a crise de representação e o espaço da mídia na política

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A crise de representação e o espaço da mídia na política Rosângela Schulz Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (Brasil) e Professora da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). 10 Abstract. This article has as objective to discuss the interference of the journalistic field in policy, particularly, in the field of representation. It is compound of three parts: crisis of representation and the part of media in the transformation of models; effect of the journalistic field in the policy field and implications of this discussion in the Brazilian scenery. Keywords: Politics, Media, representation and Brazil Resumo. Este artigo tem como obje- tivo discutir a interferência do cam- po jornalístico no político, particu- larmente, no campo da representa- ção. É composto de três momentos: crise de representação e papel da mídia nas transformações do mode- lo; efeitos do campo jornalístico no campo político e implicações desta discussão no cenário brasileiro. Palavras Chave: Política, Mídia, re- presentação e Brasil.

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Ampliando o conceito de redução do dano? Uma visão desde a América Latina

Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria.v. 9, n.15, jan./jun., 2006, p. 33-57.

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A crise de representação e o espaçoda mídia na política

Rosângela Schulz

Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do RioGrande do Sul – UFRGS (Brasil) e Professora da Universidade de

Santa Cruz do Sul (UNISC).

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Abstract. This article has as objectiveto discuss the interference of thejournalistic field in policy,particularly, in the field ofrepresentation. It is compound ofthree parts: crisis of representationand the part of media in thetransformation of models; effect ofthe journalistic field in the policyfield and implications of thisdiscussion in the Brazilian scenery.

Keywords: Politics, Media,representation and Brazil

Resumo. Este artigo tem como obje-tivo discutir a interferência do cam-po jornalístico no político, particu-larmente, no campo da representa-ção. É composto de três momentos:crise de representação e papel damídia nas transformações do mode-lo; efeitos do campo jornalístico nocampo político e implicações destadiscussão no cenário brasileiro.

Palavras Chave: Política, Mídia, re-presentação e Brasil.

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Nas últimas décadas do século XX, a democracia representati-va tem estado sob olhares atentos em função de dois aspectos apa-rentemente contraditórios: por um lado, a convicção de que a de-mocracia é o melhor dos regimes e, por outro, a sensação de crisedo modelo. A contradição é logo superada ao compreender quenão se trata de uma crise da democracia como um todo, mas daconstatação dos limites da representação, fruto da complexizaçãoda própria sociedade. Muitas são as investigações que tentam con-tribuir para o entendimento da democracia representativa moder-na, e este trabalho se inscreve nestes tantos olhares e tem a preten-são de discutir a interferência do campo jornalístico no político,particularmente, no campo da representação. Esta discussão é basepara a investigação que desenvolvo tendo como tema a representa-ção no Brasil, onde procuro analisar o discurso da mídia impressasobre o Congresso Nacional, com o intuito de verificar quais asimplicações deste para a democracia representativa brasileira. Nestepaper, discuto a crise da representação e o espaço da mídia a partirde dois autores – Bernard Manin e Patrick Champagne – buscandocom estes conceitos analisar o discurso da mídia impressa brasilei-ra. O texto se divide em três momentos: no primeiro, trato da crisede representação e do papel da mídia nas transformações do mo-delo; no segundo, a discussão mais específica sobre efeitos do cam-po jornalístico no campo político e, por último, as implicações des-ta discussão no cenário brasileiro.

I

Se a idéia de um esgotamento do modelo democrático tem sidoafastada pelas discussões, a percepção de limites na forma de re-presentação se solidificou. No entanto, é salutar pensar a crise comoum fenômeno dentro de um contexto amplo, ligado ao processo deinstitucionalização da democracia representativa no ocidente, pro-cesso longo e conflitivo, como bem coloca Santos:

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Sua forma atual resultou de sedimentação e enraizamentohistóricos, antes que de engenharia iluminista e sectária [...]sabe-se que o perfil das democracias européias não foi pre-concebido por nenhum doutrinário, sendo resultado colateralda destilação de conflitos reais (1998, p. 151).

A democracia representativa com voto universal e eleições paratodos os cargos executivos e legislativos é resultado de um “proces-so histórico por vezes violento, sempre doloroso e, amiúde, fabricante desurpresas” (idem, p. 148). Em seu longo processo deinstitucionalização, o modelo sofreu significativas transformaçõese o atual momento parece apresentar um novo paradoxo: odistanciamento entre representantes e representados e o esgotamen-to dos partidos como local por excelência da disputa política.

Manin, na obra Principes du Gouvernement Représentatif, elabo-ra uma arqueologia do governo representativo, dividindo-o em trêsmomentos: Parlamentarismo; Democracia dos partidos e Democra-cia do público. Através da análise de cada um destes momentos,contribui não somente para a discussão das transformações sofri-das pelo modelo ao longo de sua constituição, mas também cominformações sobre o papel exercido pelos meios de comunicaçãopara o (re)desenho da representação.

1. No Parlamentarismo, segundo o autor, a escolha do repre-sentante estava relacionada à confiança e aos vínculos locais docandidato, sendo que os eleitos eram sempre os notáveis. O depu-tado eleito votava na assembléia conforme sua consciência. Nãoexistia uma relação direta entre a opinião pública e a expressão elei-toral. As discussões entre os representantes estavam restritas aoparlamento. Este modelo se esgota a partir da ampliação do corpoeleitoral e de um vasto número de cidadãos que passam a ter odireito do voto.

2. A democracia dos Partidos está vinculada ao nascimento dospartidos de massa e à ampliação dos números de eleitores. Estesdois fenômenos geram modificações no governo representativo: a

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fidelidade partidária e a expressão de pertencimento a uma classeentram em foco quando ocorre a escolha dos candidatos. O repre-sentante eleito deixa de ser o notável local, para ser o militante, ohomem do partido. Ghiglione e Bromberg salientam que na demo-cracia dos partidos “ce qui change, c’est l’objet de la confiance. Elle nes’adresse plus à une personnalité, mais à un parti (1998, p. 16). Segundoos autores esta confiança não se cristaliza em função de uma pro-messa eleitoral do candidato, mas de um sentimento depertencimento e de identificação; o que permanece similar é que,como ocorria no Parlamentarismo, o eleitor não conhece o projetodo partido, vota em função de uma crença.

A votação do representante eleito neste período está vinculadaao programa do partido. Existe uma coincidência entre a opiniãopública e a expressão eleitoral, já que o representante tem de pen-sar na reeleição e assim leva em consideração a opinião dos eleitos,bem como da oposição. A discussão não se restringe somente aoparlamento, ocorrendo também dentro dos partidos e entre eles.

As razões que levam a uma nova metamorfose do modelo nãoestão claramente delimitadas. Segundo Ghiglione e Bromberg, osfatores são: a erosão da clivagem direita/esquerda1 ; os efeitos dosufrágio universal; a mudança de atitudes e comportamentos doseleitores; o papel das mídias e, principalmente, da televisão. O con-traste entre os ideais democráticos - não cumpridos - e a democra-cia real é, para Bobbio (1986), o motivo da transformação pela qualestá passando a democracia representativa. Paul Hirst sugere que oproblema está na identificação da democracia representativa e dogoverno do povo o que para ele não passa de uma “falha típica dovocabulário democrático” (1992, p. 32). Medina sustenta que os fenô-menos atuais aparecem menos como marcas de uma crise do mode-lo do que como “[...] desplaziamentos y reacomodo en uma combinatóriade elementos presentes desde los orígenes de la democracia moderna”(MEDINA, 1998, p. 128)2 . Como se observa, existe um consenso en-tre os diversos autores de que ocorre uma transformação.

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A argumentação de Manin é que há uma simetria entre o queestá ocorrendo neste momento e o período de passagem do Parla-mentarismo para a Democracia do Partido: “hoje, como então, a idéiade uma crise de representação é um tema usual, o que nos leva a crer queestamos diante de uma crise é muito menos da representação como tal doque de uma forma particular de governo representativo” (1995, p. 7).Concluindo, o autor sugere que o que está em declínio “são as rela-ções de identificação entre representantes e representados e a determina-ção da política pública por parte do eleitorado” (idem, p. 7). São estasmodificações no próprio campo político que geram uma nova me-tamorfose do modelo de governo representativo, constituindo onovo tipo-ideal, elaborado por Manin, denominado democracia dopúblico.

3. Na democracia do público, a escolha do representante estávinculada à pessoa do candidato, à confiabilidade que o eleitor temem determinado candidato, na resposta aos termos colocados paraa escolha (os temas apresentados nas campanhas) e na presença docomunicador. Nas palavras do autor:

À présent, la stratégie électorale des candidats et des partiesrepose sur la construction d’images assez vagues, danslesquelles la personnalité des leaders occupe une placeprééminente, plutôt que sur la promesse de politiquesdéterminées. Enfin, le personnel politique est maintenantprincipalement constitué ou environné d’individusappartenant à des cercles particuliers, distincts du reste dela population par leur profession, leur culture et leur modede vie. La scène publique est dominée par un ensemble dejournalistes, d’experts en communication et de spécialistesdes sondages dans lequel on a peine à voir un refletreprésentatif de la société. Les hommes politiquesparviennent au pouvoir en raison de leurs talentsmediatiques, non parce qu’ils sont socialment semblabes àleurs électeurs ou proches d’eux. L’écart semble s’accroîtreentre le gouvernement et la société, entre les représentants etles représentés (idem, 1996, p. 249)

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Quanto à independência parcial dos representantes, o argu-mento de Manin é que as imagens determinam a escolha dos líde-res. Manin argumenta que, agora, os representantes têm de tratarde domínios muito mais amplos, que os problemas que discutem esobre os quais legislam se modificaram, bem como os interessesdos eleitores. Santos esclarece esta questão:

À medida que o processo de divisão social do trabalho avan-ça, especializam-se, como é natural, os interesses. Isso sig-nifica dizer que alguém capaz de representar, digamos, ele-tricistas e carpinteiros, ou proprietários de terras e exporta-dores, deixa de poder fazê-lo na extensão em que, ao se dife-renciar, esses interesses tornam-se potencialmente e, às ve-zes, de fato conflitivos. Quando os interesses se fracionamsurge a necessidade dos candidatos expressarem espectrocada vez mais amplo do eleitorado. Assim, enquanto os can-didatos buscam representar número cada vez maior de inte-resses, garantindo o mínimo de votos legalmente exigidos,os grupos de interesse exigem defesa cada vez mais específi-ca, singular e excludente (idem, 1998, p. 159).

Os partidos políticos também não saem ilesos deste novo qua-dro. Embora sejam o espaço institucional, por excelência, da dispu-ta política na representação, elaboram mudanças significativas, pois“sus referentes sociales; su grupo de referencia anterior (la classe obrera,los católicos o los francoparlantes) se va esfumando ante sus ojosobligándolo a buscar apoyos de todo el mundo” (MEDINA, 1998, p. 138).A ampliação do número de eleitores, a fragmentação de interessesdestes vastos contingentes populacionais, os diferentes sujeitos quetêm de ser atingidos pelos discurso dos candidatos, o grande lequede temas que tem de ser debatido nos pleitos eleitorais, entre ou-tros fatores, levam os partidos políticos à construção de programase plataformas muito amplos e impossíveis de serem cumpridos,projetando a frustração nos eleitores e a busca de outros locais deexpressão de reivindicações e/ou interesses. Em razão desta dis-tância entre os interesses, Manin afirma não existir coincidência

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entre as expressões eleitorais e aquelas não eleitorais da opinião,diferentemente do que ocorria na democracia dos partidos.

Esta multiplicidade de fatores em jogo leva a uma variação docomportamento eleitoral, tanto na postura do candidato, quanto nado eleitor. Tantos são os temas que os candidatos apresentam que“les électeurs semblent répondre aux termes du choix offert par les hommespolitiques, plutôt qu’exprimir leur identité sociale ou culturalle” (MANIN,1995, p. 284). Na democracia do público, o eleitorado aparece comoum público que apenas reage ao que é exposto na cena política, par-ticularmente através de imagens apresentadas na mídia.

Dois pontos, tratados por Manin, são fundamentais para estadiscussão: as pesquisas de opinião e a neutralidade relativa dasmídias. Manin valoriza as sondagens de opinião, pois “opèrent selonla structure formalle qui été considérée comme caractéristique de cettenouvelle forme du gouvernement représentatif: la scène et le public,l’initiative et la réaction” (1995, p. 296). Conforme o autor, o eleitoradoaparece novamente como um público que reage a uma dada iniciati-va política, pois este tipo de opinião não é uma expressão espontâ-nea da opinião popular; já que as questões propostas são anterior-mente elaboradas, os entrevistados apenas têm de responder3 .

Outra característica da democracia do público é que os canais(jornal, televisão, rádio e institutos de sondagem) onde se forma aopinião pública4 são relativamente neutros, no sentido de não esta-rem diretamente ligados a partidos políticos em competição, em-bora possam apresentar preferências políticas. A neutralidade rela-tiva das mídias na democracia do público é um contraponto à faltade neutralidade na democracia dos partidos, onde os meios de in-formação estavam atrelados aos partidos, como acontecia na Fran-ça, onde jornais expunham posições ideológicas bem definidas. Eleargumenta que atualmente isto não acontece, pois as informaçõessão veiculadas pelos diferentes meios de forma homogênea, nãoexistindo uma diferença gritante entre o que é noticiado em um ououtro veículo5 . Seguindo sua tese:

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le résultant de cette neutralisation relative des médias vis-à-vis des clivages partisans est que les individus forment icileurs opinions politiques en puisant aux mêmes sourcesd’information, quel que soit le parti politique dont ils sesentent proches (idem, 1995, p. 294).

O elemento novo aqui é que, embora os indivíduos formemopiniões divergentes sobre os objetos políticos, estas opiniões sãoconstruídas sobre objetos identicamente apresentados a todos e sãopercebidos de forma relativamente homogênea. Isso permite que aidentificação entre eleitor e candidato se forme a partir de prefe-rências sobre os objetos e não a partir de preferências partidárias.Uma conseqüência desta relativa neutralidade na divulgação deinformações é a volatilidade do voto, a existência de um novo elei-tor indeciso: o sujeito informado, interessado pela política e relati-vamente instruído. Em função da amplitude do número de eleito-res e de temas, os representantes ou candidatos têm que debaterem público, constituindo, desse modo, um novo local para a apre-sentação dos políticos e para o debate: as mídias. Assim, as assem-bléias deixam de ser o local por excelência da discussão do políticoe passam a dividir esse espaço com as mídias.

Sem dúvida, a arqueologia do modelo representativo de go-verno, elaborada por Manin, sugere uma série de novos elementospara serem considerados quando se tenta entender a representa-ção e, o que nos interessa particularmente, o espaço ocupado pelamídia nas modificações deste modelo. Se Manin deixa entreverque algumas das transformações que o campo político6 e o modelorepresentativo vêm sofrendo nas últimas décadas estão ligadas ainterferência do campo jornalístico, Patrick Champagne permite oaprofundamento do entendimento do espaço do campo jornalísticoe de seus atores.

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II

Em seu livro Fazer a Opinião: o novo jogo político, Champagne(1998), através da análise de uma manifestação de agricultores naFrança, discute o papel determinante da mídia na política. Sua po-sição é similar àquela manifestada por Manin. Se o último vê a mídiacomo o novo fórum de deliberação pública, Champagne afirma que:

O aparecimento, o desenvolvimento e, sobretudo, a difusãodos novos meios modernos de comunicação [...] implicaramum deslocamento progressivo do centro de gravidade doespaço político que passou das assembléias parlamentarespara a mídia (1998, p. 139).

Para os dois autores, a mídia tem centralidade no formato doatual modelo democrático representativo, mas enquanto Manin si-naliza sua importância na metamorfose do modelo, Champagne pa-rece ir além, ao sugerir para esta um papel de ator político. Paralevar a cabo esta discussão dois conceitos apresentados porChampagne são fundamentais. O primeiro deles é o conceito depolítica. Segundo o autor, a política é

[...] antes uma luta simbólica na qual cada ator político pro-cura monopolizar a palavra pública ou, pelo menos, fazertriunfar sua visão de mundo e impô-la como visão corretaou verdadeira ao maior número possível daqueles que são,econômica e, sobretudo, culturalmente, desfavorecidos (idem,1998, p. 23/4)7

O entendimento da política como luta simbólica na qual estáem disputa o monopólio da palavra pública ou a imposição de umaverdade, abre a possibilidade de os atores políticos disputarem esteespaço simbólico não sejam somente do campo político tradicional- candidatos, representantes -, mas também atores de outros cam-pos que fazem fronteiras ou disputam espaços no campo da repre-

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sentação. É fundamental compreender, como o faz Bourdieu, quehoje os jornalistas fazem parte do campo político:

Une des transformations les plus importantes de la politiquedepuis une vingtaine d’années est liée au fait que des agentsqui pouvaient se considérer ou être considérés comme desspectateurs du champ politique, sont devenus des agents empremière personne. Je veux parler des journalistes et enparticulier des journalistes de télévision et aussi desspécialistes des sondages (2000, p. 61).

Os novos agentes não têm sua importância centrada apenasno fato de ter e/ou possibilitar o acesso ao espaço público, mas no deproduzir efeitos, de transformar o estado de outro campo. Destaforma, a mídia e seus atores podem ser percebidos como agentespresentes no campo político e que, com esta presença, modificamsua estrutura, suas regras de funcionamento.

Champagne traz um elemento complementar para demarcar aimportância da mídia na política atual e faz isto através de sua defi-nição de poder.

o poder dos que têm um interesse em acreditar e fazer acre-ditar no poder da mídia, entre os quais se encontram, emprimeiro lugar, os que participam do poder da mídia. A for-ça dessa crença coletiva na eficácia da mídia e os efeitos bemreais que ela produz na maior parte dos atores de campopolítico-jornalístico deixam-se ver na maioria das ações po-líticas explicitamente dirigidas para a mídia (1996, p. 148).

O poder da mídia está na construção da crença coletiva de suaeficácia. E esta crença parece estar ligada a dois elementos funda-mentais para sua interferência no político, que são: a opinião públi-ca e a neutralidade.

Ao tratar da opinião pública, Champagne logo chama atençãopara a imprecisão da noção ao afirmar que “o que existe é somenteum conjunto, mais ou menos diferenciado, de agentes em luta que procu-

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ram impor seu conceito (em geral, de forma interessada) de ”opinião pú-blica” (idem, p. 81). Após longa discussão sobre os diversos signifi-cados que o conceito assumiu em diferentes momentos históricos8 ,demonstra a preocupação de que o mesmo vem se ligando às son-dagens de opinião e, particularmente, à crença construída social-mente9 na veracidade destas pesquisas, muito em função do res-paldo que estas vêem tendo do campo científico, o que denominade “transferência ilegítima de autoridade científica”10 (idem, p. 22).Champagne, como outros autores, está temeroso do caráter demo-crático que tem sido dado às pesquisas: segundo seus idealizadores,elas expressariam a vontade popular, pois todos os cidadãos têmdireito a uma opinião, sendo que as sondagens seriam a forma de-mocrática de expressá-las. O problema das sondagens de opiniãositua-se, conforme o autor, no fato de que o que dá valor às respos-tas e o que determina as amostras não é um critério técnico (seleci-onar quem tem opinião), mas um princípio político (para ser váli-da, todos os cidadãos têm que se pronunciar) ligado ao sufrágiouniversal.

Se a opinião pública há muito tempo é um referencial para ospolíticos, a cientificidade das pesquisas, bem como sua dissemina-ção – a todo momento os políticos são submetidos a índices de po-pularidade, a verdadeiros plebiscitos políticos -, deram maiorcentralidade a este conceito e mais poder aos seus porta-vozes, osquais acabam por “reafirmar o poder próprio da imprensa em face dopoder político ao procurarem desestabilizar seus agentes” (idem, p. 135).O que se evidencia pela modificação da “natureza do capital políticonecessária para ter sucesso na política”11 (idem, p. 142/3). O capitalnecessário agora está ligado à sedução midiática; como já haviamencionado Manin, o que importa é a capacidade de se apresentarbem frente a um público heterogêneo. Champagne aprofunda estaproblemática ao sustentar que este fenômeno leva os jornalistas ase constituírem como “atores em tempo integral e (que) intervêm ativa-mente na luta (política)”, devendo sua força “ao fato de que invocaram,

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contra os políticos, a própria lógica do campo político” (idem, p. 144).Quer dizer, os jornalistas levam os políticos a se preocupar com achamada vontade popular. Por mais que os políticos se manifes-tem contra as sondagens, eles acabam por determinar suas açõesem função dos percentuais de popularidade apresentados nos veí-culos de comunicação. Os políticos têm de buscar no veículo o res-gate de sua popularidade, através de amplas campanhas que bene-ficiam, em última instância, a própria mídia.

Bourdieu contribui para a discussão ao ressaltar que:

[...] a influência do campo jornalístico reforça as tendência dosagentes comprometidos com o campo político a submeter-se àpressão das expectativas e das exigências da maioria, por vezespassionais e irrefletidas, e freqüentemente constituídas comoreivindicações mobilizadoras pela expressão que recebem naimprensa. Salvo quando se utiliza das liberdades e dos poderescríticos que lhe são assegurados por sua autonomia, a impren-sa, sobretudo televisiva (e comercial), age no mesmo sentidoque a pesquisa de opinião, com a qual ela própria deve contar:embora possa servir também como instrumento de demagogiaracional tendente a reforçar o fechamento sobre si do campopolítico, a pesquisa de opinião instaura com os eleitores umarelação direta, sem mediação, que descarta todos os agentes indi-viduais ou coletivos (tais como os partidos ou os sindicatos)socialmente delegados para elaborar e propor opiniões consti-tuídas; ela despoja todos os mandatários e todos os porta-vo-zes de sua pretensão [...] ao monopólio da expressão legítimada “opinião pública” e, ao mesmo tempo, de sua capacidadede trabalhar em uma elaboração crítica (e por vezes coletiva,como nas assembléias legislativas) das opiniões reais ou supos-tas de seus mandantes (1997, p. 114/5).

O autor completa dizendo que esta influência do campojornalístico e da disseminação de sondagens de opinião contribui“[...] para enfraquecer a autonomia do campo político e, por conseguinte,a capacidade concedida aos representantes (políticos ou outros) de invocarsua competência de peritos ou sua autoridade de guardiões dos valorescoletivos” (idem, p. 116).

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Se para Manin as sondagens de opinião contribuíram para queos eleitores aparecessem como um público que apenas reage a umadada iniciativa política, para Champagne a disseminação das son-dagens de opinião e seus efeitos no campo político levam, “em últi-ma análise, o povo (a ser) utilizado para proceder a ajustes de contas in-ternas à classe político- jornalística” (1995, p. 135).

Outro ponto fundamental para o entendimento do poder quea mídia tem no atual modelo democrático representativo está liga-do à forma como apresenta as informações, a questão da neutrali-dade. Por um lado, ocorre o que Manin chamou de relativa neutrali-dade das mídias, quer dizer, o desmantelamento da imprensaengajada, partidária, tendo como conseqüência a homogeneizaçãodas informações; por outro lado, ocorre também a falsa neutralidadeassinalada por Champagne, onde a mídia se coloca como um sim-ples canal de informações que tem a obrigação de dizer a verdade,como se não existisse uma lógica do mercado e da concorrênciaque atinge este campo. Essa lógica, “essa busca interessada,encarniçada, do extra-ordinário pode ter [...] efeitos políticos” como co-loca Bourdieu (1997, p. 27)12 , bem como pode ocultar um espaço doque pode ser dito e de quem tem competência para dizê-lo. Bourdieumostra que o porta-voz somente se constitui através do reconheci-mento de seu discurso pelo receptor, seu discurso tem de ser dele-gado e autorizado, em suas palavras:

o porta-voz autorizado consegue agir com palavras em rela-ção a outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobreas próprias coisas, na medida em que sua fala concentra ca-pital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferir omandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador (1996,p. 89).

Landowski (1992) contribui com esta discussão em dois pon-tos: no papel dos porta-vozes e na separação que faz entre públicoe opinião. Segundo o autor, entre os governados (o público) e os

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governantes (a classe política) estão os mediadores que correspondemà opinião mais os seus porta-vozes (em geral os jornalistas); os últi-mos são os encarregados de personificar o público. Os mediadorestêm em comum a competência discursiva, são sujeitos falantes. O pú-blico é quem elege os políticos e consegue no máximo ser um rumorinarticulado; a opinião, por outro lado, é quem faz pressão sobre osdirigentes, por ser um sujeito com voz. Ressalta a centralidade damídia, pois a diferenciação entre público e opinião só pode ser per-cebida no interior do “sistema de representação “midiático”[...]: “só há“silêncio do público” em função da emergência do “discurso da opinião”,isto é, no âmbito de uma teatralização da comunicação social”(LANDOWSKI, 1992, p. 26).

Esta longa discussão nos permite algumas elucubrações. É pos-sível supor que a mídia se constitui como um ator político que lutapelo espaço de representação, pelo direito de impor sua verdadeao maior número de indivíduos, assim se tornando um local privi-legiado de expressão da palavra pública em detrimento das assem-bléias e parlamentos. Nesta ótica, tal ocupação de espaço éreveladora das mudanças que, nesse momento, ocorrem na demo-cracia representativa em função da crise que se desenrola no pró-prio Poder Legislativo, fruto de uma limitação devido à comple-xidade, à diversidade de sujeitos presentes na sociedade contempo-rânea. Neste quadro, a mídia encontra espaço para agir como ator eseu discurso constrói sentido em torno de três pontos: da imprensainvestigativa (que traz ao noticiário as denúncias de atitudes espúri-as de parlamentares); da opinião pública (que se coloca como verda-deiro porta-voz) e da neutralidade em relação aos fatos (como se nãoexistisse um limite de escolhas do que pode e deve ser dito, até mes-mo pela própria lógica do mercado e da concorrência). Estes ele-mentos levam a mídia a produzir efeitos no campo político, particu-larmente na representação, afetando a autonomia do mesmo, questi-onando a competência dos representantes tradicionais, dos partidose parlamentares, ao mesmo tempo em que disputa o espaço efetivo

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de representação, de local privilegiado da palavra pública.Ao admitir que a mídia disputa a representação do público com

os representantes institucionais, os parlamentares, torna-se funda-mental uma conjectura sobre o representado. É presumível que orepresentado que ela pretende significar não é dado pelo campopolítico tradicional. A mídia impressa tem de nomear o representa-do em seu discurso e o faz através da construção da opinião públi-ca: seu representado é o cidadão que coletivamente se forma naopinião pública. Ela necessita, num primeiro momento, despir designificados o discurso que constituiu o representado como eleitor,eliminando a crença na instituição que permitiu sua existência, e,num segundo momento, dar significado ao sujeito opinião (sujeitojá existente e que passa a ganhar força como sujeito efetivo da de-mocracia através da disseminação das pesquisas), tem de consti-tuir este representado para poder se instituir como representante.

III

Remeter esta discussão para o caso brasileiro passa a ser cen-tral a partir deste momento. Para isso, é fundamental discorrermossobre a imagem do Poder Legislativo, seguida da discussão do es-paço que a mídia vem ocupando no campo político no Brasil.

Às questões que o regime democrático representativo enfrentanos países desenvolvidos soma-se, no Brasil, o fato de que as institui-ções democráticas brasileiras se mostram mais frágeis e os políticosmenos legítimos. Isto acontece por, pelo menos, três razões: a recenteexperiência democrática; a incapacidade dos governos de dar respos-tas às crises sociais e econômicas; a grande corrupção existente.

Pinto apresenta com muita pertinência um elemento importan-te para a discussão dos limites da representação. Segundo a autora,

a representação parece algumas vezes ser tomada como si-nônimo da eficácia em transformar demandas em leis ou

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políticas públicas. Tal postura tende a desconhecer a difícilrelação entre os poderes executivos e legislativos e a própriaestrutura do último. Muitas vezes a crise não é exatamentede representação, mas de eficácia (2000, p. 3).

Este parece ser o quadro que vem se construindo no Brasil.Aqui a discussão sobre a incapacidade dos parlamentares repre-sentarem os interesses dos eleitores, tão debatida em todo o mun-do democrático, se materializa através de duas imagens do PoderLegislativo: uma, onde o Congresso aparece como impotente eavassalado pelo Executivo; outra, onde mostram um Legislativoinoperante que impede a ação de um Executivo reformador(ALMEIDA; MOYA, 1997, p. 119). A disseminação destas imagenstorna relevante discutir sua pertinência.

Estudos recentes contribuem para melhor compreensão do fun-cionamento do Poder Legislativo. Figueiredo e Limonge, em artigointitulado O Congresso e as medidas provisórias: abdicação ou delega-ção?, discutem a crítica à incapacidade do Congresso Nacional delegislar, frente ao poder legislador do Executivo, viabilizado pelomecanismo de Medidas Provisórias13 . Segundo os autores, o PoderLegislativo tenta conter os avanços legislativos do Executivo, masencontra barreiras na própria lógica do campo político: não podedeixar de apoiar medidas de estabilização econômica num paísdominado por uma hiperinflação, em função de um provável ônusem um novo pleito eleitoral, em uma possível reeleição. O Con-gresso Nacional não ficou impassível frente a ampliação das MPs ede suas reedições, tentou contê-las de duas formas: estipulandoprazos para votação14 e possibilitando aos parlamentares o direitode “emendar” as mesmas (1997, p. 127). Várias foram as propostaspara controle e até mesmo eliminação do artigo 62 da Constituição,e embora não mobilizassem um amplo apoio, mostraram que “oCongresso não estava totalmente acomodado com o status quo. Ao contrá-rio, buscava redefinir suas relações com o executivo, procurando limitar orecurso deste à legislação excepcional” (idem, p. 143.)

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É importante estar atento à relação entre a crítica ao CongressoNacional e aos problemas de instabilidade econômica e social queo Brasil enfrenta, aos limites que o mesmo apresenta como sinôni-mo de eficácia, como bem colocou Pinto. O período democráticotem se caracterizado por uma luta permanente pela estabilizaçãoeconômica, o que pode ser percebido pelo elevado número de pla-nos de estabilização implantado pelos diferentes presidentes darepública15 . A intenção não é discutir os avanços e os limites destesplanos, apenas ressaltar que a expectativa da população em relaçãoà estabilização econômica e social sempre foi centrada no poder Exe-cutivo, em função de o mesmo ser o implementador dos planos. AoCongresso Nacional era relegado um papel de coadjuvante, tanto nomomento em que os planos eram lançados, quanto no momento emque estes estavam rendendo popularidade. Mas sempre que os limi-tes da política de estabilização começam a aparecer, o Congresso passaa ser ator principal, acusado de projetar instabilidade política - devi-do à lentidão na votação das reformas necessárias, em função dedisputas por cargos entre os partidos que compõem a coalizão dogoverno; por empecilhos ditados pela oposição - e com isso colocarem risco a manutenção da estabilidade do país.

Outra problemática que tem contribuído para a idéia de inefi-cácia do Poder Legislativo brasileiro localiza-se na representaçãopartidária. O senso comum é de que existe uma grande infidelida-de partidária nas votações das bancadas, constituindo a imagemde um Congresso composto de bancadas partidárias frágeis e deparlamentares que defendem projetos e emendas com interessesparticulares ou eleitorais.

Limongi e Figueiredo, a partir de estudos sobre a disciplinapartidária no Congresso Nacional, são categóricos em dizer que avotação é disciplinada pelo partido, mesmo quando as matériasvotadas são efetivamente importantes ou constam da agenda pre-sidencial. As razões para estes índices de disciplina partidária es-tão nos próprios regimentos internos do Poder Legislativo que

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“conferem amplos poderes aos líderes partidários para que ajam em nome dosinteresses de seus partidos. Os regimentos internos consagram um padrãodecisório centralizado, em que o que conta são os partidos” (1998, p. 91).

Quanto à disposição dos deputados nos diversos partidos,Limongi e Figueiredo declaram que “deputados não se distribuem demaneira aleatória pelos partidos e, portanto, líderes partidários têm opini-ões políticas e interesses comuns a representar”. E complementam afir-mando que “se os partidos fossem os agrupamentos caóticos ditados pe-las conveniências eleitorais do momento, revoltas de bancada deveriamser comuns. Não são” (idem, p. 95).

A imagem divulgada pelo senso comum de que os parlamenta-res defendem apenas interesses particulares ou eleitorais, remete àproblemática da real possibilidade de levar a efeito projetos e emen-das com este tipo de interesse. Segundo Santos, o deputado médio (agrande maioria), que pertence às Comissões Permanentes, tem pou-ca possibilidade de ver seus projetos e emendas aprovadas, pois acentralidade está no Colégio de Líderes e nas Comissões Especiais,respectivamente. Logo, seus interesses particulares ou eleitorais têmpouca possibilidade de ser efetivados (1997, p. 141).

Posição similar é apresentada por Figueiredo e Limonge:

A legislação partidária pode alimentar estratégias individu-alistas e antipartidárias. Estas estratégias, no entanto, nãoencontram solo fértil para se desenvolver no Congresso Na-cional. Projetos e emendas ditadas exclusivamente por inte-resses eleitorais, particularistas e imediatistas raramente saemdas gavetas das comissões (1998, p. 94).

A discussão sobre o tipo de interesse que os parlamentares re-presentam não tem a pretensão de insinuar que não existem pro-blemas no funcionamento do legislativo, que as denúnciasdesqualificando este poder não são procedentes. Em relação a isso,o ponto de vista da autora deste trabalho coincide com as palavrasexpressas por Figueiredo e Limongi para quem “os parlamentares se

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interessam por patronagem e sinecuras. No entanto, estamos longe de as-sumir que tal seja a motivação exclusiva ou mesmo principal” (Idem, p.102). O que parece estar em jogo não é a ineficiência da instituição,mas o segundo fator a ser analisado, que é a corrupção.

A problemática se desloca da atividade do Congresso Nacio-nal como instituição para o capital político individual de parlamen-tares. A fragilidade do limite entre a questão da ineficácia e dacorrupção torna-se visível se pensarmos como Champagne que

o capital político específico que os políticos devem acumu-lar, ao mesmo tempo de forma individual e coletiva, é umcapital simbólico feito de crédito e confiança, isto é, uma com-binação variável de crença em sua competência e moralidade(1998, p. 29).

Se o capital político é baseado no crédito e na confiança, oquestionamento da moralidade de alguns parlamentares pode tercomo conseqüência a desqualificação da instituição como um todo.Este parece ser o cenário do Brasil, como demonstra Santos:

Paradoxalmente, mas próprio das democracias, se foi o Con-gresso que se fez intérprete de um público atento agigantado,tem sido ele o indiciado como responsável pelas misérias dacultura cívica do país. Se as críticas são procedentes, tam-bém é cristalina a cumplicidade dos insaciáveis do poder nafabricação do enredo em que o Congresso aparece como bac-téria infensa à medicina constitucional de rotina (1998, p.116).

No Brasil a disputa política aparece como fraude, como con-tenda de interesses particulares, e a mídia impressa ocupa um pa-pel fundamental para a constituição desta imagem do político, prin-cipalmente em relação ao poder legislativo. A série de denúnciasde atitudes espúrias de congressistas gera reações da instituiçãocomo um todo. A implantação de Comissões Parlamentares de In-quéritos (CPIs) que julgam e penalizam os parlamentares com a

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cassação de mandatos tem se constituído na forma de moralizaçãoencontrada pelo Congresso Nacional. Os parlamentares têm mos-trado interesse em resgatar a imagem da instituição, até mesmoporque “um Congresso Nacional composto de parlamentares voltadosapenas a interesses particulares não se constitui em boa plataforma decampanha para uma possível reeleição” (FIGUEIREDO; LIMONGI,1998, p. 102).

Se este é o cenário da disputa política no Brasil, o local de ence-nação tem sido a mídia, particularmente, neste caso, a mídia im-pressa16 . Pinto salienta o espaço da mídia na política brasileira:

A circulação e recepção do discurso político nas sociedadescontemporâneas dependem da sua penetração na imprensa.O discurso circulando nos limites do campo político não temrepercussão. Mesmo em períodos eleitorais, o contato diretodos candidatos com o público tem em si menos importânciado que sua repercussão na mídia (1995, p. 68).

Além da importância assinalada pela autora, a mídia impressatem se constituído no palco das denúncias de atitudes espúrias dedeputados. Estas não atingem apenas o capital individual de umparlamentar corrupto, mas seu capital coletivo, quer dizer, o capi-tal de toda a instituição.

Dessa forma, a democracia representativa brasileira pareceapresentar características do modelo idealizado por Manin – a de-mocracia do público, já que a mídia tem provocado modificaçõestanto na forma dos candidatos se apresentarem frente a um públi-co tão heterogêneo – utilizando-se mais e mais dos veículos de co-municação e das pesquisas de opinião para montar suas campa-nhas, bem como na maneira como os eleitores têm selecionado seuscandidatos. O que parece estar em jogo no momento da escolha é apersonalidade dos candidatos, a imagem que constituem na mídia.O candidato, como coloca Manin, é alguém distante do resto dapopulação pela profissão e modo de vida17 que “parviennent au

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pouvoir en raison de leurs talents mediatiques, non parce qu’ils sontsocialment semblabes à leurs électeurs ou proches d’eux” (MANIN, 1996,p. 249). O público parece reagir, como colocou Manin, aos termos deuma oferta cada vez mais elaborada por veículos e agentes da comu-nicação, do que exprimir sua identidade social ou cultural (idem, p.284). Um elemento a ressaltar é os partidos políticos não teremcentralidade no processo eleitoral, no momento da escolha dos can-didatos pelos eleitores. Não parece uma novidade no Brasil (semdúvida, décadas de bipartidarismo do modelo autoritário contribuí-ram para isso), mas dois pontos devem ser ressaltados: a importân-cia que os partidos possuem dentro do Poder Legislativo e as modi-ficações que os mesmos vêm sofrendo em período recente18 .

A mídia brasileira também está regida pela lógica do mercadoe da concorrência.19 Os diversos veículos da mídia impressa dispu-tam a ampliação do número de leitores, direcionando a luta no cam-po político brasileiro. A forma encontrada para atrair a atenção dopúblico tem sido através de denúncias levadas a efeito pelo jorna-lismo investigativo20 . Esta forma de fazer imprensa traz a tona umasérie de atitudes impróprias dos parlamentares, de corrupção, deincompetência nas instituições do campo político. As denúncias,publicadas após algumas investigações, têm centrado o ataque aoLegislativo num primeiro momento (o que nos interessa particu-larmente), avançando para o Judiciário e, atualmente, têm comoalvo o Poder Executivo. Quando fazem as denúncias, os jornais eas revistas colocam-se como neutros – como se não existisse umconsenso em torno de determinados temas, que devem ou podemser ditos, e justificam sua posição colocando-se como representan-tes da opinião pública, assumindo um papel de interlocutores en-tre o eleitor e o político. Estas denúncias são amplamente divulgadase comentadas, levando os políticos a acatar o jogo dos meios decomunicação, ao procurarem no próprio espaço que os atacou olocal de defesa. O conjunto destas modificações possibilita que amídia se constitua como o porta-voz do discurso autorizado, reco-

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nhecido pelo receptor (BOURDIEU, 1996). A mídia passa a ser, comocoloca Champagne (1996), o local privilegiado da expressão da pa-lavra pública.

A circularidade do discurso elaborado pela mídia, através daapropriação do conceito de opinião pública, é fundamental ao in-vestigar a relação entre o discurso político e o discurso jornalístico,mesmo considerando as particularidades que este cenário toma noBrasil: a mídia impressa, através de denúncias, opiniões e críticasaos poderes constituídos, tende a agir como formadora de opinião;num segundo momento ela busca esta opinião pública através depesquisas. Santos expressa com clareza este fenômeno:

Depois de sistemática campanha desacreditando as institui-ções democráticas, os meios de comunicação encomendampesquisas de opinião e difundem, como se fosse descoberta,a falsidade de que o povo despreza o parlamento (SANTOS,1998, p. 122).

A opinião que a mídia impressa capta acaba sendo, em muito,a opinião que ela formou. Se, num primeiro momento, ela se pro-põe a medir a opinião da população, o que ela acaba fazendo éconstruir a existência da própria opinião pública, o que acaba respal-dando seus interesses no espaço da luta política, ao construir a cren-ça na existência desta opinião pública. A mídia impressa brasileira,é possível supor, através das denúncias oriundas da imprensainvestigativa, de sua constituição como porta-voz efetivo da opi-nião pública e da falsa neutralidade com que apresenta os fatosvem projetando efeitos no campo político, desconstituindo seus ato-res, colocando em xeque sua autonomia, pois não são somente ospolíticos que têm o direito de falar da política, mas também os me-diadores que ganham força através da opinião pública. As sonda-gens de opinião vêm se disseminando na imprensa nacional e, comosalientaram os autores tratados, estão se constituindo, também noBrasil, como um forte espaço de manifestação do cidadão, tendo

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como conseqüência o redirecionamento das ações e posturas dospolíticos (que tem de levar em conta os dados que medem sua po-pularidade) e a ampliação dos poderes da própria mídia impressae seus atores, no campo político.

Se, por um lado, a mídia impressa brasileira vem cumprindoum papel fundamental na democracia ao denunciar parlamentaresque agem de forma espúria, por outro lado, ela pode estarextrapolando seu papel ao assumir uma posição de tribunal, nãoapenas denunciando, mas julgando e punindo os políticos.O’Donnell assinala com clareza os perigos desta nova posição damídia na democracia moderna:

Quando, como acontece nas novas poliarquias, há um senti-mento de que o governo repetidamente incorre em práticascorruptas, a mídia tende a substituir os tribunais. Ela denun-cia possíveis delitos, nomeia seus supostos responsáveis edivulga quaisquer detalhes que julgue relevantes. Algumasautoridades corruptas são, então, poupadas de punições queteriam provavelmente resultado da intervenção dos tribu-nais ou outras agências públicas. Outros, no entanto, quepodem ser inocentes de qualquer impropriedade, assim comoaqueles contra os quais nada pôde ser provado, se vêem con-denados pela opinião pública, sem o direito a algo parecidocom um processo justo para sua defesa (O’DONNELL, 1998,p. 29/30).

Analisando a partir da ótica de O’Donnell, as CPIs passariam ater uma função de materialização de algo já efetivado anteriormen-te nos jornais, revistas e na opinião pública.

Como a política é um espaço em disputa, onde diferentes ato-res tentam impor sua visão de mundo ao maior número possívelde sujeitos, o discurso apresentado pela mídia impressa produzmodificações significativas no modelo democrático representativobrasileiro, levando a efeito a transformação do local por excelênciada discussão política das assembléias para as mídias.

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Recebido em: agosto de 2006

Aprovado em: janeiro de 2006

NOTAS

1 Os autores apresentam uma longa discussão sobre a homogeneização das ofertas políti-cas, pela direita e pela esquerda.

2 Para Medina, não á a noção de representação que define os regimes políticos modernos,mas as eleições livres e competitivas (idem, p. 128/9).

3 Além do que baixam os custos da expressão política pelos indivíduos, dão voz aos cidadãospouco engajados, “apáticos”, e esta opinião não se manifesta somente em circunstânciasimportantes, mas no cotidiano.

4 Quando Manin se refere à opinião pública, está falando de manifestações, petições e danova forma de expressão que é a sondagem de opinião.

5 Esta discussão remete ao que Bourdieu denomina de uniformidade da oferta. Segundo o au-tor, a concorrência e a lógica de mercado, que são características expressivas do campojornalístico, levam à homogeneidade do campo, pois trabalham com as mesmas fontes, asmesmas restrições, as mesmas pesquisas de opinião, os mesmos anunciantes (1997, p. 30/31).

6 Entendo campo político como o espaço social específico, relativamente autônomo, que, nos regi-

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mes de democracia parlamentar, tem como implicação específica a conquista dos cargos públicos(administração do Estado) a partir da “chegada ao poder” pela mobilização eleitoral de uma maioriade cidadãos em torno da mesma representação do mundo social (CHAMPAGNE, 1998, p. 20).

7 Bourdieu apresenta um conceito próximo; para ele: la politique est une lutte pour des idées maispour un type d’idées tout à fait particulier, à savoir les idées-forces, des idées qui donnent de la forceen fonctionnant comme force de mobilisation. Si le principe de division que je propose est reconnude tous, si mon nomos devient le nomos universel, si tout le monde voit le monde comme je le vois,j’aurais alors derrière moi toute la force des gens qui partagent ma vision (2000, p. 63).

8 Champagne dedica um capítulo para fazer a gênese social da “opinião pública”. Outras inte-ressantes discussões sobre o conceito de opinião pública e o papel das sondagens de opi-nião podem ser vistas em Landowski (1992) e Noelle-Neumann (1995) e Besson (1995).

9 Para o autor, a crença nas pesquisas de opinião está sendo construída do mesmo modocomo as manifestações de rua se constituíram socialmente: como a forma de expressão daopinião pública ao longo do século XIX.

10 Os atores do campo científico estão contribuindo com avançadas técnicas de cálculo deamostras para a elaboração de pesquisas e através da discussão dos resultados das mes-mas nos meios de comunicação. Esta discussão não é nova, pode ser vista no artigo A opi-nião pública não existe, de Pierre Bourdieu (1985).

11 Segundo Bourdieu “le capital politique est donc une espèce de capital réputationnel, un capitalsymbolique lié à la manière d’être perçu” (2000, p. 65).

12 Uma forma particular de fazer jornalismo denominada imprensa investigativa se consoli-dou e tem no campo político institucional um dos melhores locais de busca do polêmico edo espetacular.

13 As Medidas Provisórias são prerrogativas do poder Executivo, cedidas pelo próprio Con-gresso Nacional na Constituição de 1988. A crítica às MPs está estritamente ligada a suasemelhança com os Decretos-Lei, medida amplamente utilizada pelos governantes do pe-ríodo autoritário.

14 As medidas teriam um prazo – 30 dias - para ser votada pelo legislativo, caso não ocorressea votação elas seriam automaticamente rejeitadas.

15 Sarney, o primeiro Presidente da República após longo período autoritário, implantou umplano de estabilização denominado Plano Cruzado; Collor de Mello, eleito em 1989, tam-bém lançou mão de um plano de estabilização. Collor foi deposto e substituído pelo viceItamar Franco que lançou o plano Real, idealizado por seu ministro Fernando HenriqueCardoso que, devido, entre outros fatores, à popularidade do plano, acabou sendo eleitopresidente da República e reeleito quatro anos depois.

16 Sem desqualificar a importância da televisão na disseminação e desqualificação das emis-sões políticas, no Brasil a mídia impressa parece ter maior centralidade, pois é nesta que ocor-rem as denúncias que atingem o campo político e são divulgadas as pesquisas de opinião.

17 Obviamente esta é uma generalização que tem de levar em conta as diferentes eleiçõespara cargos executivos e legislativos. Esse quadro se refere mais especificamente ao planodos pleitos federais.

18 Como exemplo, temos o Partido dos Trabalhadores que ampliou em muito os sujeitos paraquem enuncia seus discursos em seus 20 anos de existência.

19 Sem dúvida, a disseminação da televisão trouxe modificações internas no campo jornalístico.20 É possível supor que este veio amplamente utilizado pela mídia impressa ocorre, até mes-

mo, em função da disputa em seu próprio campo, disputa em relação ao espaço ocupadopela televisão.