpo de um bom mestre de moçambiques e catupés deve oscilar entre: um ar rigoroso de poder de comando + a alegria inevitavelmente regida pelo ritmo que comanda + a deferência cerimonial diante de sujeitos iguais no ofício da festa ou de pessoas investidas de posições superiores nos festejos + a devoção típica do negro católico. Esta última não tem lugar algum para atos pessoais ou coletivos de qualquer possessão como no Candomblé, mas autoriza exageros do olhar. A expressão lenta que exagera o sinal da fé e seu conseqüente respeito subalterno diante do sagrado. O bastão levantado, símbolo conhecido na gramática da festa como do poder de mestres e capitães; a mão espalmada para o alto, contraparte do gesto de mando: humilde, suplicante. O olhar semi-serrado, como que pedindo num lugar longe, terra dos deuses. A combinação de uma atitude de nobreza popular, tanto quanto ela pode traduzir-se como expressões próprias do negro versus uma devoção enunciada com exagero. Comparar isso com a gestualidade penitente de um devoto da mesma Minas Gerais, desvestido de roupas de festa e de postos de comando. Ele está contrito diante da imagem da santa, como nas romarias a Aparecida do Norte. Ele pode ver-se ali saldando uma difícil promessa, reconhecendo naquele momento — não raro esperado durante vários anos — o evidente poder celestial realizado no atendimento de “uma graça pedida”. Poderá querer traduzir a si mesmo, a padroeira e aos outros de perto, sua própria devoção contrita. Poderá chorar, mas não é bom que o faça ali, na “fila dos fiéis” com pressa de passar. Que ninguém duvide de sua contrição, e é isso exatamente o que deve ser representado ali, num gesto mais do que coletivo: de multidão. Ao contrário dessa massa de fiéis — quantos assistentes dos ritos de “descida do mastro” terão ido “cumprir voto válido” em centros de romaria? — e da assistência próxima a sua guarda, o mestre soleniza a demora de cada gesto. Ele trabalha cerimonialmente dentro de um tempo que é seu e deve isto aos que o cercam.

Não é raro que minutos depois da longa seqüência de genuflexões, toques lentos com a cabeça nos mastros, olhares perdidos no alto, mãos voltadas aos céus, o mestre se divirta com seus comandos ou tome um sorvete no bar da esquina no intervalo entre uma fração da cerimônia e outra. Ele não precisa chegar como quem vem já emocionado, contrito (como pode ser expressivamente sugerido a um devoto em romaria) nem precisa, depois de feita sua parte, dar-se a ver como quem está “tocado”, emocionado ou especialmente diferente de todos pelo que acabou de fazer. Ao contrário, espera-se que a solenidade contrita dos gestos feitos valha apenas durante o tempo de sua seqüência. O mestre deve retornar disso a uma “normalidade” de todos, tão logo termine. Mas, como os vários dias de festa do padroeiro são uma repetição conhecida de ritos e gestos tornados ora vibrantes e marciais, ora solenes e devotos, o ser de um devoto de linha de frente deve alternar-se exatamente entre tais momentos, pois a própria festa nada mais é do que a sucessão de tais rupturas e passagens de uma dramaticidade a outra. Ë claro que isto não é privativo desse tipo de cerimônia, com essa categoria de atores. Antes, parece ser mesmo a norma de cerimônias religiosas populares em outros sistemas de crença e prática. Também entre pentecostais negros e brancos várias vezes presenciei passagens semelhantes de um estado ao outro. Depois de uma pregação fervorosa, de orações pessoais exageradamente contritas, em que vários podem ser “tomados pelo Espírito Santo”, ao final do culto as pessoas todas passam de um momento para o outro a uma conduta profana regida por uma higiênica normalidade. Seria indesejado que um irmão continuasse fora de hora a gestualidade contrita do crente fervoroso, ainda que todos devam estar sempre “prontos a pregar a palavra de Deus”. A mesma passagem quase instantânea acontece no Candomblé. Descrevi rituais de devoção católica camponesa em que de um momento para o outro

todos passam do gesto e do afeto contrito às licenças da rotina profana ou mesmo a uma dança macha regada a cachaça.

Eis o que no interior do catolicismo popular os negros devotos e artistas preservam, e os brancos de mesmas categorias sociais já não mais tanto. Essa finura cio gesto atento que desenha os mínimos detalhes da expressão ritual. Eles sabem que não basta conhecer os segredos comuns dos festejos e a ordem precisa de sua expressão: tocar, cantar e dançar os passos de marcha ou dos momentos de estar evoluindo sem marchar. É preciso dar a isso uma investidura dramática, sutilmente expressiva. Reconhecidos da senzala ao carnaval como seres do corpo, dos gestos brutos das pernas e dos quadris, da ginga, enfim, esses negros querem lembrar a si mesmos, a Deus e aos outros, que mais do que todos são a própria memória dos gestos sutis do olhar e da delicadeza cerimonial.

Mas nem sempre. De alguma maneira como na talvez distância entre os ritos do Candomblé e os da Umbanda, existem festas onde as equipes guardam ainda um conhecimento suficiente de seus cantos e passos da marcha e dança. Mas os gestos finos da reciprocidade, da deferência e da devoção foram apagados. Essa poderia ser a diferença entre o que se vê ainda em Oliveira e o que se encontra em Machado, também em Minas Gerais, mais ao sul em direção a São Paulo.

Pensa-se que se esquecem músicas e toques, mas são formas do olhar e gestos sutis da mão o que primeiro se perde da cultura. Sobram seus intervalos: sua falta, primeiro reconhecida depois sequer lembrada. Em Machado, no dia único do Reinado, uma segunda-feira, os ternos descem em direção à igreja, de onde saem depois num longo e barulhento cortejo de iguais reis e rainhas, nobres e guerreiros dançantes. Embora o contexto e os instrumentos e objetos cerimoniais sejam os mesmos, os gestos sutis que provocam em Oliveira os intervalos das cerimônias de devoção, de reconhecimento e deferência, não existem mais. Cada terno apenas chega ao local do encontro. Alguns silenciam os instrumentos, enquanto outros — a maioria — seguem tocando ruidosamente, de tal sorte que o local se converte em uma pequena praça de batalha sonora. Esquecidos os gestos sutis de sujeição ou reciprocidade entre pessoas ou entre grupos rituais, resta uma algazarra regida pelo senso da concorrência: ganha de todos aqueles que conseguir impor seu som alto, seu ritmo de tambores, sem perder o compasso que inevitavelmente se mistura com o de muitos outros. Submetida a delicadeza dos gestos pela violência dos toques que transformam as marchas e os cantos devotos ou guerreiros em verdadeiras batucadas, há não um acréscimo de símbolos e situações cerimoniais mas uma perda visível. Ë porque existem cada vez menos instantes, seqüências e gestos celebrativos que as pessoas repetem ao exagero e quase desordenadamente apenas o que restou: “malham os instrumentos”, dizem, concorrem entre eles e sequer cantam, porque isso seria perder ali a força do som em luta contra outros. Algo como passar da solenidade à mascarada sem reconhecer ainda o que está acontecendo.

Mas os mais velhos reconhecem. E é exatamente essa queixa o que eles fazem. Toda a Festa de São Benedito em Machado e, particularmente, seus instantes mais ritualmente esperados, por serem os mais importantes, por serem os mais bonitos e queridos, perderam ou estão se esvaziando desses elos de sentido, realizados como a expressão sutil dos gestos agora esquecidos. Perdida a sutileza cerimonial, restou o ruído de sua face grosseira. Esquecidos os gestos tão solenes e afetivos com que as pessoas que se encontravam ou que se visitavam traduziam entre elas a própria afeição, o reconhecimento da igualdade ou o desejo de estabelecer a norma da solidariedade sobre a regra da diferença, resta um vazio de gestos, pois outros não os substituíram

preenchidos com imitações grosseiras de atos ruidosos que todos saí,em fazer e que dissolvem nesse representar de massa alguma coisa que teria sido antes dramatizada, matizada pela seqüência de situações simbolicamente diferentes de uma polissemia de saberes e gestos que traduziam em seu todo a realidade reconhecida ou a ilusão desejada do que agora os próprios mestres antigos descobrem haver sido perdido: a harmonia.

Dançar pelo morto – Uma dança votiva por alma de mortos,

entre lavradores e sitiantes de São Paulo

E noi abbiamo rimorso di vivere, ci sempra di rubare qualcosa che

à di propietá altrui, vorremmo morire com i nostri morti.

Ernesto de Martino

Morte e pianto rituale

Para José Inácio de Sá Parente, que não acredita em nada disso.

Mas gosta.

1. A morte: o morto – pranto e dança

Alguns mortos merecem o pranto dos vivos. Outros merecem ou exigem que se cante e dance por eles. Alguns povos esqueceram isso, outros nunca. Mortos são pessoas. Precisam ser de novo nominadas e separadas. Esquecidas com o tempo ou lembradas sempre, contra ou a favor da vontade do desejo que se supõe que mortos têm, sugerem ser depressa despedidas do mundo dos vivos. E os ritos que cercam a morte servem menos a transformar a dor dos vivos em outro sentimento do que a dizer com clareza: aos deuses, aos mortos e aos vivos, que assim é e deve ser.

Ó! Morte

Morte o levou consigo

Ele partiu, levantem-se e dancem.

Nós o saudamos!

Adeus!1

Mas os ritos da morte hão de servir também para torná-la mais visível, isto é, para fazê-la passar de um acontecimento imposto à pessoa do morto e à comunidade dos vivos a algo tornado sentimento pensado, qualificado. Ao não matar com o poder da memória o morto, esquecendo-o, tornando natural sua partida da casa, os vivos assumem o controle das formas simbólicas das vidas que lhe dão.

1 Juana Elbein dos Santos. Os nagô e a morte, Petrópolis, Vozes, 1976, p. 234.

Ao expressar a dor nas várias formas de celebração e do culto dos mortos, supera-se o desespero, tornando-o objetivo. Assim, fazendo com que os mortos não sejam mortos, começamos efetivamente a fazê-los morrer em nós.2

Pois em tudo o que acreditam e cultuam os vivos a respeito de seus mortos, estes últimos os ajudam a encontrar respostas, seja às questões do sentimento do desespero e do terror humano diante da fatalidade da “noite escura” e da perda inevitável do “outro”, agora, e de si mesmo, algum dia, adiante: seja às questões mais terrenamente políticas, práticas e teóricas da organização dos planos e dimensões de acordos, conflitos e trocas que os regem.

Teias de relacionamentos que, sabemos todos, vão muito além do que é visível, do que se vê sendo cotidiana, simbólica e historicamente vivido entre vivos, contemporâneos e consórcios. Pois a matéria da vida social é torcida também do lugar e das ações previsíveis e incertas de seres e estados do ser que talvez sequer existam mas com quem convivemos dentro de nós e entre nós. Tão realmente quanto a convivência que nos condena a parentes vivos, companheiros de trabalho, instituições, automóveis e contas de banco.

Os ritos de morte de todas as culturas — como a aparentemente alegre e mesmo festiva Dança de São Gonçalo que adiante descrevo — metaforicamente protegem os vivos e sua sociedade de se verem ameaçados da destruição ou da desordem regida pelo poder natural de a morte multiplicar-se ou por seu poder simbólico de tomar corpos e vidas e criar vazios. E apontar, com sua certeza indiscutível, para o reino da absoluta incerteza. Missa, velório ou dança, eis que o ritual busca interromper o poder da morte: que não se morra com o morto, nem no corpo, nem na casa. Tornar a morte algo que, depois de retraduzido (passado de uma gramática a outra), compreendido e, por isso mesmo, exorcizado, possa transitar de uma esfera aterrorizante, onde o poder da natureza desconsidera o da cultura, à própria “ordem natural das coisas”, aquele mesmo poder agora submetido ao controle dos símbolos deste.

Nominado, o que é terrível e inevitável passa a sagrado e até desejado. Atribuída ao morto sua morte, abre-se a possibilidade de supor sua imortalidade, E se a ele a crença do grupo supõe destinos bons e ruins, a força do rito esquece os que a sociedade teme e promete ao morto, agora e a todos, sempre, a generosa possibilidade de um destino desejado, longe ou “aqui”, mas em outro plano para onde o morto deve ir a fim de que os vivos possam permanecer onde estão e como são.

E, então, ficar significa também — pelo menos em tradições populares como a do catolicismo — incorporar a memória do morto à vida dos vivos. E eis que, entre familiares e parentes, mas também na vizinhança e na corporação, o corpo morto se torna o “morto querido” por que se ora e, sem demora, em certos casos até se pede, como a um santo. Não tanto como teoria sobre o mundo, mas como uma metáfora quase poética que melhor iluda com certezas do que explique entre dúvidas, eis que os ritos da morte recriam o morto entre os vivos e tornam ternura e terror, atribuindo pela via cultural do sentido dado ao afeto, significados acreditados e consoladores àquilo que os parentes e amigos vivos, na evidência da perda do morto que se lembra, despacha e honra, não conhecem e, portanto, não dominam.

2 Benedetto Croce, citado por Ernesto de Martino (Frammenti di etica, 1982, pp. 22-24), citados, por sua vez, por Maria Cristina Pompa, “Pensar a morte em Catuçaba”, em “ritos e mito da morte em Catuçaba: três estudos”, (Boletim de antropologia 2, IFCH/DCS/Unicamp, Campinas, p. 56).

A religião corrige a dicotomia dos mitos com que o homem pensa, através de oposições binárias, a matriz intrínseca do próprio pensamento humano. Se há entre todas uma antinomia básica, irredutível, entre vida e morte, uma religião como o cristianismo procura não tanto negar sua evidência natural quanto dotar o segundo termo das características ampliadas do primeiro. E isso significa, no fim das contas, não apenas negar a morte reduzindo-a a uma outra dimensão da vida, mas dotá-la da realidade inesgotável de uma vida em plenitude. Pois a morte não destrói o morto, ainda que visivelmente extinga sua vida entre os vivos. Ela apenas o desloca, isto é, transporta-o para um outro mundo ou para uma sucessão de outras vidas em outros corpos de outros planos de espírito e da matéria, onde ao morto se garante a sucessão de sua vida na passagem entre corpos e seres efêmeros, ou então sua “vida eterna” em algum lugar que, indiscutivelmente (ao contrário do mundo terreno, que um dia será destruído), ao mesmo tempo em que eterniza vidas individuais, torna perenes as relações exemplares da própria vida terrena, a começar pela da família e do parentesco. Não havendo destruição com a morte, mas separação entre planos de vidas e vivos, todo o problema do rito dos mortos é lidar com os mistérios dessa disjunção que, no entanto, realiza em cada um o mais absoluto encontro com sua própria unidade. Pois eis que mesmo aos condenados aos infernos a crença popular do catolicismo atribui uma vida una, eterna, em um único lugar (devo parte dessas idéias a minha orientanda Selma Baptista).

O rito da morte ou, melhor, a inteligência lógica de sua sucessão ao longo de um tempo e uma seqüência solenizam o reconhecimento coletivo de que o morto deixou seu lugar entre os vivos para continuar mantendo com eles uma ou algumas possibilidades de relacionamentos. Mas para que isso aconteça sem ameaças — para que uma “santa mãezinha” seja acreditada de fato como uma santa “nos céus” é afinal necessário que as cerimônias que vão das primeiras orações “de corpo presente” às sucessivas missas ou “rezas do terço” nos “aniversários de morte”, atestem:

a. que o morto de fato saiu de entre os vivos, realizou a passagem inevitável de um plano ao outro da vida e está cumprindo ainda um destino não-terminado (no purgatório, por exemplo), ou já se encontrou com ele em definitivo (de preferência nos céus, sobretudo em caso de parentes e, mais ainda, de familiares, como veremos adiante;

b. que o morto precisa dos vivos de maneira relativa ou absoluta para cumprir todo ou parte de seu destino benéfico; pois, se um homem se condena definitivamente aos infernos apenas pelo que fez entre os vivos, com eles, sua salvação “na Glória Eterna” depende tanto de suas virtudes terrenas quanto do trabalho religioso de seus vivos. A Dança de São Gonçalo é um intrigante exemplo disso, levado às últimas conseqüências. Pois se dança para que o morto encontre seu lugar. Um lugar para onde ele queira ir por conta própria ou um lugar para onde ele deva partir, se sua vontade de “alma” ou sua “sina” for permanecer para sempre ou por algum tempo na terra, longe dos vivos, próximo a eles, dentro de um deles. Porque, mais do que as idéias, nada pior do que mortos fora do lugar.

A Dança de São Gonçalo nos ajudará a recordar uma lição já de há muito sabida na antropologia: em nome dos mortos, entre vivos, é para eles que se faz tudo o que os ritos da morte afinal dizem e tornam solene. Se de um lado entre os que ficaram é preciso resolver como a casa, o grupo doméstico, a geração viva dos parentes deve depressa se organizar (herança e chefia são sempre problemas), preenchendo com a ordem o vazio deixado pela partida do que “se foi”, de outro lado é exemplar tomar o caso vivo do morto em nome de quem se ativa o sagrado, como um mito pessoalizado a

partir de onde com o fato da morte se repense a vida. A morte ensina, e os mortos julgam. Veremos adiante que a lembrança de quem foi “um pai” e como ele agiu em vida pesa mais, para o bem ou o mal, do que sua viva presença entre os filhos, irmãos, a quem importa agora lembrar e “seguir o exemplo”.

De alguma maneira até mesmo mais do que os vivos, os mortos familiares, parentes, companheiros e amigos protegem e perseguem, ameaçam e rogam, ensinam e esperam. Ora, e como existe entre as crenças do catolicismo popular e vivíssima suposição de que mesmo uma mãe exemplar em vida pode não alcançar a “salvação eterna” e torna-se, “lá do céu junto a Deus”, uma protetora dos filhos vivos, desde que tenha morrido com alguma dívida de promessa, existem também vários recursos religiosos por meio dos quais sempre é possível saldar a dívida para que o ciclo do destino se complete, e toda uma seqüência de relações essenciais interrompida seja retomada.

Na Função ou Folga de São Gonçalo se dança pelo morto.

2. Morrer sem cumprir

Em cada uma das seis demoradas “voltas” de uma Dança de São Gonçalo é comum que por um momento a dupla de violeiros devotos, tocando e cantando versos “trovados”, convoquem promesseiros e dançadores a que venham resolver a dívida que possuem com o santo, em nome de quem por uma noite inteira se dança diante de um altar com imagens, cores e fitas. Alegre e até saltitante na soltura do ritmo das violas, entre repiques, cantorios, palmeados e sapateados dos dançantes, a letra dos versos trai a euforia da dança e revela aos vivos uma terrível ameaça.3 Quem se diverte que escute; quem deve que cumpra. Por isso as pessoas parecem apenas dançar, mas a dança é o que serve para salvar suas almas.

Quem dever sua promessa

Vai pagando num repente.

Quem morrer, ficar devendo,

Ai, meu São Gonçalo sente.

Oi, devendo pra São Gonçalo

Lá no Céu Deus não consente.

3 São Gonçalo do Amarante é um santo português. É associado a cultos católicos populares em sua terra de origem. Alguns deles guardam até hoje evidentes características de sensualidade feminina, muito ao contrário do que acontece no Brasil, muito embora aqui como lá ele seja considerado o protetor preferencial das mulheres “mais velhas” e que ainda não conseguiram um casamento ou, no limite, um homem. Algumas lendas o apresentam como um padroeiro de prostitutas e também de violeiros (em sua imagem aparece com uma viola de tipo caipira). Diz-se que depois de morto descia dos céus nas noites de sábado e fazia dançarem as prostitutas até a exaustão, a fim de que não pecassem no “dia do Senhor”. No Brasil e, mais ainda, entre camponeses de São Paulo, a Dança de São Gonçalo é desvestida de qualquer aparência de sensualidade. Isso porque, entre outras razões, na maior parte dos casos ela é dançada “por alma”, isto é, em nome do cumprimento da promessa de um morto. A respeito da Dança de São Gonçalo no Nordeste, ver: Beatriz Góis Dantas, Dança de São Gonçalo, Cadernos de folclore 9 (1976), CDFB/Funarte, Rio de Janeiro; Maria Isaura Pereira de Queiroz, A dança de São Gonçalo, sociologia e folclore, Salvador, Progresso, 1958; (também em Campesinato brasileiro, Petrópolis, Vozes, 1973).

(quarta volta de uma função em Batatuba, município de Bom Jesus dos Perdões)

Em rigor, entre os camponeses de quem falo aqui, acredita-se que não existe possibilidade de que um promesseiro “seja salvo”, “descanse em paz”, ou “vá para o Reino da Glória”, possuindo sem haver pago urna dívida de promessa com São Gonçalo. Dívida assumidamente contraída através de um voto feito e reconhecido como “válido”, isto é, atendido pelo santo. Uma promessa sempre deve ser cumprida, por pequena que seja, como dançar por alguns minutos em uma das seis voltas com a imagem do santo entre as mãos. Mais do que outros santos de culto católico freqüente na região, São Gonçalo é considerado um santo “bom e poderoso”. Dificilmente ele deixa de atender a uma súplica feita com fé: para casar, para curar urna doença do corpo, especialmente as das pernas, por urna outra “graça” qualquer. Mas ele é também um santo atento e vingativo. Não perdoa o devente e possui poderes para conseguir junto à própria divindade que o promesseiro não-cumpridor “não entre nos céus” mesmo que seus outros pecados sejam leves o bastante para livrá-lo definitivamente da “maldição do inferno”, e até de um estagio prolongado no purgatório.

Porque, segundo a lenda, São Gonçalo, se você ficar devendo, ele não perdoa. Ele socorre mas não perdoa. Então que seja em vida, ou depois que ele morre, um parente tem que pagar a promessa. (Antônio Telles, mestre folgazão em Batatuba)

Eis o segredo do que discuto aqui. É melhor que ainda em vida o devoto devedor pague seu voto. Primeiro porque, pelo menos no campo de seus acertos de contas com o Santo, ele garante o direito à viagem da sociedade dos vivos à sociedade dos salvos. Segundo porque, sendo um bom pagador, logo, um verdadeiro devoto, ele mantém a escrita das contas em dia e de novo pode recorrer ao santo. Pode renovar suas promessas e, finalmente, estabelecer entre sua pessoa e a do santo uma relação contratual estável, aquela que transforma o promesseiro eventual em um devoto de carreira, como o são quase todos os cantadores e dançadores profissionais da Folga de São Gonçalo. Terceiro, porque, morto sem “dever pro santo”, ele livra os parentes vivos do dever de terem de pagar pelo morto sua dívida, convertendo-se eles próprios em promesseiros sobre quem recaem todas as penas atribuídas também ao devedor.

Por isso mesmo, da primeira à última volta da folga os violeiros lembram e relembram o dever da dívida.

Quem dever pra São Gonçalo

Vão pagando enquanto é hora.

Se morrer, ficar devendo,

Deus não dá o Reino da Glória.

São Gonçalo não recebe

Nem também Nossa Senhora.

Enquanto não pagar a promessa

Lá dentro do Céu não mora.

(quinta volta da mesma função em Batatuba)

Promesseiros comuns, que os outros paguem em qualquer um dos muitos momentos devidos seus votos. Há uma noite inteira de reza e dança para isso. Mas o festeiro, o “dono da promessa”, este não só patrocina a noite de dança e paga por ela como deve dançar entre os outros pelo menos durante a primeira e a última volta, o Caruru, que os violeiros cantam quando o dia amanhece. Por isso, cantando também, é a ele que se lembra, que, se ainda falta algo a fazer, aquela é “a derradeira hora”.

Ai, senhor dono da promessa

Ai, escute o que eu canto agora,

Ai, se dever sua promessa

Ai, essa é a derradeira hora.

Ai, São Gonçalo no altar

Ai, ele é o nosso padroeiro.

Se acaso algum dever promessa

Ai, esta hora é o derradeiro.

(sexta volta de uma função dançada em casa de Antônio Telles, em Batatuba)

Como para as pessoas mais velhas e as mulheres o ter de pagar um voto feito por meio de entrar na dança e dançar pode parecer algo difícil e grotesco, os violeiros sugerem que se esqueça a vergonha e se cumpra a promessa. Uma coisa pode comprometer a pessoa aos olhos dos vivos; outra é condição para que ela se descomprometa aos olhos dos santos. E o devedor que não pagou, mesmo quando, morto, sobe ao céu, é para ser julgado e, achado em falta com São Gonçalo, devolvido.

Oi, quem dever para São Gonçalo

Não tenha vergonha de vir pagar,

Se morrer, ficar devendo,

Ei, lá no céu torna voltar.

(segunda volta de uma função em Atibaia)

3. Voltar para pagar

Mas voltar para onde? Retornar para quê? Eis difíceis questões que toca ao imaginário do catolicismo popular resolver. De acordo com a doutrina católica que o homem do campo aprendeu com a Igreja, mortos vão para lugares definitivos: o céu, o inferno ou o limbo (para onde vão crianças mortas sem o batismo). Há um único lugar provisório: o purgatório, que a memória da própria Igreja hoje parece esquecer: uma sociedade intermediária entre a terra e o céu, onde os penitentes, pecadores recuperáveis, cumprem, como “almas do purgatório”, um estágio sofrido de purificação para depois ingressarem para sempre no mundo social dos salvos: o céu.

Intensamente insistida pelos pentecostais, que hoje invadem em ondas de pequenos grupos fervorosos os recantos do campesinato tradicional, é pouco lembrada

entre católicos da região a doutrina da volta dos salvos com Deus à terra, onde, depois das grandes lutas prometidas no Apocalipse, os demônios e os maus serão derrotados definitivamente, para que então reine em uma nova terra um tempo sem-fim de glória, paz e felicidade. Aceita, também, a doutrina da ressurreição da carne, que o credo rememora, é pouco vivida como crença cotidiana. Assim, os lugares dos seres supra-humanos ou humanos santificados são os do céu.

Mortos são seres sociais tanto quanto os vivos. “Almas do purgatório” são entidades poderosas e agem individual e coletivamente em favor dos vivos. Seres liminares — fora da sociedade dos vivos e ainda não incluídos na sociedade dos salvos — em troca de orações “pela salvação” podem atender a pedidos de devotos. Até mesmo no inferno e “condenado” não perde sua pessoa e por não perdê-la é que ele sofre pelo que fez em vida. Este é um ponto importante. Embora o destino do morto seja sempre individual e em boa medida definido pela maneira como ele o cumpriu enquanto vivo e entre os vivos, o lugar de viver a vida depois da morte é sempre coletivo.

Dos lugares coletivos do destino dos mortos, apenas o céu é imaginado como uma sociedade completa; na verdade como a sociedade perfeita, de que a dos vivos não é mais do que uma réplica empobrecida ao extremo. Melhor do que a terra, o céu é um mundo gloriosamente social que reúne, sem destruir individualidades e classificações: deuses (pessoas de uma mesma divindade), santos e salvos, ao lado de milícias de anjos. Ali, à diferença do que acontece no inferno (o demônio não tem filhos nem parentes, mas seguidores e servidores) e, mesmo no purgatório, não apenas as divindades são e permanecem parentes para todo o sempre como também os outros sujeitos: os santos e os salvos, são entre eles também parentes — consangüíneos ou afins — companheiros ou vizinhos. Se o Deus é rei de todos os homens, ele mesmo se desdobra nas pessoas de um Pai, um Filho e um Espírito Santo, o engendrador do Filho no ventre de sua mãe, uma humana santificada. Do mesmo modo, João Batista é padrinho de Jesus, logo, do Deus-filho, assim como pode ser o padrinho de qualquer mortal que o tome para tanto, “Santana é a maior santa/Que lá no céu existe/Santana é a mãe da mãe/Santana é a avó do Cristo”, cantam antigas músicas devotas. Além de ser “a mãe de todos nós” por ser a do Deus-salvador, Maria pode ser a madrinha de alguma criança pobre e “enjeitada”. Segundo a crença popular, um humano santificado, como o Padre Cícero no Nordeste ou o Padre Donizetti em São Paulo, pode possuir incontáveis afilhados antes e depois de morto. Do mesmo modo, mais do que especialistas em dádivas e proteções setoriais, santos são padroeiros de localidades, de corporações e famílias, são protetores pessoais de seus devotos, Essa troca contínua de serviços entre o céu e a terra se atualiza como uma relação de amizade preferencial, quando o devoto se encontra com seu padroeiro no céu. Uma das esperanças mais acentuadas nas crenças do catolicismo camponês é a lembrança de que no céu os sujeitos plenamente mortos são parentes plenamente vivos. Vivos eternos que, livres do sofrimento e de uma outra morte, reencontram-se para sempre com e como familiares. E, definitivamente reencontrados, estabelecem pela eternidade os laços costumeiros que a morte não destruiu. Salvos e parentes habitam a morada do próprio Deus, o único lugar não-ameaçado de destruição, que “não teve princípio e não terá fim”, como dizem incontáveis orações populares, falando da sociedade de Deus: o céu, o mesmo que falam do deus da sociedade: o Pai.

Mas onde ficam os mortos deventes? Onde estão afinal aqueles em nome de quem por uma noite se dança “o São Gonçalo” e que não são pecadores comuns mas pessoas de quem se sabe que morreram sem pagar seu voto com o santo. Afora os pecados que possam algum dia ter cometido, possuem uma dívida que, ao contrário das pequenas faltas humanas, uma vez mortos, nunca mais poderão eles próprios pagar.

Justamente por haverem sido separados das condições sociais de atualização da dívida, eles são mortos que dependem agora dos vivos. Por isso mesmo, sem ser “almas penadas”, anônimas ou nominadas, que por toda a parte se reconhece que existem, são seres vagantes. Mortos sem descanso, são pessoas sem paz, e várias quadras das canções da dança anunciam que apenas depois do “cumpre o voto” elas poderão sair da maldição, poderão deixar de vagar e abandonarão para sempre o mundo dos vivos, ingressando na “Glória Eterna”.

São raros os dançadores do São Gonçalo que acreditam de modo mais ortodoxo que os mortos devedores penam no purgatório. Quase todos crêem que eles permanecem no mundo dos vivos ou em algum lugar de onde podem vir de volta aos vivos para falar com eles. Já que o saldo da dívida depende agora do trabalho ritual dos vivos, os mortos procuram convencê-los tantas vezes quantas forem necessárias, até quando sua dança ao santo se cumpra.

Durante a dança, primeiro os vivos avisam aos vivos que não deixem de pagar de uma vez o compromisso com São Gonçalo, para que não venham a morrer devedores, “deventes”. Depois, aqueles que mesmo assim morreram “devendo pro santo” avisam aos vivos sobre a sua condição. Na noite do acerto, nos versos finais da última volta e também nas orações do fim de função, os vivos avisam ao morto que sua promessa “já está cumpre”. Os parentes vivos que promoveram a dança em nome do morto estão livres de seu compromisso com ele. O morto está também livre de precisar voltar aos vivos como um devedor. Ë crença muito comum que parentes mortos podem ser. e com freqüência o são, protetores de seus familiares vivos. Portanto, com mais razão ainda, salvo de “vagar”, através do rito dos vivos, o devoto devedor torna-se nos céus um protetor de seus parentes.

Iniciado por uma “precisão do devoto”, que gera a promessa, continuado por um esquecimento, que gera a “dívida da alma”, o ciclo se encerra com o rito que reconcilia, entre parentes, os vivos com os mortos e todos com o santo.

4. Pedir a dança

Há uma observação unânime entre todos os pesquisadores da Dança de São Gonçalo no Nordeste ou no Centro-Sul do País: mais do que quase todas as outras, ela é uma dança votiva. Não se dança para São Gonçalo em um seu dia de festa, como entre negros para São Benedito ou para Nossa Senhora do Rosário. Muitos devotos com quem conversei sequer sabiam qual é o “dia de São Gonçalo”. Também não se “encosta” a dança em outras festas, como em Minas, Goiás e São Paulo, grupos de congos e moçambiques fazem durante festas ao Divino Espírito Santo. Fora do período da Quaresma, dança-se o São Gonçalo em qualquer noite, com preferência pela de sábado. A função sempre é feita a pedido de um devoto promesseiro que com o propósito de salvar sua dívida — pessoal ou herdada — entra em contato com uma equipe de folgazões, define com ela uma data, promove a dança e arca com os gastos do transporte dos folgazões, da decoração di local da dança e da alimentação dos dançadores por uma noite.

Uma equipe estável de folgazões do São Gonçalo se define como uma pequena e pouco hierarquizada confraria de devotos que sem reuniões prévias e sem outros ritos,

como acontece com vários grupos de fiéis-artistas associados a outros grupos de dança, atualizam o ofício de sua devoção realizando a dança que algum promesseiro promove. Dançadores do Congo poderão dizer que seu rito é uma devoção e uma diversão e ao mesmo tempo, o “festar para o santo” é cumprir justamente uma dessas coisas, vivendo a outra. Folgazões do São Gonçalo jamais dirão o mesmo. Reconhecem que sua dança é uma pura devoção, mesmo festiva. Alguns dirão que a Folga é uma longa oração que se canta e dança coletivamente. Mais do que uma dança em que se reza, é uma reza que se dança.

Mais da metade das funções que presenciei na região paulista entre os municípios de Itatiba e Piracaia foram realizadas “por alma” e saldavam dívidas de mortos com o trabalho ritual dos vivos. Outros autores do assunto falam sobre o caráter votivo da dança e sobre a possibilidade de ela ser feita em nome de um morto.

Ligando-se ao sagrado através de relações pessoais e contratuais regidas pelo princípio de “toma lá, dá cá”, o devoto encontra na promessa a contraparte dos benefícios que espera dos santos. O cumprimento desta é, por conseguinte, condição indispensável à manutenção da relação estabelecida entre o santo e o devoto. A morte do promesseiro antes de cumprir o voto causa quebra neste equilíbrio, com repercussões negativas para o morto e seus parentes vivos, que deverão providenciar o pagamento da promessa do defunto a fim de estabelecer o equilíbrio rompido.

Nestes casos, a execução da dança exige maior respeito e observância de certas normas por parte dos executantes do ritual. Em Laranjeiras, por exemplo, prescreve-se um período de abstinência sexual antes da realização da dança, quando esta é realizada para pagar promessa de defunto. Ë necessário estar de “corpo limpo” e isento de sentimentos negativos com relação ao próximo, para que o ritual seja aceito pelo santo e possa a alma do morto gozar da paz da qual se via privada pelo não-cumprimento da promessa.4

Transcrevo alguns depoimentos durante a ocasião de funções de São Gonçalo. São de parentes que cumpriam promessas em nome de mortos familiares ou de mestres folgazões.

1º — Meu pai mesmo, ele morreu e tinha voto com São Gonçalo. Ele morreu devendo e voltou pra pedir. [Quer dizer que o pai do senhor morreu e o senhor não sabia que ele tinha feito a promessa?]. Eu sabia, mas tinha esquecido. Eu era meio moleque. E depois de 17 anos é que ele veio desencarnar. Ele tava no escuro, não tinha luz pra ele enquanto não fizesse a festa. Aí eu fui lá e avisei ele [o mestre da turma de folgazões], e marquei e nós fizemos [a dança]. E depois ele veio com uma luz, igual aquela lá; eu não agüentei. Ele apareceu sozinho. Eu tava dormindo, mas não tava dormindo. Depois eu acordei e vi aquela luzinha brilhando. A gente não agüenta, não sei se por ser encarnada, né? Dá aquele tremor... e vai. Ele veio pra agradecer. Veio pequenininho, bem branquinho. Ele chegou naquele esplendor, e eu já tava que não podia bulir com um dedo e não pude gritar ninguém. Fiquei só com o olho assim... piscar também não pode. Fica parado. . . E ele chegou. Veio na distância. Quando ele viu que eu não agüentava, ele voltou pra trás. Aí me deu dó, depois que ele voltou. Mas ele veio, por Deus do Céu. (um promesseiro em Atibaia.)

2° — É, eu estou cumprindo uma promessa de minha mãe. Ela faleceu sem tempo de cumprir. Sempre um da família tem de cumprir. Já faz uns cinco ou seis anos

4 Beatriz Góis Dantas, op. cit., p. 18.

que ela fez promessa. (uma promesseira, mulher de classe média moradora em São Paulo e que veio a Atibaia cumprir a promessa na Dança).

3º — Ele tinha um filho de 22 anos, e fizeram promessa pra São Gonçalo: a promessa era fazer uma festa pra São Gonçalo e comprar uma viola; quando a festa terminasse, desse de presente pro mestre da turma. E vai o moço faleceu e daí uns tempos o pai trocou de religião e não fazia a festa. Então, quando passou uns tempos, ele falou pra mim. Não sabe se foi sonho ou se foi. . . se ele viu mesmo o filho dele. Apareceu perto da cama dele. Ele disse: “olha, meu pai, o senhor é de outra religião, mas eu devo promessa e do jeito que eu prometi que quero que seja feito”.

Eu fui e cantei [fez a dança]. Apesar dele ser crente, quando eu cantei o Caruru e tava dando a despedida — e nos versos explicava que o filho devia a promessa e, apesar do pai ter outra religião, tava pagando a promessa do filho falecido, ele não foi perto da imagem [de São Gonçalo, no altar], mas ele chorou encostado na beira do rancho, por lembrar do filho que devia esta promessa. E ele, apesar ser de outra religião, ele cumpriu a promessa.

E tem outra. Por exemplo, uma pessoa morre e deixa promessa pra São Gonçalo. Ou em sonho, ou de outro modo, ele pede [a um parente vivo] pra cumprir a promessa. Porque São Gonçalo não perdoa. Ele faz o milagre, mas ele quer a paga. E, por exemplo, eu cheguei aqui: uma pessoa morreu e pediu pra um pai, uma mãe ou um parente pagar a promessa, fazer a festa que ele deve. Eu marco daqui a um ano a festa, e você paga a promessa e nunca mais aparece em sonho nem de jeito nenhum. Agora, tem de marcar, e acaba tudo.

[E se não marcar?]

Se não marcar continua. Porque minha mãe, ela contava que uma cunhada dela morreu e deixou uma promessa pra São Gonçalo, pra ser feita. E minha mãe sabia que ela devia essa promessa, mas não procurava pagar a promessa.

Quando foi um dia ela deitou na cama e não dormia. Parecia que a cama estava cheia de espinho. Ela virava pra lá, pra cá e não dormia. Quando foi tarde da noite sentiu que abriu a porta da cozinha e veio vindo pro quarto dela e ela quis levantar e não pôde. Ela ficou na cama assim... olhando pra cima. Aí empurrou a porta do quarto e entrou. E ela reconheceu que era a cunhada dela e o sogro também na beira da cama. E [a cunhada falecida] disse: “Você paga a minha promessa porque eu estou precisando, porque São Gonçalo não perdoa e eu quero que pague”. Ela conta que no início ela contava e chorava. Que a cunhada dela pegava na mão dela e apertava bem. E foi embora. E quando ela saiu, levantou, porque era mulher de coragem. Chegou na porta do quarto que tava fechada por dentro. Foi na cozinha... a porta fechada por dentro. Quando passou um mês e pouco ela cumpriu a promessa. (Antonio Telles, mestre folgazão)

4º — Essa é uma promessa que a minha mãe fez pra mim cumprir. Então eu peguei sonhar e daí resolvi fazer a festa. Ela faleceu faz tempo, sem tempo de cumprir. Faz um ano e meio já que ela faleceu. Então tá na hora de cumprir, pra deixar cumpre, não é? Sempre que morre um, outro faz na família: um pai, um irmão, outro, os irmãos.

(Faz muito tempo que ela fez a promessa?).

Não, faz uns cinco ou seis anos. Ela morreu e veio pedir. Daí nós juntamos os irmãos e hoje vamos fazer. Ela agora vai ter paz e vai ajudar nós.

(um entre três irmãos que vieram se reunir em Atibaia, onde nasceram, para promoverem a dança).

Outros depoimentos não são muito desiguais e, na verdade, são variações de um mesmo tema. A regra é a seguinte:

1º — uma pessoa faz uma promessa a São Gonçalo e nem sempre em vida comunica a um parente o que fez;

2° — ao reconhecer que o santo cumpriu a parte dele, sendo a dádiva do pedido concedida, ela se reconhece devedora de um voto que é pago com sua participação pessoal na Dança de São Gonçalo, ou então com sua responsabilidade pela promoção de uma Folga;

3° — muito antes ou pouco antes de morrer ela comunica a um parente que “tem promessa com São Gonçalo”, comprometendo o parente avisado com o mesmo dever do voto, caso venha a falecer antes de cumpri-lo;

4º — quando não há tempo ou a intenção do aviso, acredita-se que por meio de sonhos ou de visões o promesseiro morto surge a um ou mais de um parentes e lembra, pede ou exige o cumprimento de seu voto;

5º — o parente avisado se reconhece como promesseiro, nos termos em que o devedor primitivo estabeleceu o modo de pagar o voto;

6° — passado algum tempo (ouvi casos que vão de seis meses a trinta anos) o parente convoca uma equipe de folgazões e promove uma noite de dança votiva a São Gonçalo, por sua própria conta ou com a ajuda de outros parentes;

7º — a realização de uma função ou a participação de um parente do morto na dança saldam plenamente a dívida do vivo e do morto; a alma deste último reequilibra definitivamente suas relações com o sagrado — caso não tenha outros votos, com o mesmo ou outros santos, o que se reconhece que é muito raro — garante seu acesso pessoal à sociedade dos salvos e passa a ser um ser protetor dos parentes vivos, principalmente se for uma mãe ou um pai.

Conheci um único caso em que um parente avisado de um morto promesseiro morreu também sem cumprir o voto. Pai e filho surgiram em sonhos a outros irmãos, e eles poucos anos depois cumpriram com a dança o compromisso dos mortos.

5. Dançar pelo morto

Em estudos anteriores fiz algumas descrições mais completas da Dança de São Gonçalo. Outros pesquisadores escreveram relatórios bastante bons sobre a dança, inclusive a respeito de sua prática no Nordeste. Limito-me aqui, por isso mesmo, apenas aos aspectos ligados à questão da morte.

Resolvidos os tratos antecedentes entre o promesseiro-parente, parentes e amigos auxiliares, e a equipe de dançadores-folgazões, um lugar é preparado para a “festa”. Algumas vezes, quando o responsável pela dança é pobre, é costume que ele “esmole” na vizinhança para cobrir com o que recebe os gastos que fará. Com uma imagem do santo, sozinho ou acompanhado, o devente vaga de porta em porta anunciando o dia da Dança e pedindo “oferta”. Faz sem canto e outros ritos aquilo

mesmo que as folias de Santos Reis, do Divino Espírito Santo ou de outros padroeiros comunitariamente festejados realizam com pompa e cantoria.

O local da função é quase sempre o terreiro de um sítio. Pode ser também o adro rústico de uma capela rural, o fundo de um quintal de casa de periferia de uma cidade ou mesmo um galpão de oficina, como aconteceu com uma dança de que participei em Atibaia.

Junto a uma parede arma-se um altar sobre uma mesa comum, que uma toalha branca deve cobrir. Imagens de São Gonçalo, São Benedito e Nossa Senhora da Aparecida devem estar presentes, mas as de outros santos podem ser também “convidadas”. Não é raro que um devoto leve uma imagem sua para “assistir à festa”. Quadros religiosos e bandeirolas coloridas, na parede e penduradas dentro do local coberto do altar e pelo terreiro, completam a decoração roceira do local da festa. Quando a dança é “por alma”, é freqüente que um retrato do morto seja colocado sobre o altar em um quadro, com uma tarja negra passada na diagonal. Pelo menos uma cruz negra de papel pregada na toalha que pende da parede atrás do altar deve ser o sinal de que ali se “dança por alma”. Antônio Telles cantava isto em uma das primeiras voltas de uma função em Guaxinduva:

Quando eu cheguei aqui no altar

Pra São Gonçalo eu pergunto

Se a promessa é de vivo

Ou se ela é de defunto.

São Gonçalo respondeu

E me mostrou uma cruz de luto,

O dono da promessa morreu

E São Gonçalo levou junto.

E, para que todos saibam, nos versos seguintes ele reforça o acontecido: ali se está em nome de um morto devedor.

E quando eu cheguei no altar

O meu coração doeu

E eu perguntei pra São Gonçalo

O que foi que aconteceu,

E São Gonçalo me falou:

Dono da promessa morreu,

Fez um pedido em sua vida

E de pagar se esqueceu.

Nas regiões paulistas onde ainda se a cumpre completar a Folga de São Gonçalo divide-se em três partes:

1ª — uma pequena procissão rural que parte da casa da festa e, com andores e acompanhamento de pessoas e cantos votivos, vai a uma casa perto buscar os andores de São Benedito e Nossa Senhora da Aparecida;

2ª — demoradas orações ao pé do altar, quando então se pede pela primeira vez pelo morto e por outros devotos, vivos e mortos;

3ª — as seis voltas da dança, que invariavelmente terminam com orações finais de novo ao pé do altar.

De um conjunto de orações colhidas antes da dança, transcrevo três com o momento em que o rezador pede a Deus por pessoas mortas.

Divino Jesus, eu ofereço essa romaria que fizemos nesta hora e essa ladainha jaculatória e as Sete Dores de Maria Santíssima, que nesta noite estamos pagando a promessa desta senhora. E Deus dê a luz eterna e descansa em paz. (em Guaxinduva, município de Piracaia)

Deus tenha piedade e misericórdia desta alma no Reino da Glória. E nós pedimos em esperança a São Benedito, a Nossa Senhora e ao Anjo da Guarda: guardai a alma de Argemiro. Deus lhe dê um bom descanso, paz e alegria. Pedimos a Deus e à Virgem Maria e no vosso poder uma graça. Esse poder vos pedimos nós pela alma de Argemiro. E Deus dê um bom descanso e descanse em paz. Esse Pai-Nosso e Ave-Maria ao Divino Espírito Santo, que cobrem a alma de Argemiro com o seu divino manto. E a Nossa Senhora da Guia e o Bom Jesus, que guia os nossos passos e os passos da alma do Argemiro. (em Atibaia, durante função por alma de um antigo folgazão do São Gonçalo)

Minha Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora da Aparecida, Virgem Maria Concebida sem pecado, suplicamos com as almas dos fiéis e as almas que estão no Céu. Peço pela alma de meus parentes: meu avô, minha avó, para todos dai a proteção e para o morto dai a salvação através das almas (já salvas). Peço pelo morto, por meu avô, meu bisavô, meu padrinho, minha madrinha, meu pai, minha mãe e peço pela minha mulher e meus filhos tudo (estes últimos, vivos). (final de uma reza em Martim Francisco, município de Mogi - Mirim)

De modo diferente a como Beatriz Góis Dantas e Maria Isaura Pereira de Queiroz anotaram para os casos de danças em Sergipe, Alagoas e Bahia, nas regiões por onde andei em São Paulo não há diferenças importantes entre folgas por “vivo” ou por “alma”. Ali a Dança de São Gonçalo é alegre e festiva. Confunde-se, ao longe, com uma Catira e é nos pequenos sinais de “respeito e devoção” que os folgazões traçam a diferença: dançam diante de um altar, cantam músicas religiosas, estão sem chapéus, não fumam e não bebem bebidas alcoólicas; dançam com “devoção”, como uma reza.

Os homens dançam em duas filas, aproximando-se e afastando-se do altar sem nunca darem as costas a ele. Batem cadenciadamente os pés e as mãos durante os “repiques” das violas, nos intervalos entre os versos entoados pela dupla de violeiros que encabeça a turma de dançadores. No fim das filas, depois dos homens e dos meninos, as mulheres dançam com o só caminharam para a frente e para trás, sem batidos de pés e mãos. Ora, o fato de a Dança de São Gonçalo ser considerada indiscutivelmente devota e ser, ao mesmo tempo, alegre e “movimentada”, aproximando-se coreograficamente de danças profanas, obriga mestres e violeiros a repetirem nos versos, avisos sobre o caráter religioso da dança e as condições de “respeito e devoção”, para que o devoto possa participar dela sem perigos.

Os devotos bateram o pé

Com respeito e devoção,

E todos com muito respeito

Que é pra promessa ficar aceito

Que é a nossa obrigação.

Com respeito e grande fé

Os devotos bateram o pé

E também bateram a mão.

(primeira volta de uma função em Guaxinduva)

Mais do que religiosa e votiva, a dança é o momento central de uma Função de São Gonçalo, de que orações e romarias são molduras para o começo e o fim. É através da dança e do dançar — do participar dela, de algum modo — que o fiel atualiza a sua devoção a São Gonçalo ou, sendo também um promesseiro, “fica sempre com o santo”. Portanto, não é necessário fazer mais pela alma do morto do que dançar por ele, mencionando o fato, acompanhado de seu nome, de preferência.

Durante as seis voltas de uma noite de dança, equipes de violeiros podem se suceder. Como a Dança de São Gonçalo atravessa uma noite inteira e seu cantorio cansa a voz, não é raro que em uma mesma equipe de folgazões haja de duas a quatro duplas de violeiros capazes de entoarem os versos de uma volta. Em cada uma delas a dupla canta: saudando os santos do altar, anunciando os termos do ritual, dizendo quem são e a razão pela qual estão ali, comandando o movimento dos dançadores, entoando orações e súplicas, anunciando aos promesseiros que suas dívidas estão pagas.

Embora o anúncio do cumprimento dos votos do promesseiro seja feito solenemente nos momentos finais do Cururu, avisos de condutas para pagamento de pequenos votos em cada volta — danças com imagens de santos nas mãos, fazer “santa mesura” etc. — são ditos em cada uma das seis voltas, dado que pequenos promesseiros cumprem seus votos com o apenas participar de uma delas. Mas sempre o voto de um morto exige toda a dança, melhor, exige toda uma função completa. Por isso mesmo, não é raro que em todas as voltas a dupla de violeiros lembre que ali se dança em nome da salvação da alma de um morto.

Senhora da Aparecida,

São Gonçalo tá rezando

Vamos poder chegar dançando.

Senhora da Aparecida

Ela tem seu lindo véu,

Vamos nós chegar rezando

Pra essa alma chegar no Céu.

(Função de São Gonçalo em Atibaia com cinco altares; cinco equipes de folgazões cantando e dançando em um mesmo lugar, ao mesmo tempo)

Essa promessa é de alma

Que aqui estamos dançando,

Me dá licença São Gonçalo

Que nos teus pés tamos dançando.

São Gonçalo tá bem sabendo

Que a promessa é de alma,

Meus senhores que estão dançando

Façam viva e batam palma.

(mesma função em Atibaia, terceira volta)

O altar de São Gonçalo

Tem uma coisa diferente [o retrato do morto]

essa promessa é de alma

Vai no Céu e para sempre.

(função em Martim Francisco, primeira volta)

Assim, por toda uma noite dançam os vivos pelos mortos. Dançam na verdade por eles próprios também: folgazões, devotos de carreira e promesseiros de ocasião. Uns para manterem vivo o culto do som, que dando nome e sentidos ao rito da dança torna legítimo o trabalho que produzem e necessário seu exercício. Outros para se descobrirem, depois de dançarem toda a noite, ou por um momento, livres da “dívida”, segundo os termos “da promessa” que eles próprios formularam, mas que uma vez pronunciada no silêncio da prece torna-se uma obrigação tão grave, que precisa ser saldada mesmo depois da morte. Dançam também, e não são poucos os dançadores que reconhecem isso, porque o trabalho da dança reforça laços antigos entre parentes, amigos e vizinhos. Por isso mesmo, sendo uma oração que se dança, é também uma festa em que se dança e, mesmo quando por um morto, é uma ocasião a que se acorre com alegria. Dançam ainda, e os mais velhos insistem muito sobre o assunto, porque a Dança de São Gonçalo torna sonoros, invulgares e maravilhosamente coreográficos alguns símbolos queridos da vida cotidiana. Palavras, objetos e gestos através dos quais homens e mulheres se investem como devotos e dançadores, para se dizerem que são parte de uma mesma identidade desejada e cada vez mais difícil de ser preservada, tanto quanto as condições materiais da vida camponesa de que se reconhecem ao mesmo tempo originados e, pouco a pouco, expulsos.

6. As trocas que há na morte

Vimos que a pessoa do morto não se dissolve com a morte e em certos casos pode comunicar-se ativamente com os vivos. Relações pessoais e principalmente familiares entre vivos e mortos não se extinguem por muito tempo, de tal sorte que entre uns e outros supõe-se que há e devem haver contínuas trocas de serviços. Vivos devem cuidar do corpo do morto, prepará-lo para o enterro e enterrá-lo cumprindo, com ou sem a presença de um sacerdote, os ritos religiosos, eclesiásticos ou populares de preceito.

Devem orar por ele: muitas vezes, logo após a morte, algumas vezes, tempos depois dela. Pequenas cerimônias pessoais e coletivas auxiliam o morto a encontrar o “caminho da salvação”; e, mesmo reconhecida como “uma santa” durante a vida, uma mãe morta não dispensa atos e preces com que filhos e parentes vivos confirmam uma salvação tida já como certa. Por outro lado, de uma tal mãe os vivos esperam a proteção celestial de um ser que, morto e salvo, não deixa de ser parente e estar presente.

A Dança de São Gonçalo evidencia a continuidade das relações entre familiares, compadres e outros parentes, consangüíneos e mesmo afins. Não conheço casos em que o pedido de um morto tenha sido feito a um não-parente. Pais devotos devedores recorrem a filhos: a mãe a uma filha, e o pai a um filho. Essa relação de serviço é mais freqüente do que entre esposos. Irmãos aparecem com freqüência a outros irmãos, obedecendo à mesma ordem de preferências: irmãs pedem a irmãs, e irmãos a irmãos. Não conheci pessoalmente casos de pedidos entre compadres ou entre padrinhos e afilhados, mas elas foram definidas com possíveis. Parentes próximos, ascendentes ou colaterais com quem se repartiu a vida e de preferência se teve durante ela muita ou alguma familiaridade, são aqueles em nome de quem se dança o São Gonçalo. Eis um esquema que sintetiza as obrigações de dançar pelo morto:

Toda uma parentela e toda uma vizinhança de um bairro rural podem, com graus variáveis de envolvimento, ajudar um promesseiro a realizar uma função de São Gonçalo e podem participar dela, seja prestando algum tipo de serviço necessário (fazer a comida, servi-la, arrumar os andores ou o altar), seja incorporando-se a um ou a todos os momentos do rito: a “romaria”, as rezas, uma volta da dança, todas as seis voltas.

O São Gonçalo é um pequeno mutirão de trabalho religioso que por uma noite reúne:

a. um devoto-promesseiro e membros de sua família nuclear, a quem cabe a responsabilidade do evento;

b. parentes, vizinhos e conhecidos (ajudantes, assistentes, dançadores-livres ou dançadores-promesseiros);

c. uma (às vezes de duas a sete, quando a função é de mais “altares”) equipe de folgazões nem sempre residentes no local da dança.

As modalidades de obrigações e formas de participação não diferem muito das de um mutirão “de serviço” ou das de uma outra qualquer “festa de santo”: a responsabilidade é do promesseiro (festeiro) e de pessoas de sua família nuclear; a co-responsabilidade é de parentes e de amigos da vizinhança (às vezes também de parentes não-residentes na comunidade); o trabalho ritual é feito por uma equipe de devotos nunca remunerados por seu trabalho.

Pensar em nome de que parentes esses lavradores e pequenos sitiantes fazem sua Dança a São Gonçalo ajuda a compreender como eles diferenciam suas relações de parentesco e como estendem aos mortos uma rede de memórias, nomes e obrigações que transforma a realidade da família em algo simbolicamente mais amplo do que a teia familiar dos vivos.

Entre camponeses do interior do País, mais ativamente do que entre parentes urbanos, o ancestral, o antepassado, é todo consangüíneo reconhecido como ascendente próximo, não necessariamente fundador de uma família nuclear ou de uma rede de parentes: uma “família”, um “povo”, uma “nação” de gente. Sem nunca o haver conhecido, Sebastião Bento, mestre folião de Goiás, reconhece um Joaquim Paulista — cujo próprio verdadeiro sobrenome é desconhecido dele e mesmo de seus irmãos e primos mais velhos — como o mais distante entre os ancestrais nominados da “não dos Bento”, ou seja, de uma descendência d que ele próprio é parte: “foi um paulista que veio de São Paulo pra Goiás”.

Entre famílias de pequena e média nobreza rural, ancestrais remotos são reconhecidos, nominados e são objeto de pequenos cultos coletivos. Entre camponeses mais pobres, ancestrais longínquos não são sujeitos importantes. Na verdade, em geral eles não são sequer reconhecidos como sujeitos familiares de referência. Ascendentes de quem se fala, pelos quais se reza e dos quais às vezes pende da parede um velho quadro são os pais, avós, no máximo, um bisavô.

Entre vivos e mortos não são estabelecidas relações afetivas e simbólicas relevantes, a não ser com aqueles com quem os vivos conviveram no interior da vida da família ou da parentela. Trocas diretas, afetivas e produtivas em vida geram a continuidade de relacionamento religiosos, depois da morte de uns e durante o restante da vida de outros. Um “cumpadre” pobre mas próximo presente e com quem a família do afilhado conviveu anos a fio, repartindo momentos intensos de vida e trabalho, é um sujeito muito mais importante, depois de morto do que um distante e pouco conhecido bisavô, de quem os vivos mais moços sabem apenas alguma coisa, através da memória de um velho avô ainda vivo. Entre os pequenos sitiantes, lavradores sem-terra ou cativos do campo migrados para a periferia das cidades, com quem estive em funções do São Gonçalo, a ancestralidade é menos política, é mais restrita e muito afetivamente religiosa. Mortos antigos não são títulos, são nomes: pessoas vivas.

As normas da convivência misturam-se com regras de parentesco que às vezes transgridem.

Em direção oposta, quando mais tradicionalmente “fazendeira” for uma família de origem rural, tanto mais importante é para ela individualizar ascendentes longínquos e cultuá-los, traçando ao longo de uma genealogia de nomes, títulos e histórias a

descendência e as razões dos direitos que os descendentes reclamam sobre posses, poderes e honrarias. Nem sempre é porque tais famílias possuem os meios adequados de traçar descendências longínquas e fixar na memória e em documentos os ramos da parentela, que certos “clãs” de fazendeiros tradicionais fazem da referência a ancestrais distantes uma prática e um culto. Ao contrário, é porque precisam de referências de caráter legitimador de poderes sociais e simbólicos que desenvolvem estratégias para torná-los visíveis e próximos.5

Uma progressiva redução da memória dos parentes vivos sobre os ascendentes mortos tende a ocorrer quando camponeses são obrigados a abandonar um modo de vida seguido por gerações anteriores e um lugar de trabalho onde viveram: a comunidade, o bairro rural, o sítio. Os mortos parentes ficaram “lá”, em outro tempo, em outro lugar (para onde muitas vezes nunca mais se volta), em outro espaço simbólico que se cultua com saudade, com a consciência de haver sido perdido para os vivos, mais do que para os mortos. Na periferia onde a família camponesa aprende a ser volante, os parentes que vieram, os amigos e vizinhos, os novos companheiros de “turma”, de igreja ou de qualquer outro grupo institucional passam a ser cada vez mais os sujeitos que, importantes e próximos em vida, são a tristeza direta da perda quando mortos. Mas a eles não se prestará mais culto como aos mortos parentes da vida anterior. Seus filhos aprenderão pouco a pouco a eleger distantes vivos, presentes efetivamente, como os mortos em que se pensa, e não raro se cultua, agora fora da família: primeiro algum cantor de dupla sertaneja, depois Clara Nunes, mais tarde, Janete Clair. Para os que ingressam em uma comunidade eclesial de base, em uma pequena Assembléia de Deus ou em terreiro de Umbanda, outras pessoas não-parentes tornadas familiares virão a ser também os ancestrais, os companheiros, os pais e os irmãos.

As recorrências e as mudanças em torno do sentido do morto e do culto camponês da morte entre dançadores-promesseiros do São Gonçalo estão muito bem exemplificadas em uma observação de um folgazão que, entre uma dança e outra, entrevistei certa feita em Batatuba.

[Mas como é que é isso de que uma pessoa muito boa pode morrer e não ir pro céu se tem uma dívida com São Gonçalo, por pequenina que seja?]

Pois é: é fato, o senhor veja. Por exemplo, o Tancredo, o Tancredo Neves, nosso presidente que morreu antes de ser. Eu acho que ele foi mesmo um santo homem. Todo mundo acha e eu li no jornal que até tem gente indo rezar no túmulo dele, lá em Minas. Então, pode até mesmo ser que ele tenha sido um homem bom de verdade, um santo homem. Mas, se ele morreu devente, que seja pra São Gonçalo, que seja para outro santo qualquer, ele não entra

5 De modo semelhante, nos cultos dos Eguns em Itaparica há basicamente dois tipos de mortos. Aqueles que se acredita que cumpriram plenamente seu destino na terra, estando portanto plenamente maduros para a morte. Esta lhes é, então, um verdadeiro renascer, na passagem pessoal e desintegradora da pessoalidade do aiyé para o órum. Ë também o momento em que o poder mítico e simbólico do morto transforma-o em um ancestral notável, cujo axé permanece ativo como força benéfica no interior do local físico dos cultos da confraria religiosa de que foi parte. Aqueles cuja morte foi prematura e cujo destino foi, portanto incompletamente cumprido na terra. Assim, como sua morte pode ter sido o resultado de castigos devidos a infrações cometidas em vida ou pode haver sido provocada pela ação de inimigos, eles podem, mortos, conservar o poder ou o destino de serem ativa ou potencialmente perigosos (Juana Elbeim dos Santos, Os nagô e a morte, Petrópolis, Vozes, 1970.) Insisto em alguns pontos. No imaginário do catolicismo popular é a associação dos atributos pessoais do morto + as circunstâncias da ocasião de sua morte, aquilo que determina a qualidade de suas relações possíveis com os vivos, parentes ou não. “Morreu como um santo”, uma expressão tão comum, possui então um duplo sentido: a. morreu em estado de inocência (uma criança) ou de santidade terrena (um velho bondoso e muito religioso) h. morreu “em paz”, fora de situações de conflitos e assistido por ritos e cultos familiares e de especialistas religiosos (um rezador ou um padre).

[nos céus]. Ele não entra, e a santidade dele fica esperando. Não quero dizer que ele seja um pecador, o senhor veja. É muito diferente, e eu até falei que acho que ele é quase um homem santo. Mas vamos imaginar que na horinha da morte ele tenha feito uma promessa e tenha sido atendido pelo santo. Por exemplo, ele pediu pra não morrer antes de cumprir com a presidência dele e foi atendido. Então ele fez os quatro anos de presidente e morreu depois. Daí, se ele morreu sem cumprir, pode ter sido um presidente, um rei, até mesmo um padre ou um bispo, ele não entra lá no céu. Tem que cumprir antes. Tem que alguém cumprir por ele. Aí sim, ele consegue a Glória Eterna e pode até virar um santo junto de Deus.

[Aí ele precisa então vir pedir pra um parente dele que ele cumpra a promessa?]

É isso mesmo, como eu tava lhe dizendo faz pouco. Ele vem como alma, como visão e vem num sonho, num espírito, num aviso. O outro parente que ouve e resolve cumprir por ele fica obrigado do mesmo jeito. Se ele morrer também sem cumprir ficam os dois deventes. Vagando.

[Mas tem muita gente católica que não acredita nisso de uma alma que vem falar com mãe e pai, que pode ficar vagando por aí.].

Tem mesmo, e é muitos, e eu não vou dizer que eles estejam certos também. Mas o que aconteceu foi o seguinte, veja senhor. No tempo antigo, até pouco tempo atrás mesmo, tudo isso havia muito e toda a gente sabia. Tinha espírito vagante, alma do outro mundo, pessoas mortas de tudo, que vinham apareciam pros vivos. Tinha e todo mundo sabia e acreditava, e muita gente — eu mesmo, se o senhor quer saber — tinha visto ou mesmo falado com alma de morto. Agora, o que é que acontece? Tá tudo desmudado. Tá tudo, o senhor veja por aqui mesmo. Isso aqui já foi fundo de sertão, canto do mundo sem luz nem estrada. Tudo mato e pouca gente por aí. Nem telefone e nem televisão, nada disso. E nem fábrica. Então era o tempo deles desses seres, dessas almas. E muito. E muito. Mas agora, o senhor veja que com essas mudanças o tempo deles foi ficando difícil. Foi feito muitos bichos, que antes tinha aqui pra todo o lado e agora só no meio dos matos. Grotas. Pois com eles foi assim também. Eles começaram a fugir de tudo isso, desapareceram. Existem, mas foi ficando cada vez mais difícil pra eles e para nós [o ter contato com mortos parentes]. Agora é pouco, mas tem ainda.

[Mas é só por isso, então.]

Só e não. Porque tem mais. Veja o senhor: as pessoas desmudaram muito também. Antes um parente era um parente. Vivo ou morto era um parente: um pai, uma mãe, um irmão. A ligação era muito grande. Agora parece que tem muita gente que nem liga. Fora esses crentes [pentecostais] que diz que tudo isso é invenção do demônio. Tem gente que dá mais importância pra um artista de televisão que ele nunca viu, quando ele morre, do que para um parente. Vai lá, viaja, assiste o enterro, chora muito. O senhor não vê na televisão? Então, como é que esses mortos vão achar [meio] de vir pedir pros parentes deles? Pede ainda, como nessa dança de hoje. Mas é só quando o outro acredita e tem fé.

Se continuar assim, vai e vai acaba tudo. Acaba até o São Gonçalo. Não o santo lá no céu, que não pode mesmo. Mas a dança e as promessas pra ele. Aí eu quero ver. Aí eu queria saber como é que vai ser. (um folgazão do São Gonçalo em Batatuba).

7. Partir, ficar, voltar

Há outras conseqüências seguidas do fato de a pessoa do morto não perder com a morte os atributos pessoais de sua identidade, assim como pelo menos parte de suas relações interpessoais. Mortos assustam. Almas à distância, longe dos vivos e nos lugares onde se supõe que devam estar geram piedade e respeito. Mortos fora do lugar produzem medo, terror. O imaginário do mundo cotidiano que o homem do campo habita é povoado de seres vagantes, humanos, sub e super-humanos. Seres que a luz elétrica e as idéias claras espantam, empurram para o fundo dos matos, mas que até hoje não deixaram de existir nem perderam de todo o seu poder. A equação que estabelece graus e modos de aproximação-evitação com seres não-vivos, em boa medida é definida:

a. pela qualidade das relações sociais e afetivas mantidas em vida;

b. pelas condições em que se supõe haver saído do mundo dos vivos o ser que é acreditado como retornando de um dos mundos dos mortos;

c. pelos atributos do morto enquanto vivo, e conseqüentemente, pelos atributos derivados da “alma” e por seu suposto destino como “alma”.

Assim, a visão de repente da alma de um pai morto atemoriza, mas não aterroriza. De algum modo, fantasmas de parentes e conhecidos de respeito são almas; almas de desconhecidos são fantasmas. Os mortos é preciso que partam e, vimos, há ritos sucessivos que tornam essa idéia um trabalho dos vivos. A seqüência das cerimônias familiares e comunitárias que vão da lavagem e vestimenta do corpo ao velório, do velório ao enterro, do enterro às rezas, às missas de sétimo dia, de um mês, de dias de aniversário, de um ano da morte e assim por diante são meios de se dizer entre os vivos que alguma pessoa significativa deixou a família, um lugar à mesa, uma enxada sem uso e partiu. Ë também, acredita-se, um meio simbólico ou, melhor ainda, uma configuração de meios simbólicos para se dizer ao morto que ele não existe mais como vivo, muito embora os ritos comprovem que ele permanece vivo na memória, desde que parta. Meios, finalmente, para lembrar a Deus ou mesmo a São Pedro que acolha o morto em sua viagem de um mundo ao outro.

Ainda que apressado, um exame sobre o modo como o mundo camponês distribui lugares terrenos para o culto dos mortos poderia ajudar a compreender como os símbolos da sociedade diferenciam tipos de mortos, com vistas a, ao mesmo tempo, manter sua memória e domar seus poderes.

1º — Com muita freqüência mortos ascendentes do grupo doméstico são lembrado e cultuados: há sempre quadros (a não ser quando a família beire a miséria) e outros objetos que passam do uso do vivo ao culto do morto; há ritos sucessivos e, fora casos de exceção, mortos familiares são enterrados no cemitério da comunidade ou, se não houver, no da sede do município. Os parentes vivos visitam seus mortos em dias próprios e não são poucas as famílias que dirigem preces diárias para pedir por eles, para pedir a eles.

2° — Muito mais do que na cidade, são públicos e participados os cultos imediatos por um morto, mas apenas poucos continuam a ser, com o passar do tempo, mortos cultuados fora do âmbito da família e da parentela. Conhecidos são, no entanto, sujeitos não-ameaçadores. Possuem seu lugar não só no cemitério como também no sistema que ordena a posição de cada um no interior das fronteiras da própria

comunidade. A convite de uma família de promesseiros, é em nome deles que não-parentes, mas vizinhos e amigos, podem vir participar dos trabalhos de uma reza de terço ou de uma Dança de São Gonçalo.

3º — Mortos não-conhecidos ou mortos reconhecidos como habitantes “do lugar” mas cuja vida-e-morte ocorreu em situações tidas como não-adequadas são sujeitos potencial ou efetivamente ameaçadores. Mortos assassinados ou acidentados na estrada (mais os primeiros do que os últimos) em nome de quem se pode erigir uma capela no caminho são “almas vagantes” que se teme. Assim também os homens malfeitores (bandidos quando pobres, opressores consideráveis quando ricos) a respeito dos quais aqui e ali há lendas notáveis a respeito de espíritos que vagam em certas noites e aterrorizam os que os vêem.

Assim, a sociedade rural desigualmente lida com seus mortos, segundo a maneira como pessoas e grupos lidaram com eles enquanto sujeitos vivos: uns são para serem cultuados, outros para serem temidos, outros ainda para serem esquecidos. Diferenças que a mistura recente de outras religiões no interior de culturas tradicionalmente católicas tende a ampliar. Essa diferença pelo menos em parte é o contrário do que ocorre em algumas sociedades tribais, onde um temor generalizado por qualquer morto gera crenças e obriga a ritos que tornam indispensável seu pleno afastamento: primeiro do mundo físico e social dos vivos, depois de suas memórias, para que não façam mais ou não façam nunca qualquer mal aos vivos, pelo simples fato de estarem mortos, mesmo quando mortos parentes, ou principalmente por isto.

Entre camponeses tradicionais, não é de seu lugar classificatório no interior da ordem social que os mortos precisam sair. Ë apenas de um tempo que recorta e ordena essa ordem: o cotidiano. Fora dele os mortos da família são uma memória presente, e alguns deles, vimos, ao lado de outros seres e símbolos da religião, são o modelo mais importante e presente das orientações pessoais da conduta cotidiana. Pesa sobre os atos de um filho a lembrança da honra de um pai morto, mais até do que quando ele era vivo. Excluídos do trabalho e da rotina caseira, mortos da família retornam a ela revestidos da sacralidade que o catolicismo popular costuma atribuir tanto aos santos padroeiros (muitos deles lembrados mais pelo exemplo de suas mortes do que pela lembrança de suas vidas) quanto aos mortos protetores. Mortos queridos são sagrados: porque, estando mortos, estão salvos; porque estando entre os salvos estão de algum modo como os santos; porque, por isso e porque são parentes, depois de mortos continuam amados.

Fora casos de exceção, como os da própria Dança de São Gonçalo “por alma”, seus cultos domésticos não são para salvá-los, mas para que sua memória, pessoal e coletivamente cultivada entre símbolos e rezas, sacralize lugares, tempos e relações entre os vivos. É justamente sobre isso que uma última questão intrigante poderia ser pensada aqui. Vimos que se acredita que enquanto a promessa de um morto devedor não for paga por um parente, sua “alma” não “tem descanso” e não “entra nos céus”. Não conheci um caso sequer em que um parente vivo, após haver recebido a comunicação de um morto sobre sua dívida e após haver-se reconhecido como promesseiro-substituto, tenha promovido a função de São Gonçalo sem demora. Era isso o que se deveria esperar, porquanto o novo promesseiro sabe que está em suas mãos o trabalho ritual que falta para que o parente querido seja afinal, depois de morto, salvo e feliz. No mínimo há demoras de meses, e no máximo, de muitos anos (até 30, em um dos casos colhidos). A que se deve a demora? Perguntadas, as pessoas afirmavam à dificuldade crescente em promover a dança. Mas não raro algumas delas haviam tomado o cargo de festeiro de outros santos, cujos festejos na comunidade gastam mais e são mais complicados do que

a noite de dança para São Gonçalo. Seria a demora da dança a vontade de que a lembrança da dívida mantenha mais viva a memória do morto?

8. Os mortos, os vivos

Retorno a algumas questões pertinentes a respeito de cultos dos ancestrais, discutidas, entre outros antropólogos, por Maria Manoela Carneiro da Cunha. Há entre nós uma pequena série de fatos intrigantes ainda pouco estudados. Vimos que, enquanto em direção a uma “nobreza rural” o nome de ancestrais distantes é insistentemente mantido como culto de memória da identidade da família e enquanto consagrador de sua posição e legitimador de alguns de seus direitos sociais, políticos e econômicos, em direção à “pobreza rural”, ancestrais acima dos avós, mais raros dos bisavós, são substituídos, com muita freqüência, pelo culto familiar a santos padroeiros. Isso quer dizer que entre camponeses tradicionais o culto do morto poderoso é substituído pelo culto do santo protetor. Não são poucas as famílias que erigem pequenas capelas, algumas vezes em memória de um morto querido, mas dedicada ao culto de um santo padroeiro familiar. Alguns bairros rurais e várias cidades do mundo rural tiveram sua origem em capelas que passaram do domínio familiar ao de uma parentela estendida e daí ao da vizinhança comunitária. De todos os modos, entre mortos ancestrais, seres míticos e santos padroeiros, sempre parece ser necessária uma lógica que traça, através de uma linha de ascendência e reciprocidade de trocas, uma relação que justifique a escolha e torne simbolicamente legítimo e socialmente eficaz o culto a um ser eleito para ser um produtor familiar, parental ou comunitário de identidade.

Maria Manoela Carneiro da Cunha nas genealogias nominadas dos antepassados reconhecidos e hierarquizados, sistemas simbólicos de acesso a modalidade de poder. Assim, somos o que somos porque sabemos de quem viemos, viemos de uma ascendência que nos dá o direito de sermos quem somos. Aos mortos socialmente importantes as famílias senhoriais do campo transformavam em legenda, em nome próprio completo, imorredouro, se possível em placa de rua. Em pouco tempo, os ritos eclesiásticos obrigatórios davam e até hoje dão lugar a cultos civis e a uma memória profana de um fundador de direitos que a família e a parentela reclamam.

Mortos de ricos são no limite “ilustres”, quando os de pobres no limite são “santos”. Por isso, em direção oposta, o campesinato preserva em uma aura de absoluta religiosidade a memória do ancestral, de quem se esquece o sobrenome para tornar próxima a alma.

Entre os grupos gês do Brasil Central, mesmo os mortos da família e os sujeitos mais queridos em vida podem ser terríveis depois de mortos. Nos cantos funerais, os krahós dizem chorando ao morto o quanto ele era querido e quanta saudade os vivos parentes possuem dele, mas, sem transição, o canto pede ao morto que se vá e esqueça os vivos parentes que, de modo algum, estão dispostos a segui-lo.6 De outra parte, a seqüência facultativa do cerimonial consiste de uma corrida de toras após a qual o morto deve ser considerado definitivamente expulso da presença e da ordem social dos vivos.

6 Manoela Carneiro da Cunha, Os mortos e os outros, São Paulo, Hucitec, 1978, p. 27.

O propósito confesso da festa é de alegrar o Karõ do morto através da realização de uma corrida de tora à qual ele assiste, mas da qual não participa. A partir daí não mais deverá voltar a assombrar os vivos.7

Lamento por haver deixado os parentes vivos cheios de sua falta, o morto é recriminado por havê-los abandonado. Mas já que ele se foi como vivo, que parta por inteiro. Não apenas o morto deve abandonar o mundo social dos parentes vivos mas deve esquecê-los por completo.8 A saída completa da sociedade e da família dos vivos é acreditada entre os krahós como uma trajetória que ainda se realiza dentro do âmbito familiar. São parentes mortos do morto aqueles que os conduzem a seu “outro mundo”, e a eles cabe a tarefa de convencer o morto recente a não querer retornar mais à presença e à memória dos vivos.

Mas mesmo em diferentes sociedades tribais há diferenças no trato com o morto e seus supostos poderes. Quero lembrar algumas idéias de Herbert Baldus. Mortos ameaçam os vivos quando podem coabitar lugares onde viveram com os vivos e de onde saíram pelas portas da morte. Mas, quando os vivos partem do lugar onde os mortos ficam, não há mais por que temer, porque os mortos, presos a um chão terreno, não podem seguir os vivos.

Assim, povos nômades, caçadores, enterram ou queimam o corpo de seus mortos e partem de sua presença. Não há por que se ocupar de temê-los, porque estão longe. Temem, sim, os seres perigosos dos locais por onde passam. Povos sedentários convivem com o lugar de seus mortos: os que eles ocuparam em vida, os que eles ocupam na morte. Já que os vivos não saem do lugar do corpo dos mortos, os espíritos dos mortos podem voltar a conviver junto ao corpo dos vivos. O morto é um poder e pode ser um poder ameaçador.

O morto é um poder porque, quando vivo, o indivíduo era uma parte do poder da comunidade, parte que agora, impossível de ser controlada, mas ainda de modo não tangível ligada à comunidade — pode tornar-se perigosa para ela. Só se temem os mortos da própria horda, os mortos com que se formou comunidade.9

A vida é dura e terrível, e o que nela existe de mais aterrorizador tocou o morto e tornou-o, portanto, tão perigoso quanto ela própria: a morte. Assim sendo, se um morto parente não for devidamente tratado de acordo com os preceitos rituais, outros parentes podem também morrer. Essa é a razão principal pela qual o morto deve ser cerimonialmente separado da sociedade dos vivos, para que, expulso de modo definitivo e simbolicamente legítimo, carregue com ele para longe a doença e a morte. Assim, entre os kaingangs, dança-se também pelo morto. Não para que ele se salve de vez, devedor livre, como entre os dançadores do São Gonçalo e não volte mais aos vivos em sonhos e visões, mas para que, deixando de vez os vivos carregue para longe deles as ameaças de que se tornou uma parte e um sinal.

Dança-se para que o morto vá embora. (...) não se faz diferença entre homem morto e mulher morta. O morto, sendo expulso da vizinhança por meio de um baile, erra então, para sempre, por todo o país. Isto significa que ele não deixa para sempre o mundo dos vivos, mas pelo menos abandona a proximidade potencialmente perigosa com os vivos.10

7 Manoela Carneiro da Cunha p. 50. 8 Manoela Carneiro da Cunha op. cit., p. 119. 9 Herbert Baldus, Ensaios de etnologia brasileira, São Paulo, Cia Editora Nacional, 1979, p. 22. 10 Herbert Baldus, op. cit., pp. 22-23.

A observação das diferenças é intrigante. Em alguns cultos, como no São Gonçalo, dança-se pelo morto; em outros, como entre os kaingangs descritos por Baldus, os nagôs, descritos por Juana Elbein11 e tantos outros casos, parece que se dança contra o morto, para que ele vá de vez embora e não mais retorne aos vivos. Jean Dauvignaud descreve uma dança no Senegal que se realiza com o próprio morto (“na aldeia de Foups, alguns padioleiros carregam um morto que desfila entre as pessoas da tribo, que cantam”).12

Finalmente, não esqueçamos o caso de cultos mediúnicos de origem afro-brasileira onde mortos dançam através dos vivos, possuídos por seus espíritos. Aos que pensam que o pesar da morte dispensa a dança, ei-nos diante de todas as suas possibilidades nas relações físicas e simbólicas entre vivos e mortos: dançar pelo morto, dançar contra o morto, dançar com o morto e dançar através do morto.

11 Juana Elbeim dos Santos, op. cit., p. 233. 12 Jean Dauvignaud, Festas e civilização, Fortaleza, Tempo Brasileiro/Universidade Federal do Ceará, p. 78.