boletim da associaÇÃo cultur.al amigos de gaia · 2018. 6. 12. · ter já residual e a...
TRANSCRIPT
BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO CULT UR.AL
AMIGOS DE GAIAN .O 58 + JUNHO DE 2004 + 9.° VOL.
Os antigos núcleosrurais no concelho de Gaia- um projecto para o seu estudo e salvaguarda
FRANCISCO QUEIROZ
Tem-se discutido muito em Portuga l a questão dasalvaguarda e da reabilitação dos núcleos históricosurbanos. Debate-se bastante, mas nem sempre surgemas esperadas acções . Teoria e prática estão frequentemente desfasadas e a formação de base de quem deveaplicar no concreto os planos de salvaguarda evidencialacunas de todo o tipo. Grande parte dos nossos centroshistóricos urbanos enfrenta problemas sérios de degradação , a todos os níveis, sem que seja fácil implementarsoluções eficazes .
Se isto se passa com os centros históricos urbanos, pior é a situação no que diz respeito aos centroshistóricos rurais. Ao falarmos de centros históricos ruraisfrequentemente pensamos nas chamadas "aldeias históricas", como Monsan to ou Sorte lha, para além de algumas aldeias serranas mais "típicas" como Montes inho,Rio de Onor ou Pitões das Júnias e várias outras aldeiasque, por motivos muitas vezes puramente circunstanciais, acabam por se tornar conhecidas .
Contudo , não só algumas das chamadas "aldeiashistóricas" são impropriamente assim designadas - umavez que foram núcleos urbanos medievais, hoje vistoscomo aldeias porque ficaram parados no tempo - , comoa grande maior ia destas "aldeias histór icas" está, pelasua natureza extremamente interiorizada, minimamenteproteg ida dos ataques da urban ização indiscrim inada.Ao invés, todas as antigas aldeias que estejam hoje emzonas do litoral e próximas a grandes cidades têm sidovítimas de uma suburbanização feroz e não planeada , queacaba por esmagar e mesmo obliterar as preex istências .
Falar de mundo rural no espaço que é hoje a cidadedo Porto torna-se quase impossível, pois ele praticamente desapareceu. Contudo, há duzentos anos, a maiorparte do território que integra o conce lho do Porto erade carácter estritamente rural e bem organizado segundonúcleos agregado res de produção agrícola.
Se, no concelho do Porto , o processo de urbanização foi mais sedimentado e precoce , no caso do concelho de Gaia este processo é relativamente recente e temsido bem mais rápido e destrutivo, uma vez que vai substituindo o espaço rural, não por espaço urbano, mas simpor espaço suburbano, frequentemente desqua lificado esem qualquer planeamento sustentado - até porque arede viária tende a permanecer a mesma que já na IdadeMédia era usada para articular as vár ias alde ias.
No concelho de Gaia, o desenraizamento do crescentevolume de população e o seu carácter eminentementesuburbano acentuam o desinteresse de quem aqui vive peloseu espaço: as referências perdem-se, a mancha urbanatorna-se indistinta e a uma escala pouco human izante .
AMIGOS DE GAIA - JINHO <:004
Falta de visão e de qualificação de sucess ivos responsáve is autárqu icos e mesmo de técnicos, submissãoa poderosos interesses económicos privados , ignorânciae lacunas na formação cultural da população, são algunsdos principais factores que nos últimos decénios têm permitido a desagregação pura e simples do mundo ruralno concelho de Gaia. A isto podem-se acrescentar outrosfactores , como o preconceito generalizado (sobretudojunto de decisores polít icos) de que o urbano é modernoe o rural corresponde ao passado.
Na verdade, o mundo rural em Gaia tem sido objectode algum interesse por parte de historiadores e curiosos.Até mesmo ao nível das escolas do concelho, frequentemente o mundo rural, visto como "em extinção", é tema proposto para trabalhos. Contudo , não só estes trabalhos sãomodestos no âmbito, como geralmente entendem o mundorural como uma mera curiosidade impossível de integrarna vida actual, algo que não é inteiramente correcto.
É certo que só se ama o que se conhece, peloque o interesse existente pelo mundo rural em Gaia fomentado por esses pequenos traba lhos escolares serve , pelo menos , para que ao nível dos proprietáriosque detêm estruturas arquitectónicas rurais haja umamaior consciencialização relativamente à sua preservação. Assim se explica porque ainda hoje muitos espigueiros (canastros) permaneçam em casas cuja vocaçãorural há muito desapareceu. Vistos como objectos arquitectónicos antigos e evocativos de fortes memórias, asua coexistência com o moderno é cada vez mais entendida como um complemento, uma referência histórica,muitas vezes um símbolo da transmissão da casa entreas várias gerações de uma mesma família, pelo quetais exemplos de recuperação parecem surg ir muito mais
AVINTES, PAR QUE BIOLÓGICO, MOINHO DO CHASCO
(Um bom exemplo de recuperação)
17
vezes junto de habitantes com origens familiares no concelho de Gaia.
Caso a caso, havendo maior consciencialização dasua importância por parte dos proprietários , as estruturasarquitectónicas ligadas ao mundo rural vão sendo preservadas. Porém, ao nível de um planeamento mais globalizante, não é isso que sucede. Existem, obviamente,excepções, como o Parque Biológico de Gaia - quedeveria ser acompanhado por acções de salvaguarda evalorização de património arquitectónico rural em todo oconcelho, de modo a não correr o risco de se transformarnuma espécie de santuário imutável ou mera "reserva deíndios" do mundo rural, marcando excessivamente a clivagem entre urbano e rural no concelho de Gaia.
Os pequenos trabalhos escolares sobre o mundorural a que aludimos não são geralmente divulgados esubsiste sobretudo pouco engajamento das forças vivaslocais para alterar o estado de coisas, no sentido de sepreservar a memória dos espaços e dos edifícios maisantigos do concelho e que são a matriz arquitectónicae espacial do mesmo. Aliás, muitas vezes, esses trabalhos escolares reflectem um maior interesse pela tradiçãooral, pelos trajes e pelo folclore, negligenciando aqueleselementos de maior envergadura , feitos de pedra e cal.
Consciente destes factos, uma equípa de investigação coordenada pela Prof. Doutora Lúcia Maria CardosoRosas e integrando também a Ora. Ana Margarida Porteia Domingues e o Prof. Doutor José Francisco FerreiraQueiroz, desenvolve actualmente um projecto de investigação que visa estudar as estruturas arquitectónicas domundo rural no concelho de Gaia, com o objectivo de salvaguardar e valorizar este tipo de património, cuja essência reside na sua vulnerabilidade e precaridade.
Este projecto encontra-se actualmente em fase iniciaI. Pretende-se fazer um levantamento exaustivo dopatrimónio vernacular ligado ao mundo rural no concelho de Gaia e, posteriormente, determinar quais os edifícios e conjuntos de edifícios mais importantes em termospatrimoniais, de modo a que possam vir a ser salva-
VILAR DO PARAíso . PORTAL DE CASA DE LAVOURA DE 1783
18
MADALENA. MOINHO EM NAZARÃES COM SIGLA NO UMBRAL
guardados e valorizados no futuro. Em concreto, serãoempreendidas as seguintes tarefas:
• Inventariar e estudar os elementos arquitectónicos ainda existentes no concelho de Vila Nova de Gaiaque definam o espaço rural dos séculos XVIII e XIX,nomeadamente: casas de lavoura e, sempre que possível, os seus anexos (eiras , espigueiros , currais , lagares ,etc.), bem como a sua relação com o espaço público,com outras casas de lavoura e com os caminhos ; moinhos e azenhas , engenhos , fontes e minas; elementosde religiosidade - cruzeiros, alminhas , nichos, capelasdevocionais, calvários - e sua articulação com o espaçorural, com os núcleos de lavoura e com as igrejas paroquiais.
• Pretende-se também analisar a relação destes elementos, como partes constitutivas de núcleos rurais, comoutros núcleos arquitectónicos da mesma época, sejamurbanos ou industriais, analisando a relação espacialentre cada núcleo.
• Através do estudo levado a cabo nos dois pontosanteriores, pretende-se conhecer melhor as sociedadesque construíram e vivenciaram toda esta orgânica espacial e arquitectónica.
• Finalmente, propor-se-ão estratégias de salvaguarda e valorização de alguns dos elementos que sejamconsiderados mais relevantes e exemplificat ivos pela suaqualidade, singularidade, antiguidade, novidade, carácterde exemplo único, etc.
A inventariação e estudo deste tipo de patrimónioconfigura-se como uma tarefa urgente, dado o seu carácter já residual e a iminência do seu desaparecimento ,sobretudo em áreas de forte suburbanização . Conformeindica a Carta do Património Vernacular Construído(ICOMOS, 1999), as estruturas vernaculares (não eruditas) constituem um património extremamente vulnerável já que são confrontadas com graves problemas deobsolescência, de equilíbrio interno e de integração, motivados pela uniformização da cultura e dos fenómenossocio-económicos de mundialização.
AMIGOS DE GAIA - JUNHO 2004
o património vernacula r apresenta características evalores muito próprios, que devem ser entendidos e evidenciados como tais:
• reflectem um modo de construção outrora partilhado por uma comunidade, um saber-fazer tradicional nacomposição e na construção, transmitido de modo informai ao longo de várias gerações e agora quase perdido;ainda assim, neste tipo de património surgem frequentemente soluções de grande qualidade e a meio termoentre arquitectura erudita e arquitectura vernacular;
• reflectem uma resposta eficaz aos constrangimentos funcionais, sociais e ambientais, dando origem a umcarácter regional ou local como resposta a um determinado meio, razão pela qual a casa rural no concelho deGaia certamente -ter á características próprias que não seencontram em outras regiões.
Estas características e valores fazem do patrimóniovernacular uma expressão fundamental da cultura deuma comunidade, na sua relação com o meio natural.Território e património formam um binómio indissociável,já que a condição patrimonial de cada elemento residetambém na sua relação com um contexto territorial e histórico concreto, que o tornam singular e significativo.
Deste modo, para que o projecto de investigaçãosobre o Patrimónío arquitectónico rural no concelho deGaia possa ter o aprofundamento que merece, solícitamos aos proprietários das mais interessantes casas delavoura (ou antigas casas de lavoura já transformadas) oacesso ao exterior das dependências de lavoura (adegas,aidos, eiras, espigueiros) e, dentro do possível, indicações sobre a função original de determinados espaçose edificios rurais anexos à casa, quando tenham sido játransformados.
CANELAS, PASSADiÇO NO SOLAR DOS
CONDES DE RESENDE
AMIGOS DE GAIA - JUNHO 2004
CANIDELO, CASA DE LAVOURA
(Já demolida)
Os antigos núcleos rurais vistos por um novo PDM
Muito embora se pretenda estudar o Patrimónioarquitectónico rural no concelho, com análise caso acaso, não descuraremos o estudo e avaliação dos conjuntos de casas rurais, que formam as aldeias - hoje praticamente em desaparecimento.
Cada freguesia do concelho de Gaia tem tambémos seus pequenos núcleos históricos. Estes são quasesempre os antigos núcleos rurais, cuja origem remontageralmente à Idade Média. Mesmo que sejam muito rarosos vestígios construídos dessa época, a organização doespaço e a malha de caminhos - hoje ruas - é em grandeparte de origem medieval.
É imperioso que estes antigos núcleos rurais deixemde ser vistos como zonas estruturadas de forma incompatível com as exigências da vida urbana actual. Não osão, de facto. Porém, para que isto suceda, os antigosnúcleos rurais com maior expressão e interesse patrimonial têm de ser tratados no âmbito do PDM (Plano Director Municipal) de um modo completamente diferente doque até aqui tem sucedido.
Não é aceitável que as plantas da autarquia aindainsistam nos alinhamentos de largura padrão em ruassensíveis, onde esses alinhamentos propostos pura esímplesmente levariam à destruição e desagregação deum núcleo histórico rural.
Os núcleos históricos rurais não podem ser entendidos como subcategorias dos núcleos históricos urbanos,pois possuem individualidade própria e é proporcionalmente mais necessária a sua salvaguarda e valorizaçãoquanto mais suburbana e indiferenciada se tornar a paisagem em volta.
19
AVINTES, CANAS TRO NO LUGAR DO PAÇO
Já na "Carta para a tutela e a recuperação da arquitectura popular e da paisagem rural", de 1990 (elaboradapor um grupo de investigadores de várias universidadesitalianas, no âmbito da Associação Italiaviva, com a coordenação de Enrico Guidoni), refere-se a unidade minimade intervenção em âmbito rural (artigo 10,°).Acarta admitea modificação de uso dos conjuntos arquitectónicos antigos de origem rural - o que, aliás, seria forçoso em Gaia,dado o crescimento do fenómeno suburbano. Contudo, énecessário que não se comprometa a imagem arquitectónica e a estrutura original do habitat rural. Neste particular aspecto, certos detalhes hoje negligenciados podiamfazer a diferença: a colocação de tapetes de asfalto emvias de origem medieval com largura padrão para a passagem de carros de bois é de evitar. A permanência doscaminhos em terra não é a alternativa, mas sim um tipode calçada que evoque os valores da actividade rural eque não colida com os materiais tradicionais usados nascasas antigas que ainda se posicionam ao longo das ruas.
Os núcleos históricos rurais são geralmente depouco volume edificado e, consequentemente, podem edevem ser mantidos com os mesmos alinhamentos e osmesmo materiais nas paredes e muros. Uma vez queestes antigos núcleos rurais são geralmente cruzamentos de vias medievais, hoje transformadas em ruas commuito tráfego automóvel, é importante que sejam rasgadas variantes pelo exterior deste núcleos, de modoa libertá-los para uma outra vivência do espaço, respeitando a antiga escala das coisas.
Vários outros exemplos poderiam ser dados, mas talexigiria maior aprofundamento da questão. Esperamos
20
que, com o estudo já a decorrer, venha a ser determinadoquais são os mais importantes núcleos rurais no concelho de Gaia, porque são importantes e como preservá-lose reabilitá-los. Se não for possível preservar e reabilitartudo o que tenha valor patrimonial , então , pelo menos,ficará o estudo e o registo, de modo a que toda a formade viver de muitos séculos nesta região junto à foz doDouro não se perca para as gerações futuras.
BIBLIOGRAFIA
• AA.W. - Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa: Assoc iaçãodos Arquitectos Portugueses. 1980 (1." edição de 1961);
• ALMEIDA , Carlos Alberto Ferreira de - Território paroquial noEntre-Douro-e-Minho. Sua sacraüzação, in "Nova Renascença", Porto,vol. 1, n.· 2 (1981), p. 202-212;,
• ARAÚJO , Ilídio Alves de - A arquitectura rústica e a paisagem.Sep. de "Agros", vol. 35, nO4 (1954), p. 137-148;
• Cartas e Convenções Internaciona is. Patrimón io Arquitectónico eArqueol ógico - Informar para proteger. Lisboa: IPPAR, 1996;
• La carta per la tutela e ii recupero dell'arch iteltura popolare e deipaesaggio rurale (1990) , in "Storia delia citt à", 53, 1991;
• OLIVEIRA , Ernesto Veiga de e GALHANO, Fernando - Casasda Maia, in "Trabalhos de Antropo logia e Etnologia", XV (1-2), 1954,p.55-72;
• OLIVEIRA, Ernesto Veiga de e GALHANO , Fernando - Casas doPorto, in "Douro Litoral" (8." série), VII-VIII, 1958, p. 637-673;
• OLIVEIRA. Ernesto Veiga de e GALHANO, Fernando - AlgunsElementos das Casas de Matosinhos, Maia e Vila do Conde, in "Boletimda Biblioteca Pública de Matosinhos", 5, 1958, p. 1-19;
• OLIVEIRA, Ernesto Veiga de e GALHANO , Fernando - Arquitectura Tradicional Portuguesa. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992;
• OLIVEIRA , José Manuel Pereira de - Para uma classificação tipológica da Casa Rural. Coimbra: Sep. de "Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros ". 1965, vol, 1;
AMIGOS DE GAIA - JUNHO 2004