a controvérsia simonsen gudin - 6º encontro da abri · de empresas internacionais. ... não...

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1 A Controvérsia Simonsen Gudin: Uma Interpretação para a História das Relações Internacionais do Brasil José Alexandre Altahyde Hage 1 Resumo: O Objetivo deste ensaio é analisar documento que, de algum modo, é relevante para a história das relações internacionais brasileiras. Nos 1940, no término da Segunda Guerra Mundial, ocorreu relevante debate feito por dois importantes analistas da economia brasileira, Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. O debate marcou a defesa que o primeiro fez do planejamento governamental como instrumento de industrialização e, por conseguinte, da melhoria do poder nacional brasileiro. Já o segundo, Gudin, defendeu a opinião de que o Brasil não deveria descuidar de suas vantagens adquiridas na agricultura e sua contribuição para a melhoria econômica. Trata-se de debate publicado pelo IPEA e que ainda guarda importância para a atualidade. Palavras-Chave: Planejamento Governamental; Economia Internacional; Governo Vargas. 1 Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo. Email: [email protected].

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A Controvérsia Simonsen – Gudin:

Uma Interpretação para a História das Relações Internacionais

do Brasil

José Alexandre Altahyde Hage1

Resumo: O Objetivo deste ensaio é analisar documento que, de algum modo, é

relevante para a história das relações internacionais brasileiras. Nos 1940, no término da

Segunda Guerra Mundial, ocorreu relevante debate feito por dois importantes analistas

da economia brasileira, Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. O debate marcou a defesa

que o primeiro fez do planejamento governamental como instrumento de

industrialização e, por conseguinte, da melhoria do poder nacional brasileiro. Já o

segundo, Gudin, defendeu a opinião de que o Brasil não deveria descuidar de suas

vantagens adquiridas na agricultura e sua contribuição para a melhoria econômica.

Trata-se de debate publicado pelo IPEA e que ainda guarda importância para a

atualidade.

Palavras-Chave: Planejamento Governamental; Economia Internacional; Governo

Vargas.

1 Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo. Email:

[email protected].

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À Guisa de Explicação

Tivemos oportunidade de opinar em outro ensaio (HAGE, 2014) que não é

evidente a confluência entre a teoria geopolítica com assuntos de economia, vale dizer,

de industrialização. Ao menos no aspecto clássico da geopolítica, fundamentalmente

europeu, não aparece em cores fortes o impacto ou a relevância que a industrialização

pode ter para a geopolítica. Halford Mackinder, por exemplo, apresentou em 1904, seu

famoso texto, sobre a Eurásia, em que definiu o poder terrestre como suficiente para

fazer da Alemanha, em aliança com a Rússia, a grande potência mundial a neutralizar o

poder britânico nos mares.2

Por conseguinte, a sensibilidade geopolítica para com a economia não se

encontrava no modelo a ser adotado em um determinado país, nem seus recursos

naturais. Não estava em pauta se a industrialização era superior à agricultura. O que

importava, à primeira vista, era a demografia, o tamanho do território e o

posicionamento geográfico. Sim, a economia agrária era ponto de cálculo de poder do

Estado, mas por causa do fornecimento de bens alimentares e não por seu valor em si,

abstrato para o mundo da política na época. A Grã-Bretanha podia ser industrializada,

mas dependia dos produtos agrários das colônias para o consumo interno e para a

exportação de manufaturados.

A confluência entre teoria geopolítica e economia passou a ocorrer com na

Primeira Guerra Mundial e o conceito que nela se desenvolveu da guerra total, grosso

modo, é aquela que envolve toda a sociedade e conta com uma estrutura produtiva que

se torna trunfo para os exércitos no teatro de combate. Caminhões, tanques de guerra,

fornecimento regular de petróleo etc, são os novos elementos econômicos que são

produzidos por uma economia mais complexa, que só pode ser encontrada em um país

industrializado.

Com efeito, na Segunda Guerra a importância da economia industrial aparece

com todo vigor, dando aos países do Hemisfério Sul o exemplo de progresso, eficiência

2 É fato que após a Segunda Guerra Mundial todo estudioso de geopolítica teria de ter algum aprendizado

de economia, da importância da industrialização ou seus problemas para aquele tipo de Estado. Essa

necessidade ocorreu porque não se poderia mais pensar o emprego da geopolítica sem o planejamento

estratégico e o advento da tecnologia. O desenvolvimento do avião a jato serve como exemplo, já que ele

passou a ser objeto de pesquisa para quem acredita que o poder aéreo é fundamental para a ascensão de

uma potência. A brasileira Escola Superior de Guerra não descuidou desse debate. Nela se pode encontrar

Golbery do Couto e Silva com seu O Planejamento Estratégico, em que versa essa questão. O debate

sobre a concorrência entre poder terrestre, naval e aéreo pode ser encontrado em Leonel Mello. (MELLO,

1999).

3

e segurança fornecidos pelas grandes potências. Desta vez, dar emprego em grande

monta, promover economia de massa, produzir elementos complexos e substituir

importações passam a integrar programas governamentais nos países periféricos. O

Brasil não só se integra a esse debate, mas o faz em grande estilo, uma vez que havia

participado do conflito na Europa.

A importância de se obter indústria de base e infra-estrutura organizada pelo

Estado; mais do que isso, de se criar moderno corpo de especialistas para o

planejamento governamental é encontrada em célebre debate que houve entre duas

personalidades da política e economia brasileiras. O encontro feito pelo professor

carioca Eugenio Gudin e pelo senador por São Paulo, Roberto Simonsen, foi registrado

nas Controvérsia Simonsen – Gudin, cujo objetivo fora auxiliar a Presidência da

República a tomar decisões mais corretas em face do que se deveria fazer para que o

Brasil progredisse na economia.

Embora o aspecto geopolítico, ou de política externa, não esteja de fato, lavrado

no debate entre os dois expoentes, isso não impede que haja interpretações de nossa

parte do impacto que tais fenômenos poderiam ter em um processo de admissão pelo

Estado brasileiro. Um país industrializado teria inserção internacionais mais bem posta

em relação a um agrário? Eis uma questão que acreditamos ser valida em nossa

interpretação desta controvérsia.

O Nascimento da Controvérsia

O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), órgão de

assessoramento do governo brasileiro relançou importante documento para se

compreender a realidade político-econômica do Brasil. Trata-se de A Controvérsia do

Planejamento na Economia Brasileira, fruto do embate intelectual de dois grandes

nomes da política nacional dos anos 1940/50, Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. Com

efeito, o documento não só ajuda na compreensão das questões nacionais, mas também

auxilia no entendimento das relações internacionais do período e o papel que o País teria

de desempenhar ao procurar obter melhor inserção internacional (SIMONSEN e

GUDIN, 2010).

O documento A Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira conta

com introdução e explicações de João Paulo dos Reis Veloso, fundador do IPEA junto

com Roberto Campos. Veloso também foi ministro do Planejamento do governo

4

Ernesto Geisel, onde pôde conceber o II Plano Nacional de Desenvolvimento, II PND

que andara bastante citado nos últimos anos em virtude de políticas de financiamento

estatal.

A título de brevíssima informação biográfica, Roberto Simonsen foi industrial,

deputado federal e senador por São Paulo e fundador da Federação das Indústrias do

Estado de São Paulo (FIESP). No campo educacional ele foi o criador do Serviço

Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e ainda criou instituições de ensino

universitário, a Escola de Sociologia e Política de São Paulo (ESP) e a Faculdade de

Engenharia Industrial (FEI). A primeira notabilizou-se por ser a primeira nos estudos

das ciências sociais no Brasil, em 1933, inclusive convidando mestres norte-americanos

e europeus.

O segundo contendor, Eugenio Gudin, formou-se em engenharia pela antiga

Escola Politécnica da atual UFRJ (Universidade do Brasil), interessou-se pela atividade

empresarial, auxiliando investimentos internacionais no campo da energia elétrica e nos

transportes e teve participação, como delegado brasileiro, no Fundo Monetário

Internacional (FMI). Em 1954 exerceu atividade político-executiva como ministro da

Fazenda no governo de João Café Filho, que sucedera Vargas. Além disso, Gudin

recebeu grande mérito por ter compreendido a importância de se criar no Brasil o

moderno ensino de ciências econômicas, desvinculado do direito e da engenharia – o

que foi feito com a fundação do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio

de Janeiro (IE/UFRJ).3

O cerne do grande debate feito nos anos 1944 e 1945, como assessores especiais

em economia nacional e internacional para a Presidência da República, encontra-se na

defesa de concepções diferentes da política econômica que os autores apresentavam.

Simonsen, na condição de industrial e “intelectual orgânico” a favor da industrialização

e do avanço técnico, pregava a existência do planejamento governamental e o

aparelhamento burocrático à moda de Max Weber.4 Pregava que o Brasil deveria ter

eficiente corpo técnico (daí a criação da ESP) para melhor enfrentar as dificuldades, e

aproveitar as oportunidades, que adviriam depois novo sistema internacional. Vale dizer

3 É pertinente notar que as duas personagens também incursionaram no âmbito editorial, das ideias.

Simonsen é autor de Evolução Industrial do Brasil. Gudin escreveu Princípios de Economia Monetária,

entre outros. 4 Apenas como simples informação burocracia é para Max Weber um corpo de funcionários, públicos ou

privados, cuja seleção é feita por meio de rigorosos testes de aptidão e competência. Uma vez empregado,

o burocrata trabalha de modo impessoal e racional, sem atender a apelos emocionais ou pessoais na

administração da empresa ou do Estado. O objetivo desse corpo profissional é servir com eficiência o

empregador (WEBER, 1982).

5

sistema internacional montado pelos Estados Unidos, no fim da Segunda Guerra

Mundial, que já indica em seus primórdios ser refratário às grandes demandas dos

países sul-americanos.

O senador por São Paulo acreditava na pertinência de se obter moderno e

eficiente corpo técnico no serviço público, que tivesse condições de mapear, estudar e

compreender as grandes questões nacionais. Aproveitando o precedente aberto pela

admissão do Departamento do Serviço Público (DASP) pelo governo Vargas, nos anos

1940, Simonsen defendia a necessidade de se formar o Estado planejador, não

necessariamente estatizante, mas uma autoridade que chamasse para si a

responsabilidade de resolver problemas prementes que perturbavam o crescimento

nacional, como falta energia elétrica que na época estava completamente sob controle

de empresas internacionais.

Sobre isto, Sonia Draibe escreve que nos anos 1930 já havia iniciativas dessa

moderna burocracia na criação do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), do Instituto da

Borracha e o Instituto do Café (IBC). Talvez o ponto nervoso da questão fosse o pouco

saber técnico da ocasião ou o intervalo “desenvolvimentista” que houve com a

Presidência de Eurico Gaspar Dutra, em 1946, cujo ímpeto industrializante fora menor

que o de Vargas.

Neste ponto, é importante sublinhar que as tentativas e avanços na criação de

instituições estatais na regulação da economia brasileira não se iniciam por causa das

observações do senador. É claro que Simonsen traz novos elementos para a crítica nos

anos 1940, contudo o primeiro governo Vargas já se adiantava na busca de se obter

instituições mais afinadas com aquilo que o presidente queria no clima do Estado Novo.

Não somente o período autoritário dava azo ao projeto getulista, a iminência da Segunda

Guerra de igual forma contribuía para que o Estado tivesse melhor assentamento na

economia.

“Os processos originais de formação dos Estados

nacionais e a elaboração dos primeiros códigos eram, de fato, um

movimento de demarcação de soberania do Estado sobre ‘seu’

território, diante de processos similares e simultâneos de

formação de outros Estados, em geral, num quadro de

enfrentamento mútuo. Os códigos de florestas, no ocidente,

constituíam recurso estratégico para a economia interna e a

guerra; por isso, foram objeto de disputa entre os Estados em

formação e o motivo de regulamentação precoce” (DRAIBE,

2004: 83).

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Por outro lado, Gudin, não obrigatoriamente hostil ao pensamento de seu

oponente. Ele era da opinião de que o desenvolvimento e bem-estar viriam da promoção

daquilo que é o valor comparativo brasileiro, a agricultura e pecuária. O professor

emérito da UFRJ não era, de fato, contra a industrialização, mas não era a favor de que

ela ocorresse em detrimento da agricultura e dos parcos recursos econômicos federais.

A industrialização deveria ser um processo natural da maturação da economia agrária –

uma analogia do modelo clássico que ocorreu na Grã-Bretanha do século XIX. De certo

modo, Gudin não contrariava o pensamento ricardiano, para quem a economia

internacional cresce à medida que os países participam com aquilo que melhor sabem

fazer.5

Como país peculiar no campo da agropecuária, à moda ricardiana, o Brasil

deveria deixar que suas inclinações naturais tirassem proveito da base agrícola,

aumentando a produtividade e a renda nacional para auxiliar na construção de um setor

industrial moderno, mas que tivesse condições de sobreviver por conta própria, sem

socorros financeiros ou protecionismos alfandegários. Podemos dizer que Gudin foi o

representante do pensamento liberal no pós-guerra que só teve paralelo, nos anos 1960,

com o aparecimento de Octávio Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos nos anos 1980.

Segue Gudin:

“Eu não faço e nunca fiz guerra à indústria nacional (...).

Seria um contrassenso não nos industrializarmos. Precisamos é de

aumentar nossa capacidade agrícola, em vez de menosprezar a

única atividade econômica em que demonstramos capacidade para

produzir vantajosamente, isto é, capacidade de exportar”

(SIMONSEN e GUDIN, 2010).

Mas por que os dois estudiosos da economia política se emularam nos anos

finais da Segunda Guerra? Afinal, que motivos impulsionaram Simonsen e Gudin a um

debate célebre que perdura, em parte, até hoje? Ao inaugurar o moderno debate sobre

grandes questões econômicas nacionais, que escapasse das implicações pessoais e dos

limites programáticos dos partidos (que foram cassados por Vargas), o embate

intelectual foi animado por causa de um documento solicitado pelos governos Vargas e

Roosevelt, dos Estados Unidos, sobre os problemas existentes no Brasil que abortavam

5 Daí as vantagens comparativas do economista britânico David Ricardo que contribuem para a

conformação da Divisão Internacional do Trabalho, premissa arduamente combatida pelo pensamento

desenvolvimentista dos anos 1930 a 1960.

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a industrialização. Vale dizer, progresso e industrialização conveniente para o período

de conflito mundial.

O Relatório Cook, de 1942, fruto da missão que leva o mesmo nome, foi

encomendado pelos Estados Unidos ao levar em conta a posição do Brasil, como

membro dos Aliados contra o Eixo na guerra. Em outras palavras, era necessário saber

se realmente o País possuía condições de lutar ao lado dos Estados Unidos e demais

aliados contra o nazifascismo. A Missão Cook tinha duas preocupações. Primeiro, fazer

levantamento da situação econômica do Brasil, no que tangesse a matérias-primas

estratégicas, como borracha e ferro, e à infra-estrutura para exportação. Havia matérias-

primas, mas as condições eficientes para fazê-las chegar transformadas ao teatro de

guerra eram muito precárias. Questão que atualmente é conhecida no Brasil como falta

de logística e é apontada como um dos problemas que atrapalham a participação

brasileira no comércio externo.

O segundo campo de estudo também era de suma importância, compreender as

quantas andavam a saúde e educação do brasileiro; povo que seria responsável pelo

pronto apoio nacional aos esforços de guerra que o Brasil teria de dar na Europa. Mas se

as condições físicas e educacionais do povo brasileiro caminhavam mal, então, fazia-se

urgente tomar medidas para que se procurasse sanar o inconveniente, e persistente,

problema. E vale a pena dizer que o relatório era da opinião que um país das medidas do

Brasil evoluiria em todos os sentidos se adotasse a industrialização. Como prega o

paper:

“Devido à sua pouca produção, às dificuldades na

distribuição e ao relativo isolamento em que vivem muitos

núcleos de sua população, uma parte substancial esta sofre de

doenças, é subnutrida e insuficientemente educada. A

industrialização do país, sábia e cientificamente conduzida, com

um melhor aproveitamento de seus recursos naturais, é o meio

que a Missão aponta para alcançar o progresso desejado por

todos” (SIMONSEN e GUDIN, 2010).

Foi o Relatório Cook que impulsionou o embate entre Simonsen e Gudin. Ao

chegar às mãos da Presidência da República fez com que o governo procurasse saber

como superar questões tão sérias, algumas provenientes do século XIX, caso da

desnutrição e da baixíssima escolaridade. Para os autores, esses males não eram

desvencilhados do modelo econômico brasileiro, concentrador de renda e montado

sobre a ineficiência técnica do setor. Na verdade, a agricultura nacional tinha

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importância mais pela quantidade do que pela qualidade do seu trabalho. Portanto,

deveria ser seriamente modificada.

Na visão de Simonsen a superação dos males apontados aconteceria com uma

transformação qualitativa da economia brasileira. Depois da crise de 1929 não havia

mais pertinência de o Brasil continuar como essencial exportador de bens primários em

troca de manufaturas. Aliás, a crise da Bolsa de Nova York apontava para outra questão,

não havia mais por que o Brasil continuar na manutenção da antiga Divisão

Internacional do Trabalho (DIT) em uma época em que o garante do sistema não mais

expressava poder suficiente para protegê-lo. Referia-se Simonsen à Grã-Bretanha com

seu livre-cambismo que efetivamente havia suportado um modelo de civilização

ocidental, mas que, naquele momento, havia perdido vigor em virtude de novos

desafios, como aponta Karl Polanyi em face dos nacionalismos que nasceram da

tragédia de 1914 (POLANYI, 2000).

De forma independente de se saber os motivos que levaram o liberalismo

econômico ao ocaso, nas décadas de 1930/40, Simonsen procurava ser pragmático,

inclusive não ignorando que os próprios Estados Unidos não deixariam de usar o poder

político para proteger sua sociedade do desequilíbrio externo. Assim, não estava em

pauta a moral do problema, se era certo ou errado escapar da crise do modelo

econômico internacional advindo da pax britannica, como denominara Polanyi. O que

se devia fazer era constatar que quem saía perdendo eram os países do Sul, exportadores

de bens primários. Com Simonsen:

“É realmente ilusório o enriquecimento de muitas

repúblicas latino-americanas no período da guerra (...) verifica-se

que, em números globais, comparadas as cifras referentes aos

anos de 1938 a 1942, diminuiu o volume de matérias e matérias-

primas exportadas das repúblicas latino-americanas para os

Estados Unidos. O que se registrou, realmente, foi um aumento de

exportação de alguns artigos e um acréscimo em muitos dos

preços” (SIMONSEN e GUDIN, 2010).

No raiar da década de 1930 o nacionalismo havia ganhado vida e com ele a crise

programática do liberalismo, portanto da aliança anglo-americana. Teve emergência o

protecionismo econômico que, de alguma forma, legitimava atuações de políticas

autônomas como as adotadas pela periferia capitalista da própria Europa. Por isso, o

liberalismo e sua pregação virtuosa fora considerado instrumento ideológico das

potências tradicionais; o protecionismo, e o componente intelectual que o cercava, era a

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superação de um lugar menor na ordem internacional. Não é demais citar Edward Carr

para compreender esses fatos.

No livro Vinte Anos de Crise há várias passagens em que o liberalismo, tout

court, é visto por seus oponentes como ferramenta ideológica e de manutenção da

realidade, benéfica ao bloco anglo-americano (CARR, 1981). Era lógico que algumas

potências, posteriormente denominadas Eixo, usariam o protecionismo para alavancar

atividades industriais e, partir daí, melhorar os índices de poder nacional, sobretudo

militar. Não é muito lembrar o interesse que a Alemanha nazista demonstrou pelo

Brasil, procurando fazer mercado compensatório, antiliberal, em que Berlim ajudaria

Vargas a construir a grande siderúrgica e, em troca, o País forneceria matérias-primas

para a Alemanha.

Outro livro que ajuda a compreender a atmosfera intelectual dos anos 1930 a

1950 e a militância pela industrialização dos países periféricos é o do americanista Josef

Love, A Construção do Terceiro Mundo, no qual o autor identifica a fertilidade

intelectual latino-americana, sob inspiração da CEPAL, com esforços de

industrialização feitos na periferia europeia, como a Romênia dos anos 1920. Love

acredita que a gênese do pensamento cepalino, para romper a DIT, tem um toque de

fascismo, de protofascimo que habitou os planos econômicos de Bucareste por meio da

criação de sofisticada base burocrática no serviço público para que dirigisse a

industrialização (LOVE, 1998).

Foi essa atmosfera que inspirou o fundador da FIESP a vislumbrar no

planejamento governamental a ferramenta para a industrialização e, por vez, a

superação da pobreza crônica. Naquela época se industrializar em níveis pesados, bens

de capital, era passaporte para fazer com que um determinado Estado tivesse melhor

inserção internacional. Simonsen:

“Impõem, assim, a planificação da economia brasileira em

moldes capazes de proporcionar meios adequados para satisfazer

as necessidades essenciais de nossas populações e prover o país

de uma estruturação econômica e social, forte e estável,

fornecendo à nação os recursos indispensáveis a sua segurança

nacional e a sua colocação em um lugar digno na esfera

internacional” (SIMONSEN e GUDIN, 2010).

Tanto para Carr quanto no estudo de Love industrialização é sinônimo de poder,

elemento crucial para a ascensão de quem quer ser grande potência ao queimar etapas.

Por isso, não haveria muita possibilidade para um grande país agroexportador ascender

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internacionalmente, embora não devesse ser desprezado como fonte de recursos

naturais. Ao ser convocado por Vargas, Simonsen aconselhou o planejamento para se

industrializar. Mais do que isso, deveria haver também nova política educacional,

tarifária, agrícola e diplomática. Juntas concorreriam para fazer com que o Estado

tirasse proveito da industrialização.

Já Gudin, como podemos descrever, não era antiindustrializante em espírito.

Apenas não se conformava com a ideia de que o Estado deveria queimar bons recursos

intelectuais, políticos e monetários para o fomento de coisas que o moderno empresário,

nacional e externo, poderia encabeçar sem grandes tormentos. Sem que haja prova do

interesse do fundador do IE sobre o grupo que foi posteriormente apelidado neoliberal

há como dizer que Gudin foi expressão nacional de Friedrich Hayek, quando passou a

defender os perigos iminentes ao crescimento desmesurado do poder político (da

burocracia) sobre a economia. Domínio que poderia migrar fatalmente para a política

(HAYEK, 1985).

Quais eram os nortes para os dois debatedores em questão? Em Simonsen o

modelo a ser seguido, em principio, são os Estados Unidos com seu forte progresso

técnico. Em todos os quesitos a economia norte-americana é muitas vezes superior à

brasileira. Além da riqueza econômica e da eficiência produtiva aquele país também era

inspirador pela qualidade de sua burocracia que, para Simonsen, era conhecedora das

modernas técnicas de planejamento governamental, ainda mais provadas em período de

guerra. A economia estadunidense não era de livre mercado, mas sim planejada pelo

poder público, por isso ela podia unir o conveniente dos dois lados: os cuidados sociais

com o direto de empreender.

Em Gudin o modelo adotado era o argentino e o canadense “vizinhos ricos” da

época. Havia nos anos do grande debate a opinião de que a Argentina era aquilo que

gostaríamos de ser, um país rico, bem alimentado por meio daquilo que a natureza lhe

propiciou: clima, terra e água em abundância. Buenos Aires havia tido o cuidado de tirar

proveito de sua agricultura eficiente e produtiva, por isso sua riqueza. O bem-estar de

sua população não era proveniente de invenções e artificialismos que cegam a visão,

mas sim daquilo que se convencionou chamar vantagens adquiridas pela agricultura e

pecuária. Se a Argentina se aventurasse pela industrialização o malogro seria certo,

visto que sua concepção de mundo não combina com coisas para as quais ela não tem

competência (SIMONSEN e GUDIN, 2010).

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O período dourado do agronegócio argentino, ao menos em espírito, ainda se faz

presente no cotidiano político e econômico do país platino. Sobre isso há duas

implicações. A primeira é a de que os esforços industrializantes feitos pela sessão

argentina da Cepal, no governo Perón, principalmente, anos 1950, contrariou a realidade

das coisas, menosprezou as vantagens adquiridas para abraçar algo que a nação não

tinha competência: a economia industrial. A industrialização, no fundo, havia trazido

mais tormentos do que benefícios para a sociedade. A segunda implicação reside na

ideia de que se a economia argentina era rica no período agrário, então por que não

retomá-lo?

Neste caso, há uma situação delicada no passado recente argentino. O propósito

de retomar o agronegócio nos termos da belle époque ganhou vida no movimento

ditatorial da Argentina. Na primeira parte dos anos 1980 o ministro da Fazenda,

Martinez de Hoz havia feito militância para diminuir a industrialização do país e

retornar com toda força o agronegócio, dando a entender que a Argentina deveria

procurar a “volta ao tempo perdido” onde fora mais feliz; ao contrário dos militares

brasileiros (HAGE, 2004).

Caminhando para o desfecho deste ensaio, quais foram as consequências do

grande debate sobre o planejamento governamental no Brasil feito por Simonsen e

Gudin? Considerando o apelo que a industrialização tinha para o poder nacional

brasileiro, bem como para as relações internacionais, o presidente Vargas deu a entender

que teria preferência pelas defesas do senador por São Paulo, caso chegasse ao Palácio

do Catete. Em 1950 Getúlio foi eleito democraticamente, mas Simonsen morrera em

1948. Gudin morreu em 1986.

O intervalo feito pelo governo Dutra, 1946 a 1950, foi de relativa frustração para

o desenvolvimentismo e para o planejamento governamental. O impacto da Guerra Fria,

a forte aproximação brasileira a Washington, configurando uma política de

“alinhamento automático”, fizera com que aquele governo atendesse a “sugestões” da

grande potência, como adotar o liberalismo econômico sem contrapartida. Houve no

período a procura se de fazer o plano SALTE, Saúde, Alimentação, Transporte e

Energia, mas que não ganhou vida naquela administração por causa de empenho

político, como escreve Reis Veloso na introdução à Controvérsia entre Simonsen e

Gudin.

O retorno de Vargas ao poder acalentaria o pensamento de Simonsen. Um

princípio de planejamento, sob inspiração da CEPAL, fez com que o governo voltasse a

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abraçar o desenvolvimentismo. A criação da Petrobrás, do CNPq, do BNDE, por

exemplo, são componentes dessa preocupação. Industrialização era sinônimo de

sofisticação política e econômica. No campo das relações internacionais também o

espírito do desenvolvimentismo ganhou espaço e fincou raízes. Afinal, Amado Cervo e

Clodoaldo Bueno são da opinião de que parte importante do desenvolvimentismo

brasileiro, feito no período em questão, não deixou de ser também mérito da

Chancelaria.

Quer dizer, o desenvolvimentismo econômico deveria ser também tarefa do

corpo diplomático brasileiro para compreender o valor da industrialização e seu peso na

configuração do poder nacional. Um Brasil industrializado poderia ter lugar de maior

qualidade no sistema internacional. De certa forma, essa mensagem ainda ocupa a

mente do Itamaraty. Mas, apesar do mencionado acima houve efetivamente derrota de

Gudin sobre a pertinência da agricultura? De alguma forma, o pensamento do professor

carioca ainda persiste, sobretudo em um momento em que a crise que o Brasil sofre, na

atualidade, só não se aprofunda em virtude da eficiência da economia primária para

exportação.

E o drama nacional pode aumentar se passarmos a considerar a relativa

desindustrialização, a perda de competitividade no setor de transformação e o

acanhamento do setor de bens de capital. Problemas que emergiram na vida brasileira

nos últimos quinze anos.

Ultimas Considerações

Se houve derrota intelectual de Gudin pelo fato de o presidente Vargas, e

posteriores, ter preferido o planejamento industrializante de Simonsen ela tem de ser

relativizada e compreendida em seu tempo. Isto porque, apesar de tudo, o Brasil nunca

pôde se desvencilhar da economia agrícola; nem seria prudente. Ora o Brasil atende ao

café, ora cana de açúcar e, agora, a soja. Para que o governo Vargas pudesse adquirir

capitais importantes na compra de bens duráveis e máquinas seria necessária a

valorização do café brasileiro no mercado internacional. E há como dizer que houve

empenho da Chancelaria para valorizar o café ao menos nos Estados Unidos (CERVO e

BUENO, 2002).

A escolha de Simonsen sobre Gudin se deu pelo fato de que no pós-guerra não

seria fácil defender a preeminência da economia agrícola sobre a industrial em mundo

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em que praticamente o processo de descolonização era também de forte alteração

econômica para neutralizar o “sistema colonial”. Afinal, todas as potências eram

industrializadas. Eram industrializadas pelo modo clássico, Reino Unido e Países

Baixos, ou por meio da “via prussiana”, caso da Alemanha Imperial e do Japão, em que

o Estado toma para si a direção do andamento progressivo da economia, liderando

empresários. Então, não haveria justificativa para que o Brasil não se industrializasse,

de um modo ou de outro.

Em outro aspecto, na época da Controvérsia não havia avançado suporte

tecnológico a serviço da agricultura, que aumentasse sua qualidade e produtividade.

Não havia nos anos 1940, acreditamos que no mundo, algo que fosse análogo ao

Embrapa, fomentando tecnologia no campo. A fundação dessa empresa pública, em

1972, possibilitou que houvesse revolução verde no cerrado brasileiro. Mais do que

isso, houve melhora surpreendente dos insumos plantados, inclusive sob engenharia

genética emprega para a criação de sementes mais resistentes a pragas e variações

climáticas. Instituições sediadas em São Paulo, como Instituto Biológico, de 1927, ou o

Instituto Agronômico de Campinas, de 1887, por mais dinâmicos que fossem não

dariam conta dos problemas e da percepção que a agricultura expressava nos anos 1940

e 1950.

Na atualidade, não há uma forte linha mundial ou latino-americana que defenda

a industrialização como meio de desenvolvimento e de melhor posicionamento no

sistema internacional. Houve sim iniciativas nacionais que voltaram a valorizar a

industrialização, bem como o papel do Estado como agente dinamizador. Os dois

governos de Lula são exemplares, mas sem desconhecer o papel do agronegócio, como

o da produção de etanol. A partir dos anos 1980 houve nova valorização da agricultura

por causa da tecnologia nela empregada, dando novo valor agregado. No caso brasileiro

o emprego da soja e da cana-de-açúcar é exemplar para afirmar a importância da

economia agrícola como suporte para melhor participação no mercado internacional. O

Brasil fornecedor internacional de energia, álcool combustível, tem a ver com essa

história.

Por fim, o embate entre Simonsen e Gudin não fazia de seus autores seres tão

divergentes como dá a entender à primeira vista. Em essência, os dois combinavam com

o princípio de que tanto na indústria quanto da agricultura deve haver um Estado

eficiente e sabedor de sua missão na condução do Brasil a um novo sistema

internacional. A industrialização ou a agricultura não seriam suficientes para alcançar

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níveis positivos de bem-estar; eram apenas a base sobre a qual se construiria a educação

de qualidade, a saúde garantida e uma melhor participação internacional. O debate ainda

persiste.

Bibliografia

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