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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA LAERCIO DIAS GUIMARÃES A CRISE POLÍTICA E A DESAGREGAÇÃO DO IDEAL DE CIDADANIA NA ATENAS CLÁSSICA SÃO LUÍS 2012

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Page 1: A CRISE POLÍTICA E A DESAGREGAÇÃO DO IDEAL DE CIDADANIA NA … · participação direta dos cidadãos na política, ou seja, era exigida a sua participação ativa na Assembleia

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

CURSO DE HISTÓRIA

LAERCIO DIAS GUIMARÃES

A CRISE POLÍTICA E A DESAGREGAÇÃO DO IDEAL DE

CIDADANIA NA ATENAS CLÁSSICA

SÃO LUÍS

2012

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LAERCIO DIAS GUIMARÃES

A CRISE POLÍTICA E A DESAGREGAÇÃO DO IDEAL DE

CIDADANIA NA ATENAS CLÁSSICA

SÃO LUÍS

2012

Trabalho apresentado ao curso de

História Licenciatura Plena da

Universidade Estadual do Maranhão,

como pré-requisito para obtenção do

título de licenciado em História.

Orientador(a): Prof. Dra. Ana

Lívia Bonfim Vieira.

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Guimarães, Laercio Dias. A crise política e a desagregação do ideal de cidadania na Atenas Clássica / Laercio Dias Guimarães. – São Luís, 2012. 73 f Monografia (Graduação) - Curso de História, Universidade Estadual do Maranhão, 2012. Orientador: Profa. Drª. Ana Lívia Bonfim Vieira. 1.Política. 2.Cidadania. 3.Democracia. Título CDU: 321.15

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LAERCIO DIAS GUIAMARÃES

A CRISE POLÍTICA E A DESAGREGAÇÃO DO IDEAL DE

CIDADANIA NA ATENAS CLÁSSICA

Aprovado em ____/_____/______

Banca Examinadora

__________________________________________________________________

Prof. Dra. Ana Lívia Bonfim Vieira (Orientadora)

___________________________________________________________________

1° Examinador

____________________________________________________________________

2° Examinador

Trabalho apresentado ao curso de

História Licenciatura Plena da

Universidade Estadual do Maranhão,

como pré-requisito para obtenção do

título de licenciado em História.

Orientador(a): Prof. Dra. Ana

Lívia Bonfim Vieira.

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A minha querida mãe, Luzia,

ao meu pai, Rafael,

e as minha irmãs.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus pela minha existência e por estar sempre

presente em minha vida, iluminando-me e dando- me forças.

À Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e à Coordenação do curso de

História, por proporcionar os meios e as condições para um aprendizado de qualidade.

Pela concessão da minha primeira bolsa de iniciação científica BIC/UEMA e também

ao CNPQ por ter acreditado no desenvolvimento da minha pesquisa e ter feito com que

pudesse prosseguir com tal pesquisa.

A todos os professores pelos ensinamentos transmitidos, em especial à

professora Adriana Zierer pelos conselhos repassados, pelas conversas em momentos de

crise. Ao caro professor Fábio Henrique Monteiro, velho conhecido da 5° série do

ensino fundamental e que tive a satisfação de reencontrá-lo na UEMA, depois de muitos

anos. Também, ao professor Yuri Costa pelas conversas desenvolvidas e pelas dicas e,

principalmente, pelas cobranças feitas e que influenciaram meu desenvolvimento

acadêmico.

A minha orientadora, professoraAna Lívia Bonfim Vieira, por aceitar o desafio

de orientar este trabalho, fruto de longo tempo de pesquisa na área de História Antiga,

pela orientação nestes anos como bolsistas, a sua dedicação e paciência, pelo constante

apoio e incentivo para a realização deste trabalho.E, principalmente, por ter contribuído

pela paixão que sinto nesteramo da História.

Aos meus pais, Luzia Dias Guimarães e Rafael Sena Guimarães, pela presença

constante em minha vida, pelo apoio, cuidado e dedicação, e também por me

proporcionarem condições necessárias para meus estudos e, principalmente, na minha

formação como ser humano. E, aos minhas irmãs, Alinhe Dias Guimarães e Helaine

Dias Guimarães, pelo companheirismo e compreensão e pelos longos debates com elas.

Aos meus amigos: Felipe Carvalho Nina, Marcio Renato Ribeiro, Thiago

Silva Menezes, Eduardo Nogueira, Fabiana Santana, Vera Lúcia, Cibely França,

Alderico Segundo, Elielson Câmara, Melissandra Pinheiro,que sempre estiveram

presente nesses anos, compartilhando momentos de aprendizagem, alegria, tristezas e

amizade. E, a todos os outros amigos que estiveram presente durante a execução desta

monografia, dando-me forças para a execução da mesma.

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Faça sempre com que as pessoas acima de você se sintam

confortavelmente superiores. Querendo agradar ou

impressionar, não exagereexibindo seus próprios talentos ou

poderá conseguir o contrário inspirar medo einsegurança.

Faça com que seus mestres pareçam mais brilhantes do que

são narealidade e você alcançará o ápice do poder. Robert

Greene e JostElffer.

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RESUMO

Este trabalho visa estabelecer uma reflexão sobre as relações entre a política e a

cidadania na Atenas Clássica. Durante o Período Clássico, Atenas viveu sob o sistema

de governo criado e desenvolvido por ela, a Democracia. Neste sistema, o ideal era o da

participação direta dos cidadãos na política, ou seja, era exigida a sua participação ativa

na Assembleia deliberativa votando as leis e as decisões que entrariam em vigor.

Considerava-se como modelo ideal de cidadão ateniense aquele que estava preocupado

com o bem da sua comunidade e, assim, com toda a população. Portanto, a comunidade

ateniense prezava a harmonia, o equilíbrio e a justa-medida. Alguns destes valores eram

esperados e exigidos de seus cidadãos formando, assim, o modelo de cidadão ideal.

Além do mais, verificaremos os fatores que levaram a inversão destes valores, ou seja, o

momento de crise do sistema democrático daquela polis, invertendo os valores ligados

ao bem comum, ligados a comunidade e dando ênfase aos valores privados ou

individuais.

Palavras-chave: Cidadania. Democracia. Política.

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ABSTRACT

This study aims to provide a reflection on the relations between politics

and citizenship in classical Athens. During the Classic Period, Athens lived under

the system of government created and developed by itself, the Democracy. In this

system, the ideal point was the direct participation of citizens in politics, in other words,

it was required their active participation in the deliberative Assembly voting laws

and decisions which enter into force. Considered as ideal model of Athenian citizen that

one who was concerned about the welfare of their community and then, the entire

population. Therefore, the Athenian people valued harmony, balance and fair-

measure. Some of these values were expected and required of its citizens, forming the

model of the ideal citizen. Moreover, we find the factors that caused the

reversal of values, that is, the moment of crisis of the democratic system of that polis,

reversing the values attached to the common good, connected to the community

and emphasizing the private or individual values.

Keywords: Citizenship. Democracy. Politics.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................... p.11

1. O “SER” CIDADÃO EM ATENAS: DEFINIÇÃO E REQUISITOS...........p. 14

1.1. A Definição da Cidadania...............................................................................p.14

1.2.Os Desprovidos da Cidadania.........................................................................p.16

1.3.A Arte da Guerra: O cidadão-guerreiro ateniense..........................................p.23

1.4.A Formação da Polis Ideal...............................................................................p.27

1.5.As Virtudes Ideais do Bom Cidadão.................................................................p.34

2. A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA ATENIENSE: AS REFORMAS

“DEMOCRÁTICAS” E A CONSOLIDAÇÃO DA ASSEMBLEIA............p.37

2.1..1. O governo de Sólon..........................................................................p.37

2.1.2. O governo de Clístenes.....................................................................p.40

2.1.3.As Guerras Médicas e as reformas de Efialtes..................................p.43

2.2. A “Idade do Ouro” Atenas: Péricles e as reformas políticas e sociais na

democracia dos atenienses....................................................................................p.45

2.3. Sessões e Funções da Assembleia..................................................................p.49

3. A DEMOCRACIA EM PERIGO.....................................................................p.55

3.1.O Imperialismo Ateniense................................................................................p.55

3.2.A Guerra do Peloponeso e a Derrocada de Atenas.........................................p.57

3.2.1.A Expedição à Sicília e o desastre total de Atenas.............................p.61

3.3.As Revoluções Oligárquicas e a Derrota de Atenas.......................................p.65

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................p.71

5. REFERÊNCIAS..............................................................................................p.73

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INTRODUÇÃO

Esta monografia visa estabelecer uma reflexão sobre as relações entre a política

e a cidadania na Atenas Clássica e como estes fatores se associam com o processo de

desagregação do regime democrático e de inserção e submissão de Atenas à esfera de

poder da cosmopólis. Para isso, é preciso considerar as mudanças ocorridas em Atenas,

sobretudo no que se refere ao ideal de cidadania e os fatores que contribuíram para o

afastamento do cidadão da política.

Alguns analistas associam o processo da chamada Globalização ou

Mundialização a uma crise ou esfacelamento da noção tradicional de cidadania. A

descrença no poder público, a substituição das fronteiras geográficas por fronteiras

econômicas1, o crescimento dos interesses e do poder das esferas econômicas

internacionais, de um lado, e, o crescente fortalecimento de atitudes políticas

ultranacionalistas, fundamentalistas e individualistas de outro integram um mesmo bojo

onde os valores morais e éticos reconhecidos por todos se encontram cada vez mais

diluídos2. Neste contexto, o enfraquecimento das instituições políticas e sociais

fortaleceria tal afastamento do cidadão do âmbito das decisões da polis ateniense.

A partir da perspectiva do comparativismo construtivo de Marcel Detienne3, este

contexto contemporâneo nos impulsiona a pensar o caso da polisdos atenienses no

período clássico (V e IV séc. a.C), notadamente o IV século, quando podemos perceber

Atenas estando inserida em um processo de diluição de fronteiras culturais, com as

conquistas de Filipe e Alexandre, contribuindo para uma crise e mudança dos valores e

parâmetros culturais que até então incidiam e norteavam essa sociedade. Estes valores

em desagregação estariam fundamentalmente ligados à cidadania e à democracia.

Durante o Período Clássico, Atenas viveu sob o sistema de governo criado e

desenvolvido por ela, a Democracia. Neste sistema, o ideal era o da participação direta

dos cidadãos na política, ou seja, era exigida a sua participação ativa na

1 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Ed. Record, 2001, pp. 80-81. 2 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. São

Paulo: Ed. Record, 2001 3 DETIENNE, Marcel. Comparar o Incomparável. São Paulo: Idéias& Letras, 2004. Compartilhamos a

perspectiva da História de Marc Bloch ou de Eric Hobsbawm, para quem "Já se disse que a História é

História contemporânea disfarçada. Como todos sabemos, existe algo de verdade nisso. O grande

Theodor Mommsen escrevia sobre o império romano como um liberão alemão da safra de 48 refletia

também sobre o novo império alemão. Por trás de Júlio César, discernimos a sombra de Bismarck"

HOBSBAWN, Eric J. Sobre História. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 243.

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Assembléiadeliberativa votando as leis e as decisões que entrariam em vigor.

Considerava-se como modelo ideal de cidadão ateniense aquele que estava preocupado

com o bem da sua comunidade e, assim, com toda a população. Contudo, este ideal de

unidade e de coesão social, entra em desagregação no final do século V, e, entre outros

fatores, por conta, em especial, da Guerra do Peloponeso.

A comunidade ateniense prezava a harmonia, o equilíbrio e a justa-medida.

Alguns destes valores eram esperados e exigidos de seus cidadãos formando, assim, o

modelo de cidadão ideal. Tais características são apontadas por Aristóteles na Ética à

Nicômaco4, como sendo: a temperança (sophrosýne), a bondade (praótes), a liberdade

(eleutheriótes), a verdade (alétheia), a reserva (aidós), a justa indignação (gémesis), a

amizade e o amor (philía), a piedade (eusébeia) e a disciplina (eutaxía), a honra (time) e

a honestidade (agathón).

Na Política, Aristóteles define que: “toda cidade é uma espécie de comunidade, e

toda comunidade se forma com vista a algum bem, pois todas as ações de todos os

homens são praticadas com vista ao que lhes parece um bem...” 5 Prossegue enfatizando

sobre o que é citado nos parágrafos anteriores, a respeito do bem comum da polis grega:

“Da mesma forma, um cidadão difere do outro, mas a preocupação de todos é a

segurança de sua comunidade...” 6

Com isso, qualquer violação a esses valores tidos como regentes da ordem,

representava um perigo à unidade dos cidadãos, sobre a qual repousava o ideal de pólis

democrática. A presença do desequilíbrio era vista como uma ameaça à sobrevivência

de todo o corpo cívico da polis ateniense. Ideologicamente, o bem comum suplantava o

indivíduo. E uma desmedida (hýbris) poderia provocar uma contaminação (miasma) em

toda a sociedade, desestruturando-a. Somente a obediência às leis, aos valores morais

e/ou aos ritos religiosos poderia promover à purificação (katharsis) e o retorno à ordem

(eunomia).

A Hélade, território dos antigos gregos, abrangia uma grande área de terra que

incluía o litoral do Mar Negro a leste, as regiões costeiras da Ásia Menor, as Ilhas do

Mar Egeu, a Grécia continental, o sul da Itália e grande parte da ilha da Sicília,

prolongando-se a oeste em ambos os lados do Mediterrâneo até Cirene na Líbia e até

Marselha e alguns pontos costeiros da Espanha.

4 ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco: II. 1-10; III. 1-12 5ARISTÓTELES. Politica : I. 1252 a. 6ARISTÓTELES. Politica : II. 1277 a.

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Os gregos, conforme os relatos dos homens da época, nunca se denominavam de

“gregos”. Tal termo derivava da denominação que os romanos lhe atribuíram: Graeci.

Nos tempos micênicos eram denominados, ao que tudo indica, como Aqueus; conforme

os se podem observar na poesia homérica.

Durante o período denominado Idade das Trevas ou no seu final, o termo

helenos substituiu os outros termos e Hélade passou o nome coletivo para designar toda

a sociedade grega. Deste modo, todos que não falavam sua língua pátria, neste caso o

grego, eram considerados como “bárbaros”. Estes, para os gregos, segundo Finley7, não

só eram considerados incompreendidos, mas, também, seres de natureza inferior e,

conforme,Aristóteles deviam ser subjugados e transformados em escravos.

As cidades gregas eram pequenas e a maioria dos cidadãos vivia nas áreas

urbanas. Os não cidadãos, a maior parte da população, concentravam-se na cidade e nas

zonas do porto e, principalmente, no campo; pois, grande parte da vida e interesses

econômicos estava voltada à agricultura.

Nas cidades viviam centenas de famílias de grande riqueza: cidadãos que viviam

do rendimento das suas propriedades e dos investimentos em escravos; não-cidadãos,

cuja base econômica era o comércio, a fabricação ou o empréstimo de dinheiro. Os ricos

eram os donos das propriedades à renda e, deste modo, estavam sempre livres para se

dedicarem a política e aos estudos; principalmente, por não exercerem as atividades

manuais, que ficavam a cargo dos escravos.

A maioria dos escravos situava-se nas minas e nos serviços domestico, sendo

este último ocupado por uma vasta maioria de homens e mulheres improdutivos. Na

agricultura e na manufatura, os escravos eram menos numerosos, sendo excedido nesse

ramo da economia pelos camponeses livre.

Deste modo, no primeiro capítulo iremos estabelecer os valores da cidadania. Ou

seja, quais eram os requisitos e virtude esperados pela pólis para ser considerado

cidadão na Atenas Clássica. Além do mais, faremos menção àqueles que não detinham

tal a garantia do direito à cidadania e, também, políticos.

O segundo capítulo, abordará o surgimento da Assembleia e sua consolidação,

ao longo da história dos atenienses, junto com as reformas políticas estabelecidas pelos

legisladores, em especial: Sólon, Clístenes, Efialtes e Péricles. Verificaremos, também,

7 FINLEY, Moses. I. Os Gregos Antigos. (p.16).

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os procedimentos de votação, composição e discussão dos assuntos mais importantes

colocados em pauta pelo governo de Atenas aos seus cidadãos neste órgão.

Por fim, no terceiro capitulo trataremos da potência esta levada além mar. Ou

seja, Atena com seu projeto imperialista, iniciado após as Guerras Médicas (entre

gregos e persas). Falaremos também da Guerra do Peloponeso, envolvendo as duas

pólis rivais, de um lado, Atenas com o sistema democrático e, do outro, Esparta com seu

sistema oligárquico e como está guerra contribuiu para a desagregação do regime

democrático em Atenas.

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1. O “SER” CIDADÃO EM ATENAS: DEFINIÇÃO E REQUISITOS

1.1. A Definição da Cidadania

O problema da cidadania, na Atenas do período clássico, passa por vários

estágios. Primeiramente, na definição de quem era considerado cidadão e que, deste

modo, estaria apto a exercer tal papel: o de participar das decisões políticasreferentes

àpólis ateniense.Exercício este que ocorria nas reuniões da Assembleia e, também, com

o exercício da função de cidadão-guerreiro.

Assim, no que concerne às ideias, citadas acima, perguntamo-nos quem poderia

ser considerado cidadão na Atenas do período clássico? O que definia o cidadão? Quais

requisitos e práticas estes deviam assumir?Estas sãoquestões, a priori, simples de

responderem. Poderia ser resumida da seguinte maneira: são considerados cidadãos

apenas indivíduos do sexo masculino com dezoito ou mais anos de idade e

queparticipavam das reuniões e deliberações da Assembleia.

Quando estavam aptos para o exercícioda vida política, os filhos eram

apresentados por seus pais ao demose estes deveriam prestar o juramento de que

àqueles possuíam tal idade e que realmente eram cidadãos. Os filhos, portanto,

deveriam ser frutos de um casamento legal, em que os pais eram cidadãos atenienses e

livres de nascença, requisito vinculante para aquisição de tal direito.

Neyde Theml explicitaos requisitos da cidadania em Atenas e, ainda, fala sobre

aqueles que não tinham tal direito, afirmando que:

Os cidadãos eram considerados como o povo (dêmos), exercendo o controle político, e

não se confundiam com a população. A pólisera a koinonía politiké, de homens adultos,

de condição livre eleutheroí, com direito à participação política, à propriedade da terra e

a defesa do território cívico, soldados (hoplitas). Eles tinham os mesmos direitos e

deveres, as mesmas instituições, os mesmos cultos e gerenciavam coletivamente o

interesse do grupo (politaí) e da população global. Os politaí, eleutheroí eram aqueles

que possuíam os direitos políticos, elegendo ou sendo eleitos para exercerem uma

função pública, participando ativamente no espaço político. Cada cidadão

(polités/eleutheroí), na sua atividade pública, representava as mulheres de sua família,

seus filhos, seus escravos, os metecoí, os órfãos, as viúvas e os velhos. Mulheres,

crianças, velhos, escravos e metecos não eram compreendidos como um conjunto em si

mesmo, distinto e exterior à pólis. Eles eram bem heterogêneos e desigualmente

integrados, mas eles eram indissociáveis do sistema políade. O direito de cidadania em

Atenas advinha do fato de ser homem, livre, nascido em Atenas, ser filho de pai ou mãe

ateniense, ser reconhecido pela phatria de seu pai, inscrito nos registros cívicos

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(dêmos)e cumprir com as obrigações militares. Assim sendo, a pólis era o conjunto dos

cidadãos (politaí), que não se confundiam com a população do território cívico.8

Por outro lado, Aristóteles, na sua obra Política, define os vários requisitos

necessários para ser considerado um cidadão e, vale lembrar, um cidadão ideal que,

deste modo, estaria apto ao exercício do maior bem de um homem: a participação nas

decisões da vida pública da polis. Com isso, o mesmo autor define que:

A cidadania não resulta do fato de alguém ter o domicilio em certo lugar [...] Um

cidadão integral pode ser definido por nada mais nem nada menos que pelo direito de

administrar justiça e exercer funções públicas [...] Dizemos que são cidadãos aqueles

que podem exercer tais funções públicas. Esta é de um modo geral a definição de

cidadão mais adequada a todos aqueles que geralmente são chamados cidadãos.[...]

Então o cidadão será necessariamente diferente sob cada forma de constituição, e,

portanto, a definição de cidadão que já demos aplica-se especificamente à cidadania em

uma democracia; ela pode ser boa sob outras formas de governo, mas não

necessariamente. [...] Afirmamos agora que aquele que tem o direito de participar da

função deliberativa ou da judicial é um cidadão da comunidade na qual ele tem este

direito, e esta comunidade – uma cidade – é uma multidão de pessoas suficientemente

numerosa para assegurar uma vida independente na mesma. [...] Na prática, porém, a

cidadania é limitada ao filho de cidadãos pelo lado do pai e pelo lado da mãe, e não por

um lado só, como no caso do filho apenas do pai cidadão ou apenas de mãe cidadã.9

Desta citação percebemos quais as características que, idealmente – e, em certa

medida, era esperada na prática – eram exigidas, para ser um bom cidadão, são elas:

administrar a justiça, exercer funções públicas, participar da função deliberativa ou da

judicial. Como regra, visualizamos que este cidadão deveria estar preocupado em

ocupar as funções tipicamente administrativas ou de gestão pública da cidade. Ao final,

o autor afirma que na prática exigia-se como requisito vinculante para o exercício da

cidadania o pertencimento de nascença ao pai e mãe atenienses e, ainda, este cidadão

deveria ser homem.

Além do mais, a ideia de cidadania não estava atrelada ao fato de a pessoa

residir em determinado território. Como fala Aristóteles, ela esta voltada para ideia de

participação política e preocupação com os assuntos dapólis. A participação do cidadão

ateniense no destino da comunidade constituía também um requisito importante para a

formação do bom cidadão. A priori, pelo menos, idealmente, este devia se preocupar

com a comunidade, ou melhor, com o bem comum da pólis; já que, neste sistema

8 THEML, Neyde. Público e privado na Grécia do VIII° ao IV° séc. a.C.: O modelo Ateniense. Rio de

Janeiro: Sette Letras, 1988. pp. 38-39. 9ARISTÓTELES. Política: III. 1275 ab; 1275 b; 1276 a.

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político ateniense (a democracia), o ideal era o da participação direta e ativa dos

cidadãos na política. Fazendo-se presente na Assembleia votando as leis e as decisões

que entrariam em vigor, já que esta constituía uma forma direta de governo com os

cidadãos decidindo sobre a vida da pólis.

Percebemos, também, que o exercício da cidadania não estava disponível a todos

os membros que habitavam a cidade ateniense. Era extensiva apenas aos cidadãos do

sexo masculino, ou seja, a uma parcela irrisória da população. Taveira, afirma que:

Nem todos os habitantes de Atenas participavam deliberativamente na gestão política e

judiciária da pólis; esse papel estava destinado a poucos. Portanto, a democracia quando

fala tem como porta-voz esses integrantes de um grupo delineado e bastante restrito: o

dos cidadãos. Mais do que integrantes, eles são atores cujo papel principal nesta peça é

o de militantes sendo uns mais ativos outros menos. “Militar”, portanto, significava,

para Aristóteles, exercer funções de mando e decisão no governo; o ativismo político

era a marca riscada no peito do cidadão ideal.10

1.2.Os Desprovidos da Cidadania

Ficavam de fora de deste bem – a cidadania – os estrangeiros (metecos como

eram chamados pelos gregos) e que se dedicavam as atividades comerciais e/ou

artesanais. Além deles as mulheres, idosos, crianças e escravos não poderiam e não

tinham direitos políticos.

Quanto às mulheres estas estavam submissas à vontade do pai, dos irmãos ou do

marido e viviam dentro do âmbito privado, “afastadas”, portanto, do mundo público, ou

melhor, do espaço das decisões políticas. Em suma, elas eram consideradas seres

inapropriados para tomar decisões sobre política por não terem capacidade para isso e

seriam inferiores aos homens, tanto que Xenofonte dizia que era mais honroso para as

mulheres permanecerem em casa, mandando nos escravos, cuidando dos filhos e de

todos os afazeres domésticos do que ficar saindo.

A mulher, idealizada pela sociedade ateniense, portanto, deveria estar relegada e

apta para gerir o espaço privado, o oikos. Fica compreendido que a educação e os

requisitos da mulher “correta”, deveria se adequar ao gerenciamento das atividades de

âmbito doméstico, como: supervisionar os escravos, receber, distribuir e cuidar dos

alimentos, ordenar as tarefas para os subordinados, fiar, tecer, tratar dos escravos

10 TAVEIRA, Daniel Teixeira. Um Ambiente Discursivo: Reflexões sobre a rede de relações entre

cidadãos e não-cidadãos na Atenas Clássica e sua Produção Discursiva.p.23.IN:

http://www.gaialhia.kit.net/artigos_2010_2/artigo002_2010_2.pdf

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quando este precisassee cuidar do marido e filhos, deviam conceber filhos saudáveis e,

principalmente, do sexo masculino, “participar de festas entre elas as Thesmophórias,

devem permanecer em silêncio, são débeis, frágeis e apresentam a cor da pele clara.”11

Sendo assim, inferimos que todo o “sucesso” e desenvolvimento do oikos eram

atribuídos às mulheres. ParaSouza, “o cidadão ateniense reservava uma atenção especial

à atuação de sua esposa no espaço privado, pois o êxito do oikos dependia também da

atuação feminina.”12

Mesmo participando das atividades do lar, ajudando na sua execução, a mulher,

não poderia fazer as atividades típicas das escravas. Só poderia fazer aquilo que fosse

digno de seu status social. Nada que a confundisse e a coloca-se no mesmo status quo

de um escravo.

Além do mais, desta mulher, apesar de, no seu papel social, estar inclusa e

restrita ao espaço do oikos, esta não deveria ficar ociosa em casa. Deveria participar das

tarefas domésticas, tomando cuidado para não executar as tarefas próprias dos escravos,

pois, assim, estariam “cuidando de sua saúde, tornando seu corpo mais resistente para o

parto.” 13

Todos estes aspectos relacionados à mulher do período Clássico eram

construções da forma ideal pretendida pelos homens. Na vida cotidiana, todos estes

valores e modelos idealizados eram “rompidos”, “transgredidos”, mas não

definitivamente e nem por completo. Criavam, para si, um lugar social não somente no

espaço privado (oikos), mas também na esfera pública – neste último caso, utilizando-se

dos momentos de “liberdade” garantidas pelas festas, as quais as mulheres se

uniamentre si, para discutir sobre seu universo. Novas pesquisas sobre o papel das

mulheres no mundo antigo vêm sendo desenvolvidas, em especial:

Sobre a atuação feminina no mundo Clássico, colocando em xeque o modelo de

comportamento feminino idealizado pela pólisdos atenienses. Entendemos que no

cotidiano [...]transgredia esta idealização que a sociedade masculinizada havia

planejado para ela, mas vale a pena ressaltar que estas transgressões não rompiam

definitivamente com o próprio sistema. [...] quando conseguiam, assim acreditamos,

atuavam no espaço do outro, utilizando-se de táticas, subvertendo desta forma a

dominação masculina...14

11 SOUZA, Maria Angélica Rodrigues de. Mélissa: gerenciamento, complementaridade e transgressão na

Atenas Clássica.p.03. IN: http://www.gaialhia.kit.net/artigos/mariaangelica2002.pdf. 12 SOUZA, Maria Angélica Rodrigues de.Op. Cit.p.02 13SOUZA, Maria Angélica Rodrigues de. Op, cit. p.02. 14 SOUZA, Maria Angélica Rodrigues de. Op, cit. p.04.

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19

Assim como as mulheres, os metecos faziam parte de um grupo social que não

detinham o estatuto de cidadão e, concomitantemente, dos direitos políticos. Dentro da

historiografia especializada (visão predominante) e, também, dos autores clássicos, eles

são visto apenas como um componente estrutural da cidade. Ou seja, suas únicas

funções, na cidade, seria cuidarem dos trabalhos manuais e do desenvolvimento das

atividades econômicas, participar do exército quando convocados e pagar os impostos

devidos a pólis.

Por outro lado, temos estudos que relacionam estes indivíduos, de suma

importância para a pólis, chegando a afirmar que os metecos eram quase cidadãos ou,

utilizando-se da terminologia de Michel Clerc, “concidadãos”. Com isto, percebemos

que existe uma dialética com relação ao status quo do mesmo.Mas, o que predomina em

quase todos os estudos sobre tal grupo é a análise que o despreza. Isento, portanto, de

todos os privilégios que a cidade ateniense poderia lhe proporcionar, exceto pelo

domínio das atividades econômicas.

Neste viés econômico os metecos não eram desprezíveis pela pólis por constituir

fonte de rendimento em trabalho, sendo mão-de-obra abundante e, economicamente,

participando das atividades comerciais gerando lucro e pagando seus tributos para a

cidade. Afirma Soares, tendo como base um discurso de Xenofonte que, “os metecos

não são um gasto para a polis, pelo contrário, são uma fonte de rendimento, em serviços

e em dinheiro. [...] são gratuitos. Quanto à contribuição em dinheiro, trata-se do

metoikion.”15

A respeito de tais visões antagônicas sobre o estatuto de meteco, podemos citar

Michel Clerc, defensor da ideia de que este grupo eram concidadãos. Do outro lado,

David Whitehead afirmando que estes eram seres apolíticos.

O primeiro faz um estudo positivo dos metecos na pólis de Atenas, buscando

fugir das amarras institucionais e legais, e se detendo, especialmente, na vida cotidiana

destes e sua relação com os cidadãos. Diz que não existe diferença propriamente dita

entre os metecos e os cidadãos, que viviam uma vida harmoniosa e que, o desprezo

destes para com aqueles era feita pelos aristocratas, até mesmo contra os cidadãos mais

pobres. Assim, afirma que:

15 SOARES, Fábio Augusto Morales. A Democracia Ateniense pelo Avesso: Os metecos e a política nos

discursos de Lísias. IN:http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-27042010094630/es.php.

p.50-51.

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20

Cidadãos e metecos viviam da mesma vida, e, aos olhos do observador mais atento, não

se distinguia nada entre uns e outros [...] [O parecer-se com os cidadãos] não era nada

junto de um outro privilégio que fazia realmente os metecos, na vida de todos os dias,

iguais aos cidadãos [...] Os metecos tinham a mesma liberdade de comportamento, de

movimento, de expressão que os cidadãos, e na rua, não se distinguiam em nada. Atenas

era provavelmente a única cidade (ville) onde, o quinto e quarto séculos, a fusão foi

alcançada a tal ponto entre cidadãos e os estrangeiros domiciliados.16

Tal citação mostra que para o autor existe um laço de igualdade e liberdade entre

estes dois estratos sociais, garantido pela ideia da democracia que favorecia este

estrangeiro a tomar o controle da vida econômica da pólis ateniense e, deste modo,

garantir sua liberdade na economia e, possivelmente, sua liberdade política.

Apesar da relevância deste estudo, o autor supervaloriza a figura do meteco,

desprovendo-o de qualquer alteridade entre os cidadãos, negando as constantes lutas

entre estes últimos e os primeiros. Principalmente acreditando que este tinha direito a

liberdade de expressão e de participação nas instituições políticas e, também, ao

valorizar que a vida econômica era o motivador fundamental para o status privilegiado

deste ao defender a democracia, pois esta garante sua liberdade econômica, livrando-o

das amaras sociais, da subjugação por parte dos atenienses.

Por outro lado, Whitehead, defensor da ideia dos metecos como seres apolíticos

busca em seu trabalho definir o que seria o meteco, por meio das ideologias criadas em

torno deste. Afirma que, a construção e definição sobre o que é ser um meteco parte, a

priori, de um modelo ideológico feito por não-metecos. Ou seja, um discurso produzido

pelos cidadãos, pelos outros e não por eles mesmos. Critica, deste modo, a teoria

daqueles que acreditavam que o status de meteco era um privilégio adquirido pelos

estrangeiros concedidos pela pólis e que poderiam participar ativamente da vida

econômica, intelectual e religiosa junto com os cidadãos.

Whitehead afirma que o meteco tinha apenas meros benefícios e que seu estatuto

não era um privilégio, pois:

Os metecos deviam pagar o metoikion, (se capazes) pagar as eisphorai e servir como

hoplitas; [...] os metecos eram livres para promover cultos de seus locais de origem, mas

estavam proibidos de participar na observância de cultos cívicos, exceto provavelmente

pela participação (somente) na procissão do festival panatenaico e em alguns cultoso

locais do demos de residência; [...] estavam impedidos do acesso à propriedade de terra

ou de uma casa.17

16 CLERC, MICHELApud SOARES, Fábio Augusto Morales.Op. Cit. p.56. 17WHITEHEAD, David ApudSOARES, Fábio Augusto Morales.Op. Cit. p.59.

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Em seguida, faz uma digressão histórica sobre o meteco entre os séculos VII e

III a.C., mostrando as variações e transformações deste grupo ao longo da história

ateniense. A partir daí é que podemos nos perguntar em que sentido o meteco é um ser

apolítico? Segundo o autor, quando os atenienses os recebem, este passa a ter um estado

e algumas garantias conferidas por lei. Mas, no momento, de admiti-lo ao corpus da

cidade, igualando-o aos cidadãos, tal direito é negado.

O meteco é excluindo das honrarias que são concedidas aos cidadãos, como:

participação na assembleia, exercer a magistratura, ser júri, ser sacerdote, entre outros.

Tal restrição é dada, segundo o autor, pelo fato de que este utiliza o conceito de política

como sendo um ato meramente baseado na timai, ou seja, as honras ou dignidades do

cidadão. Para Fábio Soares, segundo a interpretação feita por Whitehead, afirma que:

Neste sentido, não há qualquer conflito: cabe aos metecos, aos bons metecos alias

aceitarem a ideologia que os coloca como homines apolitici. A única contestação

possível está no desrespeito às leis: a infiltração dos metecos nas instituições. [...] Esta

construção impede que Whitehead perceba como o conceito de política, assim como os

parâmetros da cidadania, também é parte de uma disputa que pode se dar seja nos níveis

discursivos, seja nos níveis da ação prática. Política é o que o cidadão considera que é

política. [...] A política mantem-se monopólio dos cidadãos, não porque era, mas porque

os cidadãos diziam que era – a ideologia se torna evidência.18

Quanto à questão da participação política dos metecos na sociedade ateniense, as

respostas variam de acordo com a definição de política adotada pelos historiadores. Em

geral, o conceito sobre política foi e tem sido entendido como ação institucional. Ou

seja, a prática do debate e da decisão dentro das instituições políticas oficiais, como a

Assembleia, o Conselho e os tribunais.Entretanto, esta visão tem sido criticada

recentemente e novas abordagens se tornam possíveis para o tratamento do tema da

participação política dos metecos.

Deste modo, se a política for entendida como prática da liberdade e os espaços

políticos forem entendidos como situações espaciais desta prática, abrem-se brechas nos

impedimentos políticos aos metecos - ao combater ao lado dos cidadãos, ao discutir

política em espaços privados, ao escrever discursos para serem pronunciados em

tribunal, os metecos fariam, também, política. O exemplo mais claro desta exposição

acontece na “restauração democrática” de 403.a.C., quando os metecos fizeram parte do

18 SOARES, Fábio Augusto Morales. Op. Cit. p.62.

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exército que derrubou o regime oligárquico dos Trinta Tiranos e, em seguida,

reestabeleceram a ordem da democracia ateniense, junto com os cidadãos.

Apesar destas variantes no que concerne ao estudo sobre os metecos, temos

alguns pontos em comum sobre os mesmos, a saber:a população meteca cresceu com a

formação do Império ateniense, que dinamizou a circulação de bens e pessoas no mar

Egeu e Ásia Menor; os metecos não formavam uma classe social homogênea; o fato de

pertencer à categoria trazia uma série de impedimentos legais, como o de participar da

Assembleia, de comandar navios (havia exceções), de adquirir a propriedade da terra, de

dirigir cultos públicos; eram obrigados a pagar um imposto anual, a metoikia,

equivalente a um dia de trabalho; os metecos mais ricos contribuíam, junto com os

cidadãos ricos, com os custos militares; entre as atividades exercidas pelos metecos

(mas que não eram exclusivas deles: cidadãos também a exerciam) estão o comércio de

varejo e atacado, como a importação e comercialização do trigo, a manufatura, como a

fabricação de armas (caso de Céfalos), e as atividades intelectuais, como a docência de

retórica (Górgias), de filosofia (Protágoras, Aristóteles), e a escrita de discursos

judiciários para cidadãos (Lísias); entre outros.

Como complemento desta definição de quem poderia ser cidadão, com seus

requisitos básicos e, deste modo, exercer seus direitos políticos – neste caso, participar

da Assembleia e, assim, das decisões da polis – Aristóteles faz uma definição muito

importante referente ao ser cidadão: primeiramente, distingue os cidadãos em dois

momentos, sendo os cidadãos completos (os homens adultos e, neste caso, estariam

aptos de todos os direitos a exercerem seu papel social) e, no segundo momento,

afirmando que somente é digno deste direito – a cidadania –aquele que é livre do

trabalho laboral:

Com efeito, é verdade que nem todas as pessoas indispensáveis à existência de uma

cidade devem ser contadas entre os cidadãos, porquanto os próprios filhos dos cidadãos

não são cidadãos no mesmo sentido que os adultos: estes são cidadãos de maneira

absoluta, enquanto aqueles são cidadãos presuntivos (são cidadãos, mas incompletos)

[...] Logo, a melhor forma de cidade não devera admitir os artífices entre os cidadãos; se

forem admitidos, nossa definição das qualidades do cidadão nãos se aplicará a cada

cidadão nem a cada homem livre como tal, mas somente àqueles isentos das atividades

servis. 19

19 ARISTÓTELES. Política :III. 1278 a.

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Portanto, não era considerado digno que um cidadão exercesse funções manuais

ficando estas relegadas a dois principais grupos: os metecos e, principalmente, os

escravos. Em tese, eram estes dois segmentos sociais que exerciam tais atividades; já

que, para os atenienses as atividades mais importantes estavam relacionadas à política,

ao estudo filosófico e aos exercícios atléticos.

Afirma Xenofonte, negando os valores do trabalho manual para os cidadãos que

deveriam se dedicar, única e exclusivamente, aos ofícios tidos como bem supremo, que

seriam a prática da política, em sua acepção ampla e a arte da guerra, como sendo as

coisas dignas do verdadeiro cidadão, deixando o restante dos trabalhos àqueles que

realmente deveriam dispor dele, como os metecos e os escravos, que:

Os ofícios chamados artesanais estão desacreditados e é natural que sejam desprezados

nas cidades. Arruínam o corpo dos operários que os exercem e o corpo dos que os

dirigem, obrigando-os a levar uma vida caseira, sentados à sombra das suas oficinas e a

passar, por vezes, todo o dia perto do fogo. Ainda por cima, esses ofícios chamados

artesanais não lhes deixam nenhum tempo livre para se ocuparem dos amigos e da

cidade: de forma que quem exerce tais ofícios parece um indivíduo mesquinho quer nas

relações com os amigos quer na ajuda prestada à pátria. Por isso, em algumas cidades, e

em especial nas que são tidas por guerreiras, chega-se mesmo a proibir que os cidadãos

exerçam os ofícios artesanais.20

1.3. A Arte da Guerra: O cidadão-guerreiro ateniense

Luciano Canfora21

, em sua definição de cidadão, qualifica que, além da função

de participar das deliberações da Assembleia, este possuía outro requisito vinculante, a

saber: ser um cidadão-guerreiro22

. Era detentor de tal direito quem era capaz de exercer

a principal função dos homens adultos livres: a guerra.“É cidadão, faz parte de pleno

direito da comunidade através da participação nas assembleias deliberativas, quem é

capaz de exercer a principal função dos homens adultos livres: a guerra.” 23

Para ser considerado guerreiro, durante a antiguidade, este devia dispor dos

meios financeiros para prover seu armamento pessoal. Assim, o requisito para participar

20Xenofonte Apud MOSSÉ, Claude. O homem e a economia. IN:VERNANT, Jean P. O Homem Grego.

O Homem Grego. p. 30. 21CANFORA, Luciano. O Cidadão. IN:VERNANT, Jean P. O Homem Grego. O Homem Grego. p. 108. 22 A noção de cidadã-guerreiro apresentada é caracterizado pelo novo modelo de combatente: o hoplita.

Este tinha os seguintes componentes: grevas, elmo, couraça de bronze e um escudo circularcom diâmetro

em torno de 80 ou 90 centímetros, feito a bronze ou de uma amálgama de madeira, vimes e peles. 23CANFORA, Luciano. O Cidadão. IN: O Homem Grego. Op. cit. p. 108.

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do exército era que este cidadão ateniense tivesse meios financeiros para custearem suas

despesas.

Canfora afirma que: “a noção de cidadão-guerreiro identificou-se com a noção

de ser rico; detentor de certo rendimento (na maior parte dos casos, fundiários) que

desse ao potencial guerreiro a possibilidade de se armar a expensas próprias.” 24

Com

isso, “até este momento, os que nada possuíam permaneceram numa condição de

minoridade civil e política bastante próxima da condição servil.” 25

Fato este, que não os

colocava com o direito de exercer a cidadania e, em consequência, não participar da

assembleia e nem do exército.

Tal benefício só foi possível aos que nada possuíam quando da guerra contra os

Persas em que se fez necessária uma expansão da mão-de-obra belicista. Foi, portanto,

este fato:

Político-militar que provocou – nas democracias marítimas – o alargamento dacidadania

aos que nada possuíam (os tetes), que assim ascendem finalmente à condição de

cidadãos-guerreiros, e, no caso de Atenas, como marinheiros da mais poderosa frota do

mundo grego.26

Finley afirmava que todos os cidadãos e, inclusive, os metecos poderiam ser

chamados para constituir o exército, porém apenas os mais ricos detinham tal beneficio

na prática e, assim, eram convocados. Escreve ele:

Todo o cidadão e meteco eram aptos para serviço militar, sendo a Assembleia a

determinar a dimensão de cada recrutamento. Contudo, de modo geral, apenas os

hoplitas e a cavalaria, isto é, os dois sectores mais abonados, eram chamados. Exigia-se-

lhes que fornecessem seu próprio equipamento... Embora as chamadas levas de tropas

ligeiramente armadas fossem recrutadas em certas ocasiões, é exacto dizer que, em

Atenas, o exército recrutado e não profissional no sentido moderno, era uma instituição

restrita às classes altas e médias.27

A ideia dealargamento da cidadania, em Atenas, está ligada a um fator de suma

importância, o imperialismo. Um império que tinha como base o fundamento da

opressão sobre os conquistados. Mesmo com tal subordinação, o alargamento da

cidadania28

e, portanto, do sistema democrático,

24CANFORA, Luciano. Op. cit. p. 108-109. 25 CANFORA Luciano. Op. cit. p. 108-109. 26 CANFORA Luciano. Op. cit.p.109. 27 FINLEY, Moses I. Os Gregos Antigos.pp. 63-64. 28 No entanto, a concessão da cidadania aos que nada possuem não aconteceu de forma unânime no

interior da polis ateniense. Pois, os grupos que tinham o domínio político dividiram-se. De um lado,

encontramos o grupo que irá aceitar e concordar um sistema político no qual os não detentores de

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Às comunidades aliadas era considerado como um vínculo de solidariedade com os

aliados-súbditos, o que significa que, nas comunidades aliadas, e apesar da exploração

imperial por parte de Atenas, havia sempre uma parte social que achava mais

conveniente a aliança com Atenas, que devia ser consolidada pela adopção do sistema

político do Estado guia.29

Deste modo, à noção do cidadão-guerreiro faz-se um requisito necessário e, até

mesmo, uma obrigação que permeia toda a vida moral deste homem, tornando-o um

exemplo de virtude e um diferenciador social frente aos seus semelhantes (isoí), “na

medida em que, os homens se reconheciam nos olhos dos outros homens e marcavam

suas identidades como cidadão.”30

.Tão forte este sentimento de belicismo, de virtude,de

excelência,de status e de civilidade para o modelo ideal de cidadãoque Garlan afirma:

Na vida diária, a guerra é uma preocupação constante para os cidadãos: por isso,

participar nela é uma obrigação que, em Atenas, ia desde os dezenove até aos cinquenta

e nove anos (até os quarenta e nove anos, no activo, e depois, na reserva); decidir a

respeito dela constitui, por toda a parte, a competência mínima das assembleias

populares. A todos os níveis e em todos os campos se afirma o predomínio do modelo

guerreiro: na vida familiar, o soldado é [...], a figura central em torno da qual se

articulam as relações internas do oikos;na vida religiosa, cada uma das divindades do

Olimpo é dotada de uma função militar especifica; na vida moral, o valor de um homem

de bem (agathòs), a sua aretè, consiste em primeiro lugar na coragem racional que

manifesta tanto no seu íntimo, ao lutar contra as paixões mesquinhas, como no campo

de batalha onde o aguarda a “bela morte”, a única que tem um significado social.31

Notamos que este estatuto da guerra trazia em si uma relação de hierarquia

social que servia para distinguir os cidadãos dos não cidadãos e, assim, elevar, cada vez

mais, os privilégios dos primeiros e seu domínio político, econômico e militar frente aos

outros membros que compunham a pólis ateniense. Existe, segundo Garlan,

Uma concentração das capacidades e responsabilidades militares no topo da hierarquia

social, nas mãos de uma elite que no campo de batalha desempenha um papel

determinante, proporcional àquele que desempenha igualmente na política e na

economia. É a essa elite que compete exibir, na primeira fila, a sua riqueza, o seu poder

e a sua coragem, enquanto o povo, em segundo plano, se acantona em formações

compactas para apoiar e aplaudir as façanhas dos campeões. Cabe-lhe também o

privilegio das armas forjadas pelos deuses protetores, dos gigantescos paveses e,

sobretudo dos carros de guerra. [...] O exercício da força armada não constituía a fonte,

riquezas têm para si o atributo da cidadania; portanto, a maioria. Por outro lado, a minoria, apela para a

redução drástica da cidadania aos não possidentes e reestabeleça tal direito somente aos cidadãos de pleno

direito. Ponto este que será discutido posteriormente. 29CANFORA, Luciano. O Cidadão. IN: O Homem Grego. p. 109. 30

SÁ CODEÇO,Vanessa Ferreira de. Modelo de cidadania e modelo de: A Paidéia idealizada pelos

filósofos. p.53. IN: http://www.gaialhia.kit.net/artigos/artigo003_2008_2.pdf. 31 GARLAN, Yvon. O homem e a Guerra. IN: O homem grego. pp. 49-50.

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mas a expressão privilegiada de todo um conjunto integrado de posições estatutárias

representativas dos diferentes aspectos da cidadania. Em primeiro lugar, estava a

capacidade econômica de os indivíduos se dotarem, em caso de necessidade, de um

armamento adequado. Mas não era essa capacidade em si que determinava a sua

categoria cívica. Assim, em Atenas, a classificação censitária dos cidadãos e as

atribuições políticas que lhe estavam associadas baseavam-se na importância dos seus

rendimentos e não em critérios de natureza militar.32

O caráter da guerra aceito, entre os gregos,era aquele que não fosse à guerra-

civil (stasis). Pois, esta, representava o rompimento do equilíbrio interno entre os

membros da pólis. A única aceita era a guerra entre pólis diferentes33

. Segundo Garlan,

“a guerra desenfreada e selvagem, a guerra de lobos, era considerada uma transgressão

escandalosa (hybris) às normas de convivência – por outras palavras, de justiça – que os

homens deviam respeitar não só entre eles, mas também em relação aos deuses.”34

Todos estes elementos contribuíam para que, dentro da pólis, não fossem

suplantados os elementos que davam a harmonia ao ideal de comunidade e também de

cidadão. Em que, os valores individuais, neste caso, as façanhas no combate, deste

guerreiro hoplita, que também era um cidadão, não fossem mais importantes do que a

valorização do bem comum do corpus social. Fato típico das características do guerreiro

homérico em que se prezavam os valores individuais, pois o que contava para este herói

Era a façanha individual, a proeza feita em combate. Na batalha, mosaico de duelos em

que se enfrentavam os prómachoi, o valor militar afirmava-se sob a forma de uma

aristeia, de uma superioridade toda pessoal. A audácia que permitia ao guerreiro

executar aquelas ações brilhantes, encontrava-se numa espécie de exaltação, de furor

belicoso, a lyssa, onde o lançava, como fora de si mesmo, o menos, o ardor inspirado

por um deus.35

Nas palavras de Vernant, sobre o modelo de guerreiro hoplita, diferentemente do

que acontecia no período homérico, os valores haviam se invertido, já que:

O hoplita já não conhece o combate singular; deve recusar, se se lhe oferece a tentação

de uma proeza puramente individual. É o homem da batalha de braço a braço, da luta

ombro a ombro. Foi treinado em manter a posição, marchar em ordem, lançar-se com

32 GARLAN, Yvon. Op. cit. p. 57. 33 Os meios para promover uma guerra variavam e, na prática, eram sempre recorrentes. Eis, alguns

segundo Garlan: “agressão territorial, atraques às vias de abastecimento, desrespeito por acordos

anteriores, estabelecimento de regimes malquistos, qualquer forma de ameaça real ou potencial,

impiedade, afrontas que ofuscavam a glória da cidade, tudo servia para fazerem justiça...” (GARLAN,

1991, p.52) 34 GARLAN, Yvon. Op. cit. p. 50. 35 VERNANT, Jean P. As Origens do Pensamento Grego. 18° ed. Rio de Janeiro: Difel, 2009. p.67.

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passos iguais contra o inimigo, cuidar, no meio da peleja, de não sair do posto. A

virtude guerreira não é mais da ordem do thymós; é feita de sophorosyne; um domínio

completo de si, um constante controle para submeter-se a uma disciplina comum, o

sangue frio necessário para refrear os impulsos instintivos que correriam o risco de

perturbar a ordem geral da formação. A falange faz do hoplita, como a cidade faz do

cidadão, uma unidade permutável, um elemento semelhante a todos os outros, e cuja

aristeia, o valor individual, não deve jamais se manifestar senão no quadro imposto pela

manobra em conjunto, pela coesão de grupo, pelo efeito de massa, novos instrumentos

da vitória. Até na guerra, a Eris, o desejo de triunfar do adversário, de afirmar-se sua

superioridade sobre outrem, deve submeter-se à Philia, ao espirito da comunidade; o

poder dos indivíduos deve declinar-se diante da lei do grupo. 36

Além disso, os beligerantes deveriam seguir alguns requisitos essenciais antes de

travar qualquer embate, quais sejam:

Declaração de guerra na forma devida, realização dos sacrifícios adequados, respeito

pelos lugares (santuários), pelas pessoas (arautos. peregrinos, suplicantes) e pelos actos

(juramento) referentes à divindade, concessão de autorização aos vencidos para

recolherem os seus mortos e, em certa medida, abstenção da crueldade gratuita.37

1.4. A Formação da Pólis Ideal

Já que o cidadão, tanto em seu modelo ideal quanto na realidade vivida, deveria

estar preocupado com o destino da pólis, então, cabe-nos saber o que era uma cidade ou

pólis? Qual o seu papel na vida dos cidadãos? A comunidade ou cidadeera o espaço que

abrangeria a todos que pertenciam a esta localidade. Era, portanto, um conjunto

formado por “várias famílias [...], vários povoados” 38

. Aristóteles prossegue dizendo

que:

Toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a

algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que

lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a

mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este

objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a

comunidade política. 39

Além do mais, tal comunidade deveria ter mais do que uma quantidade

significativa de pessoas, que formava um todo.Deveria ter, por excelência, um requisito

36 VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. p.67-68. 37 GARLAN, Yvon. Op. cit. p. 50 38 ARISTÓTELES. Política: I. 1252 b; 1253 a. 39 ARISTÓTELES. Op. cit. I. 1252 a.

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básico: ser auto-suficiente. E, como finalidade maior: o bem de todos os seus membros,

principalmente, dos seus cidadãos. Ou, como define Aristóteles:

A comunidade constituída a partir de vários povoados é a cidade definitiva, após atingir

o ponto de uma auto-suficiência praticamente completa; assim, ao mesmo tempo que já

tem condições para assegurar a vida de seus membros, ela passa a existir também para

lhes proporcionar uma vida melhor [...] Mais ainda: o objetivo para o qual cada coisa foi

criada – sua finalidade – é o que há de melhor para ela, e a auto-suficiência é uma

finalidade e o que há de melhor. 40

O que significava ser auto-suficiente? Para Aristóteles, seria um conjunto de

serviços indispensáveis prestados pelo Estado para satisfazer os interesses da

comunidade e, assim, trazer, de modo ideal, a felicidade de todos que lá vivem. Ou,

como se verifica nesta citação:

Em primeiro lugar a cidade deve ter um suprimento de alimentos; depois, artífices

capazes, pois para viver necessitamos de instrumentos; em terceiro lugar, armas, pois os

membros da comunidade devem possuir necessariamente armas, tanto para seu próprio

uso quanto para servir ao governo em caso de insubordinação, e para usá-la contra quem

tentar molestá-los vindo de fora; deverá haver também certa disponibilidade de

dinheiro, de forma a assegurar recursos bastantes para necessidades internas e para as

emergências da guerra; em quinto lugar, mas como se fosse em primeiro, os serviços

religiosos – as chamadas funções sacerdotais; em sexto lugar na enumeração, mas o

mais necessário de todos, meios para decidir as questões que envolvam interesses e

direitos recíprocos dos cidadãos. Estes são os serviços dos quais a bem dizer todas as

cidades necessitam ( a cidade não é um ajuntamento de homens ao acaso, e sim uma

comunidade visando à auto-suficiência quanto às necessidades da vida, como já

dissemos, e se faltar algum deles será impossível assegurar a auto-suficiência absoluta

da comunidade). É indispensável, portanto, que a cidade seja organizada de maneira a

dispor destes serviços; consequentemente ela deve possuir um número de agricultores

suficiente para assegurar o suprimento de alimentos, além de artífices, militares, homens

ricos, sacerdotes e juízes para decidirem o que for necessário e conveniente.41

Tal ideia, para Aristóteles, era possível porque o homem é um ser social ou um

“animal político”. O único com capacidade de entender e suprir suas

necessidadesracionalmente. De agir não pensando somente em si, mas no destino de

todos. “Fazer-se um ser socializado”42

, eis o ponto principal na definição de um bom

cidadão. Pois,

A cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e um

homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma,

40 ARISTÓTELES. Op. cit.: I. 1253 a 41ARISTÓTELES. Op. cit.: VII. 1328 b. 42 TAVEIRA, Daniel Teixeira. Um Ambiente Discursivo: Reflexões sobre a rede de relações entre

cidadãos e não-cidadãos na Atenas Clássica e sua Produção Discursiva.p.30.IN:

http://www.gaialhia.kit.net/artigos_2010_2/artigo002_2010_2.pdf

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seria desprezível ou estaria acima dos deuses (como o “sem clã, sem leis, sem lar” de

Homero fala com escárnio, pois ao mesmo tempo ele é ávido por combates), e se

poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão. É claro, portanto, que a

cidade tem precedência por natureza sobre o indivíduo. De fato, se cada individuo

isoladamente não é auto-suficiente, consequentemente em relação à cidade ele é como

as outras partes em relação ao todo, e um homem incapaz de integrar-se numa

comunidade, ou seja auto-suficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é

parte de uma cidade, por ser um animal selvagem ou um deus.43

Portanto, viver na comunidade e para a comunidade era o bem maior. A forma

mais justa para o homem político e, também, para o modelo ideal de cidadão. Pois, a

cidade formava um todo organizado, “um cosmos, que se torna harmonioso se cada um

de seus componentes está em seu lugar e possui a porção de poder que lhe cabe em

função de sua própria virtude.”44

Concomitantemente, esta mesma comunidade deve proporcionar ao cidadão uma

vida justa, de felicidade e, por excelência, de ações nobilitantes, como podemos

verificar nesta passagem que, em suma, seria a comunidade ideal e o que ela deveria

proporcionar a este corpo cívico:

É evidente, portanto, que uma cidade não é apenas uma reunião de pessoas num mesmo

lugar, com o propósito de evitar ofensas recíprocas e de intercambiar produtos. Estes

propósitos são pré-requisitos para a existência de uma cidade, mas isto não obstante,

ainda que todas estas condições se apresentem este conjunto de circunstancias não

constitui uma cidade; esta é uma união de família e de clãs para viverem melhor, com

vistas a uma vida perfeita e independente. [...] Uma cidade é uma comunidade de clãs e

povoados para uma vida perfeita e independente, e esta em nossa opinião é maneira

feliz e nobilitante de viver. A comunidade política, então, deve existir para a prática de

ações nobilitantes, e não somente para a convivência. 45

Além de todos estes requisitos, citados anteriormente, para esta cidade ideal, a

mesma deveria ter condições físicas para se estabelecer. Ou seja, não deveria ser

somente auto-suficiente, mas ter uma boa localização territorial. Pensava Aristóteles que

quanto a esta última característica a cidade tinha que ser:

Favorável sob quatro aspectos: primeiro, como condição preponderante, o aspecto da

salubridade; cidades situadas em declive no sentindo oriente, e expostas a ventos que

sopram do levante, são mais salubres; como segunda condição, aquelas protegidas

contra o vento norte, pois nelas o inverno é mais suave; entre outros aspectos, o local

deve ser favorável tanto as atividades administrativas quanto às ações militares; em

relação a estas o local deve permitir a retirada fácil dos cidadãos e deve ser dificilmente

43ARISTÓTELES.Op. Cit. I. 1253 a. 44 VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. p.98. 45 ARISTÓTELES.Op. cit. III. 1281 a.

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acessível e sitiável pelo inimigo; deve haver no local abundância natural de nascentes e

fontes...46

Outro requisito que Aristóteles considerava de grande importância, para o

modelo ideal de cidade, era com relação à natureza deste território, em especial, a sua

disposição estratégica que, de certo modo, iria influenciar na segurança da pólis e de

todo o corpus social que nela vivia.Acreditava que este território – que, de certa forma,

estaria preparado para as atividades militares:

De um lado ele deve ser de difícil acesso ao inimigo e fácil de ser abandonado por seus

habitantes; por outro lado, e em adição a isto, nossa asserção acerca da magnitude da

população se aplica ao território – deve-se poder abrangê-lo facilmente com o olhar, e

isto quer dizer que o território fácil de ver é também fácil de defender. Quanto à

posição, se quisermos fazer a cidade segundo nossos desejos deveremos localizá-la

favoravelmente tanto em relação ao mar quanto à terra. Um dos fatores decisivos é que

a cidade tenha comunicação fácil com todo o seu território para efeito de proteção; o

outro fator é fazê-la facilmente acessível ao recebimento dos frutos do solo de seu

território...47

O quantitativo ideal de habitantes que uma cidade deveria ter foi assunto,

também, de extrema importância para Aristóteles. Defendia que as melhores póliseram

aquelas que possuíam uma quantidade de pessoas adequadas- nem muito e nem pouco

integrantes, mas o valor mais correto e justo – e que, como fim último, buscasse o

equilíbrio dos valores internos de todos os cidadãos, além da auto-suficiência. Pois,

acreditava que “na realidade não se deve ter em vista o número de habitantes, e sim a

sua eficiência.”48

Então, mais a frente diz o filósofo que:

Não é possível que uma cidade dotada de grande número de artífices, mas de poucos

soldados pesadamente armados, seja realmente uma grande cidade [...] é difícil, ou

mesmo impossível, governar bem uma cidade muito populosa; ao menos vemos que

nenhuma das cidades com reputação de em governadas permite o crescimento

indiscriminado de sua população. [...] Há um limite, porém, para o tamanho de uma

cidade, tanto quanto para o de todas as outras coisas. [...] Da mesma forma uma cidade

constituída de um número muito pequeno de habitantes não será auto-suficiente (uma

cidade deve ser auto-suficiente), e uma constituída de um número excessivamente muito

grande, embora auto-suficiente para as necessidades básicas, será um amontoado de

gente, e não uma cidade, pois não será fácil de dotá-la de um governo constitucional.

[...] Por via de consequência tem-se o limite mínimo de habitantes para constituir uma

cidade quando esta é dotada de uma população com o número mínimo capaz de

assegurar-lhe a auto-suficiência com vistas a uma vida melhor.49

46 ARISTÓTELES.Op. cit. VII. 1330b. 47 ARISTÓTELES. Op. cit. VII. 1327 a. 48ARISTÓTELES.Op. cit. VII. p.1326 a. 49ARISTÓTELES.Op. cit. VII. 1326a – 1326b.

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31

Em suma, a vida da pólis e seu espaço físico, em sua forma ideal, segundo Paulo

Fernandes Louro:

Deverá ser planejado com o objetivo de apoiar o pleno desenvolvimento do cidadão e de

sua consciência cívica, pois ali vive uma comunidade que deve ser preservada e

reproduzida, com suas instituições próprias, resguardando o sentido de autonomia e o

sentimento de liberdade que era tão típico entre os gregos.50

Por fim, a respeito dos requisitos de uma boa comunidade e dos benefícios que

esta deve proporcionar aos seus habitantes, somenteé possível por meio de um

pressuposto básico e indispensável, a saber: uma boa constituição. Esta seria a base de

todas as qualidades para a definição de um bom cidadão e também de uma cidade

adequada, pois iria garantir o equilíbrio interno da cidade.

Desta forma, a constituição idealizada devia trazer a felicidade aos seus

membros, em especial, aos seus cidadãos; prezando sempre pela harmonia interna do

corpus social, também, pelos interesses que visassem o bem comum da comunidade. De

outra forma, os outros tipos de constituições ou leis que visassem aos interesses dos

governantes ou somente do povo, ou seja, a os interesses particulares de

determinadogrupo, seriam leis ou constituições falhas, por faltar um requisito básico e

indispensável, a saber: a prevalência do interesse comum ou público sobre o privado.

Aristóteles afirma que:

As constituições cujo objetivo é o bem comum são corretamente estruturadas, de

conformidade com os princípios essenciais da justiça, enquanto as que visam apenas ao

bem dos próprios governantes são todas defeituosas e constituem desvios das

constituições corretas; de fato, elas passam a ser despóticas, enquanto a cidade deve ser

uma comunidade de homens livres. 51

Mais a frente prossegue dizendo que:

Uma vez que constituição significa o mesmo que governo, e o governo é o poder

supremo em uma cidade, e o mando pode estar nas mãos de uma única pessoa, ou de

poucas pessoas, ou da maioria, nos casos em que esta única pessoa, ou as poucas

pessoas, ou a maioria, governam tendo em vista o bem comum, estas constituições

devem ser forçosamente as corretas; ao contrário, constituem desvios os casos em que o

governo é exercido com vistas ao próprio interesse da única pessoa, ou das poucas

50LOURO, Paulo Fernandes. Planejando a Pólis Ideal.IN:

http://www.revistaphoinix.kit.net/Phoinix%201996/artigo020_1996.pdf. p. 275. 51 ARISTÓTELES. Op. cit.III. 1279 a.

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pessoas, ou da maioria, pois ou se deve dizer que os cidadãos não participam do

governo da cidade, ou é necessário que eles realmente participem. 52

Portanto, toda e qualquer ação que esteja em desconexão com este princípio

pode soar frente aos outros membros da comunidade ateniense à tentativa de

implantação da tirania ou a relutância para a destruição da democracia. Estes assuntos

do âmbito público nunca deviam ser confundidos com o da vida privada e, muito

menos, ter importância secundária.

As constituições para ser eficientes e justas devem, necessariamente, ter sua

divisão em três partes básicas e ordenadas entre si, sem prioridade de poder ou

supremacia para nenhuma das partes.Divisão feita da seguinte forma: 1-) deliberação

sobre os assuntos públicos; 2-) as funções públicas e, por fim, 3-) o poder judiciário.

Segundo Aristóteles:

Todas as constituições apresentam três partes em referências às quais o bom legislador

deve examinar o que é conveniente para cada constituição; se estas partes forem bem

ordenadas, e na medida em que elas diferem umas das outras as constituições também

diferem entre si. Destas três partes uma trata da deliberação sobre assuntos públicos; a

segunda trata das funções públicas, ou seja: quais são as que devem ser instituídas, qual

deve ser sua autoridade específica, e como devem ser escolhidos os funcionários; a

terceira parte trata de como de ser o poder judiciário.53

Esta mesma lei deveria, em sua forma perfeita, seguir e garantir como forma de

justiça e equidade a seus cidadãos o princípio da isonomia54

, o qual impõe ao Estado,

neste caso, a pólis ateniense, tratar igualmente todos os cidadãos que estejam na mesma

situação fática e jurídica. Ou seja, significava que os desiguais deveriam ser tratados

desigualmente em relação àqueles que não se enquadravam na mesma situação.

52 ARISTÓTELES.Op. cit. III. 1279 b. 53 ARISTÓTELES. Op. Cit. IV. 1298 a. 54 O principio da isonomia pode ser dividido em duas formas principais: a isonomia formal e a isonomia

material. A primeira diz que todos poderão igualmente buscar os direitos expressos na lei. Já a segunda,

trata da igualdade real, a vivida pelas pessoas. A busca da igualdade material acontece quando as pessoas

são tratadas desigualmente as pessoas que estejam em situações desiguais. Geralmente, ela é usada para

favorecer grupos que estejam em desvantagem. E só tem sua eficácia e eficiência quando for pautada por

motivos lógicos e justificáveis. A isonomia, também, pode ocorrer, também, perante a lei e na lei.

Àqueladiz respeito a sua aplicabilidade, pelo legislador, seja feita sem distinções de qualquer tipo de

credo, sexo, raça, cor, entre outros. Esta última tem a ver com direcionar o legislador para não fazer

distinções entre as pessoas no momento de elaboração de tal lei.

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33

Este princípio vai caracterizar a relação harmônica desenvolvida no interior da

comunidade, pelo menos no plano ideal, formando uma nova forma de agir e pensar do

cidadão perante a lei55

, principalmente, entre os isois, os iguais. Para Vernant:

O vínculo do homem com o homem vai tomar assim, no esquema da cidade, a forma de

uma relação recíproca, reversível, substituindo as relações hierárquicas de submissão e

de domínio. Todos os que participam do Estado vão definir-se como Hómoioi,

semelhantes, depois, de maneira mais abstrata, como os Isoí, iguais. Apesar de tudo o

que os opõe no concreto da vida social, os cidadãos se concebem, no plano político,

como unidades permutáveis no interior de um sistema cuja lei é o equilíbrio, cuja norma

é a igualdade. Essa imagem do mundo humano encontrará no século VI sua expressão

rigorosa num conceito, o de isonomia: igual participação de todos os cidadãos no

exercício do poder.56

Em suma, a constituição ideal, para Vernant:

Deve estabelecer entre os cidadãos um justo equilíbrio a garantir a eunomia: a divisão

equitativa dos cargos, das honras, do poder entre os indivíduos e as facções que

compõem o corpo social. [...] assim concilia, harmoniza esses elementos para deles

fazer uma só e mesma comunidade, uma cidade unida.57

1.5. As Virtudes Ideais do Bom Cidadão

Além desses requisitos, outros se esperam deste cidadão, pois a comunidade

ateniense prezava a harmonia, o equilíbrio e a justa-medida. Alguns destes valores eram

esperados e exigidos de seus cidadãos formando, assim, o modelo de cidadão ideal. Tais

características são apontadas por Aristóteles na Ética à Nicômaco58

, como sendo: a

temperança, a bondade, a liberdade, a verdade, a reserva, a justa indignação, a amizade,

o amor, a piedade e a disciplina, a honra, a honestidade, a coragem, ao saber, a

faculdade de opinar, a sabedoria, o conhecimento, a inteligência. Todos estes valores

seriam, portanto, o meio termo de entre aquilo que seria mais adequado para uma vida

digna e feliz do cidadão no interior da pólis e, também, proporcionada por ela.

55 A igualdade “reside no fato de que a lei, que agora foi fixada, é a mesma para todos os cidadãos e que

todos podem fazer parte dos tribunais como da assembleia. Antes eram o „orgulho‟, a „violência de

ânimo‟ dos ricos que regulavam as relações sociais. [...] Agora é a dike que fixa a ordem de divisão das

timai, são as leis escritas que substituem a prova de força em que sempre os fortes triunfavam e que

impõem sua norma de equidade, sua exigência de equilíbrio.” IN: VERNANT, Jean Pierre. As origens do

pensamento grego. p.98. 56 VERNANT, Jean Pierre. Op. cit. p.65. 57 VERNANT, Jean Pierre. Op. cit. p.79. 58 ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco: II. 1-10; III. 1-12

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Esses valores podem ser resumidos da seguinte forma: a coragem seria o meio

termo entre o medo e a temeridade; a temperança entre do desregramento e a

insensibilidade; a bondade entre a cólera e a apatia; a verdade, entre falso e realidade; a

reserva, entre a timidez e o descomedimento; a justa indignação entre a inveja e a

aversão; a amizade e o amor consistiam no equilíbrio entre as relações afetivas entre si e

com os outros; a capacidade de opinar era uma técnica presente em virtude da

prudência; o conhecimento era classificado em três vertentes: inteligência,

demonstração e sabedoria. Ou, como fala Vernant:

A dignidade do comportamento tem uma significação institucional; exterioriza uma

atitude moral, uma forma psicológica, que se impõem como obrigações: o futuro

cidadão deve ser exercitado em dominar suas paixões, suas emoções e seus instintos.

[...] A sophorosyne submete assim cada indivíduo, em suas relações com outrem, a um

modelo comum conforme a imagem que a cidade se faz do “homem político”. Por seu

comedimento, o comportamento do cidadão afasta-se tanto da negligência, das

trivialidades grotescas próprias do vulgo quanto da condescendência, da arrogância

altiva dos aristocratas. O novo estilo das relações humanas obedece às mesmas normas

de controle, de equilíbrio, de moderação que traduzem as sentenças como “conhece-te a

ti mesmo”, “nada em excesso”, “a justa medida é o melhor”.59

As virtudes deste cidadão, elencadas acima, tinha o intuito de garantir o

equilibro interno da polis, evitando, desta forma, a desmedida (hybris) que rompia com

a ordem vigente, causando uma contaminação (míasma) ou difusão de valores

prejudiciais ao bom convívio social dos cidadãos e que, por esta razão, deveria ser

contida pelas leis – uma boa constituição – ou pelos ritos religiosos. Portanto,

Estas regras de conduta estabeleciam uma relação social de honra, cuja sanção se

materializava na vergonha e na exclusão social. Honra (time) e vergonha (aidós/aischós)

regulavam o comportamento coletivo. Estes foram dois aspectos que norteavam a

valorização da conduta social e definiam o que era bem social. Grande parte dos valores

tutelados pela pólisadivinham dos costumes, da tradição e da religião [...] A honra

ativava a necessidade diária de condutas que, indiretamente, reproduziam a ordem

políade. [...] Essa regras expressavam uma série de normas morais e religiosas que se

ligavam diretamente à consciência do homem, o qual controlava seu comportamento e

se autopunia pelo receio do constrangimento de seu grupo, pela perda de seu status, ou

mesmo, da sua morte social. Estas normas referiam-se a relações quotidianas e

fundamentais da sociedade tais como, por exemplo: o respeito e proteção aos pais; o

reconhecimento por um favor concedido, isto é, manter a confiança (psítis) do amigo; o

respeito aos deuses, a piedade (eusébia); o respeito ao hóspede; a prática da

hospitalidade; a proibição de fazer mal a um homem, mesmo criminoso, que se

refugiasse num altar; não atacar um arauto, um “embaixador” ou um suplicante; não

violar um juramento, num contrato privado; não matar em combate aquele que se

59VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. pp. 96-97.

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rendesse; sepultar os mortos; ser moderado em suas ações (sophrosýne) e obedecer as

leis da polis.60

E, dentre todas estas características que este cidadão ideal deveria ter Aristóteles,

na Política, destaca a bondade e a obediência do mesmocomo atributo de um bom

cidadão. E, pela primeira, ela “deve relacionar-se necessariamente com a constituição

da cidade à qual ele pertence.” 61

Prossegue dizendo que “ao falar de um homem bom

queremos dizer que ele possui uma bondade única, a bondade perfeita...” 62

Desta forma,

a organização deste cosmo políade buscou desenvolver:

No cidadão, uma série de valores que o tornavam reprodutor da ordem sóciopolítica.

Isto se fazia pela valorização da coisa pública acima dos interesses individuais. Para

isso, o Estado promovia uma série de atividades, como: festivais, jogos, teatro, culto

oficial e lugares públicos cujos edifícios representavam a ideologia da autarkeía do

Estado, a harmonia, o equilíbrio e a medida. O homem vivenciava e via a presença da

pólis. Os espaços físico e social construídos no sistema políade representavam a relação

tensional e complementar entre indivíduo-sujeito e o público.63

Será possível que todos os homens que vivem na cidade e que participam da

vida política da pólis são iguais? Será que todos eles são necessariamente bons?

Aristóteles, portanto, nos responde que:

É impossível que uma cidade seja inteiramente composta de homens bons, e se cada

pessoa deve necessariamente executar bem a tarefa inerente à sua função (isto só é

possível graças à excelência de cada um), a bondade de um bom cidadão não seria a

mesma bondade de um homem bom; realmente todos devem possuir a bondade de um

bom cidadão (esta é uma condição indispensável para que uma cidade seja a melhor

possível), mas é impossível que todos possuam a bondade de um homem bom, se não é

necessário que todos os cidadãos sejam homens bons em uma cidade boa. E uma cidade

que é constituída de pessoas dissimilares segue necessariamente que a bondade de todos

os cidadãos não é uma só[...] estas considerações demonstram que a bondade de um

bom cidadão e de um homem bom não são geralmente a mesma bondade.64

Ser cidadão na sua mais perfeita qualidade envolve, por outro lado, algo mais

que a bondade. O cidadão por excelência deve possuir dois outros requisitos vinculantes

para a sua ação perfeita, pois “parece que a excelência do cidadão consiste em ser capaz

60 THEML, Neyde. Público e privado na Grécia do VIII° ao IV° séc. a.C.: O modelo Ateniense. Rio de

Janeiro: Sette Letras, 1988. pp. 45-46. 61 ARISTÓTELES. Política. III. 1277 a. 62ARISTÓTELES.Op. cit.: III. 1277 a. 63 THEML, Neyde. Público e privado na Grécia do VIII° ao IV° séc. a.C.: O modelo Ateniense. Rio de

Janeiro: Sette Letras, 1988. pp. 63-64.. 64 ARISTÓTELES. Op. cit.: III. 1277 a.

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de mandar e obedecer igualmente bem. [...] o bom cidadão deve ter os conhecimentos e

a capacidade indispensável tanto para ser governado quanto para governar.” 65

Portanto, a construção dos ideais democráticos e suas variantes como o

surgimento das Assembleias, a definição do cidadão ideal, o interesse pelo bem comum

da pólis, todos estes valores tinham como intuito a criação de uma estrutura idealizada

de valorização da cultura grega, principalmente a valorização de Atenas. Também, para

este homem grego não bastava somente ser livre e ter o atributo à cidadania, mas, sim, a

participação ativa nos problemas da pólis.

65 ARISTÓTELES. Op. cit.: III. 1277 a.

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37

2. A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA ATENIENSE:AS REFORMAS

“DEMOCRÁTICAS” E A CONSOLIDAÇÃO DA ASSEMBLEIA.

A Assembleia é outro ponto de debate a ser analisado, pois era nela que se

desenrolava o fazer político dos cidadãos e também o gerenciamento de quase todas as

coisas sobre a comunidade política; já que, a forma de governo em Atenas era a

democracia, a qual prezava pela participação direta dos seus cidadãos, decidindo sobre a

vida da pólis.

Neste local éque estavam presentes todos os valores esperados dos cidadãos, não

só idealmente, mas valores que fossem percebidos na vida prática de cada um deles,

também. Valores como: a temperança, a bondade, a liberdade, a verdade, a reserva, a

justa indignação, a amizade e o amor, a piedade e a disciplina, a honra e a honestidade,

entre outros citados anteriormente.

Então, para melhor entendermos o surgimento da Assembleia e sua

consolidação, ao longo da história dos atenienses, temos que nos determos sobre as

reformas políticas estabelecidas por Sólon, Clístenes, Efialtes (neste, verificamos alguns

problemas no que tange as fontes, que são raras) e Péricles, durante seus governos.

Além, de verificar como aconteciam os procedimentos de votação, composição e

discussão dos assuntos mais importantes colocados em pauta pelo governo de Atenas

aos seus cidadãos.

2.1.1. O governo de Sólon

Sólon, ao ser eleito, teve o intuito de tentar enfrentar e, ao mesmo tempo, sanar o

desequilíbrio social que Atenas estava a passando. Por um lado, os camponeses

atenienses eram obrigados a pagarem a sexta parte de sua colheita aos donos das terras;

por outro lado, sentiam-se constantemente ameaçados pelo problema do endividamento

por não conseguir pagar tal cota e, assim, reduzidos à escravidão.

Desta forma, prevendo uma possível ruptura interna que poderia abalar o status

quo da pólis, ele decretou o cancelamento das dívidas rurais e a proibição da escravidão

instituída pelo endividamento destes homens. Segundo Claude Mossé, Sólon:

Proclama a seisachteía, ou seja, a suspensão dos encargos, arrancando dos campos os

marcos que tornavam concreto o estado de dependência de seus proprietários, ao mesmo

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tempo em que anula as dívidas e revoga o direito do credor de mandar prender o

devedor; fazendo retornar à Ática todos aqueles que, como escravos, haviam sido

vendidos no exterior.66

Estas reformas tiveram os resultados mais efetivos em longo prazo que deram

um caráter de independência aos camponeses no âmbito político, segundo Chester67

.

Assim, podemos inferir que tal ideia nos remete a acreditar que, apesar do lugar social

que estes grupos ocupavam na rígida sociedade ateniense, eles começaram – se é que

podemos assegurar com convicção – a desempenhar uma consciência quanto aos seus

direitos e os que poderiam ser reivindicados.

Além disso, dividiu os cidadãos em quatro classes de acordo com sua renda

agrícola: pentakosiomédimnoi, hippeîs, zeugítai e thétes. Somente o primeiro e o

segundo grupo poderiamvislumbrar os melhores cargos públicos, neste caso, a

magistratura. Os zeugítai compreendiam o grupo composto por camponeses de “classe

média” e que deviam ter uma quantidade adequada de renda que desse para manter-se

como hoplita. Já com relação à última classe, englobavam toda a população pobre e de

artesãos não estrangeiros que podiam participar da vida política, votando na assembleia.

Aristóteles, assim se pronunciava com relação a esta divisão promovida por Sólon:

Os cidadãos eram repartidos em quatro classes, como tinha sido estabelecido

anteriormente, pentacosiomedimnes, cavaleiros, zêugitas e tetas. E ele decidiu que as

magistraturas seriam reservadas aos pentacosiomedimnes, aos cavaleiros e aos zêugitas,

e que seriam tomados de entre eles os nove arcontes, os tesoureiros, os poletas, os onze,

os colacretas, dando a cada um uma magistratura correspondente ao seu censo. Quanto

aos que eram classificados entre os tetas, ele apenas lhe deu o direito de participar na

assembleia e nos tribunais. Era pentacosiomedimne aquele que no seu domínio

obtivesse quinhentas medidas de grãos ou de produtos líquidos, cavaleiro aquele que

recolhesse trezentas, no dizer de alguns, aquele que pudesse criar um cavalo. [...]

Aqueles que recolhiam duzentas medidas de grãos ou de líquidos eram classificados

como zêugitas. Todos os outros estavam na classe dos tetas e não podiam aceder às

magistraturas.68

A Assembleia era dirigida pelos arcontes (arkhón epónymos), eleitos por sorteio

entre os candidatos pré-estabelecidos de cada um dos quatro grupos. Com a criação do

conselho dos quatrocentos, as deliberações tornaram-se mais estruturadas e eficientes,

66 MOSSÉ, Claude. Atenas: A história de uma democracia. 3.ed. Brasília: Editora Universidade de

Brasilia, 1997. p.14. 67 STARR, Chester G. O nascimento da democracia grega: a assembléia no século V a.C. 68 ARISTÓTELES. Constituição dos Atenienses. VII, 1-4.

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pois, servia como um comitê geral de trabalho que gerenciava as medidas encaminhadas

à Assembleia (proboúleusis).

A proteção da ordem pública continuava nas mãos do conselho do Areópago

cujas funções estavam a de investigar seus membros antes da ocupação de seus cargos e

de torná-los responsáveis por seus atos. Esta medida tinha como intuito prezar pelos

valores esperados de cada cidadão, além de tentar coibir que os interesses particulares

fossem prevalentes contra a ordem pública.

Por fim, a criação de um tribunal de justiça foi outra medida tomada por Sólon,

em seu governo. A partir deste órgão, qualquer pessoa poderia mover ações em casos de

injustiças e contra atos indevidos dos arcontes. Aristóteles, na Política, aponta a heliéia

(tribunal de justiça), como a pedra angular da constituição soloniana e uma marca de

sua tendência democrática.

Todas estas reformas e/ou mudanças políticas e sociais fizeram que Sólon, aos

olhos da História, fosse visto como o primeiro líder a governar em prol do povo. Visto

como um homem justo, de boa ordem, equilibrado e que governava não com interesses

individuais, mas coletivos. Tal retrato pode ser visto neste trecho:

Eu, por muitos motivos, reuni o dêmos. Qual deles me fez recuar, antes de atingir o fim?

Poderia ser testemunha disso, no tribunal do tempo, a grande mãe dos deuses olímpicos,

excelente, a Terra negra, da qual eu arranquei os marcos fincados em muitas partes, ela,

antes escrava, é agora livre. A Atenas, terra dos ancestrais fundadas pelos deuses,

reconduziu muitos que tinham sido vendidos justa ou injustamente: a uns, exilados pelo

constrangimento da dura necessidade, não mais falantes do dialeto ático; por terem

vagueado por muitos outros lugares; a outros, vítimas aqui mesmo da escravidão

indigna, trementes face à conduta dos senhores, tornei-os livres. Eis o que realizei,

harmonizando a força e a justiça. Realizei como prometi: redigi leis, tanto para o mau,

quanto para o bom, adaptando a cada um a justiça reta. Se um outro, malvado ou

ambicioso, tivesse, como eu, tomado aguilhão, não teria contido o dêmos, pois, se eu

tivesse sido motivado pelo desejo dos revoltosos, ou pelos planos do outro partido, a

pólis estaria já deserta de muitos homens.69

2.1.2. O governo de Clístenes

As reformas de Clístenes também foram importantes para a consolidação da

Assembleia e também para o fortalecimento da democracia ateniense,

posteriormente.Segundo Claude Mossé, as reformas de Clístenes tiveram dois grandes

efeitos, pois gerou “por um lado, uma reorganização do corpo cívico e a criação de

69BACELAR, Agatha. A Representação de Sólon nas Histórias. IN:

http://www.gaialhia.kit.net/artigos/agatha2002.pdf.pp.05-06.

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novos quadros políticos; por outro lado, resultando desta reorganização uma

modificação profunda nas instituições politicas já existentes.”70

Ele dividiu a Ática em dez tribos que eram compostas por três distritos,

mudando a antiga divisão feita por Sólon. Por sua vez, cada trítia era formada por um

ou mais dêmoi. O principal objetivo desta “agregação”, utilizando as palavras de

Chester, era o de poder controlar a maneira como o Conselho dos Quinhentos era

constituído. Além do mais, tal conduta buscou integrar novos cidadãos no corpo cívico

da pólis. Assim, tais medidas tomadas por tal legislador, fez com que a cidade passasse

para:

Outro plano distinto do das relações de genes e dos vínculos de consanguinidade: tribos

e demos são estabelecidos numa base puramente geográfica; reúnem habitantes de um

mesmo território, não parentes de mesmo sangue como os genee as frátrias, que

subsistem sob sua forma antiga, mas que agora ficam fora da organização propriamente

política. Além disso, cada uma das dez tribos novamente formadas realiza o amálgama

das três partes diferentes entre as quais a cidade estava antes dividida. Com efeito, das

três trítias que uma tribo compreende, a primeira deve necessariamente pertencer à

região costeira, a segunda ao interior do país, a terceira à região urbana e a seu território

circundante. Cada tribo realiza assim a “mistura” das populações, dos territórios, dos

tipos de atividades de que é constituída a cidade.71

Cada tribo indicava cinquenta membros que eram sorteados entre os candidatos

indicados pelos dêmoi. Para evitar qualquer tipo de ligação mais forte entre os membros

do conselho, os conselheiros só podiam servir até um período de, no máximo, um ano e

duas vezes na vida.

Portanto, todas estas reformas feitas por Clístenes, em especial, a nova

reorganização do espaço cívico teve importância tanto socialmente, ao permitir a

incorporação de novos cidadãos, quanto politicamente,diminuindo o poder dos

aristocratas. Claude Mossé afirma que:

A revolução clisteniana é sobretudo uma revolução política: ao criar quadros novos no

interior dos quais se repartiam os cidadãos de origem antiga ou recente, permitiu que se

constituísse um Estado de um tipo novo, a cidade democrática. A criação de tribos

novas tinha ao mesmo tempo a intenção de diminuir a influencia local das velhas

famílias, a de juntar no seio de uma mesma unidade os homens dos distritos urbanos,

rurais e costeiros, de desenvolver um sentimento de unidade entre os membros de uma

mesma tribo, que na guerra combatiam lado a lado.72

70 MOSSÉ, Claude. As Instituições GregasEdições 70, Lda., Lisboa – Portugal 1985, p.23. 71VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. pp. 105-106. 72 MOSSÉ, Claude. Op. cit.: pp.25-26.

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O poder do conselho foi colocado sob o controle da assembleia.

Daí em diante, cada medida proposta ao povo, pelo Conselho dos Quinhentos, teve de

ser submetida a escrutínio e votar uma proposta preliminar (prouboúleuma), que podia

conter recomendações especificas ou apresentar uma declaração mais geral, para inserir

uma matéria na agenda da assembleia. Ou seja, sem um prouboúleuma nenhuma

medida era votada pelo povo.

As instituições sociais quase não tiveram ou não foram afetadas pelas reformas.

Exceto, no fundamento para o reconhecimento da cidadania. Também, a assembleia

assumiu o poder de eleger dez generais por voto aberto. Porém, na escolha dos arcontes

permanecia o sorteio indicados pelo dêmoi.

Por fim, a lei sobre o ostracismo teve papel de suma importância no governo de

Clístenes, no que tange a coibir às tentativas de implantação das tiranias ou de

subversão a democracia. Esta lei previa a pena de atimia, o exílio temporário por dez

anos, que consistia também na perda dos direitos políticos do mesmo. Para Trabulsi, o

processo de ostracismo tinha um caráter primordialmente preventivo, como vemos neste

trecho:

O ostracismo não é castigo para um crime cometido, mas, antes, um mecanismo

destinado a evitar que alguém esteja em condições de atentar contra a soberania do

démos. [...] O medo da tirania [...] explica o caráter preventivo antes que punitivo do

ostracismo. [...] a lei sobre o ostracismo concentrava um pouco arbitrariamente num

individuo, o tirano potencial presumindo, toda a carga, e fazia cair sobre ele todo o peso

político da cidade, e exorcizava o perigo ao expulsá-lo.73

O processo de ostrakophoria (ostracismo) delineava-se na assembleia, em que,

os cidadãos ficavam com as mãos erguidas votavam e decidiam sobre a conveniência de

ter ou não tal medida. Geralmente, a assembleia deveria ter um quórum em torno de

6000 cidadãos presentes, “para que a medida surgisse como uma resolução popular, e

não como um voto partidário.” 74

Em seguida, uma segunda votação era instituída, porém, de forma secreta, a qual

servia para indicar aquele que o povo tinha considerado perigoso para a manutenção da

ordem interna da pólis. Apesar, de ser expulso da cidade por certo intervalo de tempo,

os bens do exilado eram conservados e intocáveis pelo estado. Mossé, diz que o

principal objetivo do ostracismo era: “afastar da cidade por um tempo limitado todo o

73TRABULSI, José Antonio Dabdab. Ensaio sobre a mobilização política na Grécia Antiga.Belo

Horizonte: Ed. UFMG, 2001. pp. 94-96 74 MOSSÉ, Claude. Op. cit.: p.30.

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cidadão que pudesse parecer alimentar em proveito próprio o projectode estabelecer a

tirania.” 75

Trabulsi, afirma que o processo para concessão do ostracismo era delineado por

um procedimento especial sendo que:

Uma vez a maioria dos votos na assembleia tendo decidido pelo sim, a ostracoforia era

organizada. Vários aspectos distinguem a ostracoforia de uma ekklesía normal (kýria ou

não) e contribuem para atribuir-lhe um caráter especial, excepcional. A reunião era

presidida pelos nove arcontes e pela Boulè completa, e não, como de hábito, pelo

epistate da Boulè e pelos prítanes. O ostracismo se desenrola na ágorae não na Pnyx, o

que, além do caráter solene (pois a ágora era o antigo local de reunião), multiplicava a

capacidade de público. Isso era necessário pois a afluência era, nessas ocasiões,

excepcional.76

Mais a frente prossegue explicando como era feita a votação para o ostracismo:

Barreiras com pranchas de madeira disposta em círculo eram erguidas, com dez portas

de entrada; o voto se fazia por tribo. Provavelmente os buleutas se agrupavam por tribo

na entrada, nos locais onde os outros membros da tribo deviam se apresentar. [...] Os

votos eram feitos por incisão nos cacos de cerâmica (ostraca), de forma e tamanho

variados, do nome do cidadão que se desejava ver ostracizado. Podia-se trazer consigo o

caco já escrito, para simplesmente depositá-lo na urna. O que permitia o voto a todos os

cidadãos... [...] Uma vez fechada à votação e a contagem dos votos realizados, o

resultado era proclamado. [...] Para alguns, havia ostracismo se o quórum de seis mil

votos fosse atingido. Neste caso, quem tivesse o maior número de voto, devia, num

prazo de dez dias, e por dez anos, deixar a Ática.77

2.1.3. As Guerras Médicas e as reformas de Efialtes

As Guerras Médicas, travadas entre os gregos e os persas, tiveram grande

influência na evolução interna da sociedade ateniense, tanto no que diz respeito aos

aspectos sociais quanto os políticos.

Os persas, comandados por Dario, buscavam submeter todos os territórios

gregos aos seus domínios. Mas, para ele, esta consolidação somente seria possível com

a conquista da Grécia europeia; apesar de já dominar algumas cidades pelo lado

asiático. Assim, em 490 a.C., ele enviou uma expedição de soldados para a planície de

Maratona para tomar o território grego, onde lutaram com os atenienses, que saíram

75 MOSSÉ, Claude. Op. cit.: p.30. 76TRABULSI, José Antonio Dabdab. Ensaio sobre a mobilização política na Grécia Antiga.Belo

Horizonte: Ed. UFMG, 2001. p.98. 77TRABULSI, José Antonio Dabdab. Op. cit.: pp.98-99.

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vencedores. Tal derrota forçou os persas a recuarem. Finalizava, assim, a primeira parte

da guerra.

Com a morte de Dario, seu filho Xerxes o sucede. Este, por sua vez, buscou

retomar o projeto do seu pai e consolidá-lo. Plano este preparado “em grande escala, sob

seu próprio comando, para conquistar toda a Grécia Continental, e para tanto comandou

uma força esmagadora, por terra e mar.”78

Vendo que a guerra novamente seria inevitável, a cidade de Atenas foi evacuada

e todo o exército de soldados gregos mobilizados em Salamina, ponto em que ocorreu o

maior e mais decisivo combate entre os persas e os helenos.Tal necessidade de evacuar

a cidade foi feita a partir de um presságio de um oráculo ateniense e que Temístocles

fez-se valer para que tal ato fosse cumprido. Determinou:

Quea cidade ficasse sob a salvaguarda de Atena, protetora de Atenas, e que todos os

homens, na idade de servir, deveriam embarcar nas trirremes, e cada particular tomaria

o encargo de, na medida do possível, salvar as crianças, as mulheres e os escravos de

seu interesse.79

Desta maneira, “em 22 de setembro de 480 a.C., travou-se a famosa batalha que

representaria a salvação da Grécia.”80

. Depois desta batalha foram os persas, mais uma

vez, foram obrigados a sair em retirada. No entanto, a vitória definitiva veio em Platéia,

depois de uma nova tentativa frustrada dos persas.

Tal conflito gerou dois grandes problemas estruturais para a comunidade

ateniense: por um lado, Atenas saia destruída física, política e economicamente, tendo

que se reestruturar das suas ruinas sob o escopo de lideranças políticas que buscaram

tirar proveito da situação, governando em prol de seus interesses. Por outro lado, saiu

engrandecida, ao sobrepor seu poder bélico e moral sobre os outros povos, se

sobressaindo com o imperialismo.

A criação da Liga de Delos foi um importante mecanismo utilizado para a

dominação ateniense no plano interno e, posteriormente, no plano externo, na era de

Péricles. Para Mossé, tal liga tinha como intuito o “pretexto de impedir o retorno

ofensivo dos bárbaros, por um lado, e de „libertar‟ as cidades jônias, por outro, os

78 STARR, Chester G.O nascimento da democracia grega: a assembleia no século V a.C.. p.35. 79 MOSSÉ, Claude. Atenas: A história de uma democracia. 3.ed. Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 1997. p.27. 80 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p.27.

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atenienses restabeleceram-se nas costas orientais do Egeu.”81

Sobre a Liga de Delos,

está, tinha como objetivo ser:

Uma aliança militar que congregava as cidades da jônias em torno do santuário de

Delos, onde seria depositado o tesouro federal. O erário destinava-se a cobrir as

necessidades da liga e seria alimentado por um tributo pago pelos aliados, que não

pudessem ou não quisessem ter participação direta na defesa comum.82

As relações internas haviam mudado principalmente surgindo vários

governantes que queriam tirar proveito desta nova situação vivida por Atenas. Porém,

adentra neste cenário Efialtes que redistribuiu os poderes entre as instituições políticas

dentre os quais, o principal alvo foi o conselho do Areópago que tinha amplos poderes e

prestigio durante as Guerras Médicas, por ser considerado o guardião das leis e,

também, servia aos interesses das oligarquias. Este legislador buscou, portanto, diminuir

o poder de tal órgão. Afirma Mossé, que, para Efialtes, “os privilégios do Areópago

eram o resultado de uma usurpação, e era contrário ao espírito democrático...”83

.

Que poderes, então, foram estes que o Areópago perdeu? Para a maioria dos

estudiosos seriam três principais, que, em seguida, foram redistribuídos ao conselho dos

Quinhentos e aos tribunais, a saber: “o direito de instituir acusações de traição e mau

procedimento (eisangelía),a inquirição dos novos magistrados (dokimasía) e a auditoria

do desempenho destes (eúthyna).”84

2.2. A “Idade do Ouro” Atenas: Péricles e as reformas políticas e sociais na

democracia dos atenienses.

O governo de Péricles, na história, é visto como o momento de apogeu da

sociedade ateniense, principalmente, da democracia e suas instituições políticas. Ou

seja, o momento em que esta cidade-Estado “atinge o seu desenvolvimento

harmonioso.”85

Este adentra a esfera da vida pública a partir das rivalidades políticas entre as

famílias tradicionais de aristocratas pela disputa do poder interno, tendo como principal

adversário Címon, pertencente a um clã de alta linhagem política e econômica. Disputa

81MOSSÉ, Claude. Op. cit. p.29. 82 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p.29. 83 MOSSÉ, Claude. As Instituições GregasEdições 70, Lda., Lisboa – Portugal 1985, p.36. 84STARR, Chester G. Op. cit. p.44.. 85 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p.38.

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esta, desigual. Já que Péricles, segundo Plutarco, não tinha condições matérias de

superar o poderio econômico de Címon “para conquistar prestigio e apoio popular [...]

em actos de magnanimidade quem revertem directamente para o demo.”86

Necessitava este legislador ter alguma medida eficiente para fazer frente a seu

grande adversário, Címon, por isso elabora uma estratégia que teve grande efeito

revertido para todos os cidadãos, em especial, aos mais pobres. Assim:

A princípio, Péricles, empenhado em contrabalançar a influência de Címon, procurou

como já sedisse captar a mercê popular. Címon, todavia, dispondo dos meios e maiores

recursos, aproveitou-se deste fato para atrair os pobres, e todos os dias provia jantar para

os atenienses carentes e vestia os anciãos. Chegou ao ponto de retirar as cercas de suas

propriedades a fim de que todos, que quisessem colher os frutos, pudessem, fazê-lo.

Péricles, desfavorecido diante do povo, recorreu a prodigalidade feitas com as receitas

do Estado, a conselho de Damônides de Éia, segundo o que narra Aristóteles. Logo

corrompeu a multidão com os fundos para os espetáculos, os salários estipulados para

os juízes, e todas as gratificações e liberalidades que, prodigamente, distribuía ao povo,

servindo-se deste contra o Areópago.”87

Desta forma, a criação e instituição do misthos heliastikos (mistoforia), foi a

principal medida encontrada por Péricles para galgar seus propósitos e vencer seu

adversário, além de ter efeitos secundários para os cidadãos. A mistoforia, de que trata o

trecho acima, era uma espécie de salário ou remuneração, paga em dinheiro, para

aqueles que exercessem funções públicas em Atenas. Isto teve consequências relevantes

para a cidade, a saber: permitiu, a partir daquele momento, que todos os cidadãos

atenienses pudessem participar da vida política da cidade, “sem temor de perder um dia

de trabalho.”88

Aristóteles diz que tal incentivo financeiro foi dado para todos os que

participavam das funções públicas da comunidade, posiciona-se assim:

Em primeiro lugar o povo dá um salário aos que se reúnem na Assembleia, uma dracma

para as sessões ordinárias, nove óbolos para a assembleia principal de cada pritania. Os

juízes recebem três óbolos, os buleutas cinco óbolos, mas os que são prítanes recebem

um óbolo suplementar para a sua alimentação... os nove arcontes recebem cada um

quatro óbolos pra a sua alimentação e para o sustento de um arauto e de um tocador de

flauta.89

Cânfora arremata que a ideia de instituir pagamentos para todos aqueles que

participavam das funções públicas, fez Péricles corromper:

86CANFORA, Luciano. O Cidadão. IN: O Homem Grego. p. 113. 87PLUTARCO Apud MOSSÉ, Claude. Atenas: A história de uma democracia. 3.ed. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1997. p.36. 88 MOSSÉ, Claude. Op.cit. p.36. 89 ARISTÓTELES ApudMOSSÉ, Claude. Op.cit. p. 169.

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As massas introduzindo os pagamentos estatais para participação nos espetáculos e para

participação nos júris do tribunal, além de outras remunerações públicas e festas. A

adopção sistemática destas formas de salário estatal moldou a democracia ateniense no

período do seu maior florescimento, consolidando a imagem de um demo dedicado à

política, à actividade judicial e à prática social do teatro e da festa...90

A criação das funções públicas remuneradas pode ser vistas como um fato

decisivo e de suma importância para o desenvolvimento da administração interna de

Péricles. Permitindo, em especial, que os grupos mais pobres ocupassem certos cargos

públicos e participar ativamente das decisões sobre o bem comum da pólis. Também

atingiu os privilégios políticos da aristocracia e buscou consolidar o governo

democrático, tendo como principio basilar a isonomia, já criada no governo de

Clístenes. Este buscou igualar, pelo menos, teoricamente, todos os cidadãos perante a

lei, que seria a manifestação de vontade de todo o povo. De acordo com Tucídides,

profere Péricles com relação à democracia ateniense:

Nossa politéia nada tem que invejar às leis que regem os nossos vizinhos;longe de

imitar os outros, damos o exemplo a seguir. Entre nós, o Estado é administrado no

interesse da massa e não no de uma minoria, daí o nome que nosso regime adotou:

democracia. No que concerne aos diferentes indivíduos, a igualdade é assegurada a

todos pelas leis; mas, no tocante à participação na vida pública, cada um obtém o

crédito em função do mérito, e a classe a que pertença importa menos que seu valor

pessoal; enfim, estando em condições de prestar serviço à cidade, ninguém é cerceado

pela pobreza ou pela obscuridade de uma condição social.91

Assim, foram abertos os rumos para o fortalecimento na crença da igualdade

política entre todos os níveis de cidadãos que compunham a polise de participação

política, a “militância”. Ou seja, a participação direta nos assuntos da comunidade. Este

processo de igualdade define as bases do equilíbrio e harmonia, exercendo sua

soberania livremente, atendendo sempre à legalidade e isonomia. Os anseios e a

“vontade comum representavam os objetivos de um maior número de cidadãos; a isonomia

se desvencilhava de grupos políticos restritos. A democracia, então, abria seus olhos.”92

Abria seus “olhos”, porque:

Todos os cidadãos, como tais, sem consideração de fortuna nem de virtude, como

“iguais” que têm os mesmos direitos de participar de todos os aspectos da vida pública.

90CANFORA, Luciano. Op.cit. p. 114. 91TUCÍDIDESApudMOSSÉ, Claude.Op. cit. pp.37-38. 92TAVEIRA, Daniel Teixeira. Um Ambiente Discursivo: Reflexões sobre a rede de relações entre

cidadãos e não-cidadãos na Atenas Clássica e sua Produção Discursiva.p.36.IN:

http://www.gaialhia.kit.net/artigos_2010_2/artigo002_2010_2.pdf

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[...] Não se trata mais então, como precedentemente, de encontrar a escala que faça os

poderes proporcionais ao mérito e que realize entre elementos diferentes, dissonantes

mesmo, um acorde harmônico, mas de igualar estritamente entre todos a participação na

arché, o acesso às magistraturas, fazer desaparecer todas as diferenças que opõem entre

si as diversas partes da cidade, unificá-las por mistura e fusão, para que nada as distinga

mais, no plano político, umas das outras.93

No entanto, tais condutas, ou melhor, estes ideais de participação tiveram as suas

limitações, pois deviam estar de acordo com os limites da lei e, de certa forma, nos padrões

de aceitação dos próprios cidadãos. Ou seja, a partir do seu lugar social, do seu status

familiar ou do poder econômico. Já que, na prática, o poder estava nas mãos dos mais

abastados, dos mais ricos.

As instituições políticas foram outro ponto da reformulação administrativa feita

por Péricles, que serviu para consolidar definitivamente a democracia ateniense. Dentre

as mudanças podemos elencar: as normas sobre a periodicidade das sessões da

assembleia, como deveriam ocorrer os procedimentos das reuniões, a propositura,

votação e aprovação das leis.

Fez alterações, também,nas atribuições do Conselho dos Quinhentos (Boulé),

instituindo um rígido controle sobre os magistrados antes que eles tomassem posse dos

seus cargos, realizando um exame prévio de investigação da sua vida como cidadão;

criou penas severas que culminavam em exoneração e a necessidade de controle e

supervisão de todos os atos públicos destes, obrigando-os à prestação de contas perante

a assembleia e aos cidadãos. Com respeito à prestação de contas por parte dos

magistrados frente à Assembleia, podemos ver nesta passagem, em que Ésquines faz

menção sobre tal ato e sua importância para a harmonia da pólis:

Nesta cidade tão antiga e tão respeitada pela sua grandeza, ninguém de entre as pessoas

que se ocupam de um cargo público pode escapar à prestação de contas. Mostrar-vos-ei

em primeiro lugar como exemplos surpreendentes: assim, a lei impõe a prestação de

contas aos sacerdotes e às sacerdotisas, a todos em geral e a cada um em particular,

quando eles apenas têm de receber as oferendas e rezar aos deuses por nós, e isso diz

respeito não só a cada indivíduo, mas a todo o génos [...] A lei impõe igualmente a

prestação de contas aos trierarcos, que não detêm bens pertencentes a comunidade, que

não desviaram uma grande parte dos vossos recursos, nem gastam do Estado senão uma

pequena parte, que não pretendem fazer-vos doações dando-vos o que é vosso, mas,

pelo contrário, põem à vossa disposição o seu patrimônio, para receber de vós

recompensas honorificas. E não apenas os trierarcas, mas também os maiores de entre

os colégios de magistrados da cidade, são submetidos ao veredicto dos tribunais. E,

antes de tudo, a lei obriga a Boulé do Areópago a prestar contas face aos logistas, e essa

93 VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. pp. 103-104.

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assembleia temível, senhora dos mais importantes assuntos, submete-se assim ao vosso

voto.94

Medida de suma importância adotada por Péricles deveu-se a aprovação de um

decreto-lei que buscou restringir de modo significativo o beneficio da cidadania.

Durante o seu governo, Atenas atestou um crescimento exorbitante no seu corpus social

da pólis, favorecido, em grande parte, pelas reformas feitas por Clístenes que tornou a

integração de estrangeiros ao universo de cidadãos. Em 451 a.C., Péricles fez aprovar o

“decreto reservando a qualidade de cidadão ateniense aos nascidos de pai cidadão e de

mãe, ela própria, filha de cidadão [...] tinha por objetivo limitar o número dos

beneficiários das vantagens ligadas à qualidade de cidadão.”95

2.3. Sessões e Funções da Assembleia

Faz-se necessário verificar como ocorriam os procedimentos do principal órgão

do sistema político dos atenienses. Era a instituição em que os cidadãos “tinham, não

apenas o direito, mas o dever de assistir as sessões”96

e, deste modo, desempenharem

seu papel de decidir sobre a vida da pólis.

O quórum exigido para as reuniões da Ecclesia deveriam ser da ordem dos 6000

votantes. Número este, que raramente foi atingido nesta sociedade; sendo apenas uma

parte destes cidadãos que compareciam nesse órgão. Por que, então, a presença tão

limitada? Quem comparecia as reuniões?

Apesar do crescimento da cidade, a maioria dos cidadãos habitavam as áreas

rurais. Isto implicava que “aqueles que faziam o trabalho braçal na terra certamente não

podiam comparecer às 40 sessões anuais da assembleia”97

, pois deviam trabalhar para

garantirem seu sustento. Além disso, muitos cidadãos tinham que enfrentar problemas

referentes à distância, tendo que se deslocarem por horas de viagem. Diminuía-se, desta

forma, a quantidade de votantes e, somente em casos excepcionais e de grande interesse,

que esta outra parte dos cidadãos compareciam à Assembleia. Chester afirma que diante

de tal situação, “o eleitor comum exercia seu privilégio só quando problemas muitos

94 ÉSQUINESApud MOSSÉ, Claude.As Instituições Gregas.Edições 70, Lda., Lisboa – Portugal 1985,

pp.164-165. 95MOSSÉ, Claude. Atenas: A história de uma democracia. 3.ed. Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 1997. p.39. 96MOSSÉ, Claude. As Instituições Gregas.Edições 70, Lda., Lisboa – Portugal 1985, p.49. 97STARR, Chester G. Op.cit. p.58.

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importantes e complexos eram discutidos e decididos, e dificilmente podia reservar 40

dias por ano para uma presença constante.”98

Em geral, realizavam-se quatro assembleias por pritania, ou seja, quarenta

sessões durante o ano, não seguindo uma data fixa. Tais reuniões ocorriam na colina da

Pnyx, sobre “uma plataforma talhada na rocha e rodeada por uma balaustrada formava a

tribuna onde se encontrava um altar do Zeus Agoraio.” 99

. Deste ponto eram feitos os

pronunciamentos dos oradores e, também, o local que os secretários e o presidente

ocupavam durante as sessões.

A primeira assembleia de cada pritania, em regra, era a principal e a que possuía

a maior diversidade de assuntos, para serem deliberados. Nela eram votadas as escolhas

para o cargo de magistrado, abastecimento interno da cidade – em especial, o comércio

de cereais –, a política externa e, também, os processos de eisangelia (acusações de

traição e mau procedimento), de ostracismo e outras acusações.

Todavia, as três seguintes reuniões da assembleia tinham um caráter mais

restrito em sua pauta de discussão e votação. Uma delas era “consagrada aos hiketeriai,

quer dizer às suplicas: cada cidadão que quisesse dirigir-se ao povo, por razões pessoais

ou respeitantes à cidade, devia previamente depor sobre o altar um ramo de

suplicante.”100

.

As duas outras restantes tratavam de assuntos correntes, como: religião, o

funcionamento interno da cidade, política externa; todas seguindo o devido os

procedimentos legais. Sobre tal divisão das atividades da Ecclesia, Aristóteles afirma

que:

A primeira, assembleia principal, onde são confirmados nos seus cargos os magistrados

cuja gestão foi considerada satisfatória, onde se delibera sobre o abastecimento de

cereais e sobre a guarda do território, onde aqueles que o desejem apresentam as

eisangelias, onde se faz a leitura dos bens confiscados, os requerimentos respeitando às

heranças ou às filhas epícleras, afim de que ninguém ignore os bens vacantes. Na sexta

pritania, para além das questões já evocadas, os prítanes põem à votação a decisão de se

saber se se procederá ou não a uma ostrakophoria, as acusações intentadas pelos

Atenienses e pelos metecos contra os sicofantes, à razão de três por cada grupo, e contra

aqueles que não tivessem cumprido as obrigações tomadas face ao povo. Uma outra

assembleia é consagrada às petições: qualquer cidadão que o deseje pode apresentar

uma petição e falar com o povo, tanto sobre assuntos privados, como de assuntos

relacionados com a cidade.Finalmente, as duas outras ocupam-se de assuntos diversos,

exigindo a lei que se ponha na ordem do dia de cada uma: três questões relacionadas

98STARR, Chester G. Op.cit. p.60. 99MOSSÉ, Claude. Op.cit. p.52. 100 MOSSÉ, Claude. Op.cit. p.51.

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com assuntos sagrados, três respeitantes a embaixadas, três questões enfim sobre

assuntos profanos.101

O procedimento de uma sessão normal deste órgão era redigido pela Boulé e

publicado com quatro dias de antecedência. Todas as reuniões eram abertas pelo

presidente, responsável por fazer um sacrifício que tinha como intuito purificar a Pnyx,

com “orações lustrais e as imprecações contra os medos, instigadores de tiranos, e

outros malfeitores.”102

. Estes eram, portanto, os procedimentos preliminares feitos para

dar lisura a todo o processo das reuniões.

Feito os procedimentos básicos, dava-se início ao debate propriamente dito.

Posterior ao ritual de purificação,

Fazia-se a leitura do probouleuma, quer dizer do relatório da Boulé, sobre o projecto

apresentado à ordem do dia. Depois, votava-se para saber se o projeto era adoptado sem

discussão ou se era submetido à discussão. E neste último caso, o mais frequente,

começava então a deliberação propriamente dita, na qual qualquer ateniense tinha o

direito de tomar pessoalmente parte, desde que não fosse em ilegalidade. [...] Com

efeito, qualquer ateniense podia propor uma moção à assembleia. O seu nome figurava

no decreto logo que este fosse adoptado, depois de ter passado pelo conselho e disso

discutido pela assembleia. Qualquer ateniense podia igualmente, ao intervir na

discussão, propor uma emenda ao probouleuma; também aí a redacção do decreto fazia

menção da emenda, cujo autor era nomeado. A votação fazia-se geralmente de mão

erguida: é a cheirotonia. No entanto, algumas votações faziam-se por voto secreto

quando se tratava de medidas graves: para votações de ostracismo, por exemplo.103

No que se refere às funções deste órgão, vários eram os assuntos colocados para

deliberação pelos cidadãos, a saber: religião, finanças, eleições, preparação militar e

naval, política externa e justiça.

Dentre as funções da assembleia as mais importantes eram destinadas ao

controle da religião. Este assunto estava presente em uma das pautas das reuniões da

pritania. No geral, a maior parte das decisões dos ritos e as formas de sacrifícios

ficavam a cargo dos arcontes. Assim, revela-se que a assembleia detinha suprema

autoridade e responsabilidade nas matérias referentes à religião pública do Estado;

inclusive, na construção de templos, a implantação de novos cultos, sacrifícios, festivais

entre outros aspectos ligados a tal área. Segundo Chester:

101 ARISTÓTELES Apud MOSSÉ, Claude. Op.cit. p. 158. 102 STARR, Chester G. Op.cit. p. 81. 103 MOSSÉ, Claude. As Instituições Gregas.Edições 70, Lda., Lisboa – Portugal 1985, pp.52-53.

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As questões financeiras e econômicas, não eram de grande preocupação nas reuniões da

assembleia, pois se esperava que os líderes tivessem conhecimento acerca das receitas e

de suas despesas. Os Estados gregos não intervinham na vida econômica de suas

comunidades, exceto pelo menos em Atenas com relação aos suprimentos marítimos de

grãos, considerados vitais para seus cidadãos. 104

A coleta de tributo era função do conselho, que empregava supervisores e

inspetores para o combate aos sonegadores. Os negócios financeiros eram dirigidos

pelos comitês escolhidos por sorteio e, ao mesmo tempo, supervisionados pelo

conselho. Pois, segundo Chester, “os atenienses estavam longe de confiar uns nos outros

no que se refere ao dinheiro público”.105

Ao fim do mandato, os magistrados eram

investigados pelos “fiscais do Estado” e a cada pritania um comitê do conselho

examinava as contas públicas, como forma de manter a ordem e evitar a corrupção.

Dispôs que os funcionários públicos fossem escolhidos por meio de sorteio e

que a duração de seus cargos fosse por um período de um ano. Por precaução, todos os

funcionários, antes de ocuparem seus cargos, eram investigados pelo conselho no

desempenho se suas funções, além, de não poderem deixar seus cargos antes de serem

apurados e aprovados pelo conselho todos os seus atos políticos. Outros cargos de suma

importância eram aqueles que a assembleia escolhia para funções específicas, ou seja,

especialistas que deveriam ficar responsáveis por determinado assunto como arquitetos,

supervisores, entre outros. Sobre tal especificação diz Platão que:

Como os demais gregos, os atenienses são sábios. Vejo que quando nos reunimos na

assembleia, quando a cidade tem algo a respeito de construções, eles convocam como

conselheiros os construtores, e quando se trata de construção naval, os construtores de

navios, e o mesmo com todas as demais coisas que podem ser ensinadas e aprendidas. E

se alguma outra pessoa que não seja considerada especialista tentar aconselhá-los,

mesmo se for um perfeito cavalheiro, rico e aristocrático, não se recusam a ouvi-lo, mas

fazem troça e vaiam até que o próprio orador se cale e desista ou os guardas, por ordem

dos prítanes, o arrastem para fora ou o retirem. É assim queeles agem no que se refere a

questões técnicas. Mas quando o debate trata do governo geral da cidade, todos se

erguem e os aconselham, sejam eles carpinteiros, ferreiros ou trabalhadores com couro,

comerciantes ou capitães de navios, ricos ou pobres, nobres ou humildes, e ninguém os

repreende como aos outros por tentarem dar sua opinião.106

Tal ideia fez nascer outro princípio de suma importância para os atenienses, a

saber: a isegoria, o direito igual à palavra. Fruto do modelo de governo adotado por

Atenas, a democracia direta ou participava. Sistema que tornava o cidadão agente

104 STARR, Chester G. Op.cit. pp. 67-68. 105STARR, Chester G. Op.cit.pp.68-69. 106PLATÃO Apud STARR, Chester G. Op.cit.p.82-83.

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principal das decisões sobre o rumo da pólis, um ser ativo, participativo, atuante. Pois, o

poder de comunicação, tendo como escopo a oralidade,

Tornou-se um instrumento de poder e comunicação político por excelência, o meio de

comando e de domínio sobre outrem. A palavra não era mais a forma ritual, a fórmula

justa, mas o debate, a discussão e a argumentação passaram a predominar. A

participação política levava ao exercício da linguagem, do lógos e da busca da verdade

(alétheia). No convívio na agorá, no ginásio, nos pórticos e outros lugares públicos o

ateniense exercia a palavra-debate...107

A palavra será o instrumento primordial no sistema político definido pelos

atenienses, principalmente no domínio do político. Para Vernant, tal princípio era: “a

chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domínio sobre

outrem.”108

Torna-se uma articulação, uma ferramenta que influi nas relações de poder

entre o produtor e o receptor, gerando regras, conceitos, comportamentos, discursos que

procuram: “darordem [...] mediando às partes com o todo [...] O discurso se explica, fala

de algo que se percebe e se entende como real, como um outro deste real. Ele fala por

uma modalidade de referencial de indicar uma significação para além deste real.109

O atributo da isegoria, a arte da palavra, deve ocorrer no espaço do público, aos

olhos de todos. Deve, a palavra, mostrar-se no:

Debate contraditório, a discussão, a argumentação. Supõe um público ao qual ela se

dirige [...] é essa escolha puramente humana que mede a força de persuasão respectiva

dos dois discursos, assegurando a vitória de um dos oradores sobre seu adversário.

Todas as questões de interesse geral [...] são agora submetidas à arte da oratória e

deverão resolver-se na conclusão de um debate; é preciso, pois, que possam ser

formuladas em discursos, amoldadas às demonstrações antitéticas e às argumentações

opostas. Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vínculo recíproco. A arte da

política é essencialmente exercício da linguagem [...] Historicamente, são a retórica e a

sofística que, pela análise empreendem das formas do discurso como instrumento de

vitória nas lutas da assembleia e do tribunal.110

Desta forma, a proeminência no uso da palavra alcança a praça pública (ágora),

o teatro, os cultos, as assembleias; enfim, na esfera do público, no mundo visível –

negando-se, deste modo, o espaço privado, do oikos. É justamente neste primeiro

espaço que irá ocorrer às disputas em torno do poder e da realidade constantemente

107 THEML, Neyde. Público e privado na Grécia do VIII° ao IV° séc. a.C.: O modelo Ateniense. Rio de

Janeiro: Sette Letras, 1988. pp. 52-53. 108 VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. pp. 53-54. 109 PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. B.H: Atlântica, 2003. pp.70-71. 110 VERNANT, Jean Pierre. Op.cit.p.54.

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modificada e atrela a determinadas particularidades de quem os produz. Este mesmo

processo cria a distinção entre o espaço do público e do privado, pois

As conversas nos lugares públicos ou nas Assembleias marcavam um setor de interesse

comum opondo-se aos assuntos e interesses privados. Esse espaço de domínio público

criava uma cultura baseada em conhecimentos, valores e técnicas de raciocinar comuns.

A palavra-debate criava uma situação igualitária e se inseria no tempo do homem, do

ver e do ouvir. Instrumento de diálogo, este tipo de palavra se fundava essencialmente

sobre o acordo ou desacordo do grupo presente nas diversas falas. Esta palavra-debate

se desdobrava na elaboração da retórica, da filosofia, do direito, da história, de uma

reflexão acerca da linguagem como um instrumento de publicidade, e deu força à

oratória e aos oradores.111

Articulação que ocorre em função do lado socioeconômico, político e cultural;

ou seja, influenciado pelo lugar social de quem os produz. Para Vernant:

Os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levados à praça pública, sujeitos

à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados, como garantia do poder, no

recesso de tradições familiares; sua publicação motivará exegeses, interpretações

diversas, oposições, debates apaixonados. Doravante, a discussão, a argumentação, a

polêmica tornaram-se as regras do jogo intelectual, assim como do jogo político. [...]

Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida política.112

111 THEML, Neyde. Público e privado na Grécia do VIII° ao IV° séc. a.C.: O modelo Ateniense. Rio de

Janeiro: Sette Letras, 1988. pp. 53. 112 VERNANT, Jean Pierre. Op. cit.pp.55-56.

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3. A DEMOCRACIA EM PERIGO

Todas as reformas que ocorreram durante a História grega, em Atenas,

especialmente, serviram para a consolidação do sistema político adotado por ela. Além

disso, fez surgir à ideia da participação política de seus cidadãos, pautada por dois

princípios basilares: a isonomia e a isegoria. Por outro lado, a evolução de tal ideia fez

da polis ateniense uma potência nesta época, com seu auge no governo de Péricles.

Potência esta levada além mar. Ou seja, a todo o mundo grego, com seu projeto

imperialista, iniciado após as Guerras Médicas (entre gregos e persas) e consolidada

durante o comando deste legislador.

3.1.O Imperialismo Ateniense

Este projeto imperialista tem início com as clerúquias, guarnições temporárias

ou permanentes de soldados atenienses instalados nos territórios dos inimigos e que,

recebiam um pedaço de terra, como forma de remuneração pelos serviços prestados em

prol do Estado de Atenas. A partir, do século IV a.C., algumas destas clerúquias

tornaram-se colônias permanentes; possuindo estreitas relações com a metrópole e

formadas, principalmente, pelos tetes e zêugitas, os grupos menos abastados da

sociedade ateniense.

Segundo Claude Mossé, esta “colonização não era apenas ummeio de resolver as

dificuldades sociais, mas fazia parte de um programa global, ao mesmo tempo político e

militar.”113

Junto às clerúquias e aos colonos estavam as guarnições militares que,

geralmente, ficavam nos territórios das cidades coligadas à Atenas. Estes contingentes

recebiam, também, salários diários, conhecidos como soldos, pelos serviços prestados à

polis. O corpo burocrático imperialista era formado por:

Remadores e os soldados a bordo dos navios que durante oito meses do ano, percorriam

o Egeu, tanto para fiscalizar o tráfego marítimo como para receber os tributos atrasados

e policiar os mares; os juízes encarregados de resolver as pendências entre os atenienses

e aliados, desde que estes foram obrigados a defender suas causas diante dos tribunais

113 MOSSÉ, Claude. Atenas: A história de uma democracia. 3.ed. Brasília: Editora Universidade de

Brasília, 1997. p.39.

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atenienses; os inspetores , de toda ordem, que deviam supervisionar a execução das

decisões comuns.114

A conquista e o controle que Atenas exerceu sobre o Mar Egeu permitiu o

abastecimento de grãos, em especial, o trigo; gênero básico da alimentação da

população ateniense. Isto era importante pelo fato do crescimento demográfico e,

também, pela pouca fertilidade do solo desta região. Portanto, “os atenienses tinham

necessidade, sobretudo, de obter matérias-primas, cereais, metais comuns, madeiras

para construção, destinadas ao vigamento dos navios.”115

Por isso, a bandeira do imperialismo ateniense deveria ser feito a todo custo; até

mesmo, com diligências em caráter punitivo às cidades que buscassem impedir tal

projeto. Entre tais medidas, adotadas, como forma de retaliação, além da ocupação por

tropas militares, haviam outras, como: os inspetores (episcopos) com a função de

resolver as questões ligadas a aplicação das regras do tratado de aliança entre as cidades

e, em última instância, a nomeação de um arconte para governar a cidade ocupada pelos

atenienses. Ou seja, uma espécie de intervenção política e administrativa aos “aliados

revoltosos”. Tinham, além do citado acima, a obrigação de adotar os pesos, medidas e

moedas atenienses e obedecer aos ditames legais dos mesmos.

A supressão da autonomia das cidades com as políticas intervencionistas de

Atenas na vida interna destas pólis “aliadas”, subjugadas, seria o termo mais apropriado,

já que estas deviam obediência às regras impostas pelos outros, fez nascer revoltas ou

contestações a este status quo da política imperialista dos atenienses. Pois, estas se viam

não como aliadas, mas como verdadeiras inimigas de Atenas, devido a toda esta política

de intervenção internamente. Exemplos disso são as revoltas em Tasos, Eubeia e Samos.

Tais intervenções, mascaradas, muitas vezes, de aliança tinham o intuito de

integrar obrigatoriamente estas pólis ao sistema e vontades atenienses e, era segundo

Finley:

A integração era obrigatória e proibida à secessão; os membros pagavam em dinheiro

um tributo anual fixo, que Atenas recolhia e gastava como entendia; estes proventos

imperiais permitiam a Atenas conduzir uma política externa complexa que, só ela,

determinava; e, cada vez mais, os Atenienses se intrometiam nos assuntos internos dos

estados-membros, em especial para apoiar e dar força aos elementos democráticos

contra os opositores oligárquicos.116

114 MOSSÉ, Claude. Op.cit. p. 40. 115 MOSSÉ, Claude. Op.cit. p. 41. 116 FINLEY, Moses I. Os Gregos Antigos.p.58.

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3.2. A Guerra do Peloponeso e a Derrota de Atenas

Todos estes fatos citados anteriormente, no que tange, ao expansionismo

ateniense, não eram vistos com bons olhos pelos espartanos, em seguida às Guerras

Médicas; sempre fazendo frente a tais planos imperialista de forma indireta, apoiando as

cidades que estavam subjugadas a Atenas.

A guerra teve início em um conflito deflagrado entre atenienses e coríntios duas

colônias distintas, Corcira e Potidéia. A primeira era colônia de Corinto, porém brigava

pela sua independência e:

Quando eclodiu o conflito entre Potidéia, pela posse comum de Epidamno, os corcireus

solicitaram auxílio ateniense Potidéia também era colônia coríntia localizada ao norte

do Egeu, na Calcídica. Ao contrário de Corcira, esta conservara estreitos laços com

Corinto.117

Desta forma, o conflito entre Corcira e Potidéia fez eclodir a rivalidade entre

atenienses e a pólis de Corinto, membro da Liga do Peloponeso, controlada por Esparta.

Este fato gerou a intervenção dos espartanos para socorrer os aliados da liga contra

possíveis ataques dos inimigos (neste caso, Atenas), já que a ajuda mútua aos membros

era cláusula essencial no regimento interno da liga.

No entanto, a solicitação dos coríntios aos espartanos não foram atendidas de

imediato, gerando um pequeno choque entre as duas pólis aliadas. Utilizando-se do

relato de Tucídides, os coríntios afirmavam que todos estes problemas que estavam

acontecendo na Grécia, devia-se exclusivamente a passividade dos mesmos frente ao

projeto imperialista dos atenienses. Assim, pronunciaram-se os coríntios sobre a

passividade dos espartanos e a ideia de culpa jogada a estes pelo expansionismo de

Atenas e o fortalecimento do seu poder:

Sóis vós os responsáveis por essa situação, porque fostes vós que deixastes que

fortificassem a cidade depois da Guerra Médicas e que, posteriormente, permitistes que

erguessem Longos Muros. Também fostes vós que privastes da liberdade não apenas os

Estados que subjugastes, mas, igualmente, vossos próprios aliados. Em verdade, há que

se considerar como verdadeiros responsáveis, não os que impõem a escravidão a

outrem, mas aqueles que, podendo coibir a desdita, descuram de fazê-lo, sobretudo se

procuram atribuir-se o mérito de serem libertadores da Grécia.118

117 MOSSÉ, Claude. Op.cit. p. 45. 118TUCÍDIDES.I. 69.

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Só depois de muito debate e pedidos de Corinto para Esparta, é que esta buscou

manifestar-se a favor da primeira, mandando a Atenas embaixadas para que “os

atenienses se cientificassem da resolução dos aliados e para lhes manifestar seu

ressentimento.”119

Estes ultimatos tinham como intuito, no primeiro momento, tentar

derrubar Péricles, jogando-o contra a população e remexendo antigos atos, visto por

seus adversários, como improbidade, durante o seu governo.

Tal medida não surtiu o efeito desejado. Assim, foi feita uma nova excursão, na

qual os atenienses, pressionados pelos lacedemônios, deviam imediatamente tomar as

devidas providências para “levantar o cerco a Potidéia, conceder independência a Egina

e, sobretudo, ab-rogar o decreto, recentemente editado, contra os megarenses.”120

Em face de tais intimações feitas pelos espartanos aos atenienses, em caráter de

urgência, e das proposições expressas neles, em especial, para que estes últimos

concedessem independência às cidades gregas, os cidadãos de Atenas dividiram-se: de

um lado, os que acreditavam que a guerra era a única solução possível para a resolução

destes conflitos e, também, para a consolidação dos projetos imperialistas; do outro

lado, os que tinham em mente que as resoluções amistosas para tais impasses seriam as

mais adequadas e justas, evitando, deste modo, uma possível guerra entre duas grandes

potências e, uma possível catástrofe no mundo grego.

A nova situação gerada por estes acontecimentos fizeram com que Péricles se

pronunciasse perante seus cidadãos e apoiando aqueles que viam na guerra a solução

para tudo, inclusive garantir a supremacia desta polis frente às outras. Falava a todos

que os atenienses não deveriam se intimidar com estes ultimatos dos espartanos e, sim,

deveriam seguir em frente com seus planos expansionistas. Segundo, Mossé:

Péricles desenvolvia as razões que tinham os atenienses para rejeitar o ultimato de seus

adversários, alegando má-fé destes e, por outro lado, demonstrando a superioridade

evidente de Atenas, em caso de guerra, sobretudo se se adotasse a tática que

preconizava: conduzir a guerra no mar e renunciar a defender o território da Ática,

conservando apenas a cidade e o porto.121

Estava dada, portanto, a largadapara a guerra propriamente dita entre estas duas

cidades: de um lado, Atenas, defensora do ideal democrático e, do outro, Esparta,

defensores da oligarquia.Conflito este que perduraria por vários anos e levaria Atenas

119 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p.46. 120 MOSSÉ, Claude. Op.cit. p.47. 121 MOSSÉ, Claude. Op.cit. p.47.

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àruína. Péricles afirmava assim, segundo Tucídides, que os atenienses deveriam fazer

jus à guerra, pois:

Quanto mais a empreendermos por iniciativa própria, menos seremos arruinados por

nossos adversários. Não esqueçamos: para as cidades, como para os indivíduos, os

maiores perigos permitem alcançar a mais alta glória. Foi assim que nossos

antepassados, que não dispunham de nosso poderio para suportar o embate dos medas, e

que chegaram mesmo a abandonar o pouco que tinham, repeliram os bárbaros, menos

por sua boa estrela que por sua inteligência, menos pela pujança do que pela audácia, e

desenvolveram o Império até o ponto em que o vedes. Não lhes sejamos inferiores.

Repilamos o inimigo com todas as nossas forças e esforcemo-nos por legar, a nossos

descendentes, uma grandeza não menor que a que recebemos.122

Na História, estesconflitos iniciais ficaram conhecidos como a primeira fase da

Guerra do Peloponeso, de 431 – 421 a.C. Os beligerantes, por este período, fizeram

incursões que tinham o intuito de devastar o território do inimigo, porém, sem o êxito

esperado por ambos.

Esparta invadiu o espaço da Ática junto com seus aliados fazendo diversos

ataques no sentido de quebrar a mobilidade e tirar proveito da situação com a

devastação de plantações, estradas, entre outras fontes essenciais para manutenção da

cidade e também do exército.

Péricles, avaliando a superioridade do exército de Esparta e, possivelmente, uma

derrota em terra, convenceu os atenienses a se refugiarem dentro das longas muralhas

que ligavam Atenas a seu porto, o Pireu. Evitando, portanto, uma batalha terrestre

contra seus adversários. Buscou, deste modo, preconizar a tática mais adequada para si,

a saber: confiar todo o seu poderio no mar. Então, Atenas confiava em sua frota de

marítima detrirremes para invadir o Peloponeso e proteger seu império e suas rotas

comerciais.

A tática priorizada por Péricles acabou por gerar um grande êxodo interno da

população de Atenas. Tucídides descreve bem tal situação, dizendo que:

Os atenienses transportaram do campo para a cidade mulheres, crianças e todos os

objetos mobiliários. Chegaram mesmo a levar o madeiramento das casas. Passaram com

seus rebanhos e alimárias pela Eubéia e ilhas vizinhas... Uma vez na cidade, apenas um

pequeno número conseguiu abrigo ou refúgio nas casas de amigos ou parentes. A maior

parte acampou nos arredores desabitados, em todos os templos e santuários dos heróis –

com exceção da Acrópole – ocupou o Eleusinion e os locais rigorosamente fechados...

122 TUCÍDIDESApudMOSSÉ, Claude. Op.cit. pp. 47-48.

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Muitos se instalaram nas torres das fortalezas. Em suma, cada um houve-se como

pôde.123

Parecia que tudo estava caminhando para dar certo, nesta estratégia escolhida

pelo legislador, mas, algo surpreendeu os atenienses, a peste. Esta epidemia dizimou um

quarto da população ateniense. A situação se agravou mais com o fluxo de pessoas de

um lado para o outro e, principalmente, do contato entre as pessoas em bom estado de

saúde e as doentes, o que serviu para a disseminação de tal mal. Se expressa Tucídides

da seguinte maneira:

Morriam, quer por falta de cuidados, quer a despeito do tratamento que se lhes

prodigalizava. Nenhum remédio, por assim dizer, mostrou-se de eficácia generalizada;

aquilo que a uns trazia alívio a outros era prejudicial. Nenhuma constituição, robusta ou

fraca, resistiu ao mal. Todos se finavam indistintamente, qualquer que fosse o regime

seguido. O mais terrível era o desânimo que tomava conta de cada um aos primeiros

ataques; os enfermos perdiam imediatamente toda a esperança e, ao invés, de resistir,

abandonavam-se inteiramente. Ao cuidarem uns dos outros contaminavam-se

mutuamente e morriam aos magotes.124

Toda esta situação gerou alguns agravantes na cidade, pois a guerra continuava e

nenhum resultado decisivo ainda tinha sido alcançado pelos atenienses, gerando a

contestação de quase todos contra os resultados não satisfatórios frente a Péricles. Este

viu seu prestígio diminuir e foi até condenado a pagar uma multa. Os valores morais

começaram a denegrirem-se com toda a situação imposta na conjuntura da guerra sem

os objetivos alcançados e a peste que desolava na cidade.As pessoas já não ligavam para

manterem-se obedientes aos costumes morais que geravam a harmonia social interna. E

tal fato, deu-se, em especial, com a morte de Péricles e as constantes disputas internas

pelo poder.

Outra situação desagradável para os atenienses foi à notícia da deserção de

alguns dos seus aliados, pois, geralmente, passavam para o lado oposto ou, então,

ficavam neutros. Claude Mossé diz que:

Os aliados de Atenas começavam a desertar: este foi o caso, em particular, da ilha de

Lesbos, que até então, tinha-se mantido como um aliado privilegiado de Atenas, uma

vez que, como a gente de Quios e Samos, os lesbianos combatiam ao lado dos

123 TUCÍDIDES. II. 14, 17. 124 TUCÍDIDES. II. 51.

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atenienses com suas próprias forças. Os lesbianos solicitaram ajuda dos espartanos,

mostrando-lhes toda a vantagem que lhes adviria de uma intervenção em seu favor.125

3.2.1. A Expedição à Sicília e o desastre total de Atenas.

Findava-se, portanto, a primeira fase da guerra com um armistício de paz entre

os dois polos beligerantes Atenas e Esparta. Este tratado teve o intuito de cessar os

combates diretos entre ambas e durou em torno de seis anos e dez meses, segundo

Mossé.

A paz deixava de reinar e os atenienses decidiram organizar uma expedição à

Sicília; objetivo latente de Atenas desde o início da Guerra do Peloponeso. Esta ilha

fazia parte da Liga do Peloponeso e tinha como principal cidade Siracusa, colônia de

Corinto, que era inimigo mortal dos atenienses. Desta forma, Alcibíades tratou de

organizar uma incursão sobre tal área, com o pretexto de conquistá-la dos espartanos.

É, justamente, este fato que vai gerar um dos maiores debates acerca desta

expedição à Sicília, entre dois grandes membros da política de Atenas, Alcibíades e

Nícias. O primeiro era defensor ferrenho do empreendimento, qual seja: a expedição ao

território siciliano. O último, contrário.Tentou demonstrar que tal incursão era perigosa

para os atenienses e que estes não teriam grandes lucros com tal expedição, além, de

incitar novamente as hostilidades com Esparta, o que traria, novamente, um confronto

direto com a mesma.

Alcibíades liderou este movimento de oposição aos espartanos, extensível,

também, para todos os aliados de Esparta. Defendia a ideia de que a única solução para

a manutenção do sistema democrático da cidade e da crise que esta passava

internamente era a conquista e vitória sobre a Liga do Peloponeso e,

concomitantemente, do seu maior adversário, os espartanos. Expressava-se tal político

da seguinte forma:

Digamos que a melhor maneira de aumentar nosso poderio é ir combater naquele lugar.

Façamos essa expedição para abater o orgulho dos peloponésios – resultado que

obteremos se, ao navegarmos em direção à Sicília, tivermos o ar de quem desdenhaa

tranquilidade, de que atualmente desfrutamos. Das duas uma: ou aumentaremos ali o

nosso poderio e, naturalmente, ficaremos à testa da Grécia inteira; ou, no mínimo,

causaremos dano aos siracusanos, e nós mesmos, bem como nossos aliados, não

deixaremos de tirar vantagem disso.126

125 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p.55. 126TUCÍDIDES.VI. 18.

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Posteriormente, a este discurso toda a população ensandecida com a motivação

dada por Alcibíades decidiu seguir com o objetivo de conquistar a Sicília. Assim, a

expedição foi organizada e partiu em 415 a.C., mas, está, também, viria a ser “uma das

maiores catástrofes da história de Atenas”127

e que a levou a quase submissão total.

Após a invasão ao território siciliano, o que se viu foi o exército ateniense ser

destruído pelas forças do Peloponeso, já que Esparta dava total apoio à Sicília, com a

destruição da maior parte da sua frota de navios, a matança e tortura dos seus soldados,

a falta de mantimentos.Enfim, um verdadeiro massacre. Tucídides narra tal

acontecimento de forma magistral, afirmando que:

No conjunto, era terrível a situação dos atenienses. Tinham perdido as belas esperanças

e, em seu lugar, para eles e para a cidade, não havia senão perigos. Além do mais, o

campo que se abandonava apresentava, aos olhos e ao espírito, um espetáculo de

aflição. Os mortos continuavam sem sepultura e, à vista do cadáver de um de seus

amigos, o soldado experimentava uma angústia misturada ao temor. Os vivos, que se

abandonavam feridos ou doentes, suscitavam ainda mais aflição e comiseração que os

mortos. Suas súplicas e gemidos infundiam desespero no exército. Quando percebiam

um companheiro ou um parente próximo, com grandes gritos imploravam e suplicavam

que os levassem. Agarravam-se a seus companheiros de tenda no momento em que estes

começavam a caminhar. Acompanhavam-nos até não mais poder e, quando a vontade

ou as forças traíam-nos, paravam invocando os deuses e soluçando. Sabe-se como a

retirada acabou num desastre perto do rio Asinaros. Grande número de atenienses foi

massacrado, e aqueles que tinham sido aprisionados foram encerrados em pedreiras a

descoberto, chamadas “latomias”. Enclausurados, em massa, no fundo daquela estreita

escavação, sem abrigo, sofreram enormemente o calor do sol e a falta de ar. Depois, as

noites frias de outono determinaram uma mudança de temperatura que provocou

doenças. Tinham que satisfazer a todas as necessidades vitais naquele pequeno espaço.

Os cadáveres acumulavam-se, uns tendo sucumbido aos ferimentos, outras às mudanças

de temperatura ou a algum acidente. O mal cheiro era insuportável. Padeciam tanto de

fome como de sede.128

Para Atenas tal incursão foi um tremendo desastre, como explicitou Tucídides,

ocasionando vários movimentos de contestação face ao status quo desta pólis,

principalmente, com a invasão da Ática e a instalação definitiva do inimigo em solos

atenienses; a devastação dos campos; as levas de saques; a difusão do “terrorismo” à

população com matanças e perseguições; a deserção dos soldados; as revoltas e fugas

dos escravos, a fome, entre outros. Tudo isto causou imenso prejuízo à comunidade

políade, gerando duas grandes reações: a destruição do regime democrático e a

instalação da oligarquia (tema que será abordado posteriormente) e, uma medida

127 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p.62. 128 TUCÍDIDES. VII. 87.

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emergencial e desesperadora, “era preciso tentar, a todo custo, forçar a decisão no mar,

destinar todos os recursos da cidade à construção de uma frota.”129

Este último

acontecimento fez Atenas lançar-se em combate no Egeu, já que os espartanos

buscavam “aliciar” os aliados daqueles para seu lado, como forma de isolar os

atenienses cada vez mais.

A guerra prosseguia no Egeu e, a cada investida de Esparta, Atenas ficava mais

encurralada e abalada, sem saber o que fazer, tendo de recorrer a medidas extremas para

poder bancar as despesas com a guerra, entre elas: a construção de novos navios e como

fazer para pagar os “salários” dos remadores das frotas e, em certa medida, fazendo

constantes guerras de conquistas para tentar garantir seu sustento, algo que não teve o

êxito esperado.

O encontro final da Guerra do Peloponeso ocorreu em Egos Potamos, no

Helesponto, na qual a esquadra ateniense foi quase totalmente destruída. A situação era

insustentável, pois Atenas já não sabia mais o que fazer e como fazer, a não ser aceitar

os termos da sua rendição. Solução esta tomada, mesmo que a maioria da população não

aceitasse como a mais viável, pois acreditavam em outras medidas menos trágicas.

Para a concessão da paz entre Esparta e Atenas, esta exigia dos últimos as

seguintes condições: entrega de toda a frota naval, exceto doze navios; aceitação do

retorno dos exilados; destruição dos Longos Muros e do Pireu; que os atenienses fossem

cientes de que teriam os mesmos amigos e inimigos dos espartanos e que deveriam

prestar auxilio a este sempre que houvesse necessidade.

Assim, termina um dos maiores conflitos da história grega, que não só significou um

golpe para Atenas, mas para todo o mundo grego. Finley conclui que:

A guerra terminou em 404, e a condição mais importante que os Espartanos vitoriosos

puseram, foi a dissolução do Império. Por conseguinte, a guerra foi uma catástrofe não

apenas para Atenas, como para toda a Grécia: desfez a única via possível para uma certa

unificação política, embora, reconhecidamente, uma unidade imposta aos outros por

uma cidade ambiciosa. Esparta conduzia a guerra sob o lema de restituir às cidades

gregas a sua liberdade e autonomia, mas, na realidade, acabou por, primeiramente,

devolver os Gregos da Ásia Menor à soberania da Pérsia (como pagamento do ouro

persa de que tinha necessidade para ganhar a guerra); depois, tentando estabelecer um

império próprio, com o pagamento de tributo, com governadores militares e guarnições,

sobre o cadáver do Império Ateniense. 130

129 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 64. 130 FINLEY, Moses I. Os Gregos Antigos.p.60.

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A situação do pós-guerra fez como que a situação dos atenienses fosse de sérios

problemas, principalmente no âmbito interno; mesmo com a restauração da democracia.

Entre os fatores temos: a própria crise econômica que já vinha se arrastando desde a

guerra contra os persas; as constantes revoltas internas da população, em especial dos

camponeses; a crise do exército ateniense e a formação de um exército formando

efetivamente por mercenários e um desejo latente de parte da população em garantir a

paz, já que viam na guerra um grande mal.

Destes problemas, o maior e mais grave, que podemos considerar, era o medo de

revolta dos camponeses que poderia ocasionar uma guerra civil. Muitos deles, em

especial, àqueles que viviam do rendimento das suas terras, puderam voltar para elas,

evitando, deste modo, uma crise de subsistência maior do que já estava e, também, sanar

ou diminuir a ociosidade dos mesmos. Mas, se a situação era avassaladora para os

camponeses, por outro lado, para os habitantes da cidade, a situação não deixava de ser

igual. Pois, viam-se abalados pela crise, sobretudo com a desestruturação do império

ateniense, responsável pela manutenção e equilíbrio interno da pólis. Assim, com a

desagregação do Império marítimo de Atenas,

Desapareciam os soldos e os salários que faziam viver, mais ou menos bem, a um

grande número de atenienses. Além disso, a guerra provocara uma franca diminuição

das atividades artesanais: os arsenais estavam fechados, os estaleiros navais também, as

minas eram exploradas esporadicamente, e a perda de 20.000 escravos artesãos, quando

da ocupação de Deceléia, ainda agravara mais a situação. Garantir o pão cotidiano

constituía preocupação constante, o que explica, tanto quanto a derrota, o crescente

desinteresse pelas assembleias, cujas reuniões, por demais frequentes e ineficazes,

acabavam por cansar.131

3.3.As Revoluções Oligárquicas e a Derrocada de Atenas

Como vimos acima, toda a situação de crise vivida por Atenas, tanto externa

quanto internamente, por causa da guerra que dividiu a sociedade em dois grupos, os

que eram contra tal coisa e aqueles que a viam como uma grande solução para todos os

problemas, senão definitivamente, pelo menos, em curto prazo. Esta situação fez

“nascer”, por parte dos grandes aristocratas e que eram contra o sistema democrático e

viam, nestas circunstâncias, o momento propício para a derrubada de tal regime e

implantação de um novo, a oligarquia.

131 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 86.

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O momento era este. Aproveitando-se da fragilidade de Atenas neste conflito

com os persas, em especial, pelos resultados não satisfatórios e, tendo como “inimigo”

interno, os que eram contra tal empreendimento da guerra ateniense, os adeptos do

sistema oligárquico tentaram pegar apoio desta massa contrária a política desenvolvida

pela pólis de Atenas e pediram apoio para Esparta para a instauração deste novo projeto

político que seria dado a esta cidade. Desta forma,

Na medida em que a guerra era a consequência da hegemonia que Atenas pretendia

exercer sobre o mundo grego, e que esta hegemonia era desejada pelo povo e necessária

ao bom funcionamento da democracia, é de se conceber que alguns, cansados da guerra,

tenham projetado uma modificação constitucional que tiraria a soberania do povo e

anularia a influência dos oradores. Aqueles podiam ser facilmente persuadidos por um

pequeno grupo de resolutos adversários da democracia, cuja atividade e influência não

fizera senão crescer, desde o começo da guerra.132

No entanto, este processo não era tão simples como se poderia imaginar,

derrubar o sistema democrático que a tempo já havia se consolidado formando laços

fortes no seio dos cidadãos que prezavam por seus direitos de participação direta no

bem da comunidade, do direito a liberdade, do direito igual à palavra (isegoria) e da

igualdade perante a lei (isonomia). Todos estes atributos típicos de um sistema político

forte que seria difícil ser substituído pelos idealistas da oligarquia, em especial, pela

restrição de participação política na pólis. Assim, o modo mais certo para os oligarcas

era “tentar conquistar, para sua causa, aqueles a quem os sucessivos fracassos de Atenas

exasperavam e, em particular, o conjunto de pequenos e médios proprietários arruinados

pela guerra.”133

Este movimento “revolucionário”, ao que tudo indica, foi organizado por

Alcibíades, que havia sido convocado, em 415, para ser interrogado e julgado sobre a

suposta participação na destruição dos monumentos de Hermes. Sabendo que poderia

ser condenado pela assembleia, fugiu para Esparta e ficou sob os cuidados do rei Ágis.

Segundo consta, este foi incitado e aconselhado por Alcibíades para fazer uma

expedição contra os atenienses, conquistando Decélia. Mas, este se tornou amante da

esposa do rei e foi expulso da cidade e buscou refugio em território persa. Em terras dos

antigos inimigos dos atenienses, desejando retornar a tal pólis, começou a traçar seus

planos que tinham o intuito de:

132 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 64. 133 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 65.

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Afastar Tissafernes da aliança espartana sem, no entanto, reaproximá-lo de uma Atenas

dominada pelos democratas exaltados – e, por outro lado, deixara transparecer aos

atenienses a possibilidade de uma ajuda sátrapa, mas sob a condição de que

estabelecessem um governo oligárquico.134

Desta forma, Alcibíades ao estabelecer tal condição, encontrou alguns aliados,

entre eles, Pisandro, que conseguiu o apoio do povo para que este pedido fosse aceito,

mesmo que provisoriamente: a implantação da oligarquia em Atenas.

Com tal medida, decidiu-se enviar para Atenas uma comissão para negociações,

mas não deu certo. Então, Pisandro acompanhado dos delegados decidiram agir por

conta própria e com o objetivo de, no primeiro momento, derrubar a democracia em

Samos e nas outras cidades aliadas aos atenienses e, posteriormente, tomar Atenas e

implantar a sistema oligárquico.

Neste momento, decidiu-se convocar uma Assembleia extraordinária, em

Colone, e a esta se submeteu:

Um projeto que estabelecia, de fato, uma nova constituição. Os misthoieram abolidos, as

condições de acesso Às magistraturas modificadas, uma Boulé de 400 membros,

designados por cooptação, substituiria a dos Quinhentos – cujos membros eram

escolhidos por sorteio. Por fim, posteriormente, os Quatrocentos redigiriam o catálogo

dos cinco mil cidadãos aos quais seria reservada a plenitude dos direitos políticos. [...]

O projeto de decreto foi adotado. Restava dissolver os Quinhentos. A empresa

desenrolou-se sem dificuldades, tendo sido cuidadosamente preparada pelos conjurados.

E os membros da Boulé, a quem se deu a indenização a que tinha direito, até o final de

suas funções ( faltavam ainda quatro meses), dispersaram-se sem protestar.135

Incialmente, o projeto de ataque contra o sistema democrático ateniense teve

total êxito. Não tardaria, portanto, para que o novo regime começasse a dar os primeiros

sinais de fraqueza, tendo como escopo a organização da lista contendo o nome dos

cinco mil cidadãos e, principalmente, a ameaça das tropas dos peloponésios marchando

para Salamina. Este incidente fez com que, às pressas, se organizasse uma frota

improvisada para combater neste local. Resultado: um desastre total para os atenienses.

Desastre este que serviu como para a queda do regime oligárquico.

Em Samos, dois generais, Trasíbulo e Trásilo, derrubaram e executaram os

defensores e aqueles que estavam à frente do movimento contestatório e restaurando,

desta forma a democracia. Já na pólis ateniense, convocou-se uma Assembleia a qual

deu fim ao poder dos Quatrocentos, devolveram o poder aos cidadãos, instauraram uma

134 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 65. 135 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 66.

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assembleia constituinte para a elaboração de uma nova constituição, entre outras

atividades de cunho administrativo.

Em 404, não viria a tardar uma nova tentativa pra derrubar o regime

democrático; objetivo maior de todos os que eram contra tal sistema, em especial, os

“extremistas” oligárquicos. Ao contrário do golpe de 411, este aprecia estar bem mais

arquitetado e a própria conjuntura interna e externa, em Atenas, dava sinais que

poderiam favorecer tal empreendimento e ainda viam-se apoiados pelos espartanos.

Mais, uma vez, procedimentos foram adotados como a convocação de uma nova

assembleia constituinte para que se pudesse elaborar uma nova constituição, trabalho

que foi feito por trinta pessoas, os quais ficaram conhecidos como os Trinta. Duas

foram às medidas tomadas, a saber: por um lado, substituiçãodo conselho anterior por

um novo, formando por pessoas partidárias dos ideais oligárquicos; por outro lado,

implantaram um regime de terror. Esta última medida consistia em prisões arbitrárias e

constantes assassinatos dos líderes democráticos. Ou seja, era aplicada a todos os que

eram considerados inimigos da oligarquia.

Também, foi aplicada dentro do próprio grupo dos Trinta, tendo como exemplo

clássico, a disputa entre Terâmenes e Crítias. O primeiro era um moderado e fazia frente

contra a política do terror feita pelos mais exaltados, considerando-a como injustas e

ilegais. Crítias, por outro lado, acusava-o de traidor por ir contra o que era feito pelos

Trinta.

Diante de tal situação, ambos foram chamados pelo Conselho para prestarem

esclarecimentos e travaram um grande debate cheio de acusações para ambos os lados.

Antes que este debate pudesse, de certa forma, condenar Crítias por tais abusos de poder

na sua administração, este se utilizando da violência, mandou prender Terâmenes

declarando-o culpado por traição interna e o condenou a morte. O que para ele

garantiria a sustentação do sistema implantado.

Passado este acontecimento interno, o grupo dos Trinta continuavam suas ações

de terror. Além do mais, criaram uma lista que diminuíam em duas mil pessoas para o

exercício da cidadania, ficando em três mil, os agraciados com tal direito. Além disso,

impediram que todos os que não constavam nesta lista seriam impedidos de entrar na

cidade, obrigando-os ao exílio em outras cidades, que serviram de reduto para os

democratas, principalmente Tebas e Mégara.

Tebas era a principal pólis de reduto aos partidários da democracia e, também,

dos exilados políticos pelo regime dos Trinta. Foi lá que Trasíbulo lançou sua investida

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para reconquistar a Ática, ocupando a fortaleza de File. Este episódio foi de suma

importância para que:

Renascesse a esperança dos democratas. Bem depressa o número de seus partidários

elevou-se para 700 e, depois de uma investida feliz, que lhes permitiu lançar a desordem

no exército dos Trinta, conseguiu-se apoderar-se do Pireu, em seguida à batalha, que se

travou perto da fortaleza de Muníquia. A tomada do Pireu tinha sua importância. De

fato, era ali que se tinham refugiado toso os que não faziam parte dos Três Mil e que,

por isso, estavam dispostos a se juntar a Trasíbulo. Também era no Pireu que viviam os

metecos ricos que tinham escapado às proscrições dos Trinta e podiam ajudar

materialmente os democratas. Enfim, ali estava o coração do poderio ateniense. Eis a

razão pela qual alguns, dentre os habitantes da cidade, começaram a desejar afastar-se

dos Trinta e preparar os elementos para uma futura reaproximação com os democratas.

Acabaram por convencer os outros e proclamar a destituição dos Trinta e, em seu lugar,

a eleição de dez magistrados encarregados de governar a cidade.136

A partir daí, os democratas exilados organizaram-se para marcharem do Pireu à

Atenas no intuito de restaurar o poder e o antigo sistema político, a democracia.

Convocou-se uma nova assembleia constituinte para fazer os procedimentos formais e

ratificar a implantação do antigo poder. Deste modo, deu-se por encerrado o desejo dos

opositores da democracia de suplantá-la e instalar outro sistema político que lhes

favorecessem.

A derrocada final dos gregos veio ser efetivada com a invasão dos macedônios,

primeiramente com Filipe e, em seguida, como seu filho, Alexandre. A Macedônia era

uma região que ficava exterior ao território da Hélade, mas cujas relações com os

gregos, em especial, com Atenas, era pacífica, em seus primórdios. Os reis macedônios,

por causa desta relação amistosa e muito próxima, viam-se como descendentes de tal

povo. Só que, devido a sua fraqueza, os macedônios serviam como um polo do projeto

imperialista dos atenienses. Portanto, era a relação desenvolvida entre ambos era de

dominação de uma sobre o outro; neste caso, dos atenienses sobre a Macedônia.

Só que, em 359 a.C., com o surgimento de um novo príncipe, Filipe, o Rei da

Macedônia, as coisas começam a mudar de lado. Este tinha em mente sair do status quo

vivido por tal sociedade, de dominados, e construir um império que se expandisse pelo

Egeu, mesmo que para isto, fosse necessário travar guerra com seu antigo “aliado”, os

atenienses. Então, buscou fortalecer o poder monárquico dos reis e aproveitando os

antagonismos existentes entre as cidades gregas e, desta forma, relacionando-se com

aquelas que eram contra Atenas.

136 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 80.

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Utilizando-se de sua capacidade política buscou, deste modo, interferir na

guerra entre tebanos e fócios, apoiando os primeiros, luta travada por estes pelo controle

do santuário de Delfos. Estas alianças com algumas das cidades da Grécia, em especial,

os alguns adversários dos atenienses, estes últimos viam com maus olhos tal intervenção

dos macedônios em seus domínios. Assim, “em poucos anos, tornou-se senhor das

costas setentrionais do Egeu.”137

Em 339/338 a.C. na Beócia travou-se o combate entre atenienses e macedônios,

saindo os primeiros totalmente derrotados na batalha de Queronéia. Depois de

conquistar tal vitória, Filipe, instalou uma guarnição em Cadméia, fortaleza de Tebas.

Os atenienses temendo esta ameaça, que eram os macedônios, principalmente

com os boatos de invasão da sua cidade, decidiram se mobilizar para evitar tal risco e,

desta forma, conduziram:

Toda a população para o interior das muralhas e organizar a defesa. A Boulè, em armas,

manteve-se em sessão permanente e tomou uma série de medidas de “salvação pública”:

mobilização dos homens de 50 a 60 anos, a fim de garantir a guarda das muralhas,

proibição a todo ateniense de sair da cidade, convocação dos banidos e reintegração dos

direitos cívicos daqueles que tinham sido privados. Finalmente, o orador Hiperides

propôs que a cidadania fosse concedida aos metecos e a liberdade aos escravos que

recebessem armas para defender a cidade.138

Apesar destas medidas de precaução tomada pelos atenienses, à ameaça de

guerra dentro da pólis de Atenas foi descartada, pois um orador desta cidade, Dêmades,

conseguiu um acordo de paz com Filipe, que aceitou que os atenienses tivessem

garantida sua autonomia interna e que a mesma não fosse ocupada com tropas

estrangeiras. No entanto,

Atenas teve que aceitar a perda de Quersoneso, a dissolução da Confederação, e foi

obrigada a aderir à liga constituída em torno de Filipe, em Corinto. Concretamente, isso

significava que teriam que contribuir para a expedição que Filipe, transformado em

hegemon dos helenos, preparava contra o inimigo hereditário, o grande rei persa.139

137 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 101. 138 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 106. 139 MOSSÉ, Claude. Op. cit. p. 107

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto, verificamos que a ideia de cidadania, na Antiguidade e, em

especial, na Atenas do período Clássico, era um conceito formado por vários requisitos

que vinculavam e definia quem exerceria tal direito, a saber: ser do sexo masculino, ter

idade mínima de dezoito anos, ser filho de pai e mãe atenienses livres de nascença, ser

livre das atividades laborais – geralmente, para os mais abastados, exercer as funções

administrativas, participar das reuniões e deliberações da assembleia, se preocupar com

o bem comum da pólis, ser responsável por defender a cidade e, portanto, de fazer parte

do exercito, ir para guerra, já que este era um atributo do cidadão. Além disso, todas as

virtudes que eram exigidas do mesmo, em sua acepção ideal, de certa forma, eram

cobradas na vida cotidiana destes.

Percebemos que este benefício era restrito, sendo concedido somente para

algumas pessoas, neste caso, os homens, filhos de outros cidadãos e que obedecessem a

todos os requisitos acima citados. Salvo, nos momentos de extrema necessidade, este

atributo poderia ser expandido aos outros, tais como: os filhos bastardos, pertencentes

apenas a um dos pais, aos metecos ricos ou, raramente, aos pobres e, por fim, aos

escravos – neste último, apesar desta concessão ser feita era dado a eles pequenas

armas.

A obediência a todos estes requisitos vinculantes, na definição do que seria um

cidadão, criava a ideia de um ser virtuoso e ideal que serviria de exemplo aos outros e,

ao mesmo tempo, distinguia este grupo restrito dos outros habitantes da pólis. Criava-se,

deste modo, uma superioridade de um grupo minoritário, que estava no comando das

decisões políticas, frente aos outros – ou seja, os que não detinham o direito de ser

cidadão. Mesmo com tais diferenças e restrições a este direito, os cidadãos atenienses e

necessitavam dos outros grupos que compunham a comunidade política.

Em suma, a pólis junto com seus habitantes devia formar um todo harmonioso,

que garantiria o equilíbrio interno, para a valorização e difusão das virtudes de um bom

cidadão e, concomitantemente, de uma boa cidade. Evita-se, portanto, a desestruturação

do equilíbrio da mesma.

Este desenvolvimento do sistema democrático e seus valores foram possíveis

mediante a própria “evolução” da história de Atenas, neste caso, com os reformadores

que buscaram transformar o antigo modelo de domínio político dos aristocratas e

criaram as possibilidades para o fortalecimento dos valores ideais de cidadão e o

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desenvolvimento de um novo sistema, a democracia. Ao mesmo tempo, deu-se o

desenvolvimento e a consolidação da Assembleia que representava o centro das

decisões políticas da pólis.Pois, era neste local é que estavam presentes os valores

esperados dos cidadãos, não só idealmente; mas, que fossem praticados na vida diáriade

cada um deles.

Nesta mesma instituição, a democracia ateniense vingou e teve seu auge, no

governo de Péricles, votando tudo que tivesse influencia na comunidade interna e

externamente, criando leis, deliberando sobre guerras, intervenções nos estados que não

fossem seus aliados e, até mesmo, neles; festas religiosas, entre outros. Mas, também,

neste mesmo órgão, deu-se a votação para dois fatores que levariam Atenas ao seu

fracasso: as Guerras Médicas e a Guerra do Peloponeso. Assim, destas duas guerras,

Atenas saía destruída física, política e economicamente, tendo que se reestruturar das

suas ruinas, sob o escopo de lideranças políticas que buscaram tirar proveito da

situação, governando em prol de seus interesses.

Portanto, todos os valores e princípios defendidos pelos atenienses que serviam

de base para a definição do cidadão e da pólis ideal, começam a entrar em desagregação

representando constante perigo da ordem imposta. Isto gerava o desequilíbrio interno

que era visto como uma ameaça à sobrevivência de todo o corpo cívico da cidade

ateniense; já que, ideologicamente, o bem comum devia suplantar os interesses dos

indivíduos. Mas, com esta nova ordem imposta, todos estes valores são colocados em

xeque, no qual os interesses do bem comum passam a esfera secundária, em que

cidadãos não se preocupam mais com a sobrevivência da pólis, no primeiro plano, mas

apenas em suprir os seus interesses particulares. Mudando, assim, o ideal de valorização

do coletivo, de preocupação com os interesses públicos para a esfera do indivíduo, de

valorização dos interesses privados; culminando no processo de desestruturação dos

ideais gregos, neste caso, dos atenienses e, também, de todo o poderio desta civilização,

durante a antiguidade.

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