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São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009 PAINEL A CRISE ATUAL E A UNIDADE LATINO-AMERICANA Painelistas: Prof. Dr. Flavio Bezerra de Farias (Brasil) Prof. Dr. Alexis Saludjian (França) Prof. Dr. Antonio Ricardo Dantas Caffé (Brasil)

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São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

PAINEL

A CRISE ATUAL E A UNIDADE LATINO-AMERICANA

Painelistas:

Prof. Dr. Flavio Bezerra de Farias (Brasil)

Prof. Dr. Alexis Saludjian (França)

Prof. Dr. Antonio Ricardo Dantas Caffé (Brasil)

São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

A CRISE DO CAPITALISMO GLOBAL: Análise marxista

Flávio Bezerra de Farias1

“Trincheiras de idéias valem mais do que trincheiras de pedra.” (José Martí, Nossa América)

1 INTRODUÇÃO

O texto que segue critica certas abordagens economicistas da crise global, mais

ou menos marcadas pela tese da primazia das forças produtivas sobre as relações de pro-

dução, em termos de ontologia marxiana. Distanciam-se desta conforme sublinhem o cará-

ter motriz das inovações financeiras e das tecnologias de informação e comunicação, em

detrimento da categoria luta de classes, na dinâmica do capitalismo liberal. Sobre a configu-

ração historicista regime de acumulação, os autores têm pontos de vista diversos e se refe-

rem à coerência ou à crise seja do capitalismo mundial, ao se tornarem reformistas (AGLI-

ETTA e BERREBI, 2007; AGLIETTA, 2008), seja da mundialização do capital, ao se faze-

rem radicais (JOHSUA, 2006; 2009). Em graus distintos, ambas as formulações ecléticas

têm traços de materialismo vulgar e, portanto, ilustram que “quando no pensamento do

mundo, o ser deixa de assumir seu papel de controle, tudo se torna possível e tudo o que é

possível se realiza, desde que isto convenha às correntes economicamente, socialmente,

politicamente potentes da época.” (LUKÁCS, 2009, p. 328).

Em vez de estender ao planeta e atualizar a idéia geral marxiana de primazia da

base sobre a superestrutura, ambas as correntes contribuem para erigir uma economia polí-

tica da globalização, de modo estrito, como “disciplina científica especializada”, para tentar

“fazer da objetividade dos processos econômicos uma espécie de segunda natureza” (idem,

p. 389), determinando objetivamente todo o resto da formação socioeconômica global. Co-

mo dantes, “esta tendência se tornou igualmente predominante na práxis científica universi-

tária oficial” e as ciências econômicas, mesmo em correntes habitualmente críticas, foram

ficando “sempre mais incapazes de compreender em termos ontologicamente corretos até

mesmo momentos parciais do processo global.” (p. 314).

Descartada a priori uma grande transformação histórica referenciada no interna-

1 Doutor em Economia. Professor da UFMA. Exposição baseada em investigação realizada no 1º trimestre de

2009, na Universidade Paris-Nord, como professor visitante. E-mail: [email protected]

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cionalismo socialista, Aglietta e Berrebi (2007, p. 401) passam a encarnar um “espírito cos-

mopolita”, diante da crise econômica global. Aliás, com este mesmo espírito, “as Nações

Unidas e as cortes penais internacionais se revelaram incapazes, não se diria de garantir ao

mundo uma paz estável e universal” – na realidade uma utopia abstrata – “mas nem sequer

de condicionar um mínimo a inclinação das grandes potências a usar ad libitum a descomu-

nal força militar de que dispõem.” (ZOLO, 2007, p. 19). Ao invés de adotar um ideal kantiano

démodé, cujo principal interesse teórico e político reside em garantir o statu quo ante, impor-

ta mais aguçar a ponta crítica contra a regulação da mundialização. Considerando que a

mundialização imperialista da Tríade (Estados Unidos, União Européia e Japão) implica des-

regulamentação, privatização e liberalização, trata-se de um oximoro banal, bem caracterís-

tico dos reformistas, na sua aceitação fatalista do capitalismo global, ao mesmo tempo em

que descarta a antecipação concreta de um mundo melhor, passando pelo socialismo. Ideo-

logicamente, aquele oximoro foi criado para sustentar a pertinência da razão regulacionista,

diante do fracasso amplo e categórico do capitalismo liberal. Com a crise global, colocou-se

em causa “o privilégio ideológico específico do capitalismo liberal” que consiste em “se exo-

nerar de seus mais espetaculares fracassos e de se restabelecer, sem cessar, na posição

do modelo insuperável” (LORDON, 2008a, p. 119-120). De sua trincheira de idéias, o regu-

lacionismo sugere uma reforma nesta configuração de sociedade burguesa, com um retorno

cosmopolita do intervencionismo, para vencer a batalha da nova “grande crise” – que, su-

postamente, não leva necessariamente à superação do capitalismo, mas “designa analiti-

camente a chegada aos limites de um regime de acumulação e a abertura de uma fase in-

decisa que verá a recomposição de uma nova coerência capitalista.” (LORDON, 2008b, p.

203). Ao contrário, na sua trincheira de idéias, o marxismo deve mostrar a possibilidade so-

cial e a necessidade histórica da superação radical da sociedade burguesa, especialmente

no capitalismo liberal, na era da mercantilização planetária do ser natural e social, situada

para além do fordismo e na globalização.

2 CRISE GLOBAL E RETORNO DA REGULAÇÃO

A crise mundial do capitalismo evidencia o fenômeno da persistência objetiva da

divisão capitalista do trabalho organicamente vinculada à subjetividade da luta de classes,

dando substância às estruturas estatais governamentais, que vêm sendo transtornadas no

cruciante início de século XXI, em todos os níveis espaciais, dos locais aos globais. Correla-

tivamente, a bancarrota da ideologia neoliberal tem estimulado a imaginação holística dos

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partidários de pactos classistas keynesianos, agora transpostos para um contexto mais am-

plo, sob o império da governança mundial.2

Para a escola da regulação, podem ser tiradas duas lições da crise atual, a qual

tanto “revela a falência de uma ideologia que levou as autoridades a abandonar sua função

de regulação e vigilância”, quanto evidencia “os perigos de uma globalização que não se

acompanha das cooperações internacionais que ela exige.” (BRENDER & PISANI, 2009, p.

5). Assim, em salve-se quem puder e alardeado de grande crise, urge combater a utopia do

mercado livre e eterno, sobretudo quando esta configuração se encontra na iminência de

provocar um “estado de guerra social” (VINCENT, 2004, p. 56), ordinariamente ocultado

tanto pelo véu pseudo-concreto, na relação salarial, quanto pelo véu vulgo-materialista, na

ideologia fetichista. Atualmente, a exploração do homem pelo homem é dissimulada, como

se dinheiro fizesse dinheiro, superficialmente, em circulação ilusionista, que dissemina

os objetos sociais portadores de prazeres, sobretudos os objetos sociais que incor-poram as novas tecnologias. O poder de influência dessa superfície brilhante é tal que parece subordinar a ela a produção de bens e de serviços. A renovação ininter-rupta das mercadorias se produz como se fosse o motor da dinâmica social, a pro-dução apenas se adaptando ao desenvolvimento insaciável das necessidades. As-sim, a produção se torna parte implicada da superfície. O próprio lucro não é nada mais do que um indicador técnico de uma bem sucedida adaptação aos mecanismos de mercado e à combinação ótima dos fatores de produção. As crises tornam-se flu-tuações econômicas causadas por uma insuficiente mobilidade dos capitais, das ma-térias primas e, é claro, da mão-de-obra. A parte dos lucros que cabe aos capitalis-tas é, nessa lógica da superfície, o justo pagamento de sua criatividade e de sua ca-pacidade de antecipar a evolução dos mercados. (Idem).

Contra o antiquado “fanatismo do mercado”, enaltecido no capitalismo liberal

como livre e eterno, surgiu dos seus apologistas mais ou menos explícitos, tanto o mito do

State building (FUKUYAMA, 2005), quanto a utopia de construir “outro mundo”, com o con-

curso fetichista de formas estatais benéficas e tecnicamente neutras em relação aos inte-

resses antagônicos e sob um regime político mais democrático de “governança global”

(STIGLITZ, 2006). Entretanto, esta democratização é discutível, pois a governança praticada

em todo o mundo significa “um conjunto de regras anglo-saxãs próprias à governança cor-

porativa, às quais todos os poderes políticos e econômicos deveriam se conformar, inclusive

os Estados. Isto termina por colocar uma temível ameaça à democracia.” (VÉDRINE, 2008,

p. 62). No início da fase mais atribulada da globalização, porém, “o reformismo aparece co-

mo o horizonte insuperável de nossa época.” (GIRAUD, 2008, p. 158). No sentido próprio,

uma reforma para democratizar a governança é tida por crucial (AGLIETTA, 2008, p. 115),

inclusive até o ponto de concretizar o idealismo cosmopolita de Estado global (AGLIETTA ;

BERREBI, 2007, p. 400).

2 Assim, para Catherine Mathieu e Henri Sterdyniak, da Universidade Paris Dauphine, a crise atual mostra, no-vamente, “em termos de estabilidade e sustentabilidade, os riscos de um modo de crescimento impulsionado pelas firmas multinacionais e pelos mercados financeiros e por estratégias nacionais não coordenadas, sem instituições de governança mundial.” [http://gesd.free.fr/ofce1103.pdf] 2/8/09.

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Diante do estorvo da mundialização neoliberal – na lógica da qual “não há ne-

cessidade de uma governança política” (Idem, p. 399) – sem teoria reformista, não há práti-

ca reformista. Para tanto, emergiu uma “abordagem transversal” (p. 7), contribuindo para

uma nova impulsão keynesiana a ideologia do “capitalismo patrimonial”,3 através da teleolo-

gia de uma regulação do capitalismo mundial. Este neo-intervencionismo, que implica globa-

lização e democratização da governança, tem duas componentes ideológicas, a saber: a

primeira é explicitamente liberal, universalizando a divisa republicana “da liberdade, da i-

gualdade e da fraternidade” (Idem, p. 420), enquanto que a segunda é implicitamente con-

servadora, universalizando a divisa positivista “da ordem e do progresso”, conforme subli-

nhara Farias (2000, p. 90).

A resultante é o artifício estratégico difundido no romance Il Gattopardo de

Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Se queremos que tudo permaneça como está, é preciso

que tudo mude!”4 Na lógica regulacionista, um retorno pendular das práticas estatais e con-

tratuais normalizadoras, para uma nova experiência histórica de produção virtuosa dos obje-

tos, tornaria novamente possível a unidade sem luta entre os pólos envolvidos da nova soci-

edade salarial. Com a crise global, trata-se de instalar um novo regime de crescimento, pois

o que prevalecia antes da crise evidenciou seu “caráter insustentável e seus perigos” e, uma

vez descartada a repetição do fordismo nacional, viabilizou-se a emergência seja de um

“capitalismo organizado sob regulação supranacional”, seja de “um regime misto” sem esta-

tização nacional, um capitalismo financiarizado global, liberal, mas completado por instân-

cias reguladoras elas próprias mundiais.” (DOCKÈS; LORENZI, 2009, p.61-62).

Mesmo para os adeptos de antinomias, é difícil acatar esta mistura histórica bi-

zarra. Por outro lado, a democratização da governança significa uma contradição nos ter-

mos, pois é uma expressão fenomênica do fato de que, na atual conjuntura, a intensificação

das relações orgânicas entre Estado e capital implica uma configuração socioeconômica

autoritária (FARIAS, 2003, p. 161). Esta tendência é apreendida “quando se considera essas

relações entre categorias sob uma visão transversal do processo de conjunto, e não como

sucessão e resultantes no seu desenrolar.” (LUKÁCS, 2009, p.354). Ao contrário da aborda-

gem transversal regulacionista, na totalidade concreta formada por Estado e capital, “na sua

ação comum, observa-se a mesma estrutura dinâmica, a mesma compenetração na dialéti-

ca de sua autonomia de princípio e de suas múltiplas interdependências.” (Idem). Para reali-

zar o objetivo de “estabilidade global”, – nos termos que interessam às grandes potências,

mantido os mecanismos de desenvolvimento desigual e combinado, “que cavam um abismo

cada vez mais profundo entre os países ricos e os pobres” –, “a guerra de agressão global,

3 Esta categoria tem implicações positivistas, quanto à possibilidade de fazer do sistema burguês um tipo ideal de sociedade desejável, isto é, um mundo melhor, com nova regulação da sociedade salarial (AGLIETTA, 2008, p. 108). Por isso, os regulacionistas mais críticos preferem a designação “regime de acumulação financiarizado”, ou “regime de acumulação sob dominância financeira” (LORDON, 2008a; 2008b). 4 [http://it.wikipedia.org/wiki/Il_Gattopardo_(romanzo)] 20/7/09.

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chame-se guerra humanitária ou guerra contra o terrorismo, é uma prótese necessária.”

(ZOLO, 2007, p. 117).

Nos termos positivistas de Aglietta e Brender (1984), a sociedade salarial fordista

tornou-se capitalismo patrimonial pós-fordista, cuja dinâmica passou a residir nas metamor-

foses financeiras neoliberais. O processo de liberalização, desregulamentação, etc., poten-

cializado pela normalização pós-moderna, teria favorecido inovações financeiras, – mudan-

do profundamente o modo de circulação dos capitais e dos riscos –, as quais dão margens

de crescimento novas a todos os países, desde que a intervenção pública seja atenta para a

limitação das derivas das finanças e para canalizar seus desenvolvimentos. As crises su-

cessivas mostram tanto os atrasos ocorridos nesse esforço de vigília e de enquadramento,

quanto a insuficiência das cooperações implementadas. Colocar a globalização financeira a

serviço do desenvolvimento econômico passa menos por uma reforma da finança ou do ca-

pitalismo do que por uma redefinição do papel do Estado no funcionamento da finança... e

do capitalismo! (BRENDER ; PISANI, 2009, p. 121).

Com a crise do neoliberalismo na escala global, o estatismo e o politicismo re-

gressaram à tona. Assim, um regulacionista acredita acontecer até mesmo um “retorno das

nações”, no bojo de uma planetária “mudança de século político” – em vez do século ameri-

cano, sobreveio um novo século XXI (SAPIR, 2008, p. 37). A novidade envolve a retomada

da regulação, que pressupõe a volta providencial das intervenções estatais, pois “o Estado,

na crise, tornou-se novamente o pivô da atividade econômica e financeira.” (AGLIETTA,

2008, p.123).

Volta, também, a taxonomia dicotômica keynesiana do emprego, onde a força de

trabalho é fracionada em função do seu acesso à condição de empregabilidade, suposta-

mente benéfica, mas efetivamente legitimadora do lucro. Nos mercados dos países centrais,

a obtenção do lucro e do emprego estaria sendo prejudicada pela “concorrência dos países

emergentes” (AGLIETTA e BERREBI, 2007, p. 63). Conforme o integracionismo keynesiano,

o lucro do empresário não é um resultado da exploração capitalista, mas uma justa recom-

pensa pelo risco de desencadear a atividade produtiva prévia à acumulação de capital. Con-

tudo, a primazia das finanças é interpretada como submissão da “acumulação de capital a

exigências de rendimento financeiro, que induzem comportamentos desequilibrantes para as

empresas e para a economia global.” (Idem, p. 63). Analogamente ao martírio da crise, a

penitência do risco é inerente ao capitalismo, mas na sua forma patrimonial os rendimentos

financeiros tornaram-se impuros, ao escapar da via crúcis própria à atividade produtiva. Im-

piedosamente, “o risco é relançado sobre os assalariados através da desconexão entre sa-

lários e produtividade, do desemprego e da precariedade.” (p. 63). Contra a crença de que

“a virtude salvará o mundo”, surgem duas questões irônicas, a saber: “Depois da ruína fi-

nanceira, a salvação através do ético?” (LORDON, 2008a) Mediante escolástica positivista?

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Em uns, “a negação do capitalismo resta freqüentemente abstrata, moral, quase sempre

misturada com raiva, com impotência.” (VINCENT, 2004, p. 57). Em outros, refugia-se na

crença de que a “barbárie do capital terminará por suscitar reações cada vez mais fortes,

mas terminam por constatar que várias reações se voltam para fundamentalismos ou inte-

gralismos religiosos ou, até mesmo, comunitarismo exacerbado” (Idem), como na lógica de

mudar o mundo sem tomar o poder (HOLLOWAY, 2002) ou do Império sem imperialismo

(HARDT ; NEGRI, 2000).

No regime de acumulação fordista, a coesão sem luta favorecera os progressos

nacionais (materiais, técnicos e sociais), enquanto que no regime de acumulação patrimoni-

al, a luta sem coesão se transforma em “desordens no capitalismo mundial” (AGLIETTA e

BERREBI, 2007). Cabalmente, o positivismo regulacionista rejeita o desespero expresso

pelo Hamlet de Shakespeare: “Nossa época está escangalhada. Maldita fatalidade, que eu

jamais tenha nascido para recolocá-la em ordem!5 Portanto, trata-se de reformar o capita-

lismo mundial para fazê-lo funcionar cada vez melhor, no interesse de toda a humanidade.

Diante das desigualdades de repartição da riqueza, do desastre ambiental, das desordens

financeiras e da ineficácia das políticas econômicas nacionais, alimentadas pelo fracasso

das instituições internacionais, que não conseguiram viabilizar o seu projeto de nova arquite-

tura após a crise asiática, o “desafio” atual reside precisamente no processo que o idealismo

hegeliano designava “negação da negação”:

O Estado keynesiano foi negado pela globalização financeira. Mas, o desapare-

cimento da preponderância do político sobre as finanças conduz às desordens do capitalis-

mo mundial. Negar a inversão da hierarquia dos valores entre o mercado e o político opera-

do pelo neoliberalismo é afirmar a concepção cosmopolita do Estado na mundialização, no

sentido de Ulrich Beck. (AGLIETTA e BERREBI, 2007, p. 400).

No plano teórico, a escola da regulação se aproxima, também, dos autores que,

“conforme o ensinamento kantiano, sustentam que os direitos humanos podem ter rigorosos

fundamentos cognitivos e normativos, de modo que é absolutamente óbvio que podem pro-

por-se a toda a humanidade sem que se incorra em alguma forma de imperialismo cultural.”

(ZOLO, 2007, p. 89).

Em compensação, na perspectiva crítica do idealismo hegeliano, o referido pro-

cesso aponta para uma grande mutação social, que não é uma simples utopia, mas envolve

múltiplas determinações, “que nos diferentes domínios se opõem à lógica da valorização

capitalista”, marcada pela “lógica da separação e das confrontações no seio da submissão a

mecanismos sociais, que se tornam potências exteriores acima da cabeça dos homens.”

(VINCENT, 2004, p.64). Se norteada pela antecipação marxista de um mundo melhor, con-

forme a negação da negação, uma grande transformação social envolve superação efetiva

5 [http://www.shakespeare-literature.com/Hamlet/5.html/Time] [6/7/09].

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da natureza mercantil-individualista e da exploração do homem pelo homem. Em vez de

reformar, busca-sereorientar a produção social de modo que ela cesse de ser produção de

capital, de valores e de mais-valias para se tornar produção de relações sociais. A produção

para a satisfação das necessidades não se opera mais no quadro de uma economia auto-

nomizada, mas se apresenta como uma produção de bens e serviços, de valores de uso

sem valores mercantis. É o suporte de intercâmbios liberados das restrições da valorização,

não supõe planejamento central rígido e pesado, mas múltiplos processos de ajuste, assim

como formas flexíveis e moventes de apropriação social. (Idem).

No neo-idealismo regulacionista, ao contrário, o capitalismo mundial significa

progresso desigual e combinado dos diversos tipos de capitalismo, cuja subsistência e per-

petuação requerem ordem. Assim, a coexistência desses tipos distintos de capitalismo numa

finança global deve ser organizada por uma governança política transnacional. Os Estados

só podem levar a cabo seus fins coletivos de coesão social no seio das nações se buscam

atingir objetivos transnacionais de cooperação com os outros. Só a este preço, os Estados

podem lutar contra sua diminuição e restabelecer uma regulação da finança global. (AGLI-

ETTA e BERREBI, 2007, p. 400).

Como um deus ex machina, as finanças globais impõem exigências funcionais

que levam ao advento necessário de formas estatais cosmopolitas, cujas relações causais

foram expressas no quadro abaixo (idem, p. 398):

TIPOS DE ESTADOS E ESTRUTURAS DAS FINANÇAS

Finanças segmentadas Finanças globalizadas

Soberania nacional separada

Estado protecionista

• Crescimento auto-centrado • Barreiras elevadas aos capitais

estrangeiros

Estado neoliberal

• Finanças liberalizadas • Concorrência dos sistemas sociais sob a

dominação das finanças • Instabilidade financeira endêmica

Soberania nacional com cooperações transnacionais

Estado keynesiano

• Controle dos capitais limitado • Garantia mútua contra as crises

de balança de pagamentos

Estado cosmopolita

• Formação de espaços monetários regionais • Cooperação no fornecimento dos bens pú-

blicos globais

Na taxonomia sistematizada pelos regulacionistas, as configurações polares fo-

ram sincronizadas, identificadas, distinguidas e caracterizadas apenas a partir de critérios

quer financeiros relativos ao controle ou à liberalização dos capitais, quer políticos atinentes

às cooperações entre estados nacionais. Na visão diacrônica dos regulacionistas, o Estado

keynesiano foi destruído pela globalização financeira própria ao neoliberalismo, que estabe-

leceu a primazia do mercado sobre o político – de sorte que “no lugar de colocar as finanças

a serviço dos objetivos coletivos, esta concepção individualista pretende submeter à opinião

dos mercados financeiros globais as escolhas coletivas democraticamente elaboradas”, por

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um lado; e, por outro lado, sustenta “políticas de privatização da proteção social em nome

de um universalismo que nega a especificidade dos modelos sociais.” (p. 399).

Os regulacionistas criticam a ideologia neoliberal por sua promoção de uma “ex-

tensão mundial dos mercados” que “ultrapassa todas as particularidades dos grupos huma-

nos, para reconhecer apenas o indivíduo pretensamente racional e universal.” (p. 399). Po-

rém, como partidários da teoria keynesiana do emprego, utilizam a lógica formal para elabo-

rar um modelo dicotômico, ao mesmo tempo, simples e fetichista, que os torna empirica-

mente incapazes de ir além da aparência imediata do mercado de trabalho, de um lado; e,

do outro lado, ideologicamente defensores de uma escolástica positivista que oculta a natu-

reza orgânica e histórica do fenômeno do emprego do proletariado, bem como sua dinâmica

interna.

Crise global e recomposição da superpopulação relativa

Com a crise global, o proletariado dos países centrais foi afetado pela redução

dos assalariados ativos, pela queda dos salários, pela queda no consumo, etc. Conforme

previsão do BIT, em 2009, o aumento do número de desempregados no mundo será de 50

milhões:

NÚMERO DE DESEMPREGADOS NO MUNDO (em milhões)

Fonte: BIT – [http://gesd.free.fr/apexcri9.pdf] 2/8/09

Na conclusão de sua obra de inspiração cosmopolita, a análise regulacionista

das desordens do capitalismo mundial provincializou sua proposta de pleno emprego, deli-

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mitando-o no planeta, como um desafio europeu. Na região, de fato, o desemprego cresce

com a crise:

Desemprego na área européia e na União Européia (27 países) (em milhões)

Fonte: [http://epp.eurostat.ec.europa.eu/cache/IYY_PUBLIC/3-31072009-BP/EM/3-331072009-BP-EM.PDF] 3/8/09

Por sua vez, a França “deve fazer face à competitividade dos países com baixo

custo que são a China e a Índia, novos atores do comércio mundial, com reserva de mão de

obra e de produtividade incomensuráveis”, por um lado; e, por outro, deve “igualmente as-

segurar um nível de crescimento da demanda suficiente para evitar se deixar arrastar no

ciclo real deflacionista atual, devido ao excesso estrutural das capacidades de produção.”

(AGLIETTA e BERREBI, 2007, p. 404).

O desafio latino-americano é de outra natureza, pois a crise “deixará seqüelas”,

como disse a secretária-executiva da CEPAL, Alicia Bárcena, na apresentação do “Estudo

Econômico da América Latina e do Caribe 2008-2009”.6 De fato, a combinação da crise glo-

bal atual com a reprimarização neoliberal da economia regional, explica estruturalmente

porque, de acordo com a CEPAL, o desempenho da mesma foi prejudicado pela diminuição

nas exportações no 1º trimestre de 2009 diante do mesmo período de 2008, cuja causa i-

mediata reside na redução na demanda externa. Além do mais, as remessa do exterior caí-

6 [http://mwglobal.org/ipsbrasil.net/nota.php?idnews=4934] 18/07/2009

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ram e, para 2009, há uma previsão de queda de 40% no fluxo de investimento estrangeiro

direto. Tudo isso repercute sobre o mercado de trabalho, de maneira que, no período com-

preendido entre o início de 2008 e o 1º trimestre de 2009, nas zonas urbanas da América

Latina e Caribe, mais de um milhão de pessoas perderam o seu emprego. A CEPAL estima

que “a taxa de desocupação aumentará de 7,4%, em 2008, para cerca de 9% este ano,

deixando mais de três milhões de pessoas a mais sem emprego. Será incrementado o

emprego informal, afetando os níveis de pobreza.”7

Em vez de aceitar os esquemas dualistas, opondo trabalho formal versus traba-

lho informal, empregado versus desempregado, o recurso à concepção marxista de unidade

e diversidade do proletariado, com suas fronteiras dinâmicas e obedecendo às leis gerais da

acumulação capitalista (MARX, 1976, p. 437 e seg.), serve para compreender e para supe-

rar a situação mundial contemporânea de trabalho flexível, móbil e precário. Na abordagem

dessas “atividades humanas”, a lógica keynesiana do emprego é insustentável, pois “as

transforma em simples objeto de manipulação (através da onipotência das informações)”,

além de “eliminar completamente o ser da esfera do conhecimento” (LUKÁCS, 2009, p.

312), para atacar a resistência proletária, como “resistência à exploração econômica, mas

também, e isto não é secundário, resistência dos trabalhadores a sua redução ao estado de

força de trabalho descartável e passível de corvéia.” (VINCENT, 2004, p. 59). A crítica da

economia política demonstrara o caráter inevitável desta resistência, que “pode ser reprimi-

da e se amenizar, mas é inextinguível e conduz sempre aspirações de viver de outra manei-

ra, em vez de ser apêndice das maquinarias do Capital.” (Idem).

Inversamente, os ideólogos neoliberais proclamaram o fim da história, ou melhor,

“a liberdade para o Capital de explorar sem vergonha e na escala planetária, se comportan-

do como um predador que não obedece nenhuma lei e deixa de temer maiores contesta-

ções” (p.61). Diante disto, a lógica keynesiana do emprego cai novamente no fetichismo da

salvação providencial da humanidade. Assim, sob uma abstração humanista, “a concepção

cosmopolita sustenta que os indivíduos só têm a capacidade de existir por intermédio de sua

inclusão num meio social feito de regras e instituições. Estas são legitimadas pelo princípio

de soberania que funda a inclusão dos indivíduos num grupo humano.” (AGLIETTA ; BER-

REBI, 2007, p. 400).

Ao contrário, sob a forma de exército ativo ou de reserva, a força de trabalho

susceptível de ser explorada pelos capitalistas é uma importante abstração racional marxia-

na, cujo método envolve aspectos gnosiológicos e ontológicos, simultaneamente. Para um

crítico da mundialização do capital, a primeira lição que se deve tirar da grande crise atual

reside na constatação da permanência do capitalismo como “um sistema fundamentalmente

anárquico. Quando funciona é em proveito de uma minoria, em detrimento dos que produ-

7 [http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2009/07/090715_cepalprevisaoalfn.shtml] 18/7/09.

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zem as riquezas. Quando não funciona, carrega toda a população na sua queda.” (JOHSUA,

2009, p.121). Entretanto, para Marx (1977, p. 165), “a população é uma abstração, ao se

negligenciar, por exemplo, as classes que a compõem.” A partir de sua genial aplicação da

tese de Spinoza, omnis determinatio est negatio, para uma análise crítica e revolucionária

da categoria superpopulação relativa (MARX, 1976, p. 437 e seg.), a lógica dialética marxia-

na pode ser desenvolvida, atualizada e enriquecida por sua capacidade de envolver instru-

mentos matemáticos, como a teoria dos conjuntos, interessante para a utilização crítica de

informações estatísticas oficiais sobre a população afetada pela crise global. Para Spinoza,

no atinente a esta idéia de que a figura é uma negação, mas não alguma coisa de positivo, é

evidente que a pura matéria considerada como indefinida não pode ter figura e que só há

figura em corpos finitos e limitados. Portanto, quem diz perceber uma figura mostra com isto

somente que concebe uma coisa limitada e de que maneira ela o é. Esta determinação,

pois, não pertence à coisa enquanto tal, mais, ao contrário, indica a partir de onde a coisa

não é. A figura, então, não é nada mais do que uma delimitação e, toda delimitação sendo

uma negação, a figura não pode ser, como eu disse, nada mais do que uma negação (SPI-

NOZA, 2007, p. 283-284).

A dialética marxiana, parte desta idéia spinoziana para mostrar que os proletá-

rios não se unificam, a priori, como força de trabalho da população ativa, mas também se

diversificam como membros de uma imensa superpopulação relativa, conforme o modelo

formal seguinte:

A UNIDADE E A DIVERSIDADE DO PROLETARIADO

O resultado obtido ilustra que a dialética marxiana rejeitou certa “operação lógica

da determinação” spinoziana que consiste em “denegar à totalidade toda figura”, mas acei-

tou a tese de que “a negação como momento de determinação da figura de toda coisa finita

Legenda Assalariados Superpopulação relativa

F1 + F2 + FA Flutuante = F1 + F2 Latente = L1 + L2 Estagnante = E1 + E2

Fontes MARX (1976) e FARIAS (1988).

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exprime a relação de todo ser singular com o ser-outro dos outros que existem, sob uma

forma não problemática para o pensamento.” (LUKÁCS, 2009, p. 168-169).

Trata-se de unidade e diversidade do proletariado, que exprime um concreto

pensado, pois foi obtido pela análise concreta da existência diferenciada do proletariado na

sociedade capitalista, onde cada par 1 e 2 pode representar as desigualdades etárias, espa-

ciais, sexuais, educacionais, dentre outras. Em termos de lógica formal, as desigualdades

etárias aparecem no quadro abaixo, enquanto que algumas das outras estão combinadas

nos gráficos seguintes.

Acontecem várias formas de atentado à dignidade humana, onde os proletários

“podem até mesmo se voltar contra eles próprios e contra aqueles tidos por mais fracos e

possíveis objetos de agressão, numa espécie de espiral regressiva.” (VINCENT, 2004,

p.57). Para eles, as relações sociais cognitivas aparecem comumente como relações feti-

chistas e de dissimulação da exploração do homem pelo homem, de sorte que “a barbárie

das relações sociais capitalistas pode ser interiorizada e naturalizada, e se manifestar como

barbárie das relações interpessoais, mas, sobretudo como barbárie das relações entre [de-

siguais].” (Idem).

TAXA DE EMPREGO POR FAIXA ETÁRIA

Fonte: OCDE [http://gesd.free.fr/flas9320.pdf] 4/8/09

Total 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Estados Unidos Reino Unido Alemanha França Espanha Itália Japão

76,43 73,39 66,23 61,46 57,80 54,72 74,43

75,48 73,60 66,54 62,34 59,24 55,81 74,35

74,27 73,60 66,06 62,49 59,84 56,54 73,81

73,69 73,96 65,39 63,59 61,08 57,09 73,94

73,78 74,10 65,83 63,41 62,43 58,34 74,35

74,20 74,17 66,45 63,54 64,74 58,38 75,12

74,75 74,15 68,17 63,52 66,24 59,36 76,04

74,65 73,92 70,10 64,31 67,05 59,63 77,14

73,93 74,43 71,34 64,92 65,79 59,73 77,45

15 – 24 anos 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Estados Unidos Reino Unido Alemanha França Espanha Itália Japão

59,66 61,50 47,16 23,24 36,27 27,78 42,71

57,71 61,05 47,03 24,28 37,12 27,43 41,96

55,69 60,93 44,80 24,09 36,56 26,73 40,98

53,90 59,69 42,42 29,70 36,76 25,99 40,24

53,90 60,07 41,94 29,35 38,37 27,23 39,99

53,91 58,57 42,57 29,26 41,89 25,46 40,89

54,25 57,32 44,01 28,88 43,26 25,48 41,40

53,13 55,93 45,94 30,08 42,89 24,66 41,43

51,23 56,36 47,19 30,71 39,54 24,35 41,37

25 – 54 anos 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Estados Unidos Reino Unido Alemanha França Espanha Itália Japão

81,46 80,17 79,32 78,25 68,38 67,98 78,57

80,55 80,47 79,33 79,34 69,45 69,19 78,55

79,31 80,34 78,80 79,36 70,11 70,06 78,01

78,82 80,70 78,18 80,44 71,35 70,75 78,29

78,98 80,75 78,06 80,52 72,65 72,14 78,64

79,34 81,10 77,38 80,73 74,40 72,25 79,03

79,81 81,19 78,76 81,20 75,83 73,26 79,62

79,92 81,32 80,27 82,12 76,83 73,47 80,21

79,08 81,61 80,95 83,17 75,31 73,48 80,16

55 – 64 anos 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Estados Unidos Reino Unido Alemanha França Espanha Itália Japão

57,79 50,40 37,64 34,31 37,04 27,66 62,77

58,55 52,14 37,88 36,48 39,24 27,96 62,04

59,50 53,13 38,62 39,29 39,70 28,91 61,61

59,86 55,42 38,96 37,03 40,77 30,25 62,14

59,93 56,17 41,79 37,64 41,28 30,54 63,04

60,83 56,73 45,48 38,73 43,13 31,43 63,86

61,79 57,35 48,10 38,14 44,09 32,48 64,73

61,80 57,36 51,29 38,28 44,59 33,75 66,10

62,14 58,17 53,77 38,20 45,61 34,43 66,31

São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

Os proletários como um todo conseguem ter alguma percepção da exploração,

da dominação e da humilhação que sofrem no trabalho, mas restando acorrentados ao mer-

cado de trabalho e ao salve-se quem puder do cotidiano, não podem decifrar a relação entre

sua situação concreta e a dinâmica da acumulação de capital, nem tampouco a relação es-

pecífica entre produção e circulação no seio dessa dinâmica, de sorte que “muitos trabalha-

dores são levados a julgar a sua situação através do prisma da superfície, de suas dificulda-

des de se afirmar e das frustrações que experimentam a cada momento.” (VINCENT, 2004,

p. 56). O capitalismo liberal inovou em mitos e artimanhas que buscam quer segmentar o

proletariado e impedi-lo de apreender sua própria vida de conjunto e subconjuntos, quer

ocultar suas realidades e práticas específicas. Enfrentar isto exige ultrapassar a velha pro-

blemática da tomada de consciência, da progressão da consciência empírica de classe para

a consciência revolucionária através das lutas. Para elas próprias, as lutas seriam muito

duras, não indicam as vias e os meios a serem utilizados para desmontar as construções

sociais autonomizadas do Capital que passam por cima da cabeça dos homens. As massas

podem entrever outras maneiras de viver juntos, somente quando as lutas abalam certos

elementos habituais da reprodução dos simbólicos do Capital, das representações e das

visões comumente admitidas (Idem, p. 57-58).

São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

Nos “tempos líquidos”, caracterizados como “época de incerteza”, sobretudo pa-

ra um proletariado sujeito a diversas formas de barbárie e exclusão, antecipadas por Rosa

Luxemburgo há um século, lamenta-se que

Sem dúvida, agora o planeta está cheio, e isto implica, dentre outras coisas, que processos tipicamente modernos, como a construção da ordem e do progresso econômico, se dão em todas as partes e, como conseqüência, por todas as partes se produzem e se expulsam “desperdícios humanos” em quantidades cada vez maiores; desta feita, não obstante, faltam as lixei-ras “naturais” apropriadas para seu armazenamento e potencial reciclagem. (BAUMAN, 2008, p. 79-80).

Embora a crítica incisiva ao capitalismo e a denuncia agitada de suas barbáries

tenham aumentado com a crise do capitalismo global, esta rejeição está longe de prover

automaticamente os meios e as vias adequados para empreender a sua superação. Mas, a

crise global implica reconfiguração do imperialismo e do sujeito coletivo revolucionário.

Crise global e reconfiguração do imperialismo

As análises econômicas positivistas e funcionalistas da crise atual, no fim de

seus textos repletos de desafios reformistas, atribuem um novo papel para as formas esta-

tais, sem examinar previamente a natureza das formas estatais nacionais, regionais e glo-

bais, no seio de uma totalidade concreta, complexa e contraditória. Efetivamente, não se

apreende a mundialização abstraindo a mediação da Tríade, que teve um papel decisivo no

processo de desregulamentação, privatização, liberalização, etc., especialmente, na crise de

endividamento dos países do Sul, e também na estratégia perpetuá-los como exportadores

de produtos primários. Também, não se apreende o novo imperialismo afirmando aspectos

universais de homogeneização, abstraindo aspectos específicos de diferenciação e hierar-

quização, onde “a violência das ofensivas do Capital contra os países ditos emergentes e

contra os países mais pobres, sob diferentes modalidades”, apoiadas nas formas estatais

globais, “semeou a desordem, a miséria em grande parte do mundo.” (VINCENT, 2004, p.

61).

Portanto, a abordagem concreta da totalidade estatal concreta deveria obedecer

ao princípio metodológico de que uma função estatal significa uma forma assumida pela

forma estatal numa situação dada, temporal e espacialmente. Portanto, esta forma (para si,

em potência) tem primazia ontológica sobre sua função (em si, em ato). Trata-se de relação

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orgânica, cujo processo é irreversível, historicamente determinado, no contexto de uma no-

va reconfiguração do imperialismo (GOWAN, 2003; HARVEY, 2004).

Em geral, “somente a idéia da historicidade concretamente universal das catego-

rias de todo ser pode indicar o caminho que leva a uma perspectiva justa, ao mesmo tempo

unitária e historicamente diferenciada de maneira rigorosa.” (LUKÁCS, 2009, p. 74). Em par-

ticular, “o marxismo, na medida em que coloca no centro de seu método e de suas aplica-

ções concretas o caráter histórico do ser, mais resolutamente do que toda outra teoria deve

ver no desenvolvimento desigual a forma típica dos processos sócio-históricos.” (Idem, p.

242). Contudo, certas abordagens da mundialização do capital, em vez de utilizar o referen-

cial teórico-metodológico de Marx (1976; 1977) para superar o método funcionalista, inicial-

mente, “centram sua atenção sobre as contradições propriamente econômicas do capitalis-

mo”, isto é, nelas “pode-se notar que a dinâmica econômica não se manifesta vinculada de

maneira sistemática e elaborada à dinâmica social.” (VINCENT, 2004, p. 55). Embora não

ignorem as lutas sociais e políticas, estas “não são integradas nos encadeamentos e agen-

ciamentos de conjunto,” quando há primazia ontológica da economia, mas esta primazia

necessita “contar com relações e processos sociais e com agentes que devem ser reprodu-

zidos em conformidade com seus imperativos”, de um lado; e, de outro, “ser confortada por

uma tutelagem assegurada pelo extra-econômico, mas isto não se produz sem fricções ou

sem crises.” (Idem). Continuamente,

as relações entre as classes são desarticuladas e rearticuladas; e os indiví-duos estão freqüentemente em defasagem em relação àquilo que as rela-ções de trabalho exigem. Permanentemente, os movimentos da economia e os processos sociais se perturbam reciprocamente, mesmo quando aparen-temente não há grande crise. (VINCENT, 2004, p. 55).

Em seguida, limitam-se à busca de solução aos problemas econômicos oriundos

das desigualdades estruturais de desenvolvimento, bem como dos abusos inerentes à fi-

nanceirização, à especulação, etc., supostamente reguláveis através do simples controle

público de fluxos comerciais e financeiros globais. Por estar “se aprofundando, a própria

crise mostrará que não se pode ocupar apenas do aspecto financeiro, que é preciso também

remodelar a economia real.” (JOHSUA, 2009, p. 127). Porém, sobre a primazia ontológica

da base, o próprio “Marx sempre teve razão de sublinhar este caráter ontológico da econo-

mia e de não admitir nenhuma fetichização de sua natureza realmente fundadora.” (LU-

KÁCS, 2009, p. 118).

Somente numa abordagem fetichista da evolução do capitalismo, “a partir da cri-

se de 1929”, uma trajetória da forma e das funções do Estado poderia ser abstraída na ex-

plicação de “uma trajetória do capital” (JOHSUA, 2006). Em compensação, Mandel (1969: p.

65), ao dar “a resposta socialista ao desafio americano”, ressaltara a busca para “encontrar

São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

uma nova forma de Estado que corresponda à nova realidade socioeconômica.” Nesta

grande transformação histórica, no sentido de Engels (1976, p. 70),

a fissura que se opera na alma do capitalista europeu – aqui, cidadão do mundo cosmopolita e, acolá, nacionalista obstinado, partidário da “Europa das nações” – corresponde, então, à contradição suficientemente concreta entre a tendência objetiva do desenvolvimento econômico, isto é, à neces-sidade imposta pelas forças produtivas de se adaptar às mudanças brutais da técnica causadas pela interpenetração européia dos capitais, de um la-do; e, do outro lado, às correlações de força no plano social, as quais fazem com que a sobrevivência do capitalismo dependa cada vez mais de inter-venções diretas do Estado na vida econômica. (MANDEL, 1969, p. 60).

Na gênese da globalização – em cuja base se gestou uma mundialização do ca-

pital ou um capitalismo mundial – a marcha para o mercado mundial ultrapassa as “frontei-

ras”, mas não as “barreiras” nacionais, e nasceram também novas ideologias, “segundo as

quais a integração de fato teria daqui em diante superado essas barreiras nacionais e a hu-

manidade teria diante dela, como perspectiva atual, formas de integração mais desenvolvi-

das e mais vastas.” (LUKÁCS, 2009, p. 343). Em Farias (2004b), há uma crítica das utopias

pós-marxistas ocidentais sobre o Estado globalizado. É espantoso que “um conceito que

encerra um potencial totalitário tão evidente possa seduzir quem quer que seja nas fileiras

da esquerda precisamente anti-totalitária!” (VÉDRINE, 2008, p. 65). Na percepção elementar

da existência das formas estatais nacionais, “vê-se que, para gerir esta crise generalizada,

os Estados inseriram meios consideráveis, à altura das dificuldades enfrentadas. Adotaram

planos atinentes a princípios comuns, mesmo se as modalidades podem variar de um país

para outro,” cujo papel providencial de “financiar essas operações de sustentação massiva

ao sistema financeiro” é funcionalmente legitimado, aceitando natural e passivamente que

“os Estados vão recorrer à dívida pública”, como ato soberano que lhes é inerente (AGLIET-

TA, 2008, p. 81).8

De fato, “os Estados podem intervir para salvar o sistema capitalista, o que fize-

ram, até aqui, sem se embaraçar. Mas, quem salvará os próprios Estados, se sua credibili-

dade econômica está ameaçada?” (JOHSUA, 2009, p. 119). Em vez de se inquietar com

este tipo de questão, um regulacionista doura a amarga pílula com ameaças apavorantes,

insistindo que a socialização dos prejuízos, como saída da crise atual, “seguramente, é pa-

gar caro! Mais é muito melhor do que a terrível depressão econômica, com seu cortejo de

misérias, que o mundo conheceu após o krach de 1929.” (AGLIETTA, 2008, p. 87).

8 Assim, nos países centrais, em resposta à crise foram instaladas políticas orçamentárias altamente dispendio-sas, implicando forte crescimento da dívida pública. Por exemplo, a dívida pública francesa aumentou em 86,5 bilhões de euros no 1º trimestre de 2009, na comparação com o trimestre anterior, totalizando 1,4 trilhões de euros, o que representa 72,9% do Produto Interno Bruto do país. O saldo da dívida líquida do setor público brasi-leiro em maio de 2009 chegou a R$ 1,245 trilhões, valor que corresponde a 42,5% do Produto Interno Bruto do país. Dados conforme as fontes indicadas, abaixo: [http://economia.uol.com.br/ultnot/afp/2009/06/30/ult35u70392.jhtm] 2/8/09. [http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/06/29/materia.2009-06-29.6202274701/view] 2/8/09.

São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

No sentido próprio, os protestos de massa na França metropolitana e nas Anti-

lhas francesas, desde o início de 2009, indicam que os proletários têm outra percepção das

atuais intromissões estatais, que buscam restabelecer uma suposta normalidade capitalista,

com um arsenal de medidas extremamente generosas para quem personifica o capital sob

suas diversas formas, evidenciando os arranjos duvidosos de privatização dos lucros e soci-

alização das perdas. Assim, no combate à recessão, nos planos fiscais de aumento de gas-

to ou de redução de impostos, nos planos de salvamento de firmas e bancos falidos, etc. a

despesa pública é elevada em todos os países, ao mesmo tempo em que o alívio da dívida

privada se transforma em dívida pública extremamente pesada. A magnanimidade para com

os empresários contrasta com o acanhamento do apoio aos proletários, que são as maiores

vítimas da crise. Porém, os momentos de protestação e de sentimento de injustiça não re-

presentam “construção de novas práticas”, nem “novas leituras coletivas da sociedade e do

mundo” e, por mais louváveis que sejam, “as intuições que trazem no seu bojo e as aspira-

ções que manifestam não são transformadas ipso facto em armas críticas contra as relações

sociais de conhecimento subjugadas aos mecanismos do Capital.” (VINCENT, 2004, p. 58).

Por sua vez, a reprodução ampliada do capital social total continua a se realizar

não como círculo virtuoso, coerentemente, mas aos trancos e barrancos. Trata-se de um

contexto onde se produz “a desvalorização, que é o dote da maioria, os deprecia diante de

seus próprios olhos e dos olhos dos outros, transformando-os em vítimas, culpados de não

ter dado certo” (Idem, p. 57), por um lado; e, por outro, “o Capital não explora apenas os

assalariados empregados na produção de valores e de mais-valias, mas se apropria das

rendas, dos capitais, expropriando massivamente as camadas inteiras” (p.55). Recompõe a

superpopulação relativa mundial, pois

os capitais desvalorizados nos momentos das crises servem para a valori-zação de outros capitais, na medida em que toda desvalorização massiva de capitais modifica numa grande escala as condições da acumulação. É perfeitamente secundário que isto implique destruições materiais ou a ex-clusão de numerosos assalariados da produção, o que prevalece é a conti-nuidade da marcha cega do Capital. (VINCENT, 2004, p. 55).

Na análise das formas estatais globais (FARIAS, 2001; 2004a; 2004b; 2005;

2007), percebe-se a pertinência da tese de que “apesar de todos os problemas que os efei-

tos econômicos do mercado mundial engendraram, as formas nacionais do capitalismo con-

seguiram manter-se.” (LUKÁCS, 2009, p. 343). Contudo, as formas estatais integraram-se

numa totalidade concreta, complexa e contraditória, que tende a envolver num mesmo silo-

gismo suas determinações universais, particulares e singulares, conforme o quadro abaixo:

ELEMENTOS DO IMPÉRIO REALMENTE EXISTENTE

Universal Particular Singular

São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009

Esta totalidade “se afirma, como tendência, causalmente, isto é, de maneira de-

sigual, contraditória, produzindo oposições, etc., como todas as orientações importantes do

processo de socialização dos homens.” (Idem, p. 342). Os elementos do império realmente

existente são categorias específicas atinentes aos “germes de uma realização sob a forma

do mercado mundial e de suas conseqüências sociais e políticas, nas quais se manifesta

nos fatos pela primeira vez a tendência que conduz à unidade social efetiva da humanida-

de.” (p. 342). Por enquanto, a humanidade resta integrada sob a barbárie imperialista, na

ausência da integração socialista, isto é, sob o internacionalismo proletário. Na via reformis-

ta, “o advento de um regime de crescimento durável passa pela cooperação internacional

entre as grandes zonas econômicas mundiais”, mediada pela Tríade, porque “sem esta coo-

peração, a correção desordenada dos desequilíbrios poderia provocar recuos protecionistas

e exacerbar as rivalidades políticas”. (AGLIETTA e BERREBI, 2007, p. 404). Conforme esta

realpolitik, só resta à periferia latino-americana, africana, etc. tomar consciência e se con-

formar com isso. Sua saída regulacionista para a crise financeira antecipa o fortalecimento

tanto do imperialismo coletivo ideal, quanto dos países ditos emergentes, de maneira que

ocorreria nos próximos anos “uma mudança no centro de gravidade do poder econômico em

todo o planeta, na medida em que os déficits públicos vão enfraquecer tanto os Estados

Unidos, quanto a União Européia.” (AGLIETTA, 2008, p. 65).

9 Fica para outra ocasião distingui-lo do “imperialismo coletivo” de Amin (2002). 10 Fica para outra ocasião distingui-lo do “imperialismo hegemônico global” de Mészáros (2003). 11 “O subimperialismo corresponde à expressão perversa da diferenciação sofrida pela economia mundial, como resultado da internacionalização da acumulação capitalista, que contrapôs ao es-quema simples de divisão do trabalho – cristalizado na relação centro-periferia, que preocupava a CEPAL – um sistema de relações muito mais complexo.” (MARINI, 1992, 137). Ver também Marini (1972, p. 92 e seg.). 12 “O Plano Marshall e a integração econômica européia marcaram o início de uma nova expansão das diversas potências imperialistas européias. Criaram as condições objetivas de uma indepen-dência crescente destas potências relativamente aos Estados Unidos. Na verdade, estas – sem fazer exceção para a França gaullista – só reivindicavam esta independência no seio da aliança imperialista mundial, não pelo fato de que tenham sido obrigadas a isto pelos Estados Unidos, mas porque esta aliança correspondia a seus interesses de classe e a sua defesa de classe face às po-tências e aos movimentos não-capitalistas.” (MANDEL, 1969, p. 14). 13 FARIAS, 2004. 14 “A ditadura militar brasileira pôs em prática uma política subimperialista, que tinha por objetivo converter o país num centro intermediário de poder, dentro do sistema mundial de dominação es-truturado em torno dos Estados Unidos, com projeção preferencial na América Latina e, em geral, no Atlântico Sul.” (MARINI, 1992, p. 135). Evidentemente, neste quadro, as formas “subimperialis-tas” regionais e nacionais atuais ainda não se consolidaram, mas já se manifestam com pompa e circunstância na ocupação do Haiti, sobretudo pelos países membros do MERCOSUL, liderada pelo Brasil. 15 Esta tendência foi confirmada recentemente, por sua plena incorporação às forças militares da OTAN.

Forma Global Formas Regionais Formas Nacionais

Imperialismo coletivo ideal9

• Imperialismo hegemônico central10 • Subimperialismo periférico (UNASUL)11 • Subimperialismo central (UE)12

• Imperialismo estadunidense13 • Subimperialismo brasileiro14 • Subimperialismo francês15

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Perpetuam-se os “Estados bastante enfraquecidos, mesmo quando cooperam, e

o risco de que o multilateralismo tão enaltecido se revele uma mutualidade das impotên-

cias.” (VÉDRINE, 2008, p. 68). Ao contrário, “somente a socialização pode fornecer uma

saída” para esta periferia que não consegue emergir, ao mesmo tempo em que “ao duplo

desafio dos monopólios americanos e europeus, oponhamos o combate para os Estados

Unidos socialistas da Europa.” (MANDEL, 1969, p. 161).

Contudo, a regionalização realmente existente, inclusive na Europa, resta uma

construção neoliberal. O fato de que existam entre os Estados da Tríade “relações de con-

corrência em matéria econômica e fiscal não deve mascarar que eles exercem uma verda-

deira tutela sobre uma grande parte dos Estados do planeta e buscam fortalecê-la sem ces-

sar” (VINCENT, 2004, p. 63), inclusive através da financeirização global. Neste âmbito, a

razão econômica da exploração se coaduna com uma lógica social de dominação, que se

sustentam mutuamente numa sociedade mundial, a qual “de maneira alguma é uma socie-

dade unificada, mas, ao contrário, é uma sociedade fragmentada, dividida contra ela mes-

ma, marcada por movimentos erráticos e por guerras regionais repetitivas.” (Idem, p. 61).

Sob a égide da dominação própria à pós-modernidade, por um lado, “as tendên-

cias recorrentes à queda da taxa de lucro impulsionam os capitalistas a praticar a predação

sem vergonha através das especulações financeiras e bursáteis”, ao mesmo tempo em que

os organismos internacionais, “sob o véu de ajustamentos estruturais, organizam uma ver-

dadeira hemorragia de capitais do Sul para o Norte.” (p.55). Em geral,

as privatizações atacam tanto o setor público, quanto a Função pública para dobrá-los e transformar os Estados nacionais em aparelhos de expropria-ção, reduzindo cada vez mais os sistemas de proteção social e hipertrofian-do os instrumentos repressivos. Atrás da globalização dos mercados finan-ceiros se dissimulam uma hierarquização e uma polarização das mais acen-tuadas do mundo, sobre um fundo de acréscimo vertiginoso. Na realidade, os mercados são lugares ou dispositivos onde se confrontam as estratégias das multinacionais para tirar melhor partido das fraquezas dos outros atores econômicos, numa escala global (p. 55-56).

Por outro lado, o imperialismo é potencializado através de mecanismos oriundos

das tecnologias de informação e comunicação que, longe de serem neutras, se desdobram

tanto em controle midiático, quanto em contaminação e invasão cultural do american way of

life, assim como em novas cruzadas do bem contra o mal. Não se trata apenas de “domesti-

cação da cultura”, pois

a fantasmagoria mercantil-midiática não somente fascina os espíritos, como também se inscreve nas afetividades e nas sensibilidades. As mercadorias exaltadas e transfiguradas pela publicidade se predispõem, sob formatos sempre novos, à investida libidinal dos clientes reais e potenciais; as ima-gens e os sons eletrônicos (cinema, televisão, internet) fornecem, aparen-temente sem limites, esquemas de comportamento, objetos de identificação

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(pessoas ou coisas), meios de evasão. As mercadorias midiatizadas e o i-maginário mercantil se insinuam de fato no inconsciente e no psiquismo dos indivíduos, não lhes permitindo apreender suas próprias experiências e as modalidades de sua inserção nas relações sociais. (VINCENT, 2004, p. 57).

Enfim, o mito antinômico do bem contra o mal se coaduna perfeitamente com a

ideologia fetichista, – conforme a crítica da economia política –, na qual “a magia do dinheiro

que engendra dinheiro é uma espécie de transcendência que não contradiz outras formas

de transcendência, em particular, a das religiões reveladas.” (Idem, p. 62). Assim, a Santa

Cruzada do capital é naturalizada, eternizada e abençoada na escala global. No nível da

superestrutura, isto se combina com “a justiça dos vencedores (de Nuremberg a Bagdá)”,

que implica “guerra humanitária” e “guerra global preventiva” (ZOLO, 2007). Com fim da

guerra fria, isto é,

Desde o fim da bipolaridade até hoje, as potências ocidentais não somente utilizaram arbitrariamente a força militar, como também empunharam explici-tamente o ordenamento jurídico internacional em nome de seu incondicio-nado jus ad bellum. Deste balanço de fracassos não se exime a invenção institucional do século XX, ou seja, a jurisdição penal internacional [...] O in-teresse que se persegue com a força das armas é a estabilidade da ordem mundial [...] Trata-se, em suma, de garantir o desenvolvimento dos proces-sos de globalização num marco de elevada e crescente assimetria política e econômica nas relações internacionais. (Idem, p. 83 e 117).

CONCLUSÃO: Crise global e reconfiguração do sujeito coletivo revolucionário

As correntes economicistas renegam a bíblia da classe proletária, como também

descartam do momento da crise global, a dialética entre o capital e o Estado, cujo papel é

limitado no nível dos capitais numerosos, das contradições inter-capitalistas, das finanças

dominadoras das atividades produtivas. Além do mais, na depuração da crise, quando ten-

tam amenizar desigualdades de repartição da riqueza e práticas financeiras especulativas,16

bem como conflitos entre capital e trabalho, ignoram que a emancipação humana requer,

além da luta pela superação das condições que criam o antagonismo entre capitalistas e

assalariados, uma luta mais geral contra os fundamentos das diversas formas de opressão,

inerentes ao capitalismo (COUTROT, in HUSSON, 2004, p. 78-79). Ou melhor,

a dominância da economia sobre toda a sociedade, sua penetração em to-das as atividades, a marca profunda que deixa sobre o simbólico e o imagi-nário, tudo isso a obriga a levar em conta temporalidades, gravitações que resistem mais ou menos aos ritmos e aos modos de funcionamento propri-amente econômicos. Sem dúvida, os indivíduos são implicados, sacudidos

16 Evidentemente, com nova eutanásia do rentista, talvez inspirada em duas evidências, a saber: 1º “Os piratas não são, e não serão jamais, os amigos sinceros dos navegadores.” Jorge Luis Borgès, História da infâmia, in [http://gesd.free.fr/ofce1103.pdf] 2/8/2009. 2º “Não é possível ser-se Robinson sem que uma piroga venha atra-car à ilha onde se está e sem que apareçam canibais um dia ou outro.” Jules Verne, Escola dos Robinsons, in [http://www.tutomania.com.br/images/bullets/icon_rar_32.gif] 2/8/2009.

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pelos movimentos, seu vivido e seu cotidiano não podem jamais entrar com os dois pés e completamente no mundo do Capital. Por isso, o econômico [...] está em guerra permanente para tentar quebrar tudo que lhe resiste. (VINCENT, 2004, p. 56).

O sujeito coletivo resistente não deve se atar burocraticamente no economicis-

mo, nem no voluntarismo, como desvios oportunistas, que tentam respectivamente influen-

ciar o proletariado, através de duas atitudes ideológicas, a saber: a primeira, “que deve, sem

nenhuma dúvida, diretamente limitar e mesmo frear, toda práxis realmente eficaz, social-

mente universal”, a segunda, “que o isola subjetivamente de sua única base ontológica legí-

tima, da totalidade dinâmica do processo socioeconômico no seu conjunto.” (LUKÁCS,

2009, p.208). Enfim, “a totalidade jamais completamente conhecível das determinações do

ser em questão torna socialmente possíveis e necessários tanto o funcionamento prolonga-

do e imperturbado de teorias incompletas contendo verdades parciais, quanto sua supera-

ção.” (Idem, p. 48).

Na busca da saída da crise global, importa ampliar e aprofundar as pesquisas de

filosofia política, no sentido crítico e revolucionário. O que motiva e justifica leituras de atua-

lização, em tempos de crise, sobre a mundialização do capital dos marxistas ou o capitalis-

mo mundial dos regulacionistas.17 Na hipótese histórico-economicista majoritária de uma

“crise do regime de crescimento”, então, “é o conjunto das formas institucionais do capita-

lismo desregulamentado sob dominância financeira que exige uma profunda transformação.”

(LORDON, 2008b, p. 212). Como se trata de apreender e transformar o fenômeno substan-

cialmente,

as ações coletivas devem ser, permanentemente, transformadoras das rela-ções nas quais estão inseridos os grupos sociais e os indivíduos explora-dos. As ações coletivas, mesmo quando são defensivas, não devem se limi-tar ao imediato, mas dinamizar processos visando mudar em profundidade os posicionamentos de uns e de outros. À produção semântica do Capital e de seus agentes, é preciso opor outra produção semântica que fale explici-tamente da barbárie nas relações de trabalho, dos sofrimentos suportados, em vez de exaltar as virtudes da empresa capitalista, da competência, da performance. (VINCENT, 2004, p. 58).

Sobre a globalização situada no tempo e no espaço, os regulacionistas perma-

necem marcados por certo historicismo, inerente à sua visão do regime de acumulação. As-

sim, evidencia-se a especificidade desta categoria, pois “o capitalismo só existe através de

suas atualizações históricas e que estas são, por definição, mutantes”, por um lado; e, por

outro lado, oculta a universalidade do modo de produção capitalista, mesmo se pondera ser

possível obter “um conceito geral do capitalismo” e que, “nesta matéria, dificilmente se faria

melhor do que Marx” (LORDON, 2008b, p. 186-187). Para este, tal conceito, porém, “per-

17 [http://hussonet.free.fr/lacrise.htm]

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manece necessariamente sub-determinado, e é a história que, por assim dizer, se encarrega

de completá-lo, dando-lhe suas formas concretas.” (Idem, p. 187). Trata-se de um comple-

mento teórico-metodológica que envolve certo tecnicismo (FARIAS, 2003). Por um lado, não

evita os engodos do chamado capitalismo cognitivo

vinculados, por exemplo, aos desenvolvimentos da informática, que tendem a fazer crer que os problemas da sociedade podem ser resolvidos pelo pro-gresso técnico, pela net-economia, pelos embalos para pseudo-soluções aos problemas graves, como na proposta de reforço do autoritarismo para enfrentar a miséria educativa, etc. (VINCENT, 2004, p. 58).

Por outro lado, não evita os engodos economicistas, que suscitam uma resposta

marxista decisiva, a saber: “uma luta contra a fragmentação dos pontos de vista, destacando

os encadeamentos, uma luta pela totalização de experiências cindidas, contra as separa-

ções fetichistas entre política e economia, vida privada e vida pública.” (Idem). Assim, a pri-

mazia da base (forma-capital) não deve ocultar que a mundialização concerne também a

superestrutura (forma-Estado). Em termos de ontologia do ser social, a situação historica-

mente determinada não elimina a análise concreta, onde a economia não é uma segunda

natureza, etc. O processo de acumulação do capital não se restringe a regimes de cresci-

mento reguláveis estatal e contratualmente, pois “coloca em brandimento e modulação rela-

ções sociais na perspectiva de sua reprodução como relações submetidas ao movimento da

valorização.” (p. 56). Com efeito,

a relação social de produção e as relações de trabalho não podem ser se-paradas de relações jurídicas simbólicas e políticas, de relações hierarqui-zadas e sexuadas, assim como de modos de socialização dos indivíduos. O caráter cíclico dos movimentos do Capital também não é separável de mo-vimentos e de processos que se situam fora da esfera da produção; não pode, então, ser regular e completamente autônomo. As alternâncias entre prosperidade e depressão, entre fases de crescimento e de estagnação não concernem a pura e simples repetição, mas combinações diferenciais sem-pre renovadas. (Idem).

Face ao Império realmente existente, o sujeito coletivo revolucionário não deve

“querer retornar às soberanias nacionais”, apenas para se conformar à ideologia estatal-

intervencionista, nem tampouco deve se limitar à denúncia da forma neoliberal do capitalis-

mo e do modo de atuação dos organismos internacionais, pois “a mundialização não é so-

mente a globalização dos mercados apoiada por organismos internacionais” – embora não

se deva “abandonar os terrenos nacionais e deixar de lutar contra os Estados, tal como são,

em suas interdependências múltiplas.” (p. 63-64).

O sujeito coletivo que totaliza diversas formas de luta contra a exploração, a do-

minação e os atentados à dignidade humana, não deve se limitar à conquista tática daquilo

que “o capitalismo está disposto a lhe conceder”, mas, estrategicamente, sob qualquer pon-

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to de vista ou referência tomada, “deve sempre objetivar um para além do capitalismo, bem

como não se deixar absorver pelo campo institucional, sobretudo o campo político profun-

damente marcado pelo economicismo.” (p. 59). Por isso, exige mudança na política classista

proletária herdada do século XX, superando tanto suas formas corporativistas e burocráti-

cas, quanto suas imposições e orientações autoritárias, vindas de fora ou acima das massas

– mas, sem cair em mero espontaneísmo ou anarquismo de anti-poder. A superação das

crises do capitalismo não resulta de uma reforma no regime de governo, mas implica uma

democratização “onde a sociedade capitalista é desnudada nos seus diversos mecanismos”

(p.60). Nesse sentido,

a concepção militarista da tomada do poder deve ser descartada, como uma via que leva a impasses. A violência revolucionária não é qualquer vio-lência, mas uma contra-violência, cujo objetivo reside no combate à violên-cia das relações. Não é mais furor desmesurado contra um inimigo de clas-se, mas hegemonia racional e política dos meios de coerção e de repressão (p. 60-61).

Os seres políticos indispensáveis à superação do capitalismo devem agir “como

organizações que contribuem para aumentar as capacidades de reflexão autônoma das

massas, fazendo retorno junto com elas sobre as incidências e os prolongamentos.” (p. 59).

O objetivo estratégico anticapitalista não deve ser separado da concretização das transfor-

mações sociais através das diversas lutas pela emancipação humana, que seriam ineficazes

na ausência de “conteúdo social integral” (CHE GUEVARA, 2002, p. 114). Assim, “deve ha-

ver uma dialética permanente, um condicionamento recíproco entre partido e movimento

social.” (VINCENT, 2004, p. 60).

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