a covardia mãe dacrueldade - caio túlio costa...

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ENSAIOS-11 321 CAPITULO XXVII A covardia é mãe da crueldade Ouvi dizer muitas vezes que a covardia é - da crueldade e observei por experiência uma falsa e perversa coragem, impreg- de maus sentimentos e de inumanidade, e a certa fraqueza de alma bem feminina. gente cruel ter a lágrima fácil a propósito de insignificanteso exandre, tirano de Feres, não podia assis- • o teatro, à representação de tragédias, de . que seus súditos o vissem enternecer-se as desgraças de Hécuba ou Andrômaca, que impiedosamente mandava todos os torturar tanta gente com requintes de _e dade. Não será por pusilanimidade que indivíduos passam assim de um extremo o tro? A valentia, que se exerce somente a o que lhe resiste, "só se compraz em lar um touro quando este se defende 488", o golpe se vê o inimigo à sua mercê; mas :- i1animidade, não tendo figurado neste pri- - ato e querendo participar da festa, entra cena no segundo, o do massacre e do san- s carnificinas que se seguem às vitô- são obra em geral das massas incons- e dos que se ocupam das bagagens; e o faz que presenciemos tantas e incríveis ades nas guerras de que participa o povo Iaio de a canalha, acostumada ao assassí- • se tornar cruel pelo hábito de chafurdar no _ e e esquartejar cadáveres a seus pés, não . outra concepção de valentia: "o lobo, o . os animais menos nobres encarniçam-se a os agonizantes 489"; assim os cães pol- rasgam com os dentes, em casa, as peles imais selvagens que não ousariam ata- pleno campo. Por ue em nossa época utas sempre acarretam a morte? Por meçamos pelo fim, quando nossos pais am suas vinganças? Já de início só fala- em matar. Que significa isso se não uém ignora que há mais bravura em o inimigo do que em o exterminar; mais ar a ceder do que em o matar. Ade- audio. Oridio. mais, nossa vingança é assim bem mais com- pleta, pois seu objetivo é sobretudo provocar o ressentimento do inimigo; por isso mesmo não atacamos um bicho ou uma pedra que nos ferem, incapazes que são de compreender um revide. Ora, matar um homem é pô-lo a salvo de nossas ofensas. Daí a observação de Bias a um indivíduo mau: "sei que mais cedo ou mais tarde pagarás, mas receio não o ver"; e tinha pena dos habitantes de Orcômeno por se verifi- car tarde demais a punição do traidor Licisco, pois já não havia então nenhum sobrevivente interessado em assistir ao castigo. Lamentável é a vingança quando privada dos meios de fazer sofrer a vítima e alegrar o vingador. "Há de arrepender-se", dizemos, mas uma baía de pistola na cabeça fará que se arrependa? Ao contrário, como que nos desafia, caindo; nem mesmo nos censura o gesto, o que está longe do arrependimento. Prestamos-lhe em suma o melhor serviço, o de uma morte rápida e indo- lor. Temos de nos esconder, 'fugir à justiça, enquanto ele descansa. Matâ-lo impede apenas que nos ofenda de novo no futuro, mas não nos vinga da ofensa recebida; há nisso mais temor que bravura, mais previdência que vontade de castigar. É evidente que assim renunciamos ao fim real da vingança e prejudicamos nossa reputação; demonstramos tão-somente o re- ceio de que, vivo, renove o insulto. Não é con- tra ele que agimos, é em nosso beneficio. No reino de Narsinga, essa maneira de agir não nos seria de nenhuma utilidade. Nesse país os homens de guerra e os artesãos resolvem suas divergências a golpes de espada. O rei não recusa a ninguém o direito de se bater; assiste mesmo aos duelos quando ocorrem entre pessoas de certa condição social, ofere- cendo uma corrente de ouro ao vencedor. Mas quem quer que ambicione a corrente pode medir-se com o dono, de modo que este, por ter vencido de uma feita, vê aumentar o núme- ro de seus contendores. Se imaginássemos ser sempre superiores ao inimigo em coragem e poder rnaltratâ-lo à von- tade, lamentaríamos imenso que nos escapasse

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ENSAIOS-11 321

CAPITULO XXVII

A covardia é mãe da crueldade

Ouvi dizer muitas vezes que a covardia é- da crueldade e observei por experiência

uma falsa e perversa coragem, impreg-de maus sentimentos e de inumanidade,e a certa fraqueza de alma bem feminina.

gente cruel ter a lágrima fácil a propósito deinsignificanteso

exandre, tirano de Feres, não podia assis-• o teatro, à representação de tragédias, de

. que seus súditos o vissem enternecer-seas desgraças de Hécuba ou Andrômaca,

que impiedosamente mandava todos ostorturar tanta gente com requintes de

_e dade. Não será por pusilanimidade queindivíduos passam assim de um extremo

o tro? A valentia, que se exerce somentea o que lhe resiste, "só se compraz em

lar um touro quando este se defende 488",

o golpe se vê o inimigo à sua mercê; mas:- i1animidade, não tendo figurado neste pri-- ato e querendo participar da festa, entracena no segundo, o do massacre e do san-

s carnificinas que se seguem às vitô-são obra em geral das massas incons-

e dos que se ocupam das bagagens; e ofaz que presenciemos tantas e incríveis

ades nas guerras de que participa o povoIaio de a canalha, acostumada ao assassí-

• se tornar cruel pelo hábito de chafurdar no_ e e esquartejar cadáveres a seus pés, não. outra concepção de valentia: "o lobo, o. os animais menos nobres encarniçam-sea os agonizantes 4 89"; assim os cães pol-rasgam com os dentes, em casa, as pelesimais selvagens que não ousariam ata-pleno campo. Por ue em nossa épocautas sempre acarretam a morte? Pormeçamos pelo fim, quando nossos pais

am suas vinganças? Já de início só fala-em matar. Que significa isso se não

uém ignora que há mais bravura emo inimigo do que em o exterminar; maisar a ceder do que em o matar. Ade-

audio.Oridio.

mais, nossa vingança é assim bem mais com-pleta, pois seu objetivo é sobretudo provocar oressentimento do inimigo; por isso mesmo nãoatacamos um bicho ou uma pedra que nosferem, incapazes que são de compreender umrevide. Ora, matar um homem é pô-lo a salvode nossas ofensas. Daí a observação de Bias aum indivíduo mau: "sei que mais cedo ou maistarde pagarás, mas receio não o ver"; e tinhapena dos habitantes de Orcômeno por se verifi-car tarde demais a punição do traidor Licisco,pois já não havia então nenhum sobreviventeinteressado em assistir ao castigo. Lamentávelé a vingança quando privada dos meios defazer sofrer a vítima e alegrar o vingador. "Háde arrepender-se", dizemos, mas uma baía depistola na cabeça fará que se arrependa? Aocontrário, como que nos desafia, caindo; nemmesmo nos censura o gesto, o que está longedo arrependimento. Prestamos-lhe em suma omelhor serviço, o de uma morte rápida e indo-lor. Temos de nos esconder, 'fugir à justiça,enquanto ele descansa. Matâ-lo impede apenasque nos ofenda de novo no futuro, mas não nosvinga da ofensa recebida; há nisso mais temorque bravura, mais previdência que vontade decastigar. É evidente que assim renunciamos aofim real da vingança e prejudicamos nossareputação; demonstramos tão-somente o re-ceio de que, vivo, renove o insulto. Não é con-tra ele que agimos, é em nosso beneficio.

No reino de Narsinga, essa maneira de agirnão nos seria de nenhuma utilidade. Nesse paísos homens de guerra e os artesãos resolvemsuas divergências a golpes de espada. O reinão recusa a ninguém o direito de se bater;assiste mesmo aos duelos quando ocorrementre pessoas de certa condição social, ofere-cendo uma corrente de ouro ao vencedor. Masquem quer que ambicione a corrente podemedir-se com o dono, de modo que este, porter vencido de uma feita, vê aumentar o núme-ro de seus contendores.

Se imaginássemos ser sempre superiores aoinimigo em coragem e poder rnaltratâ-lo à von-tade, lamentaríamos imenso que nos escapasse

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322 MONTAIGNE

como o faz morrendo. Queremos vencer, masantes com a certeza do eXI ao u de ummodo honroso; buscamos o resultado e não aglóllé\'

- smio Pólio cometeu erro semelhante,pouco desculpável em um homem de honra.Escrevera uma diatribe contra Planco e aguar-dava a morte deste para a publicar. Em vez decorrer o risco do ressentimento que ia provo-car, era como se desafiasse um cego com ges-tos indecorosos ou um surdo com palavrasofensivas, ou ainda como se violentasse umapessoa desfalecida. Daí lhe dizerem que "cabiaaos gnomos lutar contra os mortos". Quemaguarda a morte de um autor para criticar-lheª Obra demonstra que é fraco e vil. Comuni-caram a Aristóteles que àIguém falara maldele: "Que faça mais ainda, respondeu, que meaçoite conquanto eu não esteja presente."

Nossos pais contentavam-se com responderà injúria com um desmentido, e a um desmen-tido com pancadas, e assim por diante; erambastante valentes para não temer o adversáriovivo; nós, trememos de pavor enquanto ovemos em pé. Nossa conduta atual leva-nos abuscar a morte de quem ofendemos da mesmaforma que buscamos a de quem nos ofende.Igualmente, por covardia, introduzimos o há-bito de nos fazer acompanhar de dois, três eaté quatro companheiros. Outrora tais encon-tros eram duelos, hoje são verdadeiras bata-lhas. Quem primeiro inventou esse método,receava ficar entregue a si mesmo: "todosdesconfiavam de si" e, em verdade, diante doperigo a companhia reconforta e encoraja.Outrora, só se recorria a terceiros como teste-munhas de que não haveria atos de desleal-dade, mas pouco a pouco tornou-se comumparticiparem do duelo as testemunhas, poisquem é convidado não pode decentemente per-manecer simples espectador, de medo que o ta-chem de covarde ou insensível. Além do quehá de iníquo e desonesto em pedir auxílio paradefender a própria honra, e apoiar-se na forçae na desteridade de outrem, acho desvantajosopara um homem de bem, e seguro de si, ligarsua sorte à de outros. Já corre cada qual riscossuficientes por si mesmo, sem que os precisecorrer por outros; e já tem bastante trabalhopara assegurar sua própria coragem na defesade sua vida sem arriscar coisa de tão grandevalor em benefício de terceiros. Pois, efetiva-mente, a menos de se haver convencionadoregra diversa, no caso de se eliminar um segun-do, achamo-nos com dois adversários pelafrente. É evidente que se trata de um abuso,como o será atacar com es ada perfeita aquem só tenha um pedaço da sua ou_ guemintato jogar-se contra um ferido~mas se tais

vantagens são obtidas em combate, lícitas sefazem. A disparidade e a desigualdade somen-te antes do duelo são objeto de ponderação;quanto ao resto, há que confiar na sorte; sesomos três contra três, ou se dois compa-nheiros morrem e os três adversários se unemcontra o último, não há como protestar, domesmo modo que na guerra não cabe protestocontra quem auxilia o companheiro atacandoo adversário com o qual se degladia.

Quando grupos se enfrentam como ocorreuquando o Duque de Orléans desafiou o rei daInglaterra propondo-lhe que lutassem cemcontra cem; ou como fizeram os argianos emnúmero de trezentos contra trezentos lacede-mônios; ou ainda os três Horácios contra ostrês Curiácios, considera-se o conjunto dogrupo como um só homem e onde quer queajam coletivamente, imprevisíveis são as pro-babilidades, imputando-se ao acaso, em gran-de parte, o resultado.

Tenho exemplos domésticos de semelhantescasos. Meu irmão, Sr. de Matecoulon, foi con-vidado em Roma a servir de segundo a umfidalgo que não conhecia e fora desafiado poroutro. E aconteceu-lhe ter que se defrontarcom alguém que era seu vizinho e que eleconhecia melhor. Quisera que se condenassemtais leis de honra que tão amiúde vão deencontro à razão! Depois de liquidar seuadversário, teve meu irmão que correr emauxílio do companheiro, o que não podia dei-xar de fazer, pois como ficaria impassívelenquanto o combate continuava indeciso? Deque houvera servido sua colaboração? A cor-tesia que cumpre demonstrar ao adversário emmá situação, não há como levar em contaquando se é o segundo de outra pessoa, poisfora injusto então abandoná-Ia. E meu irmãosó se livrou da prisão na Itália graças a umaimediata e calorosa intervenção de nossomonarca. Estranho povo, o nosso! Não noscontentamos com a reputação que se espalhapelo mundo, de nossos vícios e loucuras,vamos ainda comprová-Ia no. estrangeiro.Coloquem-se três franceses no Deserto daLíbia, não passará um mês sem que se ponhama brigar. Dir-se-ia que essas viagens longín-quas fazem parte de um plano concebido paradar aos estrangeiros o espetáculo de nossastragédias e um pretexto para que zombem denós. Vamos aprender a esgrima na Itália e apomos em prática com perigo de vida antes desaber lidar com uma espada, quando deve-ríamos primeiramente conhecer a teoria:"Míseras primícias de uma coragem juvenil,funesto aprendizado de uma guerra .iminen-te490."

4 90 Virgílio.

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ENSAIOS-lI 323

Bem sei que se trata de uma arte muito útilem seu objetivo. Tito Lívio conta-nos que naEspanha, em um duelo entre dois príncipes, omais velho, com sua habilidade e técnica, ven-ceu facilmente o mais jovem, muito mais vigo-roso. É uma arte que, como observei, amplia avalentia de alguns, mas não se poderá taxá-Iade coragem, porquanto decorre da destreza enão é uma qualidade em si. A honra no com-bate consiste em apelar para o caráter e nãopara a habilidade. Por isso um, de meus ami-gos, muito forte na esgrima, escolhia, quandotinha que defender a honra, as armas que nãolhe dessem vantagem, pois não queria que atri-buíssem sua vitória à sua superioridade maisdo que ao seu valor real. Na minha infância anobreza considerava degradante a reputaçãode perito em tal arte. Esta só se exercia, aliás,às escondidas, como oficio de duvidosa lealda-de, mal adequado à coragem verdadeira enatural: "Não querem esquivar, nem bloquear,nem recuar; a destreza não conta; não há fin-tas, golpes retos ou oblíquos; sua cólera nãotolera a arte. Escutai o choque terrível dasespadas, ferro contra ferro; não recuam um sópasso, seus pés permanecem imóveis e suasmãos não param nunca: golpes de ponta cer-tos, e de lâmina em cheio 491."

Os exercícios de arcabuzes e de arco, os tor-neios, as justas e as batalhas simuladas consti-tuíam o passatempo de-nossos pais; o da esgri-ma é tanto menos nobre quanto visa apenas aum objetivo individual e ensina a matarmo-nosem desobediência às leis e à justiça. Por isso,de todos os pontos de vista é desastroso. Maisdigno e melhor seria praticar os exercíciossuscetíveis de assegurar a execução da lei esalvaguardar a nossa independência e a nossaglória.

O Cônsul Públio Rútilo foi o primeiro aensinar o soldado a manejar suas armas comhabilidade e ciência; juntou .assim a arte àcoragem, não em vista de dissenções pessoaismas com o fim de defender o povo romano.Era pois uma esgrima popular e civil. Além doexemplo de César, recomendando aos seus queferissem principalmente no rosto os soldadosde Pompeu, numerosos outros chefes introdu-ziram, segundo as necessidades do momento,modificações nas formas das armas e no modode empregá-Ias na defesa e no ataque.

Filopêmen proibiu a luta, exercício em queera excelente, porque o necessário treinamentoera incompatível com os princípios da disci-plina militar, pelos quais, a seu ver, deviam serformados os homens de honra e nos quais

'" Tasso.

cumpria que empregassem o seu tempo. Pare-ce-me também que essa desteridade que se pro-cura dar ao corpo, na nova escola, essas fintas,paradas e respostas, em lugar de úteis, sãoprejudiciais na guerra. Verifiquei mesmo quenão se achava conveniente que um jovem desa-fiado para um duelo de espada e punhal seapresentasse em costume de guerra, comoinconveniente seria que se propusesse bater-se·de capa e espada. E de se notar que Lachez,em Platão, referindo-se ao ensino da esgrimatal qual o praticamos, diz nunca ter visto essaescola produzir um grande homem de guerra, eque o eram menos ainda os mestres, o quenossa experiência confirma. Aliás não hánenhuma relação entre talentos de ordem tãodiversa. Na educação que Platão prevê para osjovens de sua República, proíbe os exercíciosde pugilismo, introduzidos por Âmico e Epeu,bem como os de luta, que recomendavamAnteu e Cércion, pois achava que não toma-vam a juventude apta para o combate. Eis-me,porém, longe de meu assunto.

O Imperador Maurício, advertido por so-nhos e prognósticos que um certo Focas, sol-dado desconhecido, deveria assassiná-Io, inda-gou de seu genro Filipe quem era esseindivíduo. Tendo-lhe respondido Filipe, entreoutras coisas, que se tratava de um pusilânimee um covarde, deduziu o imperador que deviater inclinação para o crime e a crueldade.

O que toma os tiranos tão sanguinários é apreocupação com a própria segurança. Acovardia que trazem no coração não Ihes suge-re outras medidas de salvaguarda senão exter-minar os que os podem ofender, mulheresinclusive, incapazes de um arranhão: "tudoabate porque tudo teme492". As primeiras Icrueldades cometem-se espontaneamente;delas nasce o temor de uma justa vingança, oque provoca toda uma teoria de novas cruelda-des: Filipe, rei da Macedônia, que tantas difi-culdades teve com Roma, sentindo-se inquietocom as numerosas mortes que ordenara e nãopodendo dominar o medo que lhe inspiravamtodas as famílias por ele ofendidas em diversasépocas, resolveu apoderar-se dos filhos detodos os que mandara matar a fim de assegu-rar sua própria tranqüilidade, desfazendo-sedeles uns após outros.

Os bons assuntos agitam-se em qualquerlugar. Eu, que mais me preocupo com o alcan-ce e o interesse de meus comentários do quecom a ordem e a lógica da apresentação, nãohesito em incluir aqui uma bela história, pois,quando valem realmente a pena, arrasto-as atépelos cabelos .

•• 2 Cláudio.

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324 MONTAIGNE

Entre as vítimas de Filipe, figurava um talHeródico, príncipe da Tessália; posteriormentemandara ele executar os dois genros de Heró-dico, os quais deixaram viúvas Teoxena eArco, cada qual com uma criança. Teoxena,embora muito solicitada, não quis tornar acasar-se. Arco desposou Pório, muito conside-rado entre os ênios e do qual teve numerososfilhos, todos pequenos ainda quando veio afalecer. Teoxena, instigada pelo amor maternalque dedicava aos sobrinhos, casou com Pório,a fim de melhor cuidar das crianças. Foi quan-do se publicou o edito do rei determinando quelhe fossem entregues os filhos dos que conde-nara. Teoxena, mãe corajosa, desconfiando dacrueldade de Filipe, e temerosa das violênciasde seus apaniguados, ousou declarar que mata-ria os jovens com suas próprias mãos se força-da a perdê-Ios. Pório, apavorado com seme-lhantes palavras, prometeu-lhe raptá-Ios elevá-!os para Atenas onde os deixaria com pes-soas de sua confiança. Aproveitando a oportu-nidade da festa anual que se celebrava emhonra de Enêias, assim procedeu. Assistiudurante o dia às cerimônias, tomou parte nobanquete público, e, à noite, embarcou em umnavio que já se achava pronto para zarpar.Mas os ventos eram desfavoráveis. E, achan-do-se ainda no dia seguinte à vista das costas,deram-lhe caça os guardas do porto. Estavamsendo quase alcançados e Pório estimulava osmarinheiros a se apressarem quando Teoxena,excitada pelo seu amor e seu desejo de vingan-ça, preparou armas e veneno, entregando-osaos jovens e dizendo: "Vamos, meus filhos, amorte é agora o único meio de defender vossaliberdade; os deuses nos julgarão em sua santajustiça; nestas espadas e nestas taças cheiasestá a vossa liberdade; tende coragem. Tu,filho, que és o mais velho, toma esta lâminapara morreres de morte nobre." Acossados deum lado por tão intrépida conselheira e dooutro peles inimigos, precipitaram-se elessobre as armas a seu alcance e semimortosforam jogados ao mar. Teoxena, orgulhosa porter gloriosamente assegurado a liberdade dosfilhos, abraçou então o marido e disse:"Sigamos o mesmo caminho, amigo, escolha-mos a mesma sepultura". E estreitamente uni-dos mergulharam nas águas, voltando o barcoao porto sem os seus senhores.

Os tiranos esforçavam-se por prolongar amorte que infligiam, com o duplo objetivo dematar o adversário e fazer-lhe sentir os efeitosde sua cólera. ueriam ue os inimigos.nãoperecessem ra.Qidamente e Ihes Ql:rmitissernsaborear a vingança, Era-lhes dificil consegui-10, pois as torturas excessivas não durammuito. Se duravam, não lhes pareciam sufi-

cientemente dolorosas. Daí os engenhosossuplícios da antiguidade, alguns dos quaisainda conservamos.

Tudo o que ultrapassa a morte pura e sim-ples se me afigura cruel. Nossa justiça nãopode esperar que se amedronte ante a mortepelo fogo ou a tortura, e deixe de cometer cri-mes, quem os comete apesar da ameça daforca e da decapitação. Ademais, suspeito qUI;estejamos instigando ao desespero aqueles aquem infligimos tais suplícios, pois em que es-tado de alma pode achar-se um homem quepermanece vinte e quatro horas sobre urnaroda, membros partidos, ou pregado a umacruz como outrora? Conta José que, duranteas guerras dos romanos na Judéia, deparou emcerto lugar com três judeus crucificados; eramseus amigos e conseguiu que os agraciassemao fim de três dias. Dois morreram.

Calcôndilo, que deixou memórias dignas defé acerca dos acontecimentos de seu tempo,conta que o Imperador Maomé aplicava nãoraro esse horrível suplício de cortar os homensem dois com um só golpe de cimitarra dado nomeio do corpo, acima das ancas, o que faziaque morressem, por assim dizer, de duas mor-tes concomitantes. Viam-se os dois pedaçosainda com vida agitarem-se durante muitotempo sob a ação da dor. Não creio entretantoque esse suplício devesse provocar grandessofrimentos. Nem sempre os mais horríveissão os mais dolorosos e acho muito mais atrozo que, segundo outros historiadores, tiveramde suportar alguns senhores que o mesmoMaomé mandou esfolar vivos, ordenando, comrequintes de crueldade, que a operação fosseconduzida de modo a prolongar-se por quinzedias.

Creso mandou prender um fidalgo, favoritode seu irmão Pantaleâo, e conduzir a uma ofi-cina de pisoeiro onde foi raspado e escardu-çado até morrer. Jorge Sechel, chefe dessescamponeses da Poíônia que a pretexto de reali-zar uma cruzada tantos estragos praticaram,foi vencido em um combate pelo voivoda deTransilvânia, Durante três dias permaneceunu, amarrado a um cavalete e exposto aos tor-neios que inventavam os espectadores. En-quanto isso, vários outros prisioneiros eramsubmetidos a rigoroso jejum. Depois do que, eestando ele ainda vivo, deram de beber seusangue a seu irmão querido, para o qual nàocessava Sechel de implorar graça, assumindotoda a responsabilidade dos sucessos. Emseguida, ofereceram sua carne a vinte de seuschefes prediletos, os quais lha arrancaram adentadas. Finalmente, em morrendo, coze-ram-lhe as entranhas e os restos e distribuíramaos seus companheiros.