a criatividade enquanto dinamismo de desenvolvimento e de expansÃo da consciÊncia

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O conceito de criatividade, estudado do ponto de vista da Psicologia Humanista de Carl Rogers e Abraham Maslow, revela-se aberto a uma conjugação com o conceito de desenvolvimento, tal como é lido na óptica de Carl Jung e Ken Wilber. Retomando o conceito de auto-actualização de Maslow e Rogers, bem como o conceito de individuação de Jung, sugere-se que a criatividade seja olhada como dinamismo impulsionador da evolução da pessoa. Wilber propõe um caminho de desenvolvimento que serve para ilustrar até onde a criatividade pode conduzir a consciência. O conceito de auto-transcendência a que se refere Viktor Frankl elucida quanto à natureza do dinamismo operado pela criatividade no desenvolvimento da consciência. A finalizar destacaremos os contributos, recentes, de Mihaly Csikszentmihaly que apresenta uma linha de pensamento da qual se liberta também a ideia de que a criatividade se encontra ao serviço do desenvolvimento da pessoa.

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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O  novo  paradigma  científico,  mais  holístico  e  menos  mecanicista,  teve,  em Psicologia, claros reflexos nas correntes Humanista e Transpessoal, sobretudo pela permeabilidade destas ao diálogo com outras áreas do saber e pela flexibilidade e abrangência das suas visões antropológicas. É assim que nestas duas áreas vamos encontrar os trabalhos que, não fugindo do rigor conceptual e metodológico a que obriga  o  procedimento  científico,  mais  proximamente  vão  situar‐se  daquele «estudo  da  alma»  em  torno  do  qual,  como  vimos,  se  organizava  a  Psicologia filosófica. 

Querendo  nós  reaproximar‐nos  desse  «estudo  da  alma»,  observando  de  que modo  melhor  se  reflecte  na  Psicologia  científica  dos  nossos  dias,  consideramos imprescindível  a  focalização  nos  conceitos  de  criatividade  e  desenvolvimento, também eles alvo preferencial dos estudos humanistas e transpessoais, por ambos terem subjacente uma concepção maximamente aberta do ser humano. 

Assim, o presente trabalho tem como objectivo ensaiar uma compreensão global do  fenómeno  da  criatividade  à  luz  de  algum  do  pensamento  de  várias  figuras marcantes da Psicologia Humanista e/ou da Psicologia Transpessoal. Defender‐se‐á, através de um entrecruzamento de ideias de Carl Rogers, Abraham Maslow, Carl Jung, Ken Wilber, Viktor Frankl e Mihaly Csikszentmihalyi, que a criatividade é um dinamismo indissociável do processo de desenvolvimento humano integral, sendo que a conceptualização dos mecanismos subjacentes a esse processo e a descrição das etapas de que se compõe – aspectos estes a que dedicaremos a nossa atenção – se  revestem do mais vivo  interesse,  dado que através do  seu  conhecimento e do reconhecimento da  sua preponderância  (que pretendemos demonstrar)  se  chega ao esclarecimento de como pode ser concretizado o potencial de desenvolvimento da pessoa. Desse modo, ainda, se acaba igualmente por circunscrever os alicerces de  uma  visão  mais  rica  e  fecunda  dos  próprios  conceitos  de  criatividade  e desenvolvimento. 

CRIATIVIDADE, NOVIDADE E EXPRESSÃO DO SER: O VALOR DA SINGULARIDADE

Carl  Rogers,  no  seu  livro  Tornar­se  Pessoa  (1977),  oferece‐nos  uma  visão bastante  interessante acerca da  criatividade. Para Rogers,  a  criatividade  consiste fundamentalmente no  surgimento,  no  contexto da  acção de  uma pessoa,  de  uma construção  nova  resultante  da  interacção  entre  a  própria  pessoa,  enquanto  ser único que tem uma forma particular de ser e de exprimir‐se, e todo o meio que a envolve e serve de enquadramento para a sua experiência, contexto que se compõe de «materiais, acontecimentos, pessoas ou circunstâncias de vida» (1977, p. 301). 

O carácter de novidade sempre ligado aos produtos chamados criativos deriva, simplesmente, da presença de uma subjectividade a agir num momento particular, dirigida  para  a  transformação  de materiais  específicos.  Quer  isto  dizer  que  para Rogers  a  novidade  está  muito  mais  dependente  de  uma  circunstancialidade 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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relacional do que de um reconhecimento social de um eventual produto. Podemos então  considerar  que  a  novidade,  a  diferença,  é  introduzida  sobretudo quando  a pessoa se exprime, i. e. no processo de expressão, muito mais do que quando essa expressão  inevitavelmente se concretiza num produto acabado. Assim, o produto surge  como  rasto,  indício  de  um  acontecimento,  e  interessa  sobretudo  enquanto pista  conducente  à  reactualização  desse  acontecimento,  desse  processo  que  o engendrou  e  pode  vir  a  estar  na  origem  de  novos  produtos.  A  novidade  surge então, para Rogers, sempre que a pessoa  imprime uma marca distintiva sua num determinado  produto,  que  é,  evidentemente,  o  resultado  da  interacção  entre  a pessoa e os materiais que lhe serviram de base para fazer emergir esse produto. 

O primeiro aspecto que queremos  sublinhar,  e que derivamos do pensamento do Rogers, é precisamente este da primazia do processo criativo sobre o produto, na medida em que o processo é o centro donde tudo nasce e a partir do qual tudo se  elabora.  É  o momento mais  significativo,  o  da  expressão  do  ser.  E  Rogers,  ao reflectir sobre o reconhecimento social dos produtos criativos (a necessidade de, para  serem historicamente  reconhecidos,  obterem  a  aceitação  dum determinado grupo num determinado momento), acentua a sua valorização do processo criativo propriamente  dito,  rejeitando  uma  classificação  dos  produtos,  a  qual  levaria apenas,  em  última  análise,  a  considerar  uns  superiores  a  outros  sob  o  ponto  de vista de determinados critérios (1977, p. 302). 

Outra importante ideia que deve ser acentuada é a de que sem a manifestação da  singularidade  do  ser  a  criatividade  não  surge.  Para  que  algo  novo  surja,  no sentido  que  Rogers  atribui  ao  conceito  de  «novidade»,  tem  de  haver  uma singularidade  a  manifestar‐se  enquanto  tal,  a  ser  enquanto  tal,  a  reconhecer‐se enquanto tal. Caso se perca a sintonia com esse elemento de singularidade, então não  haverá  criatividade,  mas  rotina,  e  a  pessoa,  afastada  da  sintonia  com  a  sua singularidade, não será capaz de produzir coisas novas. 

Rogers  pode  elucidar‐nos  também  quanto  ao  que  aqui  entendemos  por «singularidade»  quando  reflecte  acerca  da  motivação  que  subjaz  à  criatividade. Para ele, o mecanismo que reside na origem da criatividade – e também do próprio processo  curativo  ao  nível  da  psicoterapia  –  é  «a  tendência  do  homem  para  se realizar  a  si  próprio,  para  se  tornar  no  que  em  si  é  potencial»  (Rogers,  1977,  p. 302).  Ora,  a  singularidade  de  um  ser  humano,  como  a  entendemos,  consiste precisamente na ligação da pessoa a esse movimento de realização do que em si é potencial,  e  manifesta‐se  quer  através  do  processo  de  a  pessoa  se  tornar  nela mesma,  quer  através  da  consciência  que  se  desenvolve  acerca  desse  processo. Quando não há, por parte da pessoa, sintonia com essa dimensão de inscrição num processo de desenvolvimento pessoal, então, com o esbatimento da singularidade, dá‐se o afastamento da criatividade. 

Vemos que a criatividade surge como expressão desta tendência do ser humano para ser mais ele mesmo. Quando produz coisas novas e passa a relacionar‐se de novas  formas  com  o  meio  envolvente,  o  ser  não  está  a  fazer  mais  do  que  a mergulhar no processo de tornar‐se ele mesmo, de pôr em acto aquilo que em si é 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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potencial.  Este  processo  de  desenvolvimento  passa  por  uma  expansão,  um alargamento das capacidades do ser, e a expressão pessoal através de produtos é apenas a consequência natural desse processo que consiste em ser aquilo que, de algum modo, já se é. Essa expressão, à medida que o processo decorre e evolui, vai‐se complexificando cada vez mais, mas o que nos parece fundamental é observá‐la –  à  expressão,  ao  produto  criativo  –  enquanto  testemunho  de  um  processo  em curso no qual o ser se encontra em aproximação de si mesmo. 

Tendo  em  conta  o  que  até  agora  foi  dito,  consideramos  justo  afirmar  que  ser criativo é lançar o ser no fazer. Uma definição tão simples como esta contém em si um larguíssimo espectro de implicações. Por exemplo, a de que se pode ser criativo em qualquer área da vida, em qualquer momento, em qualquer lugar, desde que se aja  inscrito,  ou  em  sintonia,  com essa  tendência  para  se  realizar  a  si mesmo. Ou ainda a de que quando ser e fazer coincidem, ou quando entre ambos se estabelece uma harmonia, então deixa de fazer sentido a distinção entre sujeito e objecto, uma vez que um e outro passam a estar totalmente envolvidos num mesmo dinamismo de desenvolvimento dentro do qual ambos se derramam um no outro, quase como se de uma relação amorosa se tratasse. 

CONDIÇÕES PARA UMA CRIATIVIDADE CONSTRUTIVA

Reflectindo  acerca  da  pertinente  problemática  da  criatividade  socialmente construtiva e da criatividade socialmente destruidora, Rogers identifica uma série de condições internas que constituem, segundo ele, o referencial mais seguro para apurar se a criatividade de alguém, manifestada através dos produtos criados, é ou não positiva e benéfica para o meio social. 

A  primeira  dessas  condições  é  a  da  abertura  à  experiência,  que  consiste  num estado de disponibilidade da pessoa relativamente às experiências de vida em que se  vê  mergulhada,  não  sendo  este  objecto  de  distorção  com  vista  à  defesa  da organização  psíquica.  Uma  pessoa  aberta  à  experiência  encontra‐se,  portanto, aberta  à  percepção  dos momentos  existenciais  integralmente  considerados,  sem haver a interposição de filtros e barreiras entre ela e o que acontece. Para Rogers, a abertura  à  experiência  é  garantia de uma  criatividade  construtiva,  enquanto que uma  reduzida  abertura  à  experiência  facilita  a  emergência  de  uma  criatividade patológica,  uma  vez  que  há  fases,  ou  partes,  da  experiência  que  não  acedem  à consciência e não se encontram clarificadas para a pessoa. Haverá, assim, sempre um reduto a defender, e é na defesa desse reduto que se localiza o perigo potencial (Rogers, 1977, p. 305). 

A segunda das condições para uma criatividade construtiva é a existência de um centro  interior  de  apreciação,  i.  e.,  o  facto  de  a  pessoa  se  sentir  aquela  que activamente,  mais  do  que  ninguém,  valoriza  aquilo  que  faz,  na  medida  em  que aquilo  que  faz  é  expressão  de  uma  actualização  das  suas  potencialidades.  A satisfação com a criação vem do interior, e não do exterior (Rogers, 1977, pp. 305‐306). 

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A  terceira  condição  indicada  por  Rogers  é  a  capacidade  para  lidar  com elementos  e  conceitos,  i.  e.,  a  capacidade  para  manejar  com  destreza  um determinado elemento («ideias, cores, formas, relações») (1977, p. 306), de modo a  produzir  combinações  inesperadas  que  progressivamente  vão  conduzindo  ao surgimento de algo novo e significativo. 

Entendido o dinamismo da criatividade como inscrição do ser na tendência para se realizar a si mesmo, para se tornar naquilo que em si é potencial, e conhecidas as principais condições que, de acordo com Rogers, estão associadas à criatividade socialmente  construtiva,  iremos  agora  deter‐nos  nalguns  aspectos  importantes deste processo de desenvolvimento. 

O PROCESSO DE AUTO-ACTUALIZAÇÃO E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO: ABERTURA PARA O SI-MESMO E CRIATIVIDADE ENQUANTO VISÃO SIMBÓLICA DO REAL

Abraham Maslow, que estudou a fenomenologia das chamadas experiências de pico, ou experiências de topo, propôs, na sequência desse estudo, uma revisão do conceito de auto‐actualização, no sentido de que se passasse a considerar a auto‐actualização não  como um patamar  rígido,  a  que  apenas  alguns  têm acesso, mas sim  como  um  episódio,  que  pode  surgir  na  vida  de  qualquer  pessoa,  a  qualquer momento,  em  que  os  potenciais  dessa  pessoa  se  realizam  de  uma  forma particularmente  eficiente  e  intensamente  gratificante,  e  em  que  a  pessoa  se encontra  mais  integrada  e  menos  dividida,  mais  aberta  à  experiência,  mais expressiva,  espontânea  e  idiossincrática,  mais  criativa  e  mais  distante  das  suas necessidades  ligadas  ao  preenchimento  de  um  défice.  Segundo  Maslow,  nestes episódios de auto‐actualização pode dizer‐se que as pessoas são mais elas mesmas, encontrando‐se mais  perto  de  realizar  as  suas  potencialidades,  e mais  perto  do núcleo do seu ser (Maslow, 1998, p. 106). 

O  que,  para  o  autor,  constitui  o  factor  de  distinção  entre  as  pessoas  auto‐actualizadoras e as restantes é o facto de na vida das pessoas auto‐actualizadoras os  episódios  de  auto‐actuali‐zação  surgirem  com muito mais  frequência  e  serem bastante mais intensos e completos do que em pessoas que não são consideradas auto‐actualizadoras (Maslow, 1998, p. 106). 

Através  desta  ideia,  que  corrobora  de  certo  modo  a  ideia  de  Rogers  da universalidade  da  motivação  para  a  auto‐realização  do  potencial  humano, percebemos que o processo de auto‐actualização, encontrando‐se aberto a todas as pessoas, nem em todas elas encontra plena concretização. Para que isso aconteça, para  que  esse  processo  se  plenamente  desenvolva,  é  necessário  que  comece  a enraizar‐se na vida um padrão de experiências de auto‐actualização. 

Interrogamo‐nos agora acerca da natureza deste processo. Portanto, ao invés de nos  centrarmos nalgumas das principais  características das experiências de  topo 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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às quais Maslow extensamente se refere (e. g., Maslow, 1998, pp. 83‐111; pp. 115‐125), vamos antes deter‐nos no movimento de individuação descrito por Carl Jung, crendo  que  alguns  dos  conceitos  propostos  por  este  autor  podem  elucidar‐nos acerca  do  modo  como  se  engendra  esse  padrão  de  experiências  de  auto‐actualização. 

Para Jung, o processo de individuação é um «processo psicológico que conduz, tendencialmente, cada ser humano à realização consciente e plenamente cumprida de si mesmo como um ser único» (Proença, 2003, p. 27). Este processo tem como ponto culminante a abertura a um centro psíquico diferente daquele do ego. Este novo  centro  psíquico,  que  transcende  o  ego,  é  por  Jung  designado  Si‐Mesmo. Enquanto o ego pode ser considerado como o «centro da personalidade consciente, a sede da identidade subjectiva» (Proença, 2003, p. 27), o Si‐Mesmo é, por sua vez, «o centro ordenador e unificador da psique total, consciente e inconsciente, a sede da identidade objectiva, a divindade empírica interna, equivalente à imago Dei. É a fonte  central  (não  nascente...)  de  energia  de  vida.  É  a  vivência  psíquica  que  o homem pode ter da divindade» (Proença, 2003, p. 28). 

Constituindo  o  Si‐Mesmo  o  centro  e  a  totalidade  da  psique,  compreendendo tanto a esfera da consciência como a do inconsciente, e sendo capaz de conciliar os opostos, ele  tem a capacidade de  integrar e englobar  todos os elementos da vida psíquica,  com  as  inevitáveis  contradições  que  lhes  são  inerentes.  Dada  a proeminência de que se reveste a estrutura do Si‐Mesmo, importa, de acordo com a dinâmica  da  individuação,  que  se  dê  o  estabelecimento  de  um  «eixo  ego  /  Si‐Mesmo» (Neuman, cit. in Proença, 2003, p. 28), de forma a que o ego se torne capaz de  suportar  as  tensões  da  vida  psíquica  e  adquira  uma  estrutura  efectivamente sólida. 

Ora,  o  modo  como  este  eixo  ego  /  Si‐Mesmo  pode  consolidar‐se  passa  pelo desenvolvimento de uma leitura simbólica da realidade e dos conteúdos oníricos, tendo em consideração que a pressão do Si‐Mesmo para se manifestar e entrar na vida  consciente  se  exerce  em  todas  as  áreas  da  vida.  Deste  ponto  de  vista,  os acontecimentos  da  existência  passarão  a  ser  lidos  como  símbolos  que  remetem para  aspectos  diversos  da  busca  de  um  novo  centro  para  a  personalidade, mais vasto  e  abrangente  que  o  ego.  Note‐se  que  o  Si‐Mesmo  não  vem  excluir  nem diminuir  o  ego,  mas  antes  dar‐lhe  a  vitalidade  necessária  para  que  possa desempenhar eficazmente o seu papel de mediador dessa estrutura mais vasta que é o Si‐Mesmo. 

Segundo  cremos,  esta  visão  simbólica  da  realidade,  tal  como  aqui  a descrevemos,  à  luz  da  perspectiva  jungiana,  pode  ser  considerada  como  o mecanismo  facilitador  da  ocorrência  de  experiências  de  auto‐actualização. Propomos que o Si‐Mesmo jungiano seja aproximado da noção de motivação básica para a realização do potencial por parte do ser humano, passando a coincidir com a máxima realização desse potencial. Assim, as experiências de auto‐actualização, ou de auto‐realização, entendidas como experiências de construção e  fortalecimento do  eixo  ego  /  Si‐Mesmo,  e  que  teriam  nas  experiências  de  pico  descritas  por 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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Maslow  umas  das  suas  mais  intensas  expressões,  seriam  facilitadas  através  do exercício desta leitura simbólica da realidade, sob a pressão desenvolvimental do Si‐Mesmo, em pleno processo de individuação. Assim, consideramos o processo de auto‐actualização,  ou  auto‐realização,  e  o  processo  de  individuação,  como conceitos intermutáveis. 

Coloca‐se agora, justamente, uma pergunta: qual é o lugar da criatividade neste cenário? Ora, a criatividade, tal como Rogers a entende, queremos nós aproximá‐la desta visão simbólica da realidade a que fazemos menção. Sendo um dinamismo de transformação  da  realidade,  com  a  criação  de  produtos  novos,  e  tendo  como principal motivação a realização de todo o potencial da pessoa, se considerarmos o fortalecimento do eixo ego / Si‐Mesmo como o mais significativo processo da vida psíquica,  em  que  o  potencial  humano  é  maximamente  actualizado,  então  a criatividade confundir‐se‐á com o exercício dessa visão simbólica, tendendo para a constante  escuta  dos  apelos  que  o  Si‐Mesmo  lança  ao  ego  no  sentido  da consolidação dos seus alicerces. Deste modo, a criatividade aprofundar‐se‐ia como expressão de uma busca, a busca desse novo centro psíquico, o Si‐Mesmo, sendo ao mesmo  tempo o veículo de  realização dessa busca. Cada produto  criativo  seria o indício  da  vitalidade  da  visão  simbólica  à  procura  da  amplificação  do  espaço  de abertura do ego ao Si‐Mesmo, enquanto que o processo criativo funcionaria como via de integração mais eficaz e profunda nessa estrutura mais vasta. 

CRIATIVIDADE E AUTOTRANSCENDÊNCIA

Na sequência do conceptualização que fazemos da criatividade, olhando‐a como força  tendencialmente  posta  ao  serviço  da  manifestação  do  Si‐Mesmo,  e percebendo‐a  assente  sobre  uma  visão  simbólica  do  mundo  através  da  qual  a atenção à realidade interna e externa se torna capaz de discriminar estímulos que, sendo  lidos  à  luz  desse  dinamismo  axial  do  psiquismo  que  é  a  realização  do máximo  potencial  da  pessoa,  i.  e.,  a  abertura  ao  contacto  com  o  Si‐Mesmo,  se revelam  fecundos  e  construtivos,  com  o  poder  de  operar  mudanças  muito significativas  na  vida  da  pessoa,  cabe‐nos  interrogar  todo  este  dinamismo  na tentativa  de  nele  identificarmos  processos  essenciais  que  nos  levem  a  melhor compreendê‐lo. 

Viktor  Frankl  desenvolve  na  sua  obra  dois  conceitos  que  nos  parecem  ser fundamentais  para  esta  compreensão  que  pretendemos  aprofundar:  a autotranscendência e a vontade de sentido. A autotranscendência é, de acordo com Frankl  (1990),  essa  faceta  do  ser  humano  que  corresponde  à  sua  vontade  de  ir além de si mesmo. Para Frankl, a auto‐realização da pessoa, ou auto‐actualização, é algo só possível pela autotranscendência, pela transcendência de si (1990, p. 30). Só se cumpre a pessoa que apontar para além de si própria. E também a identidade é, segundo o autor, algo que só se consolida graças à autotranscendência. 

A  autotranscendência  mais  não  é  do  que  uma  decorrência  de  uma  original vontade  de  sentido  que  aparece  no  ser  humano  como  algo  de  estrutural  e 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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elementar (Frankl, 1982, p. 99). É através da autotranscendência que essa basilar vontade de sentido se exerce e cumpre. E este apontar para além de si próprio, esta autotranscendência,  acaba  por  ter  a  sua  concretização  global  no  serviço  de  uma causa ou no amor de uma pessoa, repousando sobre a capacidade de perceber os sentidos subjacentes às diversas etapas e situações de vida. Para Frankl, o sentido é algo objectivo, algo que emerge da existência e a confronta. Por isso, não pode ser dado, mas apenas encontrado. Uma vez encontrado o sentido de algo, a realização desse  sentido  passará  pela  autotranscendência,  em  que  o  ser  humano  de  algum modo se perde para ir encontrar‐se à medida que se põe em marcha rumo a esse sentido que o ultrapassa (Frankl, 1982, p. 100). 

Sublinhada então a ideia de que, para Frankl, a autotranscendência é o processo que  garante  a  auto‐realização  do  ser  humano  e  a  consolidação  da  estrutura identitária, propomos que se alargue a nossa compreensão da criatividade  tendo também em conta o contributo teórico dado por este autor. 

Retomando  a  proposta  que  fazemos,  a  autotranscendência  constituiria  o processo  de  base  da  criatividade,  sendo  que  todo  este  edifício  que  descrevemos assentaria  sobre esse  elemento essencial no homem que é  a  vontade de  sentido. Que lugar teria aqui a tendência para a auto‐realização descrita por Rogers, posta por  ele  na  base  da  criatividade?  Muito  simplesmente,  seria  a  expressão  desse mecanismo nuclear da autotranscendência. A auto‐realização seria, assim, o efeito do  exercício  da  autotranscendência.  O  Si‐Mesmo  jungiano  manter‐se‐ia  como estrutura identitária basilar. A abertura a essa estrutura conquistar‐se‐ia por meio da busca de sentido levada a cabo através da autotranscendência, concretizada na construção  de  uma  visão  simbólica  dos  acontecimentos  de  vida,  i.  e.,  na criatividade.  De  facto,  o  que  é  o  Si‐Mesmo  senão  uma  culminação  da autotranscendência,  na  medida  em  que  é  mais  vasto  e  abrangente  do  que  a estrutura egóica? O encontro  com o Si‐Mesmo seria o  sentido  supremo para que convergiria a vida humana, encontrando expressão objectiva na ultrapassagem de si alcançada através do serviço a uma causa ou do amor a uma pessoa. 

A criatividade entendemo‐la então como um processo em que está envolvida a autotranscendência.  O  ser  humano  criativo  deixa  de  estar  dobrado  sobre  si próprio,  mas  transcende‐se,  criando.  Através  da  sua  criação,  reinaugura constantemente uma visão  tendencialmente  simbólica da  realidade, que o  coloca na esteira do encontro com o Si‐Mesmo. Enquanto cria,  realiza ao mesmo  tempo esse  sentido  supremo que  é  colocar‐se na presença de uma estrutura  identitária mais  vasta,  e  a  sua  criação  confunde‐se  com  a  entrega  a  algo  que  o  ultrapassa. Deste modo, auto‐realiza‐se. 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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A EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA: CRIATIVIDADE, ABERTURA À ALTERIDADE E DEVIR

Depois  das  considerações  acerca  da  autotranscendência  e  da  criatividade, trataremos agora da questão da existência de diferentes níveis de consciência que podemos  encontrar  ao  longo  do  processo  de  auto‐realização,  e  cuja  natureza traduz  sucessivas  e  cada  vez maiores  aproximações  à  estrutura  identitária  final que é o Si‐Mesmo. 

Ken  Wilber  chama  a  atenção  para  a  existência  de  vários  estádios  no desenvolvimento da consciência do Si‐Mesmo (Proença, 2003), no sentido da sua expansão.  De  acordo  com Wilber,  a  percepção  do  Si‐Mesmo  progride  através  de estados  de  consciência  cada  vez mais  diferenciados,  à medida  que  se  processa  a evolução  para  uma  consciência  mais  ampla  da  totalidade  em  que  consiste  essa estrutura identitária. 

Proença (2003), reflectindo acerca do desenvolvimento da identidade, nota que, na infância, o ego tende a emergir, através de um processo de diferenciação, de um Si‐Mesmo  primordial,  oceânico.  O  culminar  de  todo  este  processo  são  as experiências  de  pico  transpessoais  em  que  o  Si‐Mesmo  transcende  os  limites  de um  ego  organizado.  Entre  um  e  outro  extremo  do  continuum  há  uma  série  de experiências  de  identificação  pelas  quais  a  pessoa  vai  passando, mais  ou menos egocentradas (Proença, 2003, p. 29). 

Num  dos  derradeiros  patamares  dessa  progressão,  o  estado  de  consciência cósmica, ou supra‐consciência, os próprios padrões energéticos reconhecidos pela consciência como ego desaparecem, expandem‐se e integram‐se em padrões mais ampliados de consciência, a que Wilber chama o Si‐Mesmo Transpessoal (Wilber, cit. in Proença, 2003, p. 29). 

Por  último,  deparamo‐nos  com  um  estado  de  consciência  unitiva,  em  que  se passa  do  domínio  da  psique  para  o  domínio  da  vivência  mística,  da  pura consciência. Trata‐se aqui, segundo Proença, de um estado absoluto de ser, em que só a pura Consciência de Ser se manifesta, acedendo‐se a uma  identidade radical total (Proença, 2003, p. 29). 

Uma  abordagem  complementar  a  esta,  que  olha  o  desenvolvimento  da consciência  humana  como  um  processo  que  decorre  ao  longo  de  oito  /  nove estádios, é‐nos também descrita pelo próprio Wilber, que nos remete para os seus autores,  Don  Beck  e  Christopher  Cowan  (Wilber,  2005,  p.  27).  De  acordo  com Wilber,  esta  abordagem,  que  constitui  um  aperfeiçoamento  do  trabalho  de  Clare Graves,  é  sustentada  por  cuidadosos  estudos  empíricos  (2005,  p.  26).  O modelo proposto,  chamado  Dinâmica  da  Espiral,  preconiza  a  existência  de  oito  /  nove estádios  (o  último  estádio  é  um  acrescento  do  próprio  Wilber),  ou  ondas  de existência,  ou  ainda  memes  (segundo  Wilber,  meme  é  «um  estádio  básico  de desenvolvimento que pode  ser  expresso  em qualquer  actividade»)  (2005,  p.  28), 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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que são designados com o nome de várias cores e se encontram divididos em dois grupos.  O  que  estes  estádios  basicamente  descrevem  são  diferentes  modos, progressivamente  mais  sofisticados,  à  medida  que  se  avança  na  espiral,  de estruturação  do  pensamento  e  da  consciência  –  em  síntese,  referem‐se  a mundividências  e  a  características  das  estruturas  identitárias  das  pessoas.  Os primeiros  seis  níveis  (bege,  púrpura,  vermelho,  azul,  laranja  e  verde)  são chamados níveis  de  subsistência,  e  configuram um pensamento dito  de primeira camada. Os restantes níveis (amarelo, turquesa e, na proposta de Wilber, coral) são os  níveis  de  ser,  dos  quais  emerge  um  pensamento  de  segunda  camada.  Não querendo nós deter‐nos na  explicitação  exaustiva das  características de  todas  as ondas de existência, importa sublinhar a diferença entre os níveis de primeira e de segunda  camada.  De  acordo  com  Wilber,  enquanto  que  os  memes  de  primeira camada não podem reconhecer plenamente a existência dos outros memes (e. g., se um determinado  grupo  de  pessoas  se  encontra  num meme de  primeira  camada, não terá a capacidade de perceber que um outro grupo de pessoas possa situar‐se noutro,  indo  fazer  tudo para adaptar a  realidade à medida das características do seu próprio pensamento). Estes memes caracterizam‐se, com efeito, por bastante rigidez e dificuldade na aceitação da diferença. Já nos memes de segunda camada o que  sucede  é  a  emergência  da  capacidade  para  olhar  para  a  espiral  de desenvolvimento  na  sua  totalidade,  sem  a  fixação  rígida  num  qualquer  nível.  O aspecto  fundamental  do  pensamento  de  segunda  camada  reside  no  seu  holismo (ou  integralismo,  como prefere  chamar‐lhe Wilber),  já  que  agora  a  existência  de cada  meme  é  aceite  e  vista  como  necessária  para  a  completação  de  todo  um percurso desenvolvimental (Wilber, 2005, p. 35). 

De  notar  a  simplicidade  e  o  acerto  lapidares  subjacentes  à  concepção  de desenvolvimento  que  norteia Wilber.  Para  o  autor,  o  desenvolvimento  define‐se como «uma diminuição sucessiva de egocentrismo» (Wilber, 2005, p. 43). Aquilo a que  assistimos,  então,  ao  longo  da  Dinâmica  da  Espiral,  é  simplesmente  a  um decréscimo do egocentrismo, que cede o seu lugar a uma cada vez maior abertura à alteridade. 

Os memes de segunda camada coincidiriam, como sugere o próprio Wilber, com a  consideração  de  uma  dimensão  transpessoal  da  existência  (2005,  p.  37),  e, acrescentamos nós, com a irrupção de espaço no psiquismo para a manifestação da estrutura  identitária  do  Si‐Mesmo,  ela  própria  passível  de  uma  separação  em diferentes  graus,  o  mais  elevado  dos  quais  associado,  como  vimos,  à transpessoalidade. 

Esta breve referência ao pensamento de Wilber fazemo‐la apenas para destacar a importância da consideração dos níveis para que tende a auto‐realização do ser humano. A  criatividade,  como dinamismo  intimamente  ligado a esse processo de auto‐realização, vai ser também um mecanismo posto ao serviço deste caminho de integração em níveis cada vez mais expandidos de consciência na aproximação ao Si‐Mesmo,  culminando  na  experiência  do  Si‐Mesmo  transpessoal  e, tendencialmente, na vivência de estados místicos. 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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Assim,  é  lícito  afirmar  que  a  criatividade  está  ordenada  à  expansão  da consciência, embora, como é evidente, apenas uma ínfima percentagem dos seres humanos atinja os níveis de consciência mais elevados. O mais significativo, para nós, partindo da evidência da existência de múltiplos estádios de desenvolvimento do  pensamento  e  de  níveis  de  consciência  expandidos  [diferentes  dos  níveis  de consciência habituais (vigília, sono, sonho, etc.)], em que a identidade se amplifica, é a conceptualização da criatividade como um conjunto de passos dados no sentido da integração do ser nesses mesmos níveis de consciência e estádios superiores de desenvolvimento do pensamento. 

A  clarificação  deste  aspecto  quando  se  estuda  a  criatividade,  reforçando  a percepção de que ela é inseparável do devir do ser humano, torna evidente que o seu  significado  e  razão  de  ser  só  são  encontrados  precisamente  quando  ela  é situada nesse processo de devir. 

MIHALY CSIKSZENTMIHALYI, UM PENSAMENTO DE SÍNTESE

O  pensamento  de  Mihaly  Csikszentmihalyi  centra‐se  sobre  o  estudo  das experiências de fluxo, da criatividade e do desenvolvimento da personalidade. Para o autor, as experiências de fluxo, cuja fenomenologia se assemelha bastante à das experiências de pico, ou de topo, descritas por Maslow, consistem em ocasiões de pleno  envolvimento  da  pessoa  com  uma  tarefa,  com  altos  níveis  de  motivação, perda  da  noção  habitual  do  tempo,  optimização  do  desempenho  e  esbatimento acentuado,  ou  pronunciada  alteração,  da  consciência  egóica  (Csikszent‐mihalyi, 1998).  As  experiências  de  fluxo,  na  nossa  opinião,  podem  ser,  sem  prejuízo, interpretadas como momentos de plena inscrição da pessoa nessa tendência básica para  a  realização  do  seu  máximo  potencial,  recortando‐se  como  momentos privilegiados para o reforço da comunicação entre as estruturas identitárias do ego e do Si‐Mesmo, com o alicerçar da base desse eixo, até à sua plena consolidação. Estes momentos  fortes corresponderiam, por conseguinte, a um aprofundamento do  movimento  de  expansão  identitária,  conduzindo  a  pessoa  à  experiência  de níveis de cada vez maior amplificação da consciência. 

A  criatividade,  embora  seja  olhada  por  Csikszentmihalyi  como  uma consequência das experiências de fluxo (1998, p. 187), é por nós lida como aquele dinamismo nuclear de produção do novo,  com a projecção  total de  todo o ser na corrente  do  seu  devir.  Ela  está,  antes  de  mais,  na  origem  dessas  mesmas experiências.  Primeiro  a  criatividade,  depois  o  fluxo.  Não  negamos  que  a criatividade  seja  também  uma  consequência  do  fluxo,  como  é  evidente,  mas queremos  reforçar  a  ideia  da  existência  de  uma  motivação  fundamental  que desencadeia o fluxo, e essa é a da criatividade, em que percebemos a presença da vontade de sentido e do mecanismo da autotranscendência franklianos. 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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Csikszentmihalyi,  no  seu  estudo  do  desenvolvimento  da  personalidade  e  da estrutura egóica, acaba, com efeito, por acolher, embora sem o explicitar, o legado do pensamento de Viktor Frankl. De facto, o autor de que agora nos ocupamos, ao definir  um  perfil  de  pessoa  T,  ou  transcendente,  que  corresponde  ao  nível mais elevado do desenvolvimento da personalidade, associado à capacidade de ir além de si mesmo, de transcender, acolhendo em si a alteridade, os outros e o mundo, e encontrando  fluxo  em  actividades  construtivas,  capazes  de  aumentar  o  grau  de harmonia e ordem do mundo interno de cada um e da própria sociedade (1998, pp. 200‐238), não está a fazer mais do que assumir o carácter primacial da vontade de sentido e da autotranscendência, do pôr‐se todo ao serviço dos outros e / ou duma causa. 

As pessoas T seriam, portanto, pessoas maximamente capazes de exprimir a sua criatividade,  pessoas  em  sintonia  com  a  Dinâmica  da  Espiral,  já  situadas  num pensamento  de  segunda  camada;  pessoas,  enfim,  abertas  à  emergência  duma estrutura  identitária  expandida,  o  Si‐Mesmo,  e  tendencialmente  aptas  a  uma imersão em estados amplificados de consciência. 

Consideramos  que  o  pensamento  de  Csikszentmihalyi  é  uma  abordagem  de síntese, integrando o contibuto teórico de vários autores, e o que o seu diálogo com as  perspectivas  jungiana  e  wilberiana,  que  tentámos  esboçar,  a  enriquece  e revitaliza.  Saem  a  ganhar  a  criatividade  e  a  pessoa,  ficando mais  esclarecidos  o como  e  o  para  quê  da  ideia  de  que  a  primeira  se  encontra  ao  serviço  do  pleno desenvolvimento da segunda. 

CONCLUSÃO

Através  do  itinerário  efectuado  ao  longo  do  presente  trabalho  pretendeu‐se desenhar  as  fronteiras  de  um  território  que  faz  a  Psicologia  contemporânea aproximar‐se,  sem prejuízo das exigências do rigor científico, daquelas que eram as motivações  fundamentais  da  Psicologia  filosófica,  nomeadamente  o  estudo  da alma. 

A particular articulação de conceitos de diversos autores que foi sendo proposta e esboçada fez‐se no sentido de enfatizar o movimento de valorização da pessoa e do  seu  potencial  de  desenvolvimento,  particularmente  visível  nas  correntes Humanista e Transpessoal da Psicologia. 

Através  deste  estudo  conclui‐se  da  viabilidade  da  conceptualização  da criatividade enquanto dinamismo ao serviço do desenvolvimento e da expansão da consciência,  dado  que  os  conceitos  que  serviram  de  base  ao  nosso  pensamento foram  capazes,  através  das  considerações  tecidas,  de  revelar  a  sua complementaridade. 

Posta  em  evidência  esta  complementaridade  existente  entre  os  instrumentos teóricos  a  que  recorremos  para  ilustrar  o  nosso  entendimento  dos  processos  da 

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FERREIRA,  M.  &  Candeias,  A.  (2007)  A  criatividade  enquanto  dinamismo  de desenvolvimento  e de  expansão da  consciência.  In, V.  Trindade, N.  Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora. 

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criatividade  e  do  desenvolvimento,  ao mesmo  tempo  que  identificadas  as  bases dessa complementaridade, o que ressalta deste trabalho é sobretudo o contributo para uma proposta de profunda revalorização da  imagem da pessoa em todas as formas  de  Psicologia  aplicada.  Esta  revalorização  passará  pelo  privilégio  dado  à importância do exercício da criatividade, uma vez percebida a sua centralidade no próprio desenvolvimento da pessoa, i. e., no cumprimento de si mesma. 

Relativamente à forma exacta das práticas psicológicas capazes de concretizar o exercício da criatividade olhada do ponto de vista em que nos situamos, conclui‐se que  elas  deverão,  para  além  do  seu  desenho  específico  que  não  nos  cabe  aqui definir, ir no sentido de auxiliar a pessoa, caso a isso esteja receptiva e caso isso se revele  necessário,  a  redefinir  o  próprio  modo  como  a  si  mesma  se  olha.  Esta redefinição  da  auto‐percepção,  que  deverá  incluir  por  parte  da  pessoa  a consideração  da  sua  capacidade  para  a  autotranscendência  e  o  avistamento  das possibilidades evolutivas da consciência humana, será o primeiro passo, sobretudo de carácter preparatório, na senda do desenvolvimento e expansão da consciência sobre  os  quais  nos  debruçámos.  Assim,  este  estudo  poderá  modestamente concorrer  para  a  construção  de  uma  prática  psicológica  mais  holística  e totalizadora, em benefício, afinal, da própria pessoa. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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