educação, participação política e direitos humanos

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livro sobre DH e educação

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  • Este documento faz parte do acervo do Centro de Referncia Paulo Freire

    acervo.paulofreire.org

  • So Paulo, 2011

    Ed u c a o,Pa rt i c i Pa o Po l t i c a E

    di r E i to s Hu m a n o s

    Autores

    Ana Lvia Adriano, Clio Vanderlei Moraes, Celma Tavares,

    Edward Demenchonok, Francisca Rodrigues de Oliveira Pini,

    Gevanilda Santos, Ivan Moraes Filho, Juliana Fonseca, Maria

    Jos Favaro, Maria Jos Pereira Santos, Mariana Galvo, Roberta

    Stangherlim, Roberto da Silva, Samuel Karasin

    Organizadores

    Francisca Rodrigues de Oliveira Pini eClio Vanderlei Moraes

  • ExpEdiEntE

    Instituto Paulo FreireMoacir GadottiPresidente

    Alexandre MunckDiretor Administrativo-Financeiro

    ngela AntunesDiretora de Gesto do Conhecimento

    Francisca PiniDiretora Pedaggica

    Paulo Roberto PadilhaDiretor de Desenvolvimento Institucional

    Francisca Rodrigues de Oliveira Pini e Clio Vanderlei MoraesOrganizadores

    Ana Lvia Adriano, Clio Vanderlei Moraes, Celma Tavares, Edward Demen-chonok, Francisca Rodrigues de Oliveira Pini, Gevanilda Santos, Ivan Moraes Filho, Juliana Fonseca, Maria Jos Favaro, Maria Jos Pereira Santos, Mariana Galvo, Roberta Stangherlim, Roberto da Silva, Samuel Karasin

    Autores

    Editora e Livraria Instituto Paulo Freire

    Janaina AbreuCoordenadora Grfico-Editorial

    Renato PiresIdentidade Visual, Projeto Grfico, Diagramao e Arte-Final

    Isis Silva e Carlos CoelhoRevisores

    Eliza ManiaProdutora Grfico-Editorial

    Emlia SilvaAssistente Grfico-Editorial

    Bartira GrficaImpresso

    Editora e Livraria Instituto Paulo Freire

    Rua Cerro Cor, 550, Lj. 1

    So Paulo - SP - Brasil

    (11) 3021-1168

    www.edlpaulofreire.org

    [email protected]

    [email protected]

    @editoraipf

    Instituto Paulo Freire

    Rua Cerro Cor, 550, 1 andar, sala 10

    So Paulo - SP - Brasil

    (11) 3021-5536

    www.paulofreire.org

    [email protected]

  • Educao, participao poltica e direitos humanos / Francisca Rodrigues de

    Oliveira Pini e Clio Vanderlei Moraes, (org.). -- So Paulo : Editora e Livraria

    Instituto Paulo Freire, 2011.

    Vrios autores.

    Bibliografia.

    ISBN 978-85-61910-82-2

    1. Dignidade humana 2. Direitos fundamentais 3. Direitos humanos

    4. Educao em direitos humanos 5. Participao poltica 6. Polticas pblicas I.

    Pini, Francisca Rodrigues de Oliveira. II. Moraes, Clio Vanderlei.

    11-10599 CDD-370.115

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Direitos humanos e educao 370.115

    2. Educao em direitos humanos 370.115

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Creative CommonsEditora e Livraria Instituto Paulo Freire - 2011

  • Este livro est licenciado sob Creative Commons Atribuio-Uso No-

    Comercial-Compartilhamento pela mesma Licena 3.0 Brasil. Para ver uma cpia desta

    licena, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/br.

  • SumrioPrefcio Construindo uma pedagogia dos direitos humanos

    Paulo Roberto Padilha ---------------------------------------------------------07Captulo I Fundamentos da educao em direitos humanos -----------------------15

    I.I Educao em direitos humanos: abordagensterico-metodolgica e tico-poltica FranciscaRodrigues de Oliveira Pini e Ana Lvia Adriano -------------------------------15I.II Educao em direitos humanos: diretrizes eprtica educativa Celma Tavares ------------------------------------------------31

    I.III Educao em direitos humanos, os fruns e osmovimentos sociais Francisca Rodrigues de Oliveira Pini -----------------43

    I.IV Direitos humanos, tica da libertao e a democraciacosmopolita Edward Demenchonok ------------------------------------------63

    I.V Direitos humanos e as relaes tnico-raciais e de gnero Gevanilda Santos, Maria Jos Pereira Santos e Mariana Galvo -------------81

    Captulo II Educao em direitos humanos e a formao profissional ------------95II.I Dimenses dos direitos humanos na formao doseducadores sociais Clio Vanderlei Moraes-----------------------------------95

    II.II Dimenses dos direitos humanos na formao deprofessores Roberta Stangherlim ---------------------------------------------107

    II.III Direitos humanos e comunicao: o contexto brasileiroe suas perspectivas Celma Tavares e Ivan Moraes Filho -----------------131

    II.IV Educao em direitos humanos na assistnciasocial Clio Vanderlei Moraes ------------------------------------------------143

    Captulo III Educao em direitos humanos e administrao pblica ---------- 155III.I Sistema de justia e os direitos humanos Samuel Karasin ------155

    III.II Educao em direitos humanos e a construo doprojeto poltico-pedaggico nas prises Roberto da Silva ---------------163

    III.III Gesto escolar e educao em direitoshumanos Maria Jos Favaro -------------------------------------------------189

    III.IV A construo da educao em direitos humanosna escola pblica Juliana Fonseca --------------------------------------------197

  • Ed u c a o, Pa rt i c i Pa o Po l t i c a E di r E i to s Hu m a n o s

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    prEfcioconStruindo uma pEdagogia doS dirEitoS HumanoS

    Paulo Roberto Padilha 1

    A luta pela paz, que no significa a luta pela abolio, sequer pela

    negao dos conflitos, mas pela confrontao justa, crtica dos

    mesmos e a procura de solues corretas para eles uma exigncia imperiosa de nossa poca. A paz, porm, no precede a justia. Por isso a melhor maneira de falar pela paz fazer justia.2

    prEzada lEitora, prEzado lEitor.Comemoramos, em 2011, 90 anos de nascimento de Paulo Freire e 20

    anos da criao do instituto que levou o seu nome. Nada mais oportuno, tam-bm por isso, lanarmos pela Editora e Livraria Instituto Paulo Freire este livro intitulado Educao, participao poltica e Direitos Humanos que nos sub-sidiar a melhor compreendermos e agirmos na direo do que Freire sempre buscou: a justia social, a paz, a tica, procurando contribuir para um mundo menos feio, menos malvado, e com processos de luta radicalmente contrrios a qualquer tipo de violncia contra a natureza e contra as pessoas, contra todo e qualquer tipo de preconceito, de impunidade, de desrespeito vida humana, vida dos animais, das rvores, a todo tipo de vida (FREIRE, 2000).

    As pginas que seguem nos inserem no complexo universo que reconhece a inse-parabilidade entre educao e direitos humanos, ao mesmo tempo em que nos abrem possibilidades de aprofundamento sobre estas temticas e nos oferecem indicadores para a ao concreta no sentido da afirmao de direitos e da dignidade humana.

    Ao ler esta obra, organizada por dois experientes militantes e pesquisado-res dos direitos humanos Francisca Pini, assistente social, doutora em servio social e diretora pedaggica do Instituto Paulo Freire, e Clio Vanderlei Mora-es, psiclogo e mestre em psicologia social , voc tambm estar dialogando, cara leitora e caro leitor, com outros onze autores que, como os organizadores, trazem-nos as suas reflexes e experincias sobre os fundamentos histricos, metodolgicos, ticos e polticos da Educao em Direitos Humanos (captulo

    1 Mestre e doutor em Educao pela Faculdade de Educao da FE-USP. Pedagogo, bacharel em cincias contbeis e msico, diretor de desenvolvimento institucional do Instituto Paulo Freire. Autor de Educar em todos os cantos: por uma educao intertranscultural (Cortez/IPF, 2007; 2. ed., 2011), Currculo Intertranscultural: novos itinerrios para a educao (Cortez/IPF, 2004), Planeja-mento dialgico: como elaborar o projeto poltico-pedaggico da escola (Cortez, IPF, 2001; 9. ed., 2009), coautor de Educao Cidad, Educao Integral: fundamentos e prticas (Ed,L, 2010) e co-organizador de Municpio que Educa: mltiplos olhares (Ed,L, 2010), entre outras. tambm membro do Conselho Editorial da Editora e Livraria Instituto Paulo Freire.

    2 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignao: cartas pedaggicas e outros escritos. So Paulo: Ed. Unesp, 2000. p. 131.

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    I); relacionam essa Educao formao profissional de educadores sociais, de professores, de comunicadores e de assistentes sociais (captulo II), e admi-nistrao pblica (captulo III).

    Temos motivos de sobra para considerarmos absolutamente relevante, nos dias atuais, a leitura deste livro. Basta citar, por exemplo, as 125 milhes de crianas que, no mundo atual, ainda esto fora da escola, 22 milhes s na Amrica Latina (www.unicef.org.br). Ou, ento, registrarmos a desigualdade econmica que assola o planeta, no qual os 20% mais ricos se apropriam de 82,7% da renda, onde os dois teros mais pobres tm acesso a apenas 6% da riqueza mundial3. Podemos, ainda, observar que

    A concentrao de renda absolutamente escandalosa, e nos obri-ga a ver de frente tanto o problema tico, da injustia e dos dramas de bilhes de pessoas, como o problema econmico, pois estamos excluindo bilhes de pessoas que poderiam estar no s vivendo melhor, como contribuindo de forma mais ampla com a sua capa-cidade produtiva. No haver tranquilidade no planeta enquanto a economia for organizada em funo de um tero da populao mundial. (LOPES; SACHS; DOWBOR, 2010, p. 15).

    Outro dado mundial alarmante que com a crise financeira de 2008, o n-mero de desnutridos do planeta subiu de 900 para 1.020 bilhes, em particular por-que houve um deslocamento de aplicaes especulativas de papis financeiros para commodities, encarecendo os gros (LOPES; SACHS; DOWBOR, 2010, p. 15).

    Particularmente, em relao ao Brasil, s para darmos mais exemplos, basta um acesso rpido ao site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (www.ibge.gov.br) para constatarmos que continuamos, ainda hoje, com mais de 14 milhes de anal-fabetos absolutos e que ainda convivemos com altos ndices de mortalidade infantil, de desnutrio, de trabalho infantil, de violncia urbana, de m distribuio de renda etc.

    Mas estes e outros dados, quantitativos e/ou qualitativos, da realidade mundial, latino-americana e brasileira, apesar de conhecidos e reconhecidos por nossos autores, no aparecem neste livro de forma exaustiva, como sim-ples constatao e enumerao de uma infinidade de problemas e estatsticas a serem enfrentados. No este o caminho escolhido na organizao desta obra. O caminho adotado foi o da fundamentao, da proposio, da busca de alternativas e do relato de experincias exitosas que, felizmente, indicam-nos perspectivas mais otimistas ou, como diria Paulo Freire, esperanosas, no por sermos teimosos, mas por imperativo existencial.

    Entendendo que o itinerrio adotado pelos organizadores e autores dos

    3 Vide LOPES, Carlos; SACHS, Ignacy; DOWBOR, Ladislau. Crises e oportunidades em tempos de mudana. In: DOWBOR, Ladislau, SACHS, Ignacy; LOPES, Carlos (Org.). Riscos e oportuni-dades: em tempos de mudanas. So Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire; Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2010. p. 15.

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    treze artigos deste livro, organizados nos trs captulos j citados, foi sempre intencionalmente crtico, criativo, situado tica, esttica e politicamente, tenho a honra e o prazer de apresentar, sinteticamente, o que o leitor e a leitora encon-traro, de forma analtica, nas prximas pginas.

    No item I.I, Francisca Pini e Ana Lvia nos falam da histria da educao em direitos humanos desde 1948, quando, segundo elas, tal temtica adentrou na agenda mundial. Aprendemos com elas diferentes abordagens sobre o tema e conhecemos os movimentos de direitos humanos que, num crescendo, forta-leceram e visibilizaram as lutas que tratam da dignidade da pessoa e da reafir-mao de seus direitos. As autoras mostram a importncia de ser o Brasil o ni-co pas que, desde 2010, possui um Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos, mesmo reconhecendo que ainda convivemos com grandes limites na concretizao do mesmo. Mas, afirmativamente, citam uma experincia de educao em direitos humanos, no municpio de Osasco (SP), que aponta ca-minhos e explica por que podemos entender a educao em direitos humanos como importante alternativa e exigncia ao mundo contemporneo.

    Celma Tavares, no item I.II do primeiro captulo, tambm se refere ao Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos, desde a aprovao de sua verso em 2003, e analisa os fundamentos da educao em direitos humanos, particularmente a partir da sua caracterizao no contexto da II Conferncia Mundial de Direitos Humanos, em 1993, que enfatizou a dignidade humana como fundamento dos direitos humanos e base da tica pblica. A professora Tavares se refere ao processo de criao de um sistema internacional de pro-teo dos direitos humanos desde 1945 e mostra como isso foi tendo reflexos na realidade brasileira mais atual. Conclui que j existem avanos no Brasil em relao educao em direitos humanos, mas que ainda existem muitas carn-cias quando nos remetemos s prticas educativas nessa direo, o que, segundo ela, deve acontecer a partir das experincias cotidianas dos(as) educadores(as).

    No item I.III, a professora Francisca Pini estabelece nexos entre a educao em direitos humanos, os fruns e os movimentos sociais, procurando formular procedimentos metodolgicos resultantes da recente histria brasileira, a partir do contexto social da dcada de 1980, quando aqui se constri uma concepo de infncia e adolescncia. Ela nos fala da promulgao da Conveno Internacional da Criana, em 1989, pela ONU, e da sua ratificao no Brasil, o que contribuiu para fundamentar a Lei n. 8.069/90, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), que dispe sobre os direitos da criana e do adolescente. A professora Francisca Pini analisa tambm a histrica organizao do Frum Nacional, dos Fruns Estaduais dos Direitos da Infncia e da Adolescncia, das Conferncias Ldicas inauguradas em 1999, no contexto das Conferncias dos Direitos da Criana e do Adolescente e discute os desafios da participao popular no sentido da relao que esta participao estabelece com os movimentos sociais, visando efetivao dos direitos de expresso das crianas e dos adolescentes, mas sempre

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    respeitando as peculiaridades das suas condies de desenvolvimento. Em artigo intitulado Direitos humanos, tica da libertao e a democracia

    cosmopolita, o leitor e a leitora podero acompanhar a exposio do professor Edward Demenchonok que, no item I.IV deste livro, apresenta o debate sobre direitos humanos sobre dois enfoques distintos: o primeiro, representado pelos tericos neoconservadores e neoliberais, e o segundo, representado pelos que, segundo ele, defendem o fortalecimento do direito internacional dos direitos hu-manos e uma ordem cosmopolita perspectiva esta com a qual ele se identifica.

    Trata-se de um artigo de teor predominantemente filosfico, que analisa, sin-teticamente, os fundamentos dos direitos humanos desde a Declarao francesa de 1789 at os dias atuais. Poderamos dizer que o autor analisa o tema de John Locke a Paulo Freire, passando por Kant e Habermas, entre outros. Por fim, conclui que os direitos humanos combinam os aspectos morais-universais e legais, ambos necessrios para que haja justia. Portanto, para serem efetivamente realizados e concretizados, dependem de uma profunda reflexo no mbito do direito interna-cional e no apenas ser pensada e realizada no mbito dos Estados democrticos individuais. Mas, de toda forma, entende que uma nova ordem internacional requer a participao de todas as pessoas, de todos os povos e de todas as naes.

    Concluindo o primeiro captulo do livro, as professoras Gevanilda Santos, Maria Jos Pereira Santos e Mariana Galvo discutem os direitos humanos e as relaes tnico-raciais e de gnero. Analisam terminologias relacionadas ao tema, sob diferentes prismas, e nos convidam a uma longa reflexo relacionada incluso/excluso social.

    Neste artigo, nos sentimos desafiados a entrar profundamente na discusso de temas muito atuais, por exemplo, no debate sobre as polticas pblicas de aes afirmativas e direitos humanos. Refletem aqui sobre o machismo, sobre o racismo, sobre as vrias formas de intolerncia a serem superadas em nossa sociedade, prin-cipalmente diante de um contexto histrico que nos legou diferentes formas de injustia, que, para serem superadas, exigem o envolvimento de toda a sociedade e polticas pblicas relacionadas garantia dos direitos humanos, em todas as reas.

    O professor e psiclogo Clio Vanderlei Moraes inaugura o segundo captulo do livro abordando a formao de educadores sociais, com nfase necessidade de que todo processo formativo ressalte a noo de direitos. Segundo ele, esta um forma de educar e no apenas um contedo educativo. Depois de esclarecer ao leitor o seu entendimento sobre a expresso educao social, o autor considera absolutamente fundamental a formao de educadores nessa perspectiva, compro-metida com os direitos humanos. Ele oferece vrios exemplos de como vivenciar a educao social, unindo forma e contedo, e defendendo o dilogo como categoria fundamental para a efetivao de tais processos educativos.

    A professora Dra. Roberta Stangherlim, com base em sua larga experincia na formao de professores, discute esta temtica tambm na tica dos direitos humanos, entendendo a educao como processo de socializao que, afinal, nos

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    conforma como seres humanos e humanizados. Fundamentada na Lei n. 8.069/90 (ECA), na Lei n. 9.394/96 (LDBEN), na Lei n. 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da Histria da frica e da Cultura Afro-brasileira, na Lei n. 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da cultura indgena, no Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos, bem como em todo o pro-cesso da recente discusso da Conferncia Nacional de Educao (Conae, 2010), a autora reflete a formao continuada dos profissionais da educao. Depois de dis-cutir questes relacionadas gesto escolar, projeto poltico-pedaggico da escola, currculo, entre outros temas relacionados formao do educador, a professora Stangherlim considera necessria a formulao de polticas pblicas de educao em direitos humanos, oferecendo-nos importantes anlises nessa direo.

    Refletindo a no garantia do direito comunicao a todas as pessoas em nosso Pas, Celma Tavares e Ivan Moraes Filho discutem, no item II.III deste livro, o impacto deste fato em relao aos direitos individuais, coletivos e, principalmente, em relao ao exerccio da liberdade de expresso, de escolha e da democracia. Entendem a comunicao como direito humano social, poltico e explicam que a Constituio Federal de 1988 permite avanos nessa direo a partir do momento em que se insere no marco regulatrio desse direito. Fazem um breve histrico da evoluo desta problemtica no Pas, at chegarem ao surgimento da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expresso e o Direito Comunicao com Partici-pao Popular (Frentecom), em 2011, apontando novas perspectivas para o papel da comunicao como direito e afirmando a defesa de uma poltica pblica de co-municao no Brasil, mais inclusiva, democrtica e pautada nos direitos humanos.

    Discorrendo sobre Educao em direitos humanos na assistncia social, pensando mais especificamente nas polticas a ela relacionadas, o professor Clio Vanderlei Moraes fecha o segundo captulo deste livro reconhecendo significativos avanos nessa rea, em termos de polticas pblicas, o que a inclui na luta pela garan-tia dos direitos humanos. Considera ele tratar-se de um processo, de uma caminhada, cujo avano datado a partir da Constituio Federal de 1988, refletida, por exemplo, na Lei Orgnica da Assistncia Social (Loas), de 1993, e, por conseguinte, na regula-mentao do Sistema nico da Assistncia Social (Suas) e na aprovao da Lei Federal n. 12.435, sancionada em 06 de julho de 2011. O professor Moraes nos fala, por exemplo, da proteo social bsica, que representa uma grande inovao na nossa legislao atual, e da proteo social especial, conceitos fundantes a serem com-preendidos e vivenciados por todos os que se dedicam assistncia social. Explica a necessidade de superarmos vises mgicas e/ou superficiais sobre o tema e prope o resgate das dvidas sociais para caminharmos na direo da garantia do acesso aos direitos humanos, at hoje negados a significativas parcelas da sociedade brasileira.

    Inaugurando o terceiro captulo deste livro, que d centralidade edu-cao em direitos humanos em relao administrao pblica, temos a con-tribuio do juiz de direito Samuel Karasin, que nos apresenta a sua reflexo intitulada Sistema de Justia e os Direitos Humanos. Ele considera a ideia de justia o conceito mais universal a todas as pessoas, de todos os tempos. O

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    juiz de direito Karasin nos adverte para o fato de que a discusso sobre direitos humanos no privilgio das sociedades ocidentais e que, portanto, remete a todas as comunidades humanas, independentemente da geografia. Ele consi-dera necessrio um resgate histrico da origem e do desenvolvimento dos direi-tos humanos que, ainda hoje, encontram resistncias em diferentes sociedades por conta de suas diferentes referncias normativas, religiosas e filosficas. Por fim, faz breve meno Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e nos apresenta a sua compreenso sobre a ideia de Constituio enquanto ga-rantia maior do cidado perante o Estado.

    O professor da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, Dr. Roberto da Silva, escreve sobre educao de presos e educao em direitos hu-manos, considerando estes termos praticamente sinnimos quando na perspectiva da educabilidade social. O autor discute a necessidade de um projeto poltico--pedaggico para a educao no sistema penitencirio, levando-se em conta as es-pecificidades da formao de professores e a qualidade da educao a ser oferecida naquele contexto. Lemos neste artigo que a educao nas prises a mais nova fronteira da Educao, no sentido de, ao mesmo tempo, exigir e fortalecer a articu-lao entre polticas setoriais e potencializar a sinergia entre duas cincias peda-gogia e execuo penal, para citarmos literalmente o autor. Trata-se de artigo que nos convida a refletir para alm da prpria educao nas prises, que, conectada ao que de mais contemporneo se passa na educao de adultos, no Pas e no mundo, indica que todo processo formativo faa a relao entre educao e trabalho, ainda mais na educao nas prises, pois isso significa a garantia dos direitos humanos num cenrio em que tais direitos tm sido historicamente esquecidos. Isso favorece a integrao do preso a uma proposta de reabilitao penal durante o cumprimento de sua pena, conforme j est previsto na atual legislao brasileira, o que, por sua vez, exige de ns ainda mais efetivo acompanhamento de seu cumprimento.

    Tenho tambm o prazer de apresentar o artigo da professora Maria Jos Fava-ro, atual Secretria de Educao do Municpio de Osasco (SP), que nos traz, neste item III.III do terceiro captulo desta obra, sua prxis educacional e poltica, coerente com os princpios de uma educao cidad e de uma educao para a cidadania pla-netria. Ela fala de experincias educacionais relevantes na rea dos direitos humanos. Comprometida com a busca de coerncia entre discurso e ao, a Professora Maz, como ela mais conhecida, defende que cada Unidade Educacional elabore o seu prprio Projeto Eco-Poltico-Pedaggico, partindo de uma gesto democrtica efetiva e verdadeiramente participativa. Segundo ela, a ocupao de espaos uma forma de disseminar direitos, de superarmos prticas de excluso, de garantirmos a incluso no sentido amplo da palavra e de buscarmos construir uma educao em direitos humanos articulada ao pleno envolvimento dos gestores educacionais a este projeto e formao continuada dos educadores e educadores. Desta forma, estabelecemos a discusso sobre educao em direitos humanos, associada luta pela cultura da paz, ao reconhecimento e ao respeito diversidade cultural, em todas as suas dimenses.

    Chegamos ao texto que fecha este livro. Trata-se do artigo de autoria da profes-sora Juliana Fonseca, atual coordenadora da rea de Educao Cidad do Instituto

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    Paulo Freire, que aqui analisa a construo da educao em direitos humanos na escola pblica. De forma clara e objetiva, Juliana Fonseca resgata vrias experincias exitosas que, direta ou indiretamente, tm a ver com uma educao em direitos humanos, prticas estas relacionadas educao cidad. Ela se refere, por exemplo, a projetos desenvolvidos na Rede Municipal de Educao de Osasco (SP), tais como Educao para a Cidadania Planetria e Sementes de primavera; junto Rede Municipal de Educao de Salto (SP), tal como a formao de membros dos conselhos de escola e de encontros interconselhos; bem como experincia realizada com o municpio de Sorocaba (SP), pelo Instituto Paulo Freire, no qual se trabalhou com formao para gestores escolares, envolvendo toda a comunidade escolar na leitura do mundo e na Festa da Escola Cidad, metodologia freiriana comum s trs experincias. A autora destaca que no existem modelos ou receitas, mas, sim, desejos, aspiraes e sonhos que, coletivamente, so colocados em prtica na construo de um currculo emanci-pador e significativo a todas as pessoas participantes nestes processos. E, para garantir estes avanos, a autora tambm considera ser fundamental que estudantes, profes-sores, gestores e toda a comunidade escolar possam ser alcanados por programas educacionais que assegurem formao na perspectiva crtica dos direitos humanos, nas quais so trabalhadas atividades diversificadas que aliam arte, cincia, educao e poltica, incluso social e direitos humanos.

    Considero-me satisfeito por ter tido a oportunidade de tanto aprender com a leitura deste livro. E aproveito para esclarecer e pedir, tanto s autoras e autores como s leitoras e leitores, que entendam as minhas contribuies acima como sen-do textos parciais, que de forma alguma pretenderam dar conta da real abrangncia de cada um dos artigos que compem este importante trabalho. Tudo o que li nes-tas pginas reforam e aumentam minha esperana, sem espera, de continuar en-volvido, e ainda mais animado e fortalecido na busca de contribuir com processos educativos continuados, ticos, estticos, intertransculturais, intertransdisciplinares e voltados educao integral tambm em direitos humanos.

    Talvez possamos mesmo considerar, como sugeri no ttulo deste prefcio, que estamos com este livro inaugurando ou, ento, dando continuidade construo de uma Pedagogia dos Direitos Humanos, tamanha a importncia que todas as au-toras e todos os autores deram educao em direitos humanos. Se a pedagogia arte e cincia da educao, e considerando que Paulo Freire nos orientou a escrever-mos pedagogias, fica aqui mais este desafio: que possamos escrever, juntos, a nossa Pedagogia dos Direitos Humanos, na esteira dos fundamentos e das experincias que pudemos acompanhar neste livro to bem organizado por Francisca Pini e Clio Vanderlei Moraes, a quem cumprimento e, especialmente, mais uma vez, agradeo.

    Grande abrao a todas e a todos. So Paulo, 7 de setembro de 2011

    Paulo Roberto PadilhaDiretor de Desenvolvimento Institucional

    Instituto Paulo [email protected]

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    CAPTULO I FUNDAMENTOS DA EDUCAO EM DIREITOS HUMANOS

    i.i Educao Em dirEitoS HumanoS:abordagEnS tErico-mEtodolgica

    E tico-poltica

    Francisca Rodrigues de Oliveira Pini1Ana Lvia Adriano2

    Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.(FREIRE, 1987, p. 23).

    introduo possvel afirmar que desde 1948 a temtica dos direitos humanos tem

    adentrado na agenda mundial, por diferentes caminhos. Por outro lado, h duas dcadas mais intensamente, a temtica reconhecida tanto nos pases desen-volvidos quanto nos economicamente atrasados (ou em desenvolvimento), medida que os direitos humanos se inserem nas pautas dos meios de comuni-cao de massa, nos discursos polticos, nas lutas dos movimentos sociais, nos princpios das polticas sociais e nos temas de estudos e pesquisas acadmicas.

    No entanto, para que possamos discutir os percursos tericos e ticos legados a esta temtica, necessrio pontuarmos qual a concepo de direitos humanos, de homem, mundo e sociedade que fundamenta as nossas defesas e a que referncia de humanismo nos reportamos quando defendemos os direitos humanos como mediao para prticas crticas e emancipadoras.

    Partimos do entendimento de que este dilogo exige que se considerem duas premissas: a primeira, a de que os direitos humanos constituem-se como um pro-cesso que conquista legitimidade na sociedade burguesa e respondem diretamente aos seus antagonismos de classe, produo da desigualdade e explorao do homem pelo homem; a segunda, a de que os direitos humanos no apresentam forma e abordagem conceituais unvocas, mas respondem aos interesses de foras

    1 Assistente social, mestre e doutora em polticas sociais e movimentos sociais pela PUC/SP, pro-fessora de movimentos sociais e do Observatrio Regional de Polticas Pblicas da Faculdade Mau, vice-presidente da Abepss Sul II, diretora pedaggica do Instituto Paulo Freire, ativista do Movimento Nacional dos Direitos Humanos e filiada Andhep.

    2 Assistente social, mestre e doutoranda em servio social, pelo Programa de Ps-Graduao em Ser-vio Social da PUC/SP, professora nos Cursos de Servio Social da Faculdade Mau e da PUC/SP.

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    e classes sociais, em determinadas conjunturas e momentos histricos.Assim, partir de uma abordagem histrico-crtica dos direitos humanos

    consiste em compreend-la como estratgia de luta da classe trabalhadora, prin-cpio tico imprescindvel para a construo de outro bloco histrico (GRAMSCI, 2004), outra sociedade, mas tambm como uma profcua rea de interveno profissional, principalmente daquelas profisses que incorporam em suas ativi-dades uma dimenso terico-poltica e tico-social.

    Permeado por estas premissas, este texto abordar alguns aspectos concei-tuais dos direitos humanos, resgatar principais marcos da trajetria dos direitos humanos no Brasil e na Amrica Latina e refletir sobre as intervenes na pers-pectiva de uma educao em direitos humanos, sinalizando os desafios da cons-truo da prxis educativa em direitos humanos. necessrio sinalizar, ainda, que o recorte da educao em direitos humanos justifica-se pelo fato de entend--la como possibilidade pedaggica de construo de uma conscincia crtica, comprometida com um humanismo anticapitalista e valores emancipatrios.

    1. aSpEctoS concEituaiS doS dirEitoS HumanoSDiante dos inmeros estudos existentes sobre os direitos humanos, nas

    mais variadas tendncias entre as quais citamos o cristianismo, o liberalismo e o marxismo , priorizaremos o legado da teoria social crtica para compreen-der os direitos humanos e, consequentemente, apresentar nossa concepo de homem e de sociedade.

    Tal escolha terico-metodolgica implica em compreender o homem como um ser social, que se afirma pelo trabalho, isto , pela relao que este estabelece com a natureza e com os outros homens.

    Para Marx (2002, p. 140),

    [] a vida individual e a vida genrica do homem no so diferentes, por mais que e isto necessrio o modo de existncia da vida individual seja um modo mais especfico ou mais geral da vida gen-rica, ou por mais que a vida genrica constitua uma vida individual mais especfica e mais geral.

    Por meio do trabalho, o homem se humaniza, constri relaes sociais perpassadas por valores, costumes, tradies, culturas, sendo estas determinadas pelo modo de produo predominante em cada momento histrico. Assim, os direitos humanos apresentam-se como parte desse processo de reproduo so-cial, compreendidos como uma construo coletiva e histrica, uma objetivao construda pela ao humana.

    Ao afirmarmos, anteriormente, que os direitos humanos apresentam-se como construes da modernidade, isto , do projeto da sociedade burguesa, teremos

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    que expor brevemente as determinaes que permitem o seu surgimento e legi-timidade. Percorrendo alguns marcos formadores da modernidade, poderemos afirmar que com o Renascimento (sculos 13 e 14) e, posteriormente, com o Iluminismo (sculos 17 e 18) se inicia um conjunto de transformaes socie-trias que caracterizam o incio do mundo moderno; um mundo cuja sociabi-lidade permite ao homem tornar-se um ser consciente de suas necessidades e produtor das respostas a seus carecimentos. O indivduo e a sociedade passam a ser sujeitos histricos e a razo componente estratgico, eixo estruturante da modernidade , o instrumento capaz de redefinir as relaes sociais e compre-ender o passado, o presente e o futuro como criaes humanas.

    No entanto, a condio de sujeito histrico atribudo ao homem ir produ-zir-se em uma sociedade marcada pela guerra de todos contra todos (MARX, 2002). As revolues burguesas, principalmente a Revoluo Industrial, acen-tuam a expanso do projeto burgus na medida em que redefine as relaes de trabalho retirando deste o componente de afirmao do ser social , reproduz um mecanismo de explorao da fora de trabalho para acumulao da mais--valia e introduz a alienao como fundamento da sociabilidade humana.

    Segundo Marx (2002, p. 111),

    [] o trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais ri-queza produz, quanto mais a sua produo aumenta em poder e extenso. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior nmero de bens produz. Com a valoriza-o do mundo das coisas, aumenta em proporo direta a des-valorizao do mundo dos homens. O trabalho no produz ape-nas mercadoria; produz-se tambm a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporo com que produz bens.

    Os grandes impactos advindos da urbanizao exacerbada, do mercado de trabalho assalariado e da notria fissura entre os dois componentes an-tagnicos e interdependentes (capital e trabalho), potencializam os limites e contradies da modernidade. A questo social 3 evidencia-se no palco das so-ciedades europeias, exigindo formas de enfrentamento legtimas, legais e pol-ticas. Nesta esteira, os direitos, em especial aqueles que asseguram a dignidade do homem, constituem uma das formas de enfrentamento da desigualdade, medida que se expressa como resposta s lutas e reivindicaes da classe trabalhadora

    3 Entendemos por questo social a contradio entre capital e trabalho. O desdobramento da ques-to social tambm a questo da formao da classe operria e de sua entrada no cenrio poltico, da necessidade de seu reconhecimento pelo Estado e, portanto, da implementao de polticas que de alguma forma levem em considerao seus interesses (IAMAMOTO, 2008, p. 126).

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    ao mesmo tempo em que se pode tornar tambm um instrumento de repro-duo da ordem.

    Esse carter contraditrio dos direitos humanos o que nos permite tra-balhar a nossa primeira premissa, isto , entend-los como um fenmeno que se potencializa e legitima com o advento do capitalismo, sem desconsiderar as questes humansticas presentes na sociedade grega, no feudalismo e em outras organizaes societrias. Refletindo ideias, projetos e interesses das classes so-ciais, os direitos humanos afirmam-se nas revolues burguesas e nas lutas do proletariado, mediante os valores da liberdade, cidadania e igualdade4.

    Apresentadas, sucintamente, a natureza dos direitos humanos e algumas determinaes que possibilitaram seu histrico, exporemos brevemente alguns elementos para a anlise da nossa segunda premissa: algumas expresses e concepes acerca dos direitos humanos, no que tange ao cenrio brasileiro e latino-americano. Enfrentar este debate exige que compreendamos os direitos humanos como construes scio-histricas, cujas particularidades so atribu-das pela formao social de cada pas ou continente.

    2. dirEitoS HumanoS no braSil E na amrica latinaO sculo 20 considerado o mais terrvel e mais extraordinrio da his-

    tria humana (HOBSBAWM, 2002, p. 11) parece ser a arena mais propulso-ra para o adensamento das contradies provocadas pelo capital. Hobsbawm (2002) classifica este sculo como breve, polmico, difcil e extraordinrio. Tais adjetivos se apresentam, na verdade, como parmetros de anlises, na medida em que a sobrevivncia da humanidade, [] o grande edifcio da civilizao do sculo XX desmoronou-se nas chamas das guerras [...] ele foi marcado pela guerra, viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os ca-nhes se calavam e as bombas no explodiam (idem, p. 32).

    A dizimao em massa de seres humanos nas duas guerras mundiais 1 guerra mundial (1914-1918) e 2 guerra mundial (1939-1945) , o investimento desmedido na indstria blica, o fortalecimento dos governos totalitaristas na Alemanha e na Itlia, apoiados nos diversos continentes, o fortalecimento do Estado burgus e dos Estados Unidos rumo ao domnio total e absoluto do mundo, direcionam as construes tericas, polticas, ideolgicas e culturais do sculo 20, com posicionamento poltico que podem reforar ou resistir aos

    4 A noo de liberdade era defendida pela burguesia nesse momento de sua histria porque era compatvel com seus anseios de pr fim a quaisquer restries s suas atividades. No deve-mos nos esquecer, entretanto, de que, em sculos anteriores, a prpria burguesia gira de forma claramente contrria liberdade (como, alis, viria a fazer tambm em sculos subsequentes), por exemplo, quando apoiaria o absolutismo e as prprias polticas mercantilistas que agora combatia. Alm disso, as noes de liberdade e igualdade eram entendidas, no sculo XIX, de forma bastante restrita: eram a liberdade e a igualdade burguesas e no se estendiam massa (ANDERY, 2001, p. 283).

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    processos colocados histrica e conjunturalmente. nesse cenrio de contradies que os direitos humanos se inserem

    na agenda poltica e social na Amrica Latina e no Brasil, sendo a educao a rea privilegiada de reflexo sobre esta temtica.

    Podemos afirmar que o primeiro momento marcado por um perodo de ditaduras. Os golpes militares no Brasil e Bolvia, em 1964; na Argentina, em 1966 e 1976; na Bolvia, novamente, em 1971; Chile e Uruguai, em 1973. (SADER, 2003, p. 104).

    Esse momento considerava os direitos humanos como forma de resis-tncia, afinal os direitos civis, polticos e sociais foram arrancados de todos os cidados pelo sistema repressor.

    Momento de intensa formao poltica dos jovens e com isso resultou prticas e metodologias no mbito da educao popular, que mais tarde influen-ciariam a educao escolar.

    Conforme Torres (2002, p. 47),

    [...] na Amrica Latina, os modelos de educao popular derivam da original pedagogia do oprimido de Freire, desenvolvida na d-cada de 60, e esto relacionados com a tradio de educar a classe operria em Espanha no sculo XIX, que evoluiu at a Guerra Civil (1936-1939) e, mais tarde, continuou na Amrica Latina, ca-racterizada pelo projeto liberal de instruo pblica. A educao popular e a educao pblica (educao gratuita, obrigatria e se-cular) foram, em certa altura, sinnimos e, as experincias de Freire dos anos 60 serviram para construir e recriar o significado da expe-rincia da educao pblica ou educao para todos.

    A realidade social conceito-chave para compreender as disparidades econmicas e sociais; o dilogo, princpio fundante para construir relaes; a conscincia crtica, elemento essencial para transformar a situao opressora5.

    evidente que se trata de sujeitos polticos que estavam na contramo do sistema autoritrio, sendo esse processo vivido por quem discutia alternativa educao escolar, por meio da educao popular. Este movimento ocorreu de diferentes maneiras na Amrica Latina.

    Essas conquistas so resultados da luta de classes.

    Ao longo da histria, os diversos movimentos de Direitos Humanos, como de mulheres, negros, homossexuais, vo dando visibilidade s

    5 Para aprofundar a reflexo formulada por Paulo Freire sobre o dilogo, ler Educao como prtica da liberdade (1983) e Pedagogia do oprimido (2005), para aprofundar a compreenso sobre educao bancria e relao opressor/oprimido.

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    suas lutas especficas e aos diferentes aspectos da discriminao e

    da desigualdade social... Na verdade, a necessidade de reivindicar direitos j atesta a sua ausncia na vida social, donde se evidencia que em dadas condies histricas a sua universalidade tende tambm a se tornar abstrata (BARROCO, 2008, p. 13).

    Outra fase que marca a discusso dos direitos humanos o perodo de 1980 a 1990. Nesse perodo, os direitos humanos foram institucionalizados, pois, a partir de 1986, os institutos polticos vo sendo reconstitudos na Am-rica Latina em diferentes momentos.

    No campo da educao, esse perodo no alcanou a discusso que as-segurasse a politicidade dos contedos curriculares, mas os direitos humanos aparecem, por meio de disciplinas como formao cvica, formao cidad. Esse perodo marcado pela euforia, entusiasmo, porque os quadros que so-breviveram no exlio regressaram aos pases de origem e continuaram lutando por democracia de base.

    possvel afirmar que o retorno de Freire, em 1980, ao Brasil e tantos outros intelectuais contriburam com a discusso e aprovao do sistema nor-mativo brasileiro, por meio da assembleia constituinte e, posteriormente, a consolidao da Constituio Federal do Brasil, sendo a primeira na histria a assegurar, do ponto de vista jurdico e social, o Estado democrtico brasileiro. No entanto, a distncia entre lei e realidade vivida cotidianamente em diversos cantos deste Pas, mas possvel identificar os avanos conquistados quando se compreende a lei como instrumento poltico e social.

    No campo da educao brasileira, o momento de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educao de So Paulo (1989-1991), o qual promoveu mudanas estruturais na forma de conceber a educao, a gesto e as prticas educativas (TORRES, 2002), foi marcante para referenciar os municpios brasileiros na for-mulao de outras possibilidades de pensar, fazer e gestar a educao pblica.

    Tais avanos foram interrompidos pela conjuntura poltica nacional e in-ternacional, tendo em vista o projeto neoliberal em curso, o qual contribuiu com a desestruturao da Amrica Latina, com o desemprego em massa, pro-duzindo mais misria e mais desigualdade.

    O Estado brasileiro, para atender os ditames do Banco Mundial e do Fun-do Monetrio Internacional, adotou a poltica de corte de gastos pblicos, com a privatizao de empresas estatais, e precarizou os direitos sociais recm-con-quistados no marco legal.

    Conforme Pini (2006, p. 31),

    O neoliberalismo no mundo surgiu no perodo ps II Guerra Mun-dial, em especial na Europa e na Amrica do Norte, regies em que o

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    capitalismo se encontrava mais avanado. Segundo o movimento ne-oliberal, afirma Hayek, um dos precursores tericos, o Estado deve

    ser livre e seguir as regras do mercado. Para tanto, deve combater o Estado de Bem-Estar Social, que, de certo modo, no permite a liberdade das pessoas e a concorrncia, fatores necessrios para a prosperidade de todos.

    Nesta conjuntura adversa que os movimentos sociais discutem direitos humanos correlacionando foras polticas e ideolgicas na defesa de valores republicanos, em que se recusa o individualismo e, processualmente, se constri relaes de respeito, de cooperao e de cidadania ativa, vinculadas a decises polticas, em que todos tenham sua dignidade como ser humano. Este debate foi amadurecendo e parcela dos ativistas polticos em direitos humanos funda, em 1995, a Rede Brasileira de Educao em Direitos Humanos.

    Conforme Genevois (2007, p. 59),

    Partimos da dignidade da pessoa humana cada um um ser ni-co e diferente dos demais e, ao mesmo tempo, igual a todos e tem os mesmos direitos. Procuramos demonstrar que os direitos de cada um so direitos de todos. Essa noo essencial valoriza o homem e impe uma consequncia: somos responsveis pela sociedade em que vivemos.

    Essa concepo de educao vai contribuir com as reflexes do governo brasileiro para a formulao de um Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos (PNEDH), aprovado em 2006.

    O documento composto por cinco eixos de atuao: educao bsica; educao superior; educao no formal; educao dos(as) profissionais dos sistemas de justia e segurana; educao e meios de comunicao.

    A orientao do PNEDH de que a educao em direitos humanos seja promovida por meio de formao; sendo assim, todo o sistema educacional precisa assegurar diretrizes para a construo de uma educao comprometida com os princpios tico-poltico-pedaggicos da educao libertadora, valores e atitudes que sejam construdos e vivenciados a partir desse conhecimento da realidade e aes que concretizem esse modo de ser na sociedade.

    Partindo da formulao de Freire (1997), na obra Pedagogia da autonomia, so necessrios alguns saberes para desenvolver uma educao crtica que pro-mova relaes sociais capazes de transformar a situao de opresso e desi-gualdade geradoras de tantas violncias. Por isso importante reafirmar que os saberes cientficos, ticos, polticos e culturais, referenciados na teoria social crtica, oferecem um mtodo para intervir na realidade.

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    Nessa direo relevante destacar que, em pesquisa desenvolvida pelos cursistas no Curso de Educao em Direitos Humanos, oferecido em 2010, pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos na Costa Rica, identificou-se que a abordagem dada aos direitos humanos e educao em direitos humanos nos programas curriculares em universidades de dezoito pases da Amrica Latina isolada no curso de Direito e em alguns das Cincias Humanas.

    Os contedos no so explcitos em direitos humanos nas carreiras volta-das para a formao do docente (CURSO INTERDISCIPLINRIO EN DE-RECHOS HUMANOS, 2010). Dos dados apresentados, destaca-se o Brasil, com contedos em direitos humanos, em nvel de ps-graduao, sendo a rea jurdica e o recorte nos direitos da criana e adolescente a que mais desenvolve estudos neste campo.

    Em relao graduao os cursos de Servio Social e de Psicologia so os que oferecem algum tipo de formao em direitos humanos. O Brasil o nico Pas da Amrica Latina que conseguiu formular um Plano Nacional de Educao em Di-reitos Humanos at 2010. Cabe ressaltar que a recente reformulao nas diretrizes curriculares do curso de Pedagogia no contemplou as diretrizes do PNEDH.

    Na perspectiva de institucionalizar as aes em Direitos Humanos, desde 1990, diversas organizaes de direitos humanos vm se reunindo com o obje-tivo de socializar experincias sobre a efetivao dos Direitos Humanos Econ-micos, Sociais, Culturais e Ambientais estabelecidos no Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e nos Tratados oriundos das conferncias mundiais das Naes Unidas, como a Rio 92, Viena (1993), Copenhague (1995) e Beijing (1995). Estes marcos legais e a possibilidade de organizao social nos pases da Amrica (do Sul, ou somente Amrica, pois tem pases da Amrica Central engajados na PIDHDD) favoreceram a criao de uma Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e De-senvolvimento (PIDHDD), nos anos de 1990. No Brasil, mais precisamente em 2001, por meio de uma ao articulada com representaes de diversas ONGs que atuam no campo dos Direitos Humanos, foi assumida a responsa-bilidade de criar a Plataforma DHESCA Brasil, a qual tem orientado suas aes no monitoramento dos direitos humanos, na integrao regional e nas relatorias para promoo e proteo aos direitos humanos. Portanto, as aes de monito-ramento fazem parte dos compromissos assumidos pelos Estados signatrios dos tratados citados, bem como figuram para as entidades e movimentos da sociedade civil como espao participativo de aes de denncia de violaes e garantia dos direitos humanos.

    Essas aes vm sendo legitimadas pelos diversos organismos de direitos humanos, como um importante instrumento de acompanhamento, monitora-mento e orientao das aes estatais relativas ao cumprimento dos tratados de direitos humanos.

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    Nesse panorama, e considerando as violaes aos direitos humanos existentes no continente, podemos verificar que tanto no campo da forma-o quanto na mobilizao poltica, as aes dos movimentos sociais ainda so insuficientes, mas continuam sendo de extrema relevncia tendo em vista o ca-rter propositivo e de presso que exercem na sociedade e nos rgos pblicos.

    atuao Em dirEitoS HumanoS: ElEmEntoS cEntraiS para uma abordagEm Emancipadora

    No Brasil podemos afirmar que h experincias em diferentes territrios brasileiros que promovem, com o cotidiano escolar e com os demais espaos educativos, reflexes sobre a EDH. Essa atuao tem sido sistematizada por diferentes pesquisadores, o que tem possibilitado adensar um marco terico importante no campo dos direitos humanos.

    Diversos autores, como Rosemberg (1993), Didonet (2002), Mello (1999), tm refletido o lugar da infncia na sociedade, tendo a escola como a principal interlocutora. A garantia do exerccio da cidadania desde a in-fncia, no Brasil, conquistada com a Conveno dos Direitos da Criana (1989), da qual o Brasil signatrio. Nesta conveno, a criana reconhe-cida como sujeito de direito, um dos princpios da prioridade absoluta, o que significa poder se expressar diante das situaes vividas com os adultos e com os seus pares.

    Essa noo de cidadania ativa recente na histria da sociedade, confor-me Benevides (1998), considerando a herana autoritria e patrimonialista da sociedade brasileira.

    Para assegurar os princpios da prioridade absoluta, que concebem a criana e o adolescente como pessoas em condies peculiares de desen-volvimento, em face de seu desenvolvimento, o Brasil formulou o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), em 1990, fruto de ampla mobilizao social e como resposta s injustias cometidas contra crianas e adolescentes das camadas populares. No entanto ele foi formulado para assegurar a todas as crianas e adolescentes, independentemente de classe social, religio e etnia, o direito vida, educao, ao esporte, cultura e lazer, liberdade, res-peito, dignidade, profissionalizao, dentre outros, convivncia familiar e comunitria.

    Este conhecimento sobre a infncia j faz parte da gesto pblica es-colar de vrios municpios, podemos citar uma relevante gesto municipal, no campo educacional que o municpio de Osasco (SP). Neste municpio, a partir de 2006, a gesto pblica desafiou os trabalhadores da educao a refletirem sobre a concepo de educao cidad, entendida como pblica, presencial, estatal, democrtica, com participao ativa da comunidade esco-lar e de qualidade.

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    Conforme Freire (2001, p. 16),

    No devemos chamar o povo escola para receber instrues, postulados, receitas, ameaas, repreenses e punies, mas para participar coletivamente da construo de um saber, que vai alm do saber de pura experincia feito, que leve em conta as suas ne-cessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe trans-formar-se em sujeito de sua prpria histria.

    Neste sentido, o municpio de Osasco (SP) tem promovido uma nova cul-tura poltica com a participao da infncia, quando instituiu o processo de reo-rientao curricular da educao infantil e do ensino fundamental. Trouxe para o mbito escolar a reflexo sobre a concepo de educao, infncia, espaos de aprendizagens, pautado por um referencial da psicologia histrico-cultural (FAVARO, 2009).

    Partindo da compreenso de Mello (2008), a escola precisa assegurar um ambiente acolhedor, afetuoso e respeitoso, que assegure experincias educativas que desenvolvam todos os sentidos, para o pleno desenvolvimento da criana e de sua autonomia.

    Outro aspecto relevante desenvolvido com as crianas pelo poder pblico municipal de Osasco, como experincias de democracia participativa dentro das escolas, e que j est consolidado como poltica pblica educacional, o exerccio da cidadania desde a infncia6. Seu objetivo o de assegurar espaos de partici-pao ativa da criana e do adolescente na vida escolar, com direito expresso, para a construo de relaes sociais sustentveis e contribuir com a construo do Projeto Eco-Poltico-Pedaggico7. Freire (1997, p. 160) enfatiza que

    [] a alegria no chega no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca, E ensinar e aprender no podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.

    A boniteza desse processo pode ser identificada na convivncia escolar, na sociabilidade dos sujeitos que integram a ao e no reconhecimento das crianas e adolescentes como sujeitos de direitos.

    Os espaos dos colegiados para decises relativas comunidade escolar discutir as questes relativas sociedade de modo a implicar docentes, gestores

    6 Esta ao teve incio com a assessoria do Instituto Paulo Freire, no perodo de 2007 a 2010. A asses-soria atuou com as crianas das Emeis e Emefs. A partir de 2011, o IPF passou a atuar na formao dos educadores da Rede para que dessem continuidade ao desenvolvimento da poltica pblica.

    7 Compreendido como o Projeto que assegura os princpios e diretrizes da poltica educacional da unidade educacional e dialoga com os aspectos: ticos, estticos, polticos, sociais, pedaggicos, culturais e econmicos da referida unidade.

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    e educandos(as) nesse processo de construo de novas respostas a velhos pro-blemas e vivenciar cotidianamente essa nova cultura democrtica outro exem-plo de implementao de canais que promovem o debate acerca dos direitos humanos. Conforme Antunes (2002, p. 24),

    de fundamental importncia a compreenso do papel poltico do Conselho como instncia deliberativa e coletiva, que, por um lado, no exclui ou nega as responsabilidades legais inerentes aos cargos existentes na escola, e, por, outro, conta com a contribuio daqueles que participam nas tomadas de decises.

    A democratizao das decises com participao da sociedade faz parte do marco jurdico brasileiro, desde 1988, no entanto no se efetivou como cul-tura poltica e tampouco como parte da educao em direitos humanos.

    Sendo assim, podemos indagar: Como esses contedos efetivamente esto in-corporados nos contedos curriculares? A inter-relao entre os diversos contedos do currculo escolar est se efetivando no cotidiano? O que queremos com a educao em direitos humanos? Espao no currculo. Esse processo precisa ser mediado pelo dilogo, pois esta perspectiva educa para e com a diversidade, constri relaes de companheirismo e de trabalho coletivo. preciso convencer a sociedade de que o valor e o sentido deste conhecimento consistem no reconhecimento do outro como igual, ver o outro retratado em voc, por isso voc no o destri. Desse modo, a construo de tais conhecimentos, valores e atitudes educa para a cidadania planetria.

    Na compreenso de Gadotti (2010, p. 44-45),

    Educar para a cidadania planetria implica muito mais do que uma filosofia educacional, do que o enunciado de seus princpios. A edu-cao para a cidadania planetria implica a reviso dos nossos curr-culos, uma reorientao de nossa viso de mundo da educao como espao de insero do indivduo no numa comunidade local, mas numa comunidade que local e global ao mesmo tempo... A sobre-vivncia do planeta Terra, nossa morada, depende da conscincia socioambiental, e a formao da conscincia depende da educao.

    Todas essas referenciais fazem parte dos contedos a serem desenvolvidos pela educao em direitos humanos nos diversos espaos educativos.

    A educao em direitos humanos poltica, por isso, transformadora. A forma como cada indivduo atua na sociedade e se envolve com projetos cole-tivos compem elementos de sua postura tica diante da vida.

    Referimos aqui as escolhas que podem transformar uma realidade social ou mant-la em uma situao de opresso.

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    Nos exemplos apresentados, a partir da experincia de Osasco, tanto com o exerccio da cidadania desde a infncia quanto nos colegiados es-colares, fica evidenciado que a escola no parou para discutir tais questes e fazer projetos episdicos e pontuais. Ela pautou isso como demanda a ser trabalhada no processo de ensino e aprendizagem, por isso con-quistou espao no currculo, como o ensino de matemtica, to necess-rio ao desenvolvimento humano da criana, desvelando a necessidade de potencializar o protagonismo de todos os que compem e constroem a educao e a vida escolar, potencializando-os enquanto sujeitos de classe, seres histricos.

    3. dESafioS da conStruo da Educao Em dirEitoS HumanoS A conjuntura atual tem exigido agilidade para acompanhar as trans-

    formaes no mundo do conhecimento. So inmeras ferramentas tecnolgi-cas que so disponibilizadas para a humanidade. Nesse contexto, a luta nesse campo a democratizao do mundo digital, que ainda permanece inacessvel ao conjunto das populaes em nvel mundial. A responsabilidade tica da so-ciedade do conhecimento, comprometida com um projeto social emancipat-rio, encontra-se na articulao e interligao do trabalho, de modo que o conhe-cimento seja instrumento de democratizao da vida em sociedade. No entanto, em um Pas com baixa densidade participativa, como o Brasil, a insero na vida poltica torna-se privilgio de algumas camadas sociais.

    O mundo est em guerra. As sociedades convivem muitas vezes com a insegurana, com a impunidade, com o medo e com uma verdadeira cultura da violncia que se manifesta na atualidade de diferentes formas e nos diferentes espaos sociais, marcadamente nas nossas escolas. E no h respostas simples para problema de tamanha complexidade. (PADILHA, 2005, p. 170).

    Em decorrncia da complexidade da sociedade contempornea, da centralizao do poder econmico e poltico pelas potncias mais ricas, pre-cisamos formular novas alternativas de lutas que nos mostrem sadas para a socializao do poder no mundo. Esse sentido de horizonte mobiliza os

    [] mltiplos sujeitos coletivos, alm de propugnar a diviso do poder por meio da sua descentralizao; esse reconhecimento do pluralismo, contudo, no anula antes impe a busca constante da unidade poltica, da formao de uma vontade geral ou coletiva, hegemnica, a ser construda pela via da negociao e do consenso. (COUTINHO, 2000, p. 37).

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    Uma sociedade democrtica quando privilegia a garantia de direitos, distanciando-se da cultura do privilgio e do favor. Prticas democrticas cons-troem interesses comuns e processualmente reduzem as desigualdades, pois sua eliminao em outra ordem societria.

    Os desafios para a efetivao da educao em direitos humanos exigem a

    compreenso de como est estruturada a sociedade contempornea, para apre-ender o significado das relaes sociais, a relao do Estado e a representao

    poltica. Barroco (2008, p. 13) reflete que

    [...] o capitalismo contemporneo se caracteriza pela extrema fragmentao dos processos sociais e de suas mediaes e con-tradies. Sem a devida apreenso dos vnculos que sustentam as relaes dos indivduos no tecido social, o senso comum e as teorias que adotam como fundamento a negao desses vnculos ocultam a relao entre os indivduos sociais e sua condio de classe, sua insero no mundo do trabalho, negando a sua capa-cidade de forjar o amanh; ignoram a processualidade histrica, afirmando a vigncia do efmero, a inexistncia de um futuro pro-jetado politicamente.

    Por isso, a importncia de compreender a construo dos direitos humanos, como processo histrico e fruto das lutas sociais, e em permanente avaliao.

    Nesse sentido, a educao em direitos humanos se apresenta como uma alternativa de sociabilidade ao mundo contemporneo, pois seus princpios rompem com a lgica de uma educao geral, na medida em que forja espaos de dilogo, crtica, conflito e transformao social. Constri valores republicanos e se apresenta como plataforma de uma nova cultura poltica, na medida em que reconhece os espaos de partici-pao poltica como lcus de socializao do poder. Estimula a cidadania ativa desde a infncia, em diferentes espaos educativos, porque compre-ende que um direito humano. Alimenta-se da realidade, intencional, dialtica e contraditria.

    O desafio que est posto o de superar a democracia liberal com a demo-cracia social, na construo da participao ativa, da afirmao do ser humano,

    como sujeito de sua histria e protagonista de um tempo em que o desenvolvi-mento social no esteja em funo do desenvolvimento econmico, mas sim da afirmao do ser humano e da vida em toda a sua diversidade.

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    i.ii Educao Em dirEitoS HumanoS: dirEtrizES E prtica Educativa

    Celma Tavares1

    introduoA construo de uma cultura dos direitos humanos que possibilite a vivn-

    cia destes no cotidiano das pessoas o objetivo maior da educao em direitos humanos (EDH). No Brasil, uma rea que vem sendo ampliada aos diversos espaos educativos, formais e no formais, desde a aprovao do Plano Nacio-nal de Educao em Direitos Humanos (PNEDH), em 2003.

    Educar nessa perspectiva no requer apenas que se assegure o direito hu-mano educao, mas principalmente que as prticas educativas sejam per-meadas pelos valores e princpios dos direitos humanos e estimulem posturas condizentes com o respeito dignidade humana.

    O essencial nessa questo que a EDH seja realizada por meio de uma prtica educativa que contribua para o empoderamento2 individual e coletivo das pessoas, provocando uma mudana cultural e de postura social em relao s violaes de direitos que conduzam ao.

    Para isso, um conjunto de aspectos relacionados com os direitos humanos e de diretrizes terico-metodolgicas especficas precisa fazer parte do trabalho de educadores e educadoras que se propem a atuar nesse mbito.

    Discutir esses aspectos e as diretrizes o propsito deste artigo, que se di-vide em trs partes. A primeira apresenta, de forma breve, os aspectos histricos e jurdicos dos direitos humanos. A segunda trata das diretrizes do PNEDH. A terceira aborda a prtica educativa, coerente com um trabalho na rea de EDH.

    aSpEctoS HiStricoS E jurdicoS doS dirEitoS HumanoSO passo inicial para o desenvolvimento da educao em direitos humanos

    a compreenso dos aspectos histricos e jurdicos que se relacionam com o campo dos direitos humanos, alm da concepo que se adota sobre estes.

    1 Doutora em direitos humanos pela Universidade de Salamanca, Espanha. Consultora em educa-o em direitos humanos. Coordenadora do ncleo de pesquisa e publicao da ONG Espao Feminista. Membro do Ncleo de Estudos e Pesquisas de Educao em Direitos Humanos, Di-versidade e Cidadania da Universidade Federal de Pernambuco. Autora de artigos sobre gnero, educao em direitos humanos e tortura.

    2 O empoderamento compreendido como um processo complexo, multidimensional, pessoal, no imposto e participativo, que se produz atravs da experincia (MNDEZ, 2006, p. 93). Manzano (2006, p. 37) explica que, nessa nova concepo, o empoderamento busca facilitar um processo multidimensional e interconectado de transformao das relaes sociais de poder.

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    Os direitos humanos so aqueles direitos que garantem a dignidade da pessoa, independentemente de sua condio de classe social, de raa, etnia, g-nero, opo poltica, ideolgica e religiosa, orientao sexual ou qualquer outro tipo. So concebidos tambm como histricos e universais, pois fazem parte da construo da humanidade e excedem a concepo de Estado e de Nao.

    Alm disso, constituem prerrogativas bsicas do ser humano que concre-tizam as exigncias da dignidade, da liberdade e da igualdade e que devem fazer parte da legislao dos Estados democrticos, mas que, ainda sem integrar as leis, no deixam de ter sua exigibilidade legitimada.

    Essa concepo de direitos humanos confere a eles trs caractersticas centrais: a universalidade, a indivisibilidade e a interdependncia, que foram aprovadas pela comunidade internacional durante a II Conferncia Mundial de Direitos Humanos (1993)3.

    Antes de abordar os citados aspectos, entretanto, indispensvel indicar o que fundamenta esses direitos, ou seja, sua razo de ser, e o que justifica sua importncia, valor e necessidade de existncia.

    Seguindo uma linha coerente com o conceito anteriormente adotado, a razo de ser dos direitos humanos a dignidade humana. Nesse sentido, a compreenso de que toda pessoa deve ser respeitada pela dignidade que lhe inerente, pois ela um valor absoluto que o ser humano possui por constituir-se em um fim em si mesmo e no um meio (KANT, 1989).

    A dignidade humana, portanto, , reconhecidamente, o fundamento dos direitos humanos. Ela universal,4 representa a base de nossa tica pblica5. O que significa que no apenas um valor moral, mas tambm hoje um referente do pensamento moral, poltico e jurdico, e para este ltimo alcana o papel de fundamento dos valores, dos princpios e dos direitos (PECES--BARBA, 2003, p. 66).

    Ademais, desde a formao do Sistema Internacional de Direitos Huma-nos, a dignidade o fundamento de seus instrumentos normativos, iniciando pelo texto da Declarao Universal de 19486.

    3 A I Conferncia Mundial de Direitos Humanos, realizada em Istambul, Turquia, em 1968, re-presentou, segundo Canado Trindade (1998), a passagem da elaborao dos primeiros instru-mentos internacionais para a etapa de sua implementao. J a II Conferncia, realizada em Viena, ustria, contribuiu no processo de anlise para o aperfeioamento desses mecanismos de proteo internacional.

    4 De acordo com Mocho i Pascual (2000, p. 31), a dignidade pertence a todos. Qualquer limite ou fronteira que exclua a algum ser humano de sua dignidade ilegtimo. Uma dignidade parcial, no uni-versal, desde o ponto de vista da dignidade, seria uma contradio, uma auto-leso, uma mutilao.

    5 Refletindo sobre a dignidade, afirma Peces-Barba (2003, p. 50): uma descrio das dimenses de nossa condio, o fundamento de nossa tica pblica, porque limita o mbito de sua ao, para realizar o projeto em que consiste o ser humano.

    6 No prembulo da declarao, pode-se ler: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e seus direitos iguais e inalienveis o funda-mento da liberdade, da justia e da paz no mundo.

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    Os aspectos histricos e jurdicos dos direitos humanos, que esto forte-mente relacionados, igualmente, assinalam sua razo de ser.

    Resumindo o processo histrico de evoluo dos direitos humanos, Levin (1985, p. 12) analisa que a idia de regras comuns a todos os seres humanos, sem discriminao, teve origem h muitos sculos. Contudo, apesar do princ-pio da igualdade ter sido padro dos direitos polticos, sempre eram apresenta-dos argumentos como o de superioridade para no reconhecer os mesmos direitos para todas as pessoas.

    A partir do sculo 16, segundo Dornelles (1989, p. 18), formulou-se a moderna doutrina sobre os direitos naturais. Nesse momento, tratou-se de explic-los no mais com base no direito divino, mas sim como a expresso racional do ser humano.

    Os ltimos duzentos anos da histria da humanidade foram marcados por grandes lutas travadas contra as correntes de opresso e explorao. Essas lutas traziam os ideais dos direitos humanos, explicitados em declaraes de diferen-tes momentos histricos. Nesse contexto, destaca-se a Declarao de Direitos da Virgnia (Independncia Americana), de 12 de junho de 1776, e a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, da Revoluo Francesa, de agosto de 17897.

    Seguindo essa trajetria, ainda no sculo 18, os direitos naturais foram re-conhecidos como direitos legais e se tornaram um dos elementos fundamentais de algumas Constituies. J nos sculos 19 e 20, esse princpio foi adotado por vrios Estados europeus, latino-americanos e asiticos e completado pelo enuncia-do de novos e importantes direitos sociais e econmicos (LEVIN, 1985, p. 13).

    Todo esse processo resultou na criao de um sistema internacional de proteo dos direitos humanos, que recente de 1945. Uma das principais preocupaes nessa poca foi transformar os direitos humanos em referencial tico para pautar as aes da comunidade internacional aps a Segunda Guerra Mundial. Surge, assim, a etapa de internacionalizao dos direitos humanos, considerada por Peces-Barba (2003) a ltima etapa no processo mais geral de evoluo dos direitos humanos8.

    Esse movimento de internacionalizao permitiu a organizao de um sis-tema normativo internacional de proteo desses direitos, que adotou a prima-zia da pessoa humana em suas decises.

    A proteo internacional dos direitos humanos, conforme Quel Lpez (2003, p. 93-96), apresenta duas particularidades que a distingue dos demais tra-tados internacionais. A primeira que as normas de proteo de direitos humanos

    7 Comparato (1999, p. 103, 146) avalia que a Declarao de Independncia o primeiro docu-mento poltico que reconhece, a par da legitimidade da soberania popular, a existncia de direitos inerentes a todo ser humano. Sobre a Declarao de 1789, considera que ela representa o atestado de bito do Ancien Rgime, ao mesmo tempo em que foi, em si mesma, o primeiro elemento constitucional do novo regime poltico.

    8 Peces-Barba se refere, ainda, a duas etapas anteriores: a positivao e a generalizao.

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    so de natureza imperativa, ou seja, tm carter de ius congens, por responder a um mnimo jurdico essencial que a comunidade internacional necessita.9 A segunda que os Estados tm obrigaes gerais de proteo em relao a es-sas normas ante a comunidade internacional, que so obrigaes erga omnes. Essas normas, segundo Bobbio (1991), constituem um conjunto de direitos com carter absoluto10 e representam o ncleo duro dos direitos humanos.

    No Brasil, o incio da institucionalizao do Direito Internacional dos Di-reitos Humanos deu-se no contexto da redemocratizao. Ao longo da dcada de 1980, o pas ratificou a maioria dos instrumentos de proteo dos direitos humanos,11 que foram incorporados ao Direito brasileiro.

    A insero dos direitos humanos numa rede normativa/institucional, as-sim como a prpria evoluo e o fortalecimento dessa rea no Pas desenvol-veram-se, segundo anlise de Vigas e Silva (2005, p. 75-102), em trs fases distintas: a fase preparatria ou organizativa, a fase de construo de um sis-tema normativo e institucional de proteo e a fase de insero internacional consolidada e busca de implementao no ordenamento jurdico.

    O marco fundamental da mudana de postura do Estado brasileiro em re-lao a essa questo foi a Constituio Federal de 1988. O texto constitucional consagrou a prevalncia dos direitos humanos como um dos princpios que re-gem o Pas nas suas relaes internacionais (artigo 4) e estabeleceu a aplicao imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais (artigo 5, 1) (BRASIL, 2006).

    Por fim, o Brasil deu passos importantes, a partir da segunda metade dos anos de 1990, na formalizao de um conjunto de medidas governamentais na rea dos direitos humanos, entre as quais se destacam a criao de uma Secreta-ria de Direitos Humanos (1996), os Programas Nacionais de Direitos Humanos (PNDH) nas verses I (1996), II (2002) e III (2009) e o Programa Nacional de Educao em Direitos Humanos (PNEDH) de 2003 e 2006. Esses documen-tos, como polticas pblicas, definiram princpios, diretrizes e aes do Estado brasileiro no tocante promoo e defesa dos direitos humanos.

    9 Por outro lado, Quel Lpez (2003) ressalta que no so todas as normas de proteo dos direitos humanos que tm o status de norma imperativa e, normalmente, so os prprios rgos respon-sveis por aplic-las que declaram o carter de determinados direitos.

    10 Bobbio (1991, p. 58) entende os direitos com carter absoluto, como aqueles que: [...] so apli-cados em todas as situaes e para todas as pessoas, ou seja, que no podem ser limitados nem em casos excepcionais, nem em relao a esta ou aquela categoria de seres humanos.

    11 Alguns dos tratados ratificados foram: a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra a Mulher (1984); a Conveno Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1989); a Conveno contra a Tortura e outros Tratamentos Cruis, Desumanos ou De-gradantes (1989); a Conveno sobre os Direitos das Crianas (1990); o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos (1992); o Pacto dos Direitos Sociais, Econmicos e Culturais (1990); a Conveno Americana de Direitos Humanos (1992...

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    aS dirEtrizES do pnEdH Revisando o contexto de surgimento da EDH no Brasil, identifica-se que

    esse um campo recente, considerando que os perodos democrticos foram breves e frgeis. Em 1985, na ltima transio poltica, com a participao dos movimentos sociais na luta pela redemocratizao do Pas, esse tipo de educa-o comeou a tomar forma mais sistemtica (SILVA; TAVARES, 2010).

    Ao mesmo tempo em que se reconhece que a educao em direitos huma-nos, que faz parte do direito humano educao,12 tem avanado no contexto brasileiro nos ltimos anos, importante indicar que as prticas educativas que a incluem ainda no integram, de forma sistemtica, a cotidianidade dos espa-os de formao.

    Nessa perspectiva, os desafios que permeiam o desenvolvimento da EDH no Pas se vinculam seguinte situao: por um lado, desde a esfera normativa, vrios documentos internacionais, interamericanos e nacionais respaldam sua importncia e versam sobre a necessidade de sua efetivao13. Por outro lado, as limitaes existentes dificultam sua insero de forma mais ampla na sociedade. Limitaes que passam, entre outros pontos, pela falta de institucionalizao de sua prtica, pela insuficincia de formao especfica para os(as) profissionais e pela ausncia de materiais bibliogrficos sobre a rea.

    Contudo, todo o processo de organizao da sociedade brasileira no cam-po dos direitos humanos, a partir da segunda metade dos anos de 1990, con-seguiu inserir o tema com mais nfase nos programas governamentais, tendo como resultado imediato, em 2003, a elaborao do Plano Nacional de Educa-o em Direitos Humanos (PNEDH)14.

    Com o PNEDH, a educao em direitos humanos no Brasil ficou assim entendida:

    12 O Relatrio de 2002 do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (2002) recorda que o Protocolo de So Salvador estabelece que os pases signatrios devem tratar a EDH como parte do direito educao.

    13 Em 1993, o Plano de Ao de Viena, na Conferncia Mundial de Direitos Humanos das Naes Unidas, reconheceu a importncia da EDH. Entre 1995 e 2004, a ONU estabeleceu o Decnio das Naes Unidas para a Educao na Esfera dos Direitos Humanos. Em 2004, aprovou-se o Plano Mundial para a Educao em Direitos Humanos, que teve uma primeira etapa, de 2005 a 2009, para a integrao da EDH nos ensinos fundamental e mdio, e uma segunda etapa iniciada em 2010, que deve ser conclusa em 2014, dirigida educao superior e a programas de forma-o em direitos humanos para professores e professoras, funcionrias e funcionrios pblicos, polcias e Foras Armadas.

    14 Em 2003, com a criao, no mbito da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), do Comit Nacional de Educao em Direitos Humanos, formado por especialistas da rea, iniciou--se o processo de elaborao do PNEDH. Em dezembro do mesmo ano, lanou-se a primeira verso do Plano, para orientar a execuo de polticas, programas e aes comprometidas com a cultura de respeito e promoo dos direitos humanos. Entre 2004 e 2005, divulgou-se e debateu--se o PNEDH em encontros, seminrios e fruns, contando com a contribuio de represen-tantes da sociedade civil e do governo para aprimorar o documento. A verso mais recente do Plano foi conclusa em 2006.

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    [...] um processo sistemtico e multidimensional que orienta a for-mao do sujeito de direito articulando as dimenses de apreenso de conhecimentos historicamente construdos sobre direitos huma-nos; a afirmao de valores, atitudes e prticas sociais que expres-sem a cultura dos direitos humanos; a formao de uma conscin-cia cidad capaz de se fazer presente nos nveis cognitivos, sociais, ticos e polticos; o desenvolvimento de processos metodolgicos participativos e de construo coletiva; o fortalecimento de prticas individuais e sociais geradoras de aes e instrumentos a favor da promoo, da proteo e da defesa dos direitos humanos, assim como da reparao de suas violaes. (BRASIL, 2009, p. 25).

    Desse modo, foram definidos os princpios e as diretrizes para as aes go-vernamentais nessa esfera, constituindo-se num instrumento orientador das pol-ticas educacionais dirigidas promoo do respeito aos direitos humanos. Entre seus principais objetivos, est o de destacar o papel estratgico da EDH para o fortalecimento do estado democrtico de direito e o de orientar polticas educa-cionais direcionadas para a constituio de uma cultura de direitos humanos.

    O documento composto por linhas gerais de ao (desenvolvimento normativo e institucional; produo de informao e conhecimento; produ-o e divulgao de materiais; formao e capacitao de profissionais; gesto de programas e projetos; realizao de parcerias e intercmbios internacionais; avaliao e monitoramento) e por cinco eixos de atuao (educao bsica; edu-cao superior; educao no formal; educao dos(as) profissionais dos siste-mas de justia e segurana; educao e meios de comunicao).

    Em todos esses mbitos, a orientao do PNEDH de que a educao em direitos humanos seja promovida em trs dimenses: a) conhecimentos e habilidades; b) valores, atitudes e comportamentos; c) aes.

    O PNEDH tem como princpios a igualdade, a dignidade, a democracia e todos os demais relacionados com a concretizao dos direitos humanos. Alm de considerar a indivisibilidade e a interdependncia entre os direitos.

    No campo das suas diretrizes, Viola (2010, p. 33) destaca as seguintes:

    a) desenvolver uma cultura de direitos humanos; b) assegurar que os objetivos e as prticas a serem adotadas sejam coerentes com os valores e princpios da educao em direitos humanos; c) estrutu-rar-se na diversidade cultural e ambiental, garantindo a cidadania, o acesso ao ensino, permanncia e concluso; d) ser um dos eixos fundamentais da educao bsica e permear o currculo, a forma-o inicial e continuada dos profissionais da educao, o projeto

    poltico-pedaggico da escola e os materiais didtico-pedaggicos,

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    o modelo de gesto e a avaliao; e) ser orientada para a educao em direitos humanos, assegurando seu carter transversal e a rela-o dialgica entre os diversos atores sociais.

    A direo apontada pelo PNEDH para a educao em direitos humanos tem rebatimento direto na prtica educativa, em especial nos cinco eixos que compem o documento, porque o que esse tipo de educao pretende formar o sujeito de direitos que atue em consonncia com uma cultura de respeito ao ser humano15.

    Diante disso, to importante quanto o contexto e a evoluo da EDH sua insero nos espaos de formao, que precisa estar acompanhada por uma prtica educativa consonante com os princpios e valores dos direitos humanos.

    a prtica Educativa para a EdHA EDH deve basear-se em processos educativos crticos e ativos, que

    transformem as atitudes e condutas, por meio da participao e da vivncia dos direitos, e possibilitem a afirmao de uma cultura de direitos humanos (TA-VARES, 2007). Para isso, fundamental a compreenso da educao que no seja sinnimo de transmisso de contedos, e sim de formao integral do ser humano, e a adoo de uma prtica educativa que contribua para o empodera-mento individual e coletivo.

    Desse modo, a EDH deve estar pautada em um conjunto de saberes es-pecficos que so necessrios prtica do educador e da educadora em direi-tos humanos, definidos por Morgado (2001) como saber docente dos direitos humanos. De acordo com a autora, esse saber relaciona-se com outros trs: o saber curricular, o saber pedaggico e o saber experiencial16.

    Considerando que o processo deve ser contextualizado e construdo co-letivamente para tornar a pessoa sujeito da produo do saber, a metodologia, os contedos e os materiais e recursos a serem utilizados precisam ser adequa-dos para articular esses nveis de saberes indicados por Morgado. Em outras palavras, devem favorecer a percepo da realidade, sua anlise e uma postura crtica diante dela, trabalhando duas dimenses inerentes ao saber docente dos direitos humanos: a emancipadora e a transformadora.

    Esses saberes especficos para a efetivao da EDH, por sua vez, precisam

    15 Nesse sentido, importante recordar que A EDH considerada pelas Naes Unidas como o conjunto de atividades de capacitao e difuso de informao orientadas para criar uma cultura universal na esfera dos direitos humanos mediante a transmisso de conhecimentos, o ensino de tcnicas e a formao de atitudes (ORGANIZACIN DE LAS NACIONES UNIDAS, 1993, p. 14, traduo livre). Alm disso, abrange trs reas que esto integradas: a do conhecimento, a dos valores, atitudes e comportamentos, e a da adoo de medidas de promoo dos direitos humanos.

    16 O primeiro avalia que o currculo deve ser flexvel para adequar-se aos contedos de direitos hu-manos. O segundo corresponde s estratgias e aos recursos utilizados para articular contedos curriculares transversalidade dos direitos humanos; e o ltimo destaca que a vivncia desses direitos e a coerncia com sua promoo e defesa so essenciais.

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    incluir alguns princpios que se relacionam com seus aspectos conceituais: a) o princpio da integrao que deve ocorrer no campo dos temas, contedos e atividades; b) o princpio da recorrncia que significa que o aprendizado obtido na medida em que ele praticado uma e outra vez, em circunstncias di-ferentes e variadas; c) o princpio da coerncia que parte fundamental nesse ambiente, em especial entre o que se diz e o que se faz; d) o princpio da vida cotidiana; e) o princpio da construo coletiva do conhecimento; f) o princpio da apropriao em que, por meio dele, a pessoa se apropria do discurso cons-trudo e o recria (MAGENDZO, 2006, p. 67-70).

    Nesse mbito, igualmente, se estabelece a necessidade de uma prtica dia-lgica. Segundo o educador Paulo Freire, o comunicar-se, a palavra que faz o ser humano assumir sua condio humana. Assim sendo, somente o dilogo capaz de gerar um pensamento crtico. Sem ele no h comunicao e sem esta no h verdadeira educao (FREIRE, 2005, p. 96). Porque o saber democrti-co no pode ocorrer de forma autoritria. com o dilogo e a participao que se constri a autonomia das pessoas, num processo libertrio e de vivncia dos direitos. Para complementar essa viso, o ciclo de transformao possibilitado pela prtica educativa dialgica deve orientar-se pelas seguintes etapas: sensibi-lizar, indignar-se, atuar e comprometer-se.

    Sem esquecer, logicamente, que a perspectiva interdisciplinar e intercultu-ral devem permear essa prtica. Por um lado, a interao das reas do conhe-cimento permite ultrapassar os limites da simples descrio da realidade, esti-mulando as anlises e inferncias, assim como a compreenso e a interveno dessa mesma realidade. Por outro, a interao das culturas e o reconhecimento da diferena e da diversidade possibilita valorizar as realidades plurais do Pas.

    Alm disso, no campo metodolgico, Ramrez (2004, p. 11-12) identifica outra srie de princpios que permeiam a EDH:

    a) faz parte do direito educao e compreende um processo de aprendizagem e a produo de conhecimentos sobre o saber dos direitos humanos desde um enfoque interdisciplinar; b) tem um enfoque integral e indivisvel de todos os direitos, assim como a articulao e int