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Cidades- Comunidades e Territórios Jun. 2002, n.0 4, pp. 83-98 A Coordenação nas Poticas Sociais Activas O Caso do Rendimento Mínimo Garantido em Portugal Ana Cardoso * Resumo: A criação do Rendimento Mínimo Garantido representa uma inovação no contexto da acção social em Portugal. A legislação sobre o Rendimento Mínimo Garantido determina a criação de Comissões Locais de Acompanhamento (CLA), o que contribui para transformar um certo modo de fazer parcerias a nível local. De facto, com a criação das CLA, assiste-se à transformação de uma lógica "do topo para a base" numa lógica "da base para o topo". Contudo, certas coisas não mudam apenas "por decreto", entre as quais a dimensão da coordenação. Isto significa que: a coordenação é um processo; a coordenação requer tempo (tempo para se constituir e tempo para gerar impactes); a coordenação evidencia a necessidade de se definir o peil de quem assume a coordenação entre parceiros. De certo modo, a coordenação depende de um "Eu". Se a existência das CLA e as suas competências são legalmente definidas, as diferentes CLA espalhadas pelo País representam realidades diferentes e reflectem a dinâmica das instituições locais bem como as características dos respectivos contextos. Palavras-chave: política social; coordenação; rendimento mínimo garantido. Introdução Este artigo em como base um projecto transnacional promovido pela Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Traba- lho, sob o título "Coordination in activation policies of minimum income policies", no qual o CESIS participou, desenvolvendo a componente por- tuguesa1. O estudo tinha como objectivo identificar e analisar os mecanismos de coordenação acciona- dos no âmbito de medidas sociais activas. Procu- rando dar cumprimento a este objectivo, em Portugal o trabalho centrou-se na implementação do Rendimento Mínimo Garantido (RMG) e no funcionamento das s uas Comissões Locais de Acompanhamento (CLA), enquanto estruturas de coordenação vertical e horizontal a nível local. Realizado entre finais de 1999 e meados de 2000, o projecto assentou numa abordagem quali- tativa com a realização, em Portugal, de cinco estudos de caso distribuídos pelas diferentes regiões do País, sendo eles: Matosinhos; Covilhã; Amadora; Ferreira do Alentejo e Vila Real de Santo António. As cinco CLA analisadas situam-se, pois, em zonas urbanas de forte concentração populacional e de recursos, bem como em zonas rurais desertificadas; abrangem áreas do litoral e do interior; intervêm em contextos diferentes tendo em conta os actores e os problemas locais. Na sua composição, as CLA envolvidas são também elas distintas quer do ponto de vista da sua dimensão, quer tendo em conta os parceiros que nelas têm assento. Para a sua concretização foram realizadas 84 entrevistas junto de vários actores: responsáveis políticos; elementos das estruturas de coordenação nacional e regional do RMG; pessoal técnico afecto às instituições presentes nas diferentes CLA; beneficiários. Coordenação: o que é? A questão da coordenação das polí ticas europeias no sentido do fortalecimento da coesão social e económica, não só entre países da União mas no seio dos mesmos, foi colocada no topo da agenda política dos 15 pela Cimeira de Lisboa, em Março de 2000. Socióloga. Investigadora do CESIS- Centro de Estudos para a Intervenção Social. Contacto: cesis@mail.telepac.pt. 1 Neste estudo participaram, pelo CESIS, Ana Cardoso e Guida Ramos. 83

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Cidades- Comunidades e Territórios Jun. 2002, n.0 4, pp. 83-98

A Coordenação nas Políticas Sociais Activas O Caso do Rendimento Mínimo Garantido em Portugal

Ana Cardoso *

Resumo: A criação do Rendimento Mínimo Garantido representa uma inovação no contexto

da acção social em Portugal. A legislação sobre o Rendimento Mínimo Garantido determina a

criação de Comissões Locais de Acompanhamento (CLA), o que contribui para transformar

um certo modo de fazer parcerias a nível local. De facto, com a criação das CLA, assiste-se à

transformação de uma lógica "do topo para a base" numa lógica "da base para o topo". Contudo,

certas coisas não mudam apenas "por decreto", entre as quais a dimensão da coordenação.

Isto significa que: a coordenação é um processo; a coordenação requer tempo (tempo para se

constituir e tempo para gerar impactes); a coordenação evidencia a necessidade de se definir

o perfil de quem assume a coordenação entre parceiros. De certo modo, a coordenação depende

de um "Eu". Se a existência das CLA e as suas competências são legalmente definidas, as

diferentes CLA espalhadas pelo País representam realidades diferentes e reflectem a dinâmica

das instituições locais bem como as características dos respectivos contextos.

Palavras-chave: política social; coordenação; rendimento mínimo garantido.

Introdução

Este artigo em como base um projecto

transnacional promovido pela Fundação Europeia

para a Melhoria das Condições de Vida e de Traba­

lho, sob o título "Coordination in activation policies

of minimum income policies", no qual o CESIS

participou, desenvolvendo a componente por­

tuguesa1.

O estudo tinha como objectivo identificar e

analisar os mecanismos de coordenação acciona­

dos no âmbito de medidas sociais activas. Procu­

rando dar cumprimento a este objectivo, em Portugal

o trabalho centrou-se na implementação do

Rendimento Mínimo Garantido (RMG) e no

funcionamento das suas Comissões Locais de

Acompanhamento (CLA), enquanto estruturas de

coordenação vertical e horizontal a nível local.

Realizado entre finais de 1999 e meados de

2000, o projecto assentou numa abordagem quali­

tativa com a realização, em Portugal, de cinco

estudos de caso distribuídos pelas diferentes regiões

do País, sendo eles: Matosinhos; Covilhã; Amadora;

Ferreira do Alentejo e Vila Real de Santo António.

As cinco CLA analisadas situam-se, pois, em zonas

urbanas de forte concentração populacional e de

recursos, bem como em zonas rurais desertificadas;

abrangem áreas do litoral e do interior; intervêm

em contextos diferentes tendo em conta os actores

e os problemas locais. Na sua composição, as CLA

envolvidas são também elas distintas quer do ponto

de vista da sua dimensão, quer tendo em conta os

parceiros que nelas têm assento.

Para a sua concretização foram realizadas 84 entrevistas junto de vários actores: responsáveis

políticos; elementos das estruturas de coordenação

nacional e regional do RMG; pessoal técnico afecto

às instituições presentes nas diferentes CLA;

beneficiários.

Coordenação: o que é?

A questão da coordenação das políticas

europeias no sentido do fortalecimento da coesão

social e económica, não só entre países da União

mas no seio dos mesmos, foi colocada no topo da

agenda política dos 15 pela Cimeira de Lisboa, em

Março de 2000.

• Socióloga. Investigadora do CESIS- Centro de Estudos para a Intervenção Social. Contacto: [email protected]. 1 Neste estudo participaram, pelo CESIS, Ana Cardoso e Guida Ramos.

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Conceito que emerge com uma forte forçapolítica no final dos anos 90, a coordenação tem,no entanto, uma história que remonta ao início dadécada de 60 quando, nomeadamente nos EstadosUnidos, surge o “Planned Programme Budgeting”que procurava organizar o governo central e localde forma a reduzir os efeitos de uma lógica funcionale departamental. No Reino Unido, nos anos 70, o“Joint Approach to Social Policy” procuravaigualmente uma coordenação das políticas, quer anível central, quer a nível local.

Também em Portugal, nos anos 60, se desen-volveram algumas experiências, em particular noâmbito do então Serviço de Promoção Social com oqual se preconizava uma noção de desenvolvimentoenquanto actividade multidisciplinar que tomava aparticipação e a cooperação entre serviços einstituições como a filosofia central de trabalho.

A coordenação é, pois, um conceito, e umaprática, com história e que, ciclicamente, parecesurgir como estratégia para a melhor prossecuçãode determinados objectivos das políticas estatais e,em particular, no que aqui diz respeito às políticassociais.

Alguns autores afirmam a importância dacoordenação nas políticas sociais fazendo dependerdela a eficácia na luta contra a exclusão, sendo quea coordenação se deve estabelecer não só entre osvários domínios de intervenção da política socialcomo entre os vários níveis de actuação (central,regional e local, actores públicos e privados).

É a multidimensionalidade da exclusão socialque exige formas adequadas de coordenação,entendendo-se a coordenação como “the generalprinciple that governs the design and implemen-tation of social policies, which translates intospecific actions undertaken by the government andwhich aim to increase the effectiveness of policymeasures by preventing the duplication of actions,reducing the external social costs resulting fromthese interventions when they have differentobjectives and promoting the complementary natureof policy measures and social practices by all actorsinvolved” (Pereirinha, 1993 in Pereirinha,1999:29).

Na mesma perspectiva Geldof e Vranken(1999) afirmam que a diferenciação e acomplexificação crescente das sociedades actuaiscontribuem para o ênfase dado à coordenaçãodebatendo-se esta, permanentemente, entre o desejode uma concepção holística dos problemas sociaise a cada vez maior dispersão das responsabilidadesa este nível.

A coordenação é um termo utilizado numavariedade de formas e com diferentes significados.Geldof e Vranken discutem a coordenação em tornode duas dimensões (Geldof, Vranken, 1999: 15): avertical e a horizontal, reconhecendo-se a existênciade potenciais relações entre estas duas dimensõesbem patentes, por exemplo, na descentralização dosserviços que, sendo um processo vertical, temconsequências inevitáveis ao nível da dimensãohorizontal, implicando, pois, mais e melhorcoordenação entre todos os actores envolvidos.

Assim, a primeira dimensão diz respeito àsrelações entre diferentes sectores da governação eà forma como os objectivos das políticas, concebidasa um nível central, são interpretados e imple-mentados a um nível local. A segunda refere-se àsrelações entre organismos públicos e a sociedadecivil e salienta a capacidade destes organismosassegurarem percursos integrados de inserção apopulações em situação de exclusão.

Neste contexto, a coordenação situa-se a trêsníveis sendo possível, a partir daí, identificar osseus resultados.

Ao nível político, onde a análise dos resultadosda coordenação se deve centrar no desenvolvimentode objectivos e na sua tradução num conjuntocoerente de políticas, programas e medidas.

Ao nível das instituições, onde a coordenaçãodeverá produzir um aumento da capacidade deoferta de serviços integrados; o seu enfoque devesituar-se na forma como as instituições se organizamnesse sentido.

E, finalmente, ao nível dos indivíduos, onde oenfoque deverá ser no surgimento de respostas eserviços que melhorem a situação das pessoas emsituação de exclusão e que providenciem uma pers-pectiva para a inclusão através de trajectórias epercursos que, estando de acordo com as neces-sidades das pessoas, tenham em vista o desenvolvi-mento do seu capital social, cultural e económico.

Genericamente a coordenação é entendidacomo algo positivo derivando “from a conceptionof policy process as rational and ordered: coherent,consistent and inclusive with the aim of achievingefficiency and effectiveness. In turn, such anapproach pre-supposes a disposition to co-operationrather than a competition or a conflit” (Ditch;Roberts, 2001: 34).

É neste sentido, e na sequência de Glennerster(1983), que aqueles autores distinguem entre umaperspectiva “optimista” e “pessimista” da coor-denação.

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A Coordenação nas Políticas Sociais Activas

A “optimista” vê a coordenação como umaparte essencial do processo político implicando umaanálise compreensiva e a implementação demecanismos adequados. A “pessimista” entende acoordenação “as not only redundant but doomed,in so far as it cannot be planned or mandated bygovernments since the policy process consistsindividuals and organisations bargaining in thepolitical market place” (Ditch, Roberts, 2001: 34).

Mesmo partindo de uma perspectiva mais“optimista” é genericamente aceite que, para existiruma efectiva coordenação, são necessários certospré-requisitos. Pressman e Wildavsky (cit. in Ditch,Roberts, 2001: 34) referem-se à necessidade deuma consistência e coerência entre os objectivos eelementos de uma política ou projecto; entre umconjunto de políticas transversais por cujaimplementação são responsáveis pela suaimplementação diferentes organismos; essa mesmaconsistência e coerência devem estar presentes nasacções em que tais políticas se traduzem; e,finalmente, que os serviços prestados ao públicorevelem aquela natureza.

Sendo certo que a coordenação contraria, decerta forma, a lógica de funcionamento dasinstituições, quer públicas, quer privadas, em quemedida o esforço para a sua efectivação serácompensador? A este propósito, Geldof e Vrankenpropõem uma abordagem da coordenação a partirdo local e salientam que o sucesso da coordenaçãopassa pela garantia que as instituições dão aos seusbeneficiários / utentes de “a coherent supply ofservices which improves their (financial, socialpersonal and employability) situation and providesa real prospect for integration in collaboration withall relevant actors and institutions” (Geldof,Vranken, 1999: 20).

A Coordenação em Portugal– O Pressuposto do Partenariado

Em Portugal, o termo coordenação estásubjacente a outros conceitos bem mais utilizados,na política social, sobretudo quando se analisa osprincípios e orientações das práticas que a concre-tizam. Partenariado ou trabalho em parceria têm sidoos termos mais utilizados para designar estruturase modos, mais ou menos formalizados, de coopera-ção entre diferentes actores, com o objectivo de criarnovas respostas, ou uma resposta concertada, face

aos problemas emergentes e de contribuir para odesenvolvimento local.

A entrada de Portugal na então ComunidadeEconómica Europeia (em 1986) trouxe consigo aparticipação no Programa Europeu para a Inte-gração Socioeconómica de Grupos Menos Fa-vorecidos, genericamente designado Pobreza III,no qual o partenariado, como cooperação formal depessoas e entidades, era um dos princípiosorientadores da intervenção.

No contexto deste Programa, convocou-se efez-se convergir “no campo da luta contra a Pobrezae Exclusão Social, o conjunto diverso (e até dispersoe, por vezes, não desperto para tal problema) deagentes locais recobrindo a pluralidade deinteresses, contributos e áreas de influênciasociocultural, económica e política” (Vários, 1994:16). Por outro lado, o carácter local destes projectosrevelou-se facilitador de metodologias maisadequadas ao “conhecimento das estruturas emecanismos de empobrecimento e exclusão social,a uma melhor compreensão sobre as razões dainsuficiência ou desadequação das práticas estataiscorrentes (sectoriais e segmentadas) e sobre aspotencialidades da experimentação de novosmodelos de intervenção” (Vários, 1994: 20).

A prática de intervenção dos projectos desen-volvidos, em Portugal, ao abrigo do referido Pro-grama, deu origem a experiências inovadorasdemonstrativas das potencialidades do diálogo e dacooperação inter-institucional a nível local. Estasexperiências marcaram, decisivamente, o quadroda assistência / acção social em Portugal e deramorigem a organizações que ainda hoje permanecem.No entanto, já em 1991, quando foi criada a Di-recção-Geral da Acção Social, ela “aparece associa-da a tendências que visavam uma (re)articulaçãoda dimensão social com sectores económicos valo-rizando acções planeadas em contexto decontributos advindos do partenariado” (Rodrigueset al, 1998: 9). Quando se delinearam, então, asnovas tendências da acção social, propôs-se a “va-lorização da acção coordenada – o partenariado”,definido da seguinte forma: “Partenariado signifi-ca concertação interinstitucional e trabalho emrede. A complexidade e a inter-relação dos proble-mas sociais não se compadecem com a culturafuncionalista das organizações. É chegado o tempode se criar uma cultura de partenariado, forma con-certada e articulada de funcionamento, que tem porbase o reconhecimento das complementariedades

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e co-responsabilidade das organizações, sejampúblicas ou privadas” (Madeira, 1992 in Rodrigues,1998:10).

Por outro lado, o conhecimento produzido edivulgado sobre as questões da pobreza e da exclu-são social, com base no qual o carácter multi-dimensional destes fenómenos se revela com maiorexpressão, começou a exigir, cada vez mais, umaintervenção integrada e sistémica, onde o territóriose impõe, exigindo uma articulação entre todosaqueles que nessa área intervêm no (ou próximodo) problema.

É bom não esquecer, porém, que algumas dasmedidas políticas que se consubstanciam na cola-boração interinstitucional só surgiram no contextode mudança do quadro político, no qual a exclusãosocial e o seu combate assumem uma tónica do-minante.

Com efeito, é a partir da segunda metade dadécada de 90 que se define um conjunto de pro-gramas e medidas que denotam um esforço deplaneamento e de inovação das estruturas, com vistaà tal coerência de objectivos, integração de respostase à coordenação.

Ao nível das medidas que introduzem umacomponente de planeamento saliente-se o PlanoNacional de Emprego, elaborado em 1998 que, nocontexto da Estratégia Europeia para o Emprego,se assume como um instrumento integrador doobjectivo emprego em diversas políticas sectoriais.

Mais recentemente, refira-se a concepção doPlano Nacional de Acção para a Inclusão (PNAI),surgido em Portugal, à semelhança do que se passanos restantes países da União Europeia, a partirdos objectivos estratégicos para a Europa delineadosna Cimeira de Lisboa. O PNAI, segundo os textosoficiais “permitirá articular as políticas pertinentese os actores responsáveis” (IDS, Junho de 2001:8.); “o PNAI não tem tanto a vocação de ser umainstância concentradora e gestora de recursos, osrecursos do PNAI são, grosso modo, os recursospúblicos disponíveis que mobilizamos para esta luta,uma vez que o que ele vai fazer é balizar a actuaçãode curto e médio prazo das instituições que tutelamestas áreas e, nesse sentido sim, condicionar arespectiva alocação de recursos” (Pedroso in IDS,2001: 10). O PNAI assume-se, pois, como uminstrumento de orientação estratégica e decoordenação de várias medidas e recursos com oobjectivo de promover a luta contra a exclusãosocial.

Ao nível da inovação das estruturas, registe--se, no âmbito nacional, a criação da ComissãoNacional do Rendimento Mínimo que integrarepresentantes dos Ministérios da Educação, Saúde,Trabalho e Solidariedade (Segurança Social), Justiçae da Secretaria de Estado da Habitação; no âmbitolocal, as Comissões Locais de Acompanhamento doRendimento Mínimo Garantido.

Conjugando, de certa forma, a perspectiva doplaneamento e da inovação das estruturas, surge oPrograma Rede Social. Criado em 1997, porresolução do Conselho de Ministros, este Programapretende “fomentar a formação de uma consciênciacolectiva e responsável dos diferentes problemassociais que tenda a incentivar redes de apoio socialintegrado de âmbito local contribuindo, através daconjugação de esforços das entidades locais enacionais envolvidas, para a cobertura equitativado País em serviços e equipamentos sociais(Resolução do Conselho de Ministros n.º 197/97).

A Rede Social inscreve-se, pois, no âmbitode uma política social que, na sua concepção, buscaa potenciação da eficácia da intervenção local, apartir de uma articulação entre o que são prioridadesglobais e especificidades locais; um incentivo àmais valia das relações de cooperação entreorganismos públicos e privados; uma progressivaterritorialização da intervenção social.

Neste sentido, a Rede Social tem um âmbitode implementação local, ao nível do concelho,organizando-se a partir dos Conselhos Locais deAcção Social (CLAS), dinamizados pelas CâmarasMunicipais e onde têm assento representantes dasentidades particulares sem fins lucrativos e dosorganismos locais da administração central.Compete ao CLAS, entre outros aspectos, adinamização de Comissões Sociais de Freguesia ea elaboração de um Plano de DesenvolvimentoSocial (PDS), a partir da construção participada deum diagnóstico local dos problemas sociais.

Assentando em princípios como o da in-serção, a Rede Social deve actuar no sentido doincremento de projectos de desenvolvimento local,inscritos nos respectivos PDS; apostando na coor-denação e na cooperação progressiva entre par-ceiros, a Rede constitui-se como um “suporte daacção, permitindo criar sinergias entre os recursose as competências existentes na comunidade”(Programa Piloto da Rede Social 1999/2000, Docu-mento de Apoio).

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A Coordenação nas Políticas Sociais Activas

Embora de sinal positivo, a criação de todasestas novas estruturas locais de articulaçãointerinstitucional, de fomento da consolidação departenariados e de coordenação de acções, trans-porta consigo alguns riscos tendentes à produçãode efeitos perversos, contrariando os princípios queas norteiam.

Com efeito, se pensarmos que às comissõeslocais aqui referidas acrescem outras, como as Co-missões de Protecção de Crianças e Jovens em Pe-rigo, por exemplo, vislumbra-se uma multiplicaçãoexcessiva deste tipo de estruturas que, em vez decontribuir para o dinamismo das instituições e parauma actuação planeada e concertada, pode darorigem a uma dispersão de esforços por parte dos/as técnicos/as e para o sentimento agravado de umaactuação casuística orientada para a resposta àsprioridades de cada uma destas estruturas. É nestemesmo sentido que o Conselho Económico e Socialconsidera que “estas novas comissões e o seufuncionamento devem ser alvo de acompanhamento,incluindo, necessariamente, a avaliação externa,permitindo extrair ilações que possam ser úteis, querpara o seu desenvolvimento, quer para o de outrascomissões que se criem” (CES, 1997:15).

O Rendimento Mínimo Garantidoe o Contexto da sua Implementação

Numa sociedade em que as elevadas taxas depobreza se assumem apenas como uma das formasde exclusão social, está-se perante um contexto ondeum número significativo de indivíduos e grupos seencontram numa situação de não satisfação dosdireitos de cidadania.

A cidadania dos tempos modernos constrói--se e consolida-se em torno de um conjunto, cadavez mais alargado, de direitos sociais (juntando-se,assim, aos direitos civis e políticos) mas a crise eas transformações recentes do Estado-Providênciaconsubstanciam-se numa incapacidade de rea-lização desses direitos. “A exclusão social, enquantofenómeno actual de manifestação dessa crise, nãosó exige actuação política de garantia dos direitossociais mas a sua própria redefinição ou extensão:o direito de integração como elemento para areconstrução dos direitos de cidadania” (Pereirinha,1999: 33).

Neste quadro, as políticas sociais jogam umpapel importante ao nível da garantia da realização

Foto de Isabel Guerra

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CIDADES Comunidades e Territórios

dos direitos e da promoção dos mesmos; na suainter-relação com as políticas económicas, elaspróprias condicionam ou determinam aspectosespecíficos de modelação dos mecanismos queactuam sobre o fenómeno da exclusão social.

O actual sistema de segurança social,enquanto direito consagrado a todos os cidadãos, écriado após a Revolução de Abril de 1974 mas écom a publicação da Lei de Bases da SegurançaSocial, em 1984, que são direito constitucional osprincípios gerais da universalidade e da igualdadeem que ainda hoje assenta o sistema. Até à criaçãoda nova Lei de Bases em Agosto de 2000, o sistemade segurança social era composto por dois regimes:regime geral e regime não contributivo.

O regime não contributivo era completado coma acção social que, de acordo com a Lei de Basesde 1984, se destinava a prevenir situações decarência económica, disfunções e marginalizaçãosocial e, simultaneamente, a promover a integraçãodas referidas situações.

Correspondendo a uma evolução em termosconceptuais, o termo acção social substitui o deassistência social, pretendendo-se, com isso, reflec-tir uma mesma evolução ao nível da prática dosserviços. “Nesta perspectiva a assistência socialtraduz-se em acções de carácter terapêutico, par-celar e paternalista. A sua actuação visa dar res-posta a situações de necessidade que afectam cer-tos grupos, estritamente definidos, sem consideraras suas causas, sem considerar a participação dosindivíduos na resolução dos seus próprios proble-mas. Contrapondo-se a esta perspectiva, existe umanoção de acção social, cujos objectivos são amelhoria da qualidade de vida das pessoas e gru-pos pela harmonização das relações sociais.” (Car-doso, 1993:141).

Existem, porém, alguns autores que defendemuma conceptualização de Assistência Social emruptura com uma atitude assistencialista e com umcariz meramente emergencial da mesma, orientadapara a complementação de lacunas e incumprimentode ramos vários da política social. Advoga-se, sim,uma política de assistência social claramente rela-cionada com uma noção ampla de protecção (quenão só de acções) social, que responsabiliza o Es-tado e a colectividade: Defender a “especificidadeda assistência social, resulta, ainda, de a reconhecerdiferentemente de outras áreas da política, comopotencial abrangente da globalidade das dimensõesque dão corpo às necessidades humanas e sociais

de viver e conviver (...). Também este aspecto ademarca de outras políticas cujo âmbito é geral-mente circunscrito a uma dada área de necessida-des. Só a dimensão política pode ser na assistênciasocial a correspondente ao teor das exclusões gera-das nas sociedades contemporâneas” (Rodrigues,1999: 279).

A actuação da acção social situava-se a doisníveis: a prestação de serviços com a gestão directade equipamentos sociais ou com o estabelecimentode acordos com instituições particulares desolidariedade social que asseguram essa gestão; aatribuição de subsídios a uma população que sedirige aos seus serviços de atendimento. Note-seque a atribuição de tais subsídios reveste-se de umanatureza totalmente discricionária, dependendo osmontantes atribuídos das verbas disponíveis emcada região e no momento e, muito frequentemente,da apreciação subjectiva da(o) técnico(a) de serviçosocial que faz o atendimento. Este modo de actuaçãoda acção social faz com que, pese embora a mudançade terminologia, permaneça uma tradiçãoassistencialista que considera carências masdesconhece direitos.

Se a inclusão da acção social no âmbito dasegurança social, a partir da referida Lei de Basesde 1984, foi considerada um passo legislativo im-portante na consolidação do carácter não supletivode um Estado que se afirma comprometido com odomínio social, é certo que até à criação do Rendi-mento Mínimo Garantido, a acção social “mantevea gestão (de difícil gestão) de subsídios pecuniáriose em espécie manifestamente insuficiente (...) epenalizadores das expectativas da população e dosprofissionais encarregados dessa administração”(Rodrigues, 1999: 40).

Só no final dos anos 90, com o RendimentoMínimo, se vem afirmar, no âmbito de acção social,um direito próximo aos observados nos regimes desegurança social. A criação do Rendimento MínimoGarantido, em 1996, corresponde à única prestaçãoassociada à intervenção da acção social queestabelece um limite de rendimento abaixo do qualtodos têm direito.

Abandona-se, assim, uma abordagem maisassistencialista e procura-se contrariar a tendênciapara uma “subsidiodependência” por parte da“população assistida”. O novo desafio colocado àacção social foi o de co-responsabilizar os indiví-duos, as diversas instituições e toda a sociedade naexecução de um conjunto de medidas de intervenção

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A Coordenação nas Políticas Sociais Activas

participada, na qual cada actor assume determi-nados compromissos de cooperação, no sentido dadefinição de uma trajectória de inserção.

O Conceito de Inserção

O objectivo último de qualquer medida socialactiva deve ser a inserção social dos seusbeneficiários. No caso do RMG a trajectória deinserção dos seus beneficiários é assegurada peladefinição do programa de inserção.

Segundo o Artigo 3º do Decreto-Lei que cria oRendimento Mínimo Garantido, “o programa deinserção é o conjunto de acções cujos princípiossão definidos pelos Ministérios da Solidariedade eSegurança Social e para a Qualificação e o Empre-go2 e assumido localmente por acordo entre ascomissões locais de acompanhamento (...), previstasna presente lei, e os titulares do direito a esta pres-tação, com vista à criação das condições para a pro-gressiva inserção social destes e dos membros doseu agregado familiar”.

Em primeiro lugar, importa definir o conceitode inserção, enquadrado na perspectiva do Ren-dimento Mínimo Garantido, enquanto processo quepermite ao indivíduo a sua integração no meio social,facilitando-lhe o exercício dos direitos sociais coma finalidade de obter a sua autonomia social eeconómica.

A inserção assume uma lógica de políticasocial activa, visando a definição de estratégias deintegração sócio-económica dos beneficiários. Esteprocesso deve ser entendido como bastante lato eabrangente, englobando um conjunto de áreas quenão se esgotam no emprego, passando por outrasmedidas de combate à pobreza e à exclusão social,nomeadamente pela formação profissional, saúde,educação e alojamento, ou seja, áreas que efectivama plena integração do indivíduo/agregado no meioem que está inserido. Tem-se, assim, emconsideração a multidimensionalidade da exclusãosocial.

Se este cenário não é inédito na acção socialem Portugal, ele apresenta-se hoje com uma dimen-são, generalização e legitimidade novas. A intro-dução da figura do Programa de Inserção “deslocao centro da gravidade da acção de ajuda financeiraassistencial para as tarefas de desenvolvimentoassentes na procura de novas formas de articulação

entre o económico e o social, no quadro das comuni-dades territoriais” (Branco, 1999:71).

O programa de inserção implica, ainda, umalógica de contratualização entre o cidadão-be-neficiário e a sociedade. Embora existissem jápráticas deste tipo, elas assumiam, até aqui, umcarácter pontual e informal. O RMG vem, assim,institucionalizar este procedimento reunindo numamesma base o direito e o dever. Ao formalizar asacções contempladas no programa de inserção atra-vés da assinatura de um contrato entre a CLA e o/abeneficiário/a parte-se do princípio de que este/ase encontra excluído/a de determinados direitos so-ciais, sendo dever da sociedade facultar-lhe asoportunidades com vista à verificação de tais direi-tos. Este é, em si mesmo, um direito que assiste ao/àbeneficiário/a que, por seu turno, tem o dever de seenvolver activamente no seu processo de inserção.

Do sucesso dos programas de inserção de-pende largamente o sucesso da medida. Uma dasconclusões do Seminário Europeu “Políticas e Ins-trumentos de Combate à Pobreza na União Euro-peia: a garantia de um rendimento mínimo” apontano sentido dos limites dos programas perante asdificuldades em se encontrar um emprego estável,adequado e razoavelmente bem pago para os/asbeneficiários/as do RMG. “O resultado é uma re-duzida inserção dos beneficiários do RendimentoMínimo em empregos do mercado regular de traba-lho e a sua participação em actividades caracteri-zadas por uma grande precariedade e socialmentedesqualificadas” (Hespanha, 2000:13). Também naavaliação da fase experimental do rendimento mí-nimo (vd. Capucha, 1998.) se chamava a atençãopara o facto de o RMG poder produzir um efeitoperverso ao contribuir para a manutenção de baixosníveis de remuneração do trabalho, com as conse-quências que daí advêm para a manutenção dastaxas de pobreza.

As Comissões Locais de Acompanha-mento do RMG – estruturas de coor-denação?

A retórica

As Comissões Locais de Acompanhamento doRendimento Mínimo Garantido são entendidas

2 De notar que, no XIV Governo Constitucional, a estrutura ministerial foi alterada, passando a medida para a tutela do Ministério do Trabalho e daSolidariedade.

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CIDADES Comunidades e Territórios

como condição determinante do sucesso da medida;“se as CLA não forem entidades operativas, hásérios riscos de que a medida possa serempobrecida, reduzida a mera prestação pecuniáriaque, visando elevar a dignidade humana, resultainsuficiente para a inversão das trajectórias pessoaise sociais de exclusão. Daí ser fundamental que essascomissões possam ser agentes dinâmicos e capazesde pôr em comum recursos públicos e da sociedadecivil tendentes à promoção da inserção social dosbeneficiários do RMG” (CES, 1997: 13).

É a Lei nº 19 – A/96 de 29 de Junho, queinstitui o Rendimento Mínimo Garantido, que pre-vê a criação das Comissões Locais de Acompa-nhamento. Estas Comissões têm um âmbitoterritorial que corresponde ao dos municípios (ouconcelhos); caso os municípios tenham um ele-vado número de habitantes ou exista uma acentuadadispersão geográfica, que justifique a constituiçãode mais de uma CLA, na mesma área territorial, oCentro Regional de Segurança Social (ou o agoraCentro Distrital de Solidariedade e SegurançaSocial) competente poderá fazê-lo, após audição dasautarquias.

As CLA são compostas, obrigatoriamente, nostermos da referida lei, por: um representante daSegurança Social; um representante do Centro deEmprego; o coordenador Concelhio do EnsinoRecorrente; um representante do Centro de Saúde.

A lei prevê, ainda, um conjunto de entidadesque podem integrar as CLA desde que manifestema sua disponibilidade para tal, exerçam a sua acti-vidade na área geográfica da CLA; tenham a suasituação regularizada perante o fisco e a segurançasocial. Essas entidades são: as autarquias locais;as Instituições Particulares de Solidariedade Social(IPSS); as associações empresariais e sindicais;outras entidades sem fins lucrativos, legalmenteconstituídas.

Pela sua potencial composição, verifica-se queas CLA ultrapassam em muito uma coordenaçãoentre a Segurança Social – na qual se inscreve oorçamento da prestação do Rendimento MínimoGarantido e cujos serviços locais asseguram oatendimento à população e trabalham no sentidoda realização dos programas de inserção – e asmedidas de emprego e formação – implementadas,a nível local, pelos Centros de Emprego, eentendidas estas, frequentemente, como as queprotagonizam o objectivo da inserção.

Com efeito, na medida em que abrangem, noque diz respeito a parceiros obrigatórios, os domí-nios de maior vulnerabilidade da pobreza, que pas-sam também pela educação e pela saúde, e que,por outro lado, se prevê a inclusão de parceiros comoautarquias e organizações particulares, as CLAapontam para a constituição de estruturas (comple-xas) transversais à sociedade e de optimização derecursos em diferentes vertentes de actuação daspolíticas sociais.

A criação das CLA inscreve-se, pois, nas ten-dências e desafios mais recentes da assistência /acção social, isto é, na territorialização, potenciandouma articulação entre a inserção de indivíduos efamílias e os processos de desenvolvimento local;na parceria e articulação entre diferentes institui-ções e entre vários sectores e políticas, numa ópticade promoção dos recursos necessários à inserçãosocial e a um desenvolvimento integrado.Associadas ao Rendimento Mínimo Garantido, asCLA orientam-se, ainda, para a realização de umdireito social.

Sem enjeitar as responsabilidades do Estado(instância consagradora de direitos cuja actuaçãoa este nível se pretende reforçada, tal como refereRodrigues,1998), a constituição das CLA acaba como “monopólio” estatal ao nível da implementaçãodas medidas de protecção social: outras entidadespodem ser implicadas na própria coordenação lo-cal da CLA; outras entidades podem ser envolvidas,quer no atendimento directo à população, querna elaboração dos relatórios sociais, definição deprogramas de inserção e respectivo acompanha-mento.

Esta abertura permitida pela lei requerdas/os técnicas/os de serviço social da SegurançaSocial uma postura profissional que implica a par-tilha de um “território” que até aqui era seu. Esta étambém uma aprendizagem que deve ser feita, casocontrário, a medida será sempre entendida como“pertença” da segurança social, situando-se, aí, umobstáculo a uma efectiva coordenação.

Esta é, no entanto, uma questão que ultra-passa a dimensão local já que a níveis intermédiosda coordenação, entre a Comissão Nacional e asCLA, a concepção da medida assenta numa ima-gem em que o ministério que tutela a segurançasocial personifica a medida – “são vocês é que pa-gam (...) o meu ministro nunca aparece a falar do

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RMG, é sempre o vosso3 ” – palavras de umaentrevistada funcionária do (então) Ministério doTrabalho e da Solidariedade dando conta das ideiasde uma colega de outro ministério.

No discurso político as CLA surgem como um“forma participada de gestão de uma medida depolítica pública”, não para que o “Estado deleguefunções suas mas para que as possa cumprir commais eficácia” (Pedroso in CES, 1997: 110). Pro-cura-se alcançar tal eficácia através da optimizaçãodos recursos existentes no sentido da promoção dainserção social dos beneficiários e, como tal, da suaautonomia face à medida.

Neste sentido, as “comissões locais não sãoapenas órgãos consultivos, são órgãos decisivos parapromover a inserção dos cidadãos que dela benefi-ciam. Esta opção não foi acidental. O empenha-mento da diversidade de agentes locais pode vir acontribuir decisivamente a curto, a médio, ou alongo prazo para que muitas famílias abandonem asituação de pobreza e exclusão que forçou o seurecurso ao rendimento mínimo” (Pedroso, in CES,1997: 109).

No discurso político (a nível central) o Ren-dimento Mínimo Garantido assume, decisivamente,uma dimensão de direito. A sua inclusão comoprestação da Segurança Social permite demarcar amedida de um apoio discricionário: “o facto de amedida ter essa característica de garantir um di-reito para poder fazer às necessidades, faz com quea responsabilidade de atribuir a prestação, nestecaso a segurança social, tenha que se reger porcritérios rigorosos” (Secretário de Estado da Se-gurança Social).

Esta concepção do RMG lança, pois, um de-safio à sociedade, e às CLA em particular, no senti-do de criar um “clima local de inserção” para oqual é indispensável a noção de que “o direito aum rendimento mínimo de subsistência é um di-reito que me assiste por eu existir, independente-mente dos juízos de valor que façam sobre semereço, ou não” (Secretário de Estado da SegurançaSocial).

O que a coordenação torna visível

Se, tal como foi referido anteriormente, na suaconcepção, o RMG surge como um direito, como

uma garantia de subsistência aos cidadãos de maisfracos recursos, este direito não é, no entanto, as-sumido como tal por todas as entidades comparticipação nas CLA, constituindo-se, localmente,como uma das razões mais frequentes de rupturaentre parceiros.

Ele constitui-se, ainda, como um factor dedivergência entre o discurso político local e central,pesem embora as possíveis convergências político--partidárias entre ambas as esferas do poder. O queestá em causa, por parte de alguns, é, de facto, anegação da consignação do RMG como um direitoa que todos têm acesso, desde que se verifiquem ascondições de recurso, relegando-se, para umsegundo plano, as questões da inserção social. Aisso está subjacente um desejo de manutenção doexercício de um certo controlo social, e do poderque este confere, que é retirado quando há critériosuniversais pré-definidos, sem lugar para umaapreciação subjectiva: “O que está em causa não éa inserção social, é saber se as pessoas merecem,ou não, o RMG” (Covilhã); ““Há ainda entidadesque não vêem a medida como um direito, ainda éum favor que se está a fazer às pessoas”(Matosinhos); “Este merece o RMG, este nãomerece, é ainda muito uma questão que se colocanas zonas rurais, onde se conhece toda a gente e,portanto lá se decidia. E, depois, há a questãopartidária: “este é filiado no partido tal; esse nãomerece nada” (Covilhã).

Como é óbvio, as divergências partidárias,protagonizadas em diferenças de interesses, são,pelo menos em alguns locais, outro factor declivagem e actuam, por vezes, como factor debloqueio da parceria e de uma maior rentabilizaçãodos recursos com vista à inserção dos beneficiários,prejudicando-se, assim, não só a imagem da medidamas os próprios beneficiários na sua trajectória deinserção. Cria-se como que uma espécie de círculovicioso, já que a uma má imagem corresponde ummenor investimento na medida, pois a mesma “nãotraz votos” (Ferreira do Alentejo).

Enquanto estrutura de coordenação, a actuarnuma proximidade estreita com a realidade local,as CLA permitem uma grande visibilidade dessamesma realidade nas suas diferentes dimensões.Os problemas da pobreza e da exclusão são agoraexpostos perante todos, mesmo perante aqueles que

3 As frases em itálico são extractos das entrevistas realizadas no âmbito do estudo.

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tinham, até então, um maior distanciamento emrelação aos mesmos contribuindo-se, desta forma,para a sua co-responsabilização – “Dantes, tudo oque tinha a ver com a pobreza era da responsabili-dade da segurança social. Não havia uma tentativade resolução dos problemas por parte das outrasentidades porque também não havia uma com-preensão correcta das situações. Neste momento,penso quem com todos os erros, com todas asdificuldades, o RMG tem sido muito positivo a estenível” (Covilhã).

Este aspecto pode dar origem a uma maiormobilização dos parceiros em torno do objectivocomum de erradicar (ou pelo menos de minimizar)a pobreza, promovendo um dinamismo reforçadoe concertado ao nível da implementação de ac-ções: “A Junta de Freguesia apresentou a candi-datura ao Centro de Emprego para a contrataçãode pessoas e a Santa Casa da Misericórdia dis-ponibilizou uma carrinha para o transporte dosdocumentos para o Centro Regional de SegurançaSocial4” (Matosinhos); “O RMG trouxe o trabalhoem parceria. Dantes, cada instituição actuavaisoladamente, neste momento, há um trabalho maisarticulado. Esta medida veio dinamizar e motivaros organismos públicos, e não só, a não quereremdecidir as coisas sozinhos mas antes interligados”(Covilhã).

A CLA, enquanto estrutura criada do “topopara a base”, gera dinâmicas locais e pode desen-cadear movimentos de pressão da “base para otopo”. Este dinamismo, criado de facto em algunscontextos, e considerado como positivo, não deixade ter os seus “custos”. Com efeito, ele é muitasvezes percepcionado, por quem mais directamenteo protagoniza, o pessoal técnico das instituições,como uma carga de trabalho adicional, mantidaapenas pelo seu profissionalismo. Quando, porém,esse pessoal apresenta fragilidades no que diz res-peito, por exemplo, ao seu vínculo contratual, umatal dinâmica pode ser interrompida, com outro tipode custos que daí certamente advêm.

A CLA possibilita, ainda, a visibilidade dosmodos de agir e de intervir das instituições, o quepode criar protagonismos, nem sempre desejáveis,na base de uma actuação mais activa de certas ins-tituições junto das populações desfavorecidas mascontribui, também, para uma maior “abertura” das

organizações à troca de experiências e demetodologias, proporcionando-se, assim, também,maiores competências técnicas. ”Muitas vezes àfrente das associações temos determinadas pessoas,com determinados pensamentos e atitudes e comas quais temos que lidar e tentar contornar asituação. Por isso digo que nunca será por mávontade mas por razões de falta de experiência e deformação das pessoas, que levam algumasassociações a estarem um pouco fechadas a estetipo de projectos” (Covilhã).

Porém, nem sempre esta abertura é isenta deconflitos, sobretudo quando uma intervenção maisactiva, baseada numa metodologia que fomenta aparticipação e o “empowerment”, se confronta comuma outra forma de actuar, pautada pela gestão deequipamentos e por uma assistência paternalista (oumaternalista, dada a forte presença, de mulheresnas instituições sociais), assente numa concepçãoda pobreza não como fenómeno social, mas comoproblema individual de grupos e famílias a quemfaltam determinadas competências. Podeconfrontar-se, ainda, com um modo de intervir muitopouco orientado para as necessidades dos gruposmais desfavorecidos da população: “temos algumasmedidas (...) mas tem que haver determinadasentidades a candidatarem-se e isso é que nãoacontece. E não acontece, porque dizem que essaspessoas (os/as beneficiários/as do RMG) nãointeressam, faltam muito” (Covilhã).

O conflito poderá ser positivo se daí advir umcrescente dinamismo e uma crescente adopção demétodos activos de trabalho, promotores dodesenvolvimento pessoal e social das populaçõesmais fragilizadas e, como tal, da sua inserção social.

No contexto português, o trabalho ao nível dasCLA, mais do que um tradicionalismo no que dizrespeito à actuação das instituições, põe em relevoa fragilidade da estrutura de pessoal de uma boaparte delas, o que, por seu turno, impõe limitaçõesà actuação das instituições. Aí, o princípio darentabilização de recursos humanos não é posto emcausa; ele não chega sequer a ter lugar; tal comodizia um dos entrevistados “como se poderentabilizar o que não existe?”.

A falta de recursos humanos e a necessidadede mostrar resultados, tendo em conta que esta éuma medida de política alvo de críticas por parte

4 Agora Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social.

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A Coordenação nas Políticas Sociais Activas

de um sector da opinião pública e de certosquadrantes políticos, exerce uma pressão sobre osserviços e o seu pessoal técnico e, em alguns casos,torna-se factor de bloqueio da acção e da própriacoordenação. A articulação pretendida “desgasta--se” no trabalho que se devia realizar e não seconsegue; a planificação perde-se nas urgências aque é preciso atender.

A visibilidade promovida pela medida cria anecessidade de, e obriga a, uma avaliação. Aqui,registam-se algumas resistências por parte do pes-soal técnico. A avaliação, se entendida como ne-cessária, por alguns, não só como técnica de medi-ção de impactes mas como instrumento de produçãode conhecimentos sobre a população-alvo e métodopara uma maior eficácia da acção, é, por outros,evitada, ou pelo menos não facilitada. O tempo quea avaliação retira à acção é um dos argumentos maisfortes para a sua não concretização; o “medo” daavaliação, e do que de questionamento das práticasde trabalho ela contempla, é uma questão latentemas não explicitada. É certo que, durante anos, aavaliação foi uma prática ausente dos serviços deacção social, públicos ou privados, e da políticasocial, em geral. A avaliação, enquanto método detrabalho, foi introduzida pelos projectos europeusde luta contra a pobreza, tendo vindo a generalizar--se a outros programas, situando-se, no entanto, emacções delimitadas no tempo, orientadas porobjectivos definidos. Urge, no entanto, fomentá-lasobretudo numa óptica de auto-avaliação em quetodos os agentes são envolvidos num processo dereflexão permanente.

Entre o discurso e a prática local

Embora a estrutura das CLA e o seu modo defuncionamento sejam determinados por decreto-lei,elas constituem realidades muito diferentes entresi, espelhando, como se disse anteriormente, asdinâmicas das instituições locais e as característicasdos contextos em que estas se movem.

Há um conjunto de factores que influi nosentido de uma maior ou menor coordenação entreos parceiros da CLA, entre os quais se poderessaltar: a (in)existência de experiências anterioresde trabalho em parceria; o carácter, prioritário ounão, que é atribuído ao RMG; as concepções emtorno da pobreza e da exclusão social e da medidaenquanto prestação de direito; uma maior ou menorcapacidade de decisão por parte dos representantes

das organizações na CLA; a maior ou menor aberturapor parte das hierarquias dos serviços públicos desegurança social face à autonomia da CLA.

Existe, no entanto, um aspecto que parecesobressair entre todos os outros: o perfil da pessoaque dinamiza a CLA e a forma como esta interagecom os representantes das outras instituições.

As parceria são feitas por, e entre, pessoas,muito mais do que por, e entre, entidades. Tal comoafirmava uma entrevistada, “os parceiros sãopessoas”, daí que a coordenação não seja umaprática que se implemente “por decreto”, já queela “mexe” com formas de ser e agir dos indivíduos;daí, também, que a articulação entre duas entidadesse faça, por vezes, de uma forma puramenteinformal, em que “basta um telefonema”, “bastaeu pedir...” para que qualquer questão sedesbloqueie, mediante um procedimento que tempor base, única e exclusivamente, a boa relaçãoentre duas pessoas. Em muitos casos, a coordenaçãodepende de um “eu”.

A capacidade de dinamizar e de mobilizar osparceiros em torno de um objectivo comum; acapacidade de negociar e de resolver conflitos; odomínio de um conjunto diversificado deconhecimentos na área social e económica; acapacidade de valorizar a experiência de cada um,evitando protagonismos exacerbados; a capacidadede tomar decisões estratégicas; a consciência daimportância de um trabalho em comum; a capa-cidade de partilhar “territórios” e de não centralizarem demasia, são algumas das exigências que secolocam a quem está actualmente a coordenar asCLA do Rendimento Mínimo Garantido. Nestasexigências se jogam os novos desafios da acçãosocial nos dias de hoje, implicando a construçãode uma nova cultura profissional. A este nível,impõe-se uma formação contínua, dirigida às/aostrabalhadoras/es sociais, membros representantesna CLA e às/aos técnicas/os que realizam umtrabalho directo com a população.

As práticas de coordenação exemplificadasatravés dos estudos de caso evidenciam a existênciade três grandes tipos de coordenação.

Um, que se poderia chamar de uma coorde-nação de gestão centralizada com fraca capacidadede decisão, ilustrada pelo caso da Amadora.

A estrutura hierarquizada e burocratizada dosserviços de segurança social não facilita a autono-mia da CLA e, por parte da coordenação desta, há odesgaste que decorre deste tipo de procedimentos– “A CLA é uma estrutura muito burocrática. É pre-

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ciso um programa, vai para Sintra, depois vem deSintra e isso cansa-nos”.

Também por parte das outras entidades par-ceiras, pouca autonomia é dada aos representantesna CLA e persiste uma forte concentração do poderde decisão “Quem está na CLA não tem poder dedecisão. Os parceiros são representados pelos técni-cos que são dependentes da sua instituição e nãopodem decidir”.

É uma estrutura pesada, na sua dimensão, ebloqueada quer pelos problemas existentes ao ní-vel do contexto local da sua intervenção quer pelosseus problemas internos, sem capacidade para de-linear e implementar estratégias de solução: “te-mos mais chorado as nossas incapacidades do quepropriamente encontrado soluções. Na CLA apresen-tam-se constantemente os bloqueios e o que sinto éque são poucos os que foram banidos”.

A articulação entre os parceiros limita-se,aqui, a uma simples troca de informações, o queacaba por ser desmotivante. A medida não é consi-derada como uma prioridade na sua actuação, peloque as entidades com representação na CLA espe-ram mais do que contribuem para a efectivação daparceria.

Não existe uma cultura de parceria e, mesmoque as relações entre as pessoas sejam cordiais, enão tensas, cada um tem uma visão limitada da rea-lidade, situada no seu próprio contexto, querendo,antes de mais, uma resposta aos interesses dos quaisse sente representante: “A questão das parcerias nãoé clara para toda a gente. A cultura da parceriaexiste muito em termos teóricos porque em termospráticos as pessoas não assumiram bem. O que eunoto na CLA é que muitos parceiros ainda achamque o RMG é do CRSS, e é o CRSS que tem queresolver o problema”.

A prestação como um direito é minimizadapelos impactes negativos de um insuficiente traba-lho ao nível da inserção revelado por um elevadonúmero de processos sem a contratualização doprograma de inserção e consequência de uma in-suficiente afectação de recursos humanos: “osserviços não estão estruturados para uma medidaem que se tem que atribuir uma prestação, fazer umprograma e o respectivo acompanhamento (...) sãopoucos técnicos que estão em exclusivo na medida(...) teríamos que ter o dobro das pessoas” (parceiro– segurança social); “Não houve contratação demais pessoal, há mais trabalho, um acumular dereuniões, não houve aumento das verbas, nem do

apoio logístico. Tudo continuou a ser o mesmo queantes do RMG” (parceiro – educação).

A exclusão é vista, não como um fenómenosocial mas como um problema criado por certosindivíduos ou grupos, radicando neles a explica-ção para a existência de tal fenómeno; e o trabalhoque é feito ao nível da inserção acaba por reforçaresta ideia, imputando-se, ainda, aos próprios, o nãoentendimento do programa de inserção e dacontratualização a ele associada.

Um segundo tipo é o de uma coordenação di-nâmica, que proporciona a partilha de responsabi-lidade e toma as suas próprias opções (veja-se ocaso de Matosinhos e de Vila Real de Santo An-tónio).

Apesar dos problemas, verifica-se, em ambosos casos, a busca das melhores estratégias que vi-sam a solução dos problemas existentes e que passapor uma implicação cada vez maior de todos osparceiros. A articulação entre as diferentes entida-des ultrapassa, em muito, a simples troca de infor-mações, sabe definir objectivos e planear acções oque significa boas possibilidades de se criar umefectivo clima de inserção já que os problemas as-sociados aos/às beneficiários/as do RMG são dis-cutidos como parte integrante dos problemas locais:“é a primeira vez que instituições públicas e priva-das se sentam todas à volta de uma mesa para dis-cutir os problemas locais, não só sobre os beneficiáriosdo RMG mas sobre os problemas da região, comopor exemplo, os do emprego e da qualificação pro-fissional” (Vila Real de Santo António). É, pois, aacção social a funcionar numa óptica de desenvol-vimento local, processo no qual a coordenação entreparceiros assume um papel central.

A medida é uma prioridade em torno da qualse rentabilizam recursos, se dinamizam localmenteas medidas de política e se criam novas respostas.A luta contra a exclusão é entendida com uma tarefacolectiva, na qual todos têm o dever de participare, neste caso, a prestação é assumida como umdireito e as instituições assumem a sua função desolidariedade social.

“Todas as instituições, quer públicas, quer pri-vadas, demonstram um máximo de esforço no sentidode proporcionar resultados a esta medida” (VilaReal de Santo António);

“Quando tenho reuniões a nível regional, mui-tas vezes coloco problemas que têm que ver comsituações concretas do RMG e os meus colegasperguntam: mas tu vais a todas as reuniões do RMG?

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Eu só vou de vez em quando. Tu vais lá sempre? Eumando ofícios” (parceiro-educação, Matosinhos);

“As instituições têm que crescer e acompanharas medidas lançadas, porque estão a trabalhar paraa população; se não acompanharem, deixam de serinstituições de solidariedade social” (parceiro –Santa Casa da Misericórdia, Vila Real de SantoAntónio).

Em ambos os casos os parceiros vão cons-truindo uma cultura de parceria partindo, no entan-to, de situações diferentes.

Em Matosinhos, este processo é facilitado poruma experiência anterior: “os técnicos já têm certasdinâmicas interiorizadas, é mais fácil (...). Otrabalho em parceria anterior fez perceber aspotencialidades deste tipo de funcionamento. Osparceiros já têm uma experiência anterior, articulam-se melhor, de forma mais simples” (Matosinhos).

Em Vila Real de Santo António foi o Rendi-mento Mínimo, e a sua organização em comissõeslocais, que ajudou a que as instituições encontras-sem objectivos comuns sem que, no entanto, fossemcriados protagonismos inibidores de uma par-ticipação aberta a todos: “as instituiçõestrabalhavam um pouco por si sós. Havia poucasreuniões e muitas vezes elas eram parcelares, entre aMisericórdia e a Câmara ou com alguma Junta deFreguesia. Não se tinha um objectivo comum comohá no RMG, nem se envolvia tantas pessoas einstituições.” (Vila Real de Santo António); “É umcaso curioso, porque não tem havido situações deprotagonismo. Tem havido um espírito de humildade,de estar desinteressadamente, sem “colher louros”,e as coisas têm funcionado bem” (Vila Real de SantoAntónio).

O terceiro tipo é o de uma coordenação emruptura, devido às fortes divergências entre osparceiros, em que a um núcleo dinâmico se opõeum grupo mais alargado de parceiros para os quaisa medida não é prioridade nem lhe é reconhecidointeresse (Covilhã e Ferreira do Alentejo), ficandopor apurar em que sentido se irá orientar a actuaçãofutura.

Numa destas CLA (Covilhã), a sua estruturacomplexa, quer do ponto de vista da dimensão (58entidades), quer da diversidade de interesses quemove os parceiros reflecte-se sobremaneira no fun-cionamento da Comissão. Em qualquer um doscasos, porém, identificam-se claras e diferentesmotivações onde o objectivo da inserção dos bene-

ficiários não é de todo comum. Assim, é possíveldistinguir os que pertencem à CLA por razões decontrole (político); os parceiros passivos que estãolá “porque foram convidados”; os parceiros activosmovidos pela luta contra a exclusão social e que, sena Covilhã se restringe praticamente aos parceirosobrigatórios, em Ferreira do Alentejo conta com aparticipação de entidades privadas sem finslucrativos.

Apesar de, em ambas as situações, terem exis-tido experiências anteriores de trabalho em parce-ria, por via da existência de projectos de luta contraa pobreza, as mesmas não foram suficientementepositivas para serem rentabilizadas no âmbitodo RMG havendo, pois, todo um trabalho a construirno sentido da partilha de objectivos comuns e deinverter a lógica do proveito individual: “tiveexemplos de reuniões de parceria do projecto de lutacontra a pobreza em que as pessoas vinham paradiscutir que dinheiro ia para esta freguesia e paraaquela e quem saía mais beneficiado e bem visto aosolhos dos munícipes” (Ferreira do Alentejo).

A tenacidade de um núcleo faz-se sentir nabusca e experimentação de várias estratégias paraa motivação dos diferentes parceiros – “nóstentamos de várias maneiras e vamos continuar atentar” (Ferreira do Alentejo) – mas reclama-setempo para a construção de uma cultura de parceria:“O envolvimento dos agentes no processo requertempo; é um processo gradual e não podemos esperarque os parceiros estejam sempre disponíveis (...). Épreciso o envolvimento num projecto comum e aíainda não há cultura amadurecida” (Ferreira doAlentejo).

De uma forma muito marcada, nestas CLA,surge a negação da medida como um direito a quetodos podem ter acesso desde que satisfaçam ascondições de recurso, dizendo-se, pois, que amesma “não devia ser generalizada a todos osgrupos” (Ferreira do Alentejo) e onde a inserçãotambém não é vista como um direito das populaçõesmas como dever de alguns: “as pessoas do RMGdeveriam, vá lá, não ser obrigadas mas quase, aparticiparem nas autarquias locais” (Covilhã).

Nesta perspectiva, torna-se mais fácil haveruma certa desresponsabilização de alguns parceirosno processo de inserção dos beneficiários: “háentidades que são capazes de não contribuírem muitopara a sua integração (dos beneficiários do RMG)porque dizem que são pessoas problemáticas, semcondições” (Covilhã).

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Os Impactes nos Beneficiários

Em qualquer um dos casos é possível identi-ficar efeitos positivos na vida dos beneficiários doRMG na sequência da sua participação na medidae, muito concretamente, de uma abordagemmultidimensional dos problemas que afectam estaspessoas.

Os impactes do RMG na vida dos beneficiáriossituam-se, fundamentalmente, a dois níveis: namelhoria das condições de vida; no aumento daauto-estima, o que favorece a continuidade dospercursos de inserção.

No que diz respeito à melhoria das condiçõesde vida, ela manifesta-se nos benefícios produzidosdirectamente pela prestação em si mesmo:diminuição das situações de endividamento; maiornível de satisfação das necessidades básicas.

Faz-se, ainda, sentir através das acções dosprogramas de inserção, manifestando-se, a este ní-vel, os efeitos de uma actuação multidimensionalassente num trabalho em parceria no âmbito dasCLA. Essas acções têm contribuindo, especialmen-te, para a obtenção de melhores condições dehabitabilidade e melhores níveis de saúde.

No que diz respeito à saúde, essa melhoria éconseguida através de um acesso facilitado aos ser-viços, nomeadamente a consultas de especialidade,e de uma maior cobertura dos cuidados médicos,em geral. A CLA tem aqui um papel determinante,funcionando como veículo de facilitação daqueleacesso, seja através de uma discriminação positiva,seja através da identificação, dentro dos serviços,de pessoal técnico capaz de encaminhar e orientaros utentes e, sobretudo, de criar um clima quefacilite o seu acolhimento. Não deixa de ser curiosoque, sendo a saúde um direito constitucionalmentegarantido, existam populações para as quais essedireito não está assegurado, devido ao tipo deatendimento, pouco inclusivo, que se verifica nosserviços locais.

No que se refere a um aumento da auto-estima,ele é concomitante com o aumento das qualificaçõesescolares e profissionais desta população. Comefeito, para além da importância que a qualificaçãotem em termos de uma melhor inserção profissional,através da formação, os beneficiários adquiremcompetências sociais e pessoais que os tornam maiscapazes de iniciar um percurso que contrarie adependência.

Com efeito, não se verifica, na maior parte doscasos entrevistados, uma cultura de dependênciaem relação à prestação: “o RMG é uma forma daspessoas não se acomodarem. O RMG não é umareforma e, logicamente, as pessoas devem integrar--se na sociedade” (beneficiária – Covilhã). Nageneralidade, há uma boa compreensão e aceitaçãodas suas responsabilidades e a integração numaactividade profissional é encarada positivamente:“(...) porque afinal o que é isso de se inserir nasociedade? É ter a sua vida, a sua casa, o seu carro,a sua família, a sua independência, a sua satisfaçãopessoal, e para isso é preciso ter-se uma profissão”(beneficiária – Amadora).

Em certos casos, verifica-se uma maior parti-cipação das pessoas beneficiárias na definição dosprogramas do que noutros e, aqui, mais do que otipo de coordenação e desempenho da CLA, influio método de trabalho do próprio trabalhador/a socialque, de uma forma mais directa, se relaciona como/a beneficiário/a.

O fomento da participação dos/as benefi-ciários/as nem sempre é isento de conflitos quepassam, antes de mais, por saber colocar ao mesmonível duas posições que à partida são diferentes eque estão ainda muito marcadas pela ideia de“quem pede” e “quem dá”. Se o RMG, enquantodireito, pretende anular esta ideia, nem sempre essaanulação é alcançada, tanto para a/o técnica/o, quecontinua, assim a exercer um poder sobre..., comopara o/a beneficiário/a , a quem uma condição depobreza prolongada e de grande privação conduz auma posição de submissão.

Em contrapartida, estabelecer a prestaçãopecuniária e associar-lhe o direito à inserção épromover, junto de certos grupos, uma atitudereivindicativa que nem sempre é bem acolhidapelas/os técnicas/os, pelo que algumas/uns de-las/es constroem uma imagem negativa, da medida.

Em algumas CLA, optou-se por uma presençados/as beneficiários/as no núcleo, provocando-seuma maior aproximação entre estes/as e todos osparceiros e, como tal, um conhecimento da situaçãoque é por todos partilhado; um maior conhecimentodo funcionamento da medida e da CLA e umatomada de consciência, por parte dos/asbeneficiários/as, relativamente a um compromissoque é assumido em conjunto – beneficiário/a esociedade. Esta presença dos/as beneficiários/as nonúcleo, embora promotora de participação, envolve,contudo, alguns cuidados já que pode funcionar

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também como promotora de uma forte inibição daspessoas que não dispõem ainda de capacidade denegociação, num contexto ainda marcado por umadesigualdade de papéis.

A abordagem feita, no âmbito do RMG, aonível da inserção, afigura-se multidimensional. Nãohá dúvida que essa multidimensionalidade épossível através da utilização de uma metodologiaque assenta numa óptica de trabalho de projectomas é, sobretudo, proporcionada pela presença deparceiros das diferentes áreas. Permite-se, assim,por vezes, que a partir de um único problemaidentificado, sejam detectadas outras carências eestabelecido um conjunto de relações entre osdiferentes problemas-causas da pobreza. Destaforma, os percursos de inserção tornam-se, também,mais consistentes e coerentes.

Nos vários casos entrevistados, há uma múl-tipla intervenção abrangendo diferentes áreas:habitação, quando as casas não apresentam ascondições mínimas; educação, quando o titular oualgum membro da família não tem, pelo menos, osníveis de escolaridade básicos; ou, ainda, integraçãoem equipamentos, no caso das crianças; formaçãoou emprego com vista a uma inserção profissional;acompanhamento médico em situações de doença.

Apesar deste tipo de abordagem indiscutivel-mente positiva, o processo de inserção dos/asbeneficiários/as está altamente dependente de doisfactores: tempo e recursos.

Tempo para que se concretize a inserção, oque implica muitas vezes, não só um processo deformação escolar ou profissional, mas também umprocesso de transformação pessoal (o que implicatrabalhar com vista à autonomia). Tempo porque ainserção está muito dependente da situação departida dos indivíduos e famílias, havendo sempreque ter isso em consideração: “claro que este projectonão pode ter 100% de sucesso, trata-se de umaconquista gradual, porque são famílias que viveramafastadas da própria convivência em sociedadedurante muitos anos, portanto torna-se difícil fazereste trabalho” (Vila Real de Santo António).

No que diz respeito aos recursos, trata-se derecursos humanos para trabalhar a inserção dosbeneficiários e de respostas (equipamentos sociais,acções, programas) para a concretização dos planosde inserção.

Quanto aos recursos humanos verificou-se emquase todos os estudos de caso, uma discrepância

entre as necessidades manifestas e os recursosexistentes, sendo esta uma das principais lacunasidentificadas por diferentes actores no que dizrespeito ao RMG. Esta lacuna tem efeitos perversosa vários níveis. Ao provocar o acumular de processosdeferidos sem contrato, nem programa de inserção,dá origem a que situações que requerem umaintervenção imediata se percam e que, por outrolado, se crie uma noção contrária aquilo que épreconizado, ou seja, a de um direito-dever deinserção, onde a vertente do dever se anula. Osbeneficiários demarcam-se em relação ao dever epode fomentar-se uma cultura de dependência;gera-se, na opinião pública, um imagem negativada medida e dos grupos de população que maisprotagonizam essa ausência do dever, sendo-lhesimputadas responsabilidades, por isso mesmo, eaumentando a estigmatização social destes grupos.Contudo tais grupos apenas actuam nas brechas queo próprio sistema cria.

Importa, no entanto, salientar que mais do queuma insuficiência de recursos humanos se verificaa necessidade urgente de os serviços (públicos eprivados) organizarem efectivamente o seu trabalhono sentido da inserção o que significa uma culturade parceria e de coordenação e, como tal, tambémde planeamento e avaliação. Neste processo devemestar envolvidos não só as/os técnicas/os quetrabalham directamente com as populações mastoda a organização: “a parceria implica mudançasde actuação e devia implicar mudanças na estruturadas organizações e às vezes é complicado mexernelas. Penso que as pessoas estão sensibilizadaspara tal mas é preciso tempo para resolver questõesque implicam, alterações de coisas que há anos quefuncionam nos mesmos moldes, sem grandeabertura, sem grande flexibilidade. Alterar algunsprocedimentos, significa alterar desde o director aopessoal técnico, todos têm que estar envolvidos”(Matosinhos).

Conclusões

A coordenação não tem sido tema de análiseda investigação em Portugal e, mesmo no discursotécnico, a coordenação dilui-se noutros conceitosbem mais utilizados. Com efeito, partenariado outrabalho em parceria têm sido os termos mais utili-zados para designar estruturas e modos, mais oumenos formalizados, de cooperação entre diferentes

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CIDADES Comunidades e Territórios

actores, com o objectivo de criar novas respostas,ou de uma resposta concertada, face a problemassociais emergentes.

Contudo, o termo coordenação está cada vezmais presente no discurso político. Seguindo umatendência que se faz sentir a nível europeu, oRendimento Mínimo Garantido é acompanhado pelacriação das Comissões Locais de Acompanhamento,surgindo, em paralelo, outras estruturas de baseterritorial tendo como objectivo a coordenação deacções e a cooperação entre diferentes entidadeslocais.

Orientadas por princípios positivos, estasestruturas podem correr o risco da sua excessivamultiplicação e da desmotivação face à participaçãopor parte dos agentes locais. Por outro lado, paraque tais estruturas, e em particular as CLA do RMG,atinjam a sua finalidade última não deve deixar dese considerar que:

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- A coordenação não se concretiza “pordecreto”;

- A coordenação é um processo em perma-nente construção que pode causar problemas econflitos entre actores;

- A coordenação precisa de tempo. Tempopara se concretizar; tempo para atingir os seuspróprios objectivos e alcançar resultados;

- A coordenação implica a necessidade deuma avaliação constante;

- A coordenação não é possível sem osrecursos humanos adequados. Importa salientar quenão está em causa apenas a “quantidade” dosrecursos afectos a este processo mas, em particular,o perfil de quem o dinamiza, levando à afirmaçãode que, ao nível local, a coordenação depende deum “Eu”.

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