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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03016 A CONTRIBUIÇÃO BAKHTINIANA NA CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS DAS VOZES DO “EU” NA FILOSOFIA DE BOÉCIO CHAGURI, Jonathas de Paula (UNESPAR/FAFIPA) Considerações Iniciais O pesquisador no exercício do estudo do pensamento e das obras clássicas deve levar em consideração o tempo e o espaço que aquele período em tela teve como cenário, bem como as influências recebidas e aquelas que chegaram até nós. Por isso, faz-se importante proporcionar um debate histórico em relação às obras e os pressupostos destes pensadores da antiguidade (OLIVEIRA, 2006), compreendendo que esses homens são atores sociais de um determinado tempo e espaço sócio-histórico que possibilitaram a eles referenciais para a construção de seus pensamentos e saberes. Decorrente a este contexto, os clássicos, portanto, são fontes de pesquisas e estudos para as diversas áreas do conhecimento como: a história, a filosofia, a educação, a linguística entre outras. Na educação, por exemplo, os clássicos assumem um valor de documentos histórico-pedagógicos, na medida em que seus registros revelam o modo como os homens construíam o seu agir pedagógico, costumes, princípios e valores. Segundo as asserções de Pereira Melo (2010, p. 28), no processo de análise do sentido do passado e das mudanças e transformações que se apresentam hoje, “o pesquisador deve considerar que, indistintamente da existência de testemunhos escolares, são importantes para a inserção no ethos de uma determinada educação aqueles documentos que fornecem a possibilidade de se formar um quadro das ideias vigentes de um povo.” Por isso, os clássicos não só revelam os modelos que possam orientar a formação dos homens, bem como as diversidades dos comportamentos, mas também eles evidenciam o surgimento de novos atores sociais. Em face disso, é que recorremos aos saberes e valores da filosofia de Boécio (480 – 524 d. C), em particular a sua obra A Consolação da Filosofia que vem expor temas que

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03016

A CONTRIBUIÇÃO BAKHTINIANA NA CONSTRUÇÃO DOS

SENTIDOS DAS VOZES DO “EU” NA FILOSOFIA DE BOÉCIO

CHAGURI, Jonathas de Paula (UNESPAR/FAFIPA)

Considerações Iniciais

O pesquisador no exercício do estudo do pensamento e das obras clássicas deve

levar em consideração o tempo e o espaço que aquele período em tela teve como cenário,

bem como as influências recebidas e aquelas que chegaram até nós. Por isso, faz-se

importante proporcionar um debate histórico em relação às obras e os pressupostos destes

pensadores da antiguidade (OLIVEIRA, 2006), compreendendo que esses homens são

atores sociais de um determinado tempo e espaço sócio-histórico que possibilitaram a eles

referenciais para a construção de seus pensamentos e saberes.

Decorrente a este contexto, os clássicos, portanto, são fontes de pesquisas e estudos

para as diversas áreas do conhecimento como: a história, a filosofia, a educação, a

linguística entre outras. Na educação, por exemplo, os clássicos assumem um valor de

documentos histórico-pedagógicos, na medida em que seus registros revelam o modo como

os homens construíam o seu agir pedagógico, costumes, princípios e valores.

Segundo as asserções de Pereira Melo (2010, p. 28), no processo de análise do

sentido do passado e das mudanças e transformações que se apresentam hoje, “o

pesquisador deve considerar que, indistintamente da existência de testemunhos escolares,

são importantes para a inserção no ethos de uma determinada educação aqueles

documentos que fornecem a possibilidade de se formar um quadro das ideias vigentes de

um povo.” Por isso, os clássicos não só revelam os modelos que possam orientar a

formação dos homens, bem como as diversidades dos comportamentos, mas também eles

evidenciam o surgimento de novos atores sociais.

Em face disso, é que recorremos aos saberes e valores da filosofia de Boécio (480 –

524 d. C), em particular a sua obra A Consolação da Filosofia que vem expor temas que

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sempre intrigaram e despertaram o interesse do homem, como a virtude e a felicidade.

Assim, o objetivo central que configura este trabalho é levar dados acerca da vida e obra de

Boécio, mesmo que brevemente, e, posteriormente, buscar um espaço de reflexão em torno

das riquezas e comentários a respeito de sua obra capital, a Consolação da Filosofia. Para

tanto, recorreremos às noções do dialogismo e polifonia do filósofo russo Mikhail

Mikhailovitch Bakhtin (1895-1975) para abordar o modo como Boécio defrontava-se com

a realidade em sua vida pessoal ao lamentar a perda de poder e dinheiro ao ser trancafiado

e submetido às torturas, sob a acusação de traição (injustamente) ao Império de Teodorico.

Assim, junto às asserções de Bakhtin (2003, 2005, 2006) seremos capazes de

compreender a essência do ser humano ao traçarmos um paralelo pelo olhar da ciência

linguística junto a História da Educação, a qual nos será possível discutir as riquezas de sua

obra como produto discursivo, ou seja, unidade temática, onde sempre há a presença do

diálogo entre sujeito e, remetendo, assim, a um trabalho com produção e extração de

significados para entendermos como Boécio utiliza a linguagem para se despertar e

enxergar o sentido de sua vida e de seu trabalho, possibilitando-nos, de certa forma, a

compreensão e a percepção dos valores empregados no ensino de períodos históricos

distintos.

Vida e Obra de Boécio

Anício Manlio Severino Boécio nasceu no ano de 480 d.C em Roma. Viveu no

período em que o reio Germano Odoacro (476-494 d. C) governava a Itália, o qual mais

tarde teve sua sucessão pelo reio dos Ostrogodos Orientais – Teodorico (493-526 d. C).

Descendente de família nobre com tradição no senado romano e proprietário de grandes

extensões de terras que pertenciam a sua família, Boécio foi um letrado e conhecedor da

filosofia grega, o qual demonstrava virtudes a aqueles que pertenciam à classe dominante

da época.

Durante o reinado do rei Teodorico exerceu importantes funções públicas. No ano

510 d. C foi nomeado cônsul e entre os anos em 522 e 523 d. C exerceu o cargo de

Magister Officiorum (Mestre de Ofícios). Casou-se com a filha do cônsul Símaco. Boécio

foi um dos maiores expoentes do pensamento medieval e defendia o conhecimento e a

sabedoria como a essência do ser humano.

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Com a desconstrução do Império Romano se efetivando, a cultura greco-romana

corria o risco de ser destruída definitivamente e, consequentemente, a decadência social

passa a se tornar uma realidade com as invasões nômades. Assim, uma civilização sem

valores e sentidos a questões peculiares da vida em sociedade deixar de existir, levando

Boécio a uma análise desses acontecimentos em questão. Neste contexto, aspectos que não

poderiam ser perdidos como: valores morais e éticos, a sensibilidade, a percepção de que o

ser humano necessita do convívio social para exercer a sua humanidade, tornam-se

extintos. Pode-se afirmar que Boécio é tido como figura fundamental na transição entre a

filosofia da Antiguidade Clássica e a da Idade Média marcando o início do pensamento

escolástico que caracteriza a Idade Média e a ligação entre o pensamento clássico e a

forma de educar presente no medievo. Sua relevância histórica pode ser encontrada em

suas traduções e comentários sobre obras clássicas.

Com a fundação do Império Romano do Oriente a cargo do imperador romano

Onstantino, deu-se origem a cidade de Constantinopla onde se estabeleceu as bases para a

criação do Império Bizantinho, assumindo o imperador Justiniano de origem católica, o

império. Boécio foi alvo de intriga ao defender em público e perante o senado no ano de

524 a defesa do senador romano Albino que havia sido denunciado ao rei Teodorico por

manter correspondências secretas com o imperador Justino e também de conspirar com

Bizâncio1contra o rei Godo.

Em face deste contexto, Boécio é preso injustamente e submetido a torturas ao ser

acusado de traição (injustamente) ao Império de Teodorico. Em meio a este cenário, com

este pano de fundo e nestas exatas circunstâncias e condições é que Boécio escreve a sua

mais lida e divulgada obra em todos os tempos medievais “A consolação da Filosofia”.

Portanto, passamos a analisar esta obra debruçando os olhares para seus valores e

sentidos que teve para o período em tela, como também para a contemporaneidade, sempre

guiados à luz das contribuições dos estudos linguísticos do filósofo russo Mikhail

Mikhailovitch Bakhtin (1895-1975), que nos permite compreender o modo como as noções

1 Bizâncio foi uma cidade da Grécia Antiga, fundada por colonos gregos da cidade de Megara, em 667 a. C., que recebeu o nome de seu rei, Bizas ou Bizante. Os romanos latinizaram o nome para Byzantium. A cidade veio a se tornar o centro do Império Bizantino, a metade do Império Romano que falava o idioma grego, da Antiguidade tardia até a Idade Média, sob o nome de Constantinopla. Foi conquistada pelos turcos, em 1453, e passou a fazer parte do Império Otomano. Em 1930 seu nome foi mudado novamente, e passou a se chamar Istambul (ERLER e GRAESER, 2003).

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de dialogismo e polifonia se instauram na obra de Boécio que sem dúvida foi e é

importante para estudos na área da História da Educação.

O que é Dialogismo e Polifonia?

No período em que Boécio esteve em cárcere, escreveu, a sua obra mais

importante: "A Consolação da Filosofia", um texto bastante poético e metafísico. Ao

escrever este livro, Boécio tentava encontrar paz a seu espírito junto da Filosofia, já que

estava preste a morrer. Tal atitude é inspirada em Sócrates, que a beira da morte, manteve a

serenidade, a calma e até mesmo a ironia diante da morte.

Boécio em seu livro vem expor temas que sempre intrigaram e despertaram o

interesse do homem, como a virtude e a felicidade. À medida que dá vazão à sua tristeza

em forma de poema, vai-se aperfeiçoando de uma mulher que paira sobre ele. A altura dela

parece variar de tamanho, algumas vezes médio, outras vezes, alta. No seu vestido está

bordada na parte de baixo da bainha a letra grega pi, no topo, a letra theta e entre elas uma

escada. O vestido está rasgado em alguns pedaços, a mulher segura alguns livros e

empunha um ceptro. Esta mulher é a personificação da filosofia.

E mal dirigi o olhar a ela, reconheci minha antiga nutriz, que desde a adolescência freqüentava a minha mente: era a Filosofia. E eu lhe perguntei: “Mas o que fazes aqui, na solidão de meu exílio, ó mestra de todas as virtudes, tendo descido do alto do céu? Ou também tu, culpada, queres partilhar as acusações caluniosas? (BOÉCIO, I 6, p. 8).

É perceptível, portanto, que Boécio estabelece um diálogo entre ele, as lamentações

de sua vida anterior e a Filosofia. Durante a obra, observa-se que questões complexas de

responder são coladas na ordem do dia por Boécio, para serem levadas à baila em uma

discussão, pela qual a interlocutora “A Filosofia” vai enunciando de forma dialógica os

enunciados de questões difíceis de serem respondidas desde civilizações antigas. E, ao

delimitar a Filosofia como interlocutora do seu “eu” discursivo sob um prisma dialógico2 e

polifônico3, percebemos que a cadeia infinita de enunciados entre um “eu” e um “tu”, se

2 Interação das vozes sociais

3 Manifestação das diferentes vozes sociais.

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caracteriza como a interação entre o “eu” e o “outro(s)”, havendo, portanto a presença da

manifestação de diversas vozes, que são apresentadas em uma unidade temática, neste

caso, o texto poético de Boécio que resultou em uma das mais importantes e divulgadas

obras nos tempos medievais.

È em Bakhtin que buscamos a compreensão dessa relação dialógica e também

polifônica, que acontece na obra de Boécio. Conforme Bakhtin (2003) são as palavras

tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos, que servirão de trama para todas as

relações sociais em todos os domínios. Desse modo, as bases de todos os estudos na

perspectiva bakhtiniana, referem-se ao caráter interativo da linguagem. Somente é possível

a compreensão da linguagem a partir de sua natureza sócio-histórica.

No desenrolar de uma conversa entre dois interlocutores, um “eu” e um “tu”, isto é,

no desenrolar de um diálogo, espaço de interação entre esses sujeitos, está presente às

relações de valor, que condicionam a forma e a significação do que é dito. Diante disso, a

interação verbal desses interlocutores não se dá só pelo diálogo, mas pelas complexas

forças que se mantêm constante nessas relações (BAKHTIN, 2003, 2006). A relação do

sujeito com o seu discurso, seu dizer, é perpassada por outros discursos na interação

dialógica, de forma que não é direta, se dá obliquamente, pois a palavra reflete e refrata o

mundo, dando a este significação.

Toda linguagem é dialógica, diz Bakhtin (2006), pois a realidade fundamental da

linguagem é o dialogismo. Este conceito tem como base o movimento de dupla

constituição entre a linguagem e o fenômeno da interação socio-verbal, isto é, a linguagem

se instaura a partir do processo de interação e este, por sua vez, só se constrói na

linguagem e através dela. O dialogismo não se reduz às relações entre os sujeitos nos

processos discursivos; pelo contrário, se refere também ao permanente diálogo entre os

diversos discursos que configuram uma sociedade. É esta dupla dimensão que nos permite

considerar o dialogismo como o princípio que determina a natureza interdiscursiva da

linguagem.

[...] o discurso não é individual tanto pelo fato de que ele se constrói entre, pelo menos, dois interlocutores que, por sua vez, são seres sociais; como pelo fato de que ele se constrói como um diálogo entre discursos, isto é, mantém relações com outros discursos (BAKHTIN, 2006, p. 123).

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É por isso que, Boécio ao posicionar o “outro” como sendo a Filosofia a partir do

seu “eu” enquanto sujeito que se lamenta de sua vida, hora sendo o locutor e o seu próprio

interlocutor (Filosofia) é que a posição social vai se movendo no interior de seu discurso,

mostrando que suas respostas não se materializam como Boécio, como escritor, como

estudioso, como político, mas, a partir de tais posições sociais, como sujeito sócio-histórico

que utiliza a posição de homem sofredor para trazer os valores e sentidos do período

histórico em tela.

Portanto, na perspectiva bakhtiniana, o dialogismo reconhece a necessidade de

darmos conta da presença do outro com que uma pessoa está falando, pois, corrobora

Barros (2003, p. 2-3), que “só se pode entender o dialogismo interacional pelo

deslocamento do conceito de sujeito. O sujeito perde o papel de centro e é substituído por

diferentes (ainda que duas) vozes sociais, que fazem dele um sujeito histórico e

ideológico”. Por essa razão é que a partir do papel do indivíduo na interação verbal que se

constitui a sua posição como “locutor” ou “interlocutor” já que são posições sempre

intercambiáveis revelando, portanto, a dimensão discursiva quando Boécio chama a

Filosofia para fazê-lo enxergar o sentido de sua vida e trabalho. È, por isso, que a

compreensão do sentido e da significação do enunciado perpassa pela questão do

dialogismo. È este conceito que nos faz perceber que o enunciado não é único, ou seja, que

o discurso de Boécio não é formado por uma única voz, mas atravessado por posições

discursivas diferentes que o constituem. Um mosaico de vozes que ecoam no dizer de suas

palavras ao longo da enunciação4 que afirma a natureza social e não-individual da língua.

Estreitamente ligada a este conceito (dialogismo), outra noção bakhtiniana

importante é a polifonia, é ela que nos permite compreender a posição das diversas vozes

que Boécio manifesta em sua obra ao estabelecer o “outro” (Filosofia) como a

personificação de uma mulher para o seu “eu” discursivo, buscando assim, respostas para

questionamentos da época.

È a polifonia que nos leva a perceber a impossibilidade de contar com as palavras

como se fossem signos neutros, transparentes, já que elas são afetadas pelos conflitos

4 É o processo que dá origem ao enunciado. Envolve a língua, os sujeitos e as condições sócio-históricas e ideológicas que os envolvem no momento em que um enunciado emerge, no ato em que a intenção enunciativa do falante se concretiza, assume a sua materialidade lingüística (CHAGURI, 2010).

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históricos e sociais que sofrem os falantes de uma língua e, então, permanecem

impregnados de suas vozes, seus valores, seus desejos.

A polifonia se refere às outras vozes que condicionam o discurso do sujeito. De

início, não é demais lembrar que o discurso, seja qual for, nunca é totalmente autônomo.

Suportado por uma intertextualidade, o discurso não é falado por uma única voz, mas por

muitas vozes, geradoras de muitos textos que se entrecruzam no espaço.

Pelas características de pluralidade (multiplicidade de vozes) e de alteridade

(aceitação e percepção dos valores do outro) que circundam as trocas discursivas, Bakhtin

insiste na intertextualidade dos discursos, pela qual todos os enunciados estão marcados

por diferentes vozes provenientes de diversos falantes e contextos (BAKHTIN, 2005). O

termo “voz” foi escolhido por Bakhtin para se dirigir à consciência falante presente nos

enunciados. Uma importante característica da consciência falante configura-se na carga de

um juízo de valor, de uma visão de mundo carregada por ela, ou seja, “a emoção, o juízo

de valor, a expressão são coisas alheias à palavra dentro da língua, e só nascem graças ao

processo de sua utilização ativa no enunciado concreto” (BAKHTIN, 2003, p. 321).

Portanto, a construção de um enunciado é constituída a partir de determinado ponto

de vista por meio de diversas consciências falantes ou vozes. O pensamento bakhtiniano

decorre do pressuposto de que nos constituímos à medida que nos relacionamos com o

outro. A questão central de todo o trabalho de Bakhtin reside no fato de que a linguagem é

fruto da interação entre sujeitos falantes. O locutor é um sujeito histórico e ideológico, cuja

formação não ocorre sem a presença do outro. Por isso é que entendemos que Boécio ao

chamar a Filosofia como o “outro” mesmo sendo ele ao mesmo tempo o locutor (homem

que lamenta sobre a vida) e o interlocutor (Filosofia), Boécio projeta seu discurso em

detrimento do outro, no caso particular deste estudo, da “Filosofia”.

A Luz Bakhtiniana na Obra de Boécio

É em decorrência da interação do locutor com o outro que o mundo simbólico vai

sendo construído, e, é a partir dessa construção, dos novos enunciados, que irão se remeter

aos enunciados já precedidos anteriormente fazendo-nos perceber que a filosofia, ao chegar

para conversar com Boécio, sua primeira ação é retirar as “poesias” de perto dele. Estas

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poesias não fazem nada mais que incentivar as paixões que fazem com que o homem se

apegue ao mundo exterior em vez de se deixar guiar pela própria razão.

São elas que por lamentos estéreis das paixões matam a acuidade da Razão. (BOÉCIO, I.2, p.5).

Portanto, numa relação dialógica e polifônica, Boécio em sua construção de

sentidos ao seu “eu” enquanto homem que lamenta a sua realidade de vida pessoal, e ao

“outro” sendo desta vez a paixão, mostra que ela dificulta a prática das virtudes, já que

estas estão ligadas à razão e residem no interior do homem, sendo isto perceptível a partir

das condições em que Boécio se encontra e das condições sócio-históricas e ideológicas

que o envolve no momento em que um enunciado emerge.

Abandonando sua própria razão, dirigiu-se às trevas exteriores (BOÉCIO, I.3, p.5).

Como já dito anteriormente, o sujeito perde o papel de centro e é substituído por

diferentes (ainda que duas) vozes sociais, que fazem dele um sujeito histórico e ideológico.

Por isso, no processo de interação verbal, Boécio se constitui em uma posição de locutor e

interlocutor, já que são posições intercambiáveis, e como locutor reclama que todos os seus

pertences foram tirados dele pela Fortuna e por isso, ele chora sua perda sentindo-se infeliz

com o rumo que sua vida tomou. Como interlocutor chama a Filosofia, que afirma a ele,

que todo o homem que fundamenta sua existência na Fortuna deve estar preparado para as

consequências. Neste processo de interação verbal, a partir de sua posição social como

locutor e a Filosofia (interlocutor), entra em cena uma terceira voz, a Fortuna, que passa a

ser o outro interlocutor respondendo a ele que todos os bens terrestres pertencem a ela e

que por isso ela apenas tomou aquilo que já era seu. Além do mais ela diz:

Acaso existe algum homem que possua uma felicidade tão perfeita que não se queixe de algo? A felicidade terrestre traz sempre consigo preocupações e, além de nunca ser completa, sempre tem um termo (BOÉCIO, II.7, p. 34).

Em outras palavras, as coisas materiais são incapazes de trazer uma felicidade plena

ao homem, de modo que ele não deseje mais nada, e satisfaça todos os seus desejos. O

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homem, por mais que possua bens terrestres, sempre deseja mais. A felicidade não pode

estar fora do homem, mas dentro:

Por que então, ó mortais , buscais fora de vós o que se encontra dentro de vós? (BOÉCIO, II. 7, p. 35).

A felicidade por ser alcançada, até mesmo em meio à dores e suplícios, pois as

dores e mesmo a morte não são capazes de arrancar a verdadeira felicidade. A Filosofia

passa a demonstrar que se a verdadeira felicidade coincide com o bem supremo para o qual

nada pode ser desejado fora dele, já que nele está a felicidade perfeita, então, os bens

terrestres são falsos bens e colocar neles a felicidade verdadeira é ignorância.

Portanto, com a condenação de Boécio de forma injusta, sem sequer haver um

julgamento, ele nos leva a pensar: o porquê o justo se dá mal e o injusto se dá bem? Toda

essa reflexão acontece a partir de sua posição dialógica e polifônica entre o locutor

(lamenta sua vida) e o interlocutor (Filosofia) que vai tecendo, portanto, todos os sentidos e

valores para o convívio e formação do homem.

E queres saber de que crime fui acusado? Acusaram-me de tentar esconder os documentos do Senado que continham acusações de lesa-majestade. Que conselho dás a teu discípulo, ó mestra? Negar o fato, para ser digno de ti? Foi exatamente o que eu fiz repetidas vezes. Reconhecer o crime? Mas isso seria libertar os meus delatores. Então preservar o senado é um crime? Então é ilegal acolher os decretos que tinha contra mim, fez uma acusação única, reunindo-os todos. (BOÉCIO, I. 8, p. 12).

Essas e outras questões podem ser enunciadas a partir da vida e obra de Boécio,

pois, essa inversão de valores que ele procura mostrar em sua obra, sem dúvida, transmite

uma sensação de que está por vir ou que já está acontecendo à extinção da espécie humana.

Tudo isso pode ser compreensível a luz das contribuições linguísticas que nos permite

fundamentar a forma como o discurso é construído para se dar o efeito de valor do mesmo

a épocas anteriores e/ou vigentes.

Das falsas cartas forjadas nas quais se supunha que eu defendia a antiga liberdade de Roma, que posso eu dizer? Elas seriam visivelmente mais falsas se eu pudesse mostrar a concórdia de meus delatores, procedimento este dos mais eficazes num processo. [...] Quere o mal pode ser uma fraqueza da natureza humana, mas que um criminoso

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possa prejudicar um inocente com ciladas engendradas sob os olhos de Deus é de espantar. Por isso é que um familiar meu exclamou naquela hora: Se Deus existe, de onde provêm os males? E se não existe, de onde vêm os bens? Seja pois: que haja homens maus que roubem os inocentes e os honestos senadores, e queiram minha ruína por ter eu convictamente defendido os senadores (BOÉCIO, I. 8, p. 13).

Sempre em uma posição intercambiável, desta vez, sendo a locutora a Filosofia, ela

faz um discurso sobre como as honras, os altos cargos e magistraturas não são sinônimos

de felicidade para seu interlocutor, neste caso, o homem que lamenta de sua vida (Boécio):

tanto a honra não serve para nada, que de valerá as honras de um homem letrado ou com

cargo político em terra de homens bárbaros?

Com efeito, uma consciência, quando se vangloria muito de si mesma, diminui cada vez mais o seu mérito e recebe em troca só o prêmio da fama. Mas viste para onde levou a minha inocência? Em lugar de receber os verdadeiros prêmios da justiça, sofremos o castigo por um crime não cometido (BOÉCIO, I. 8, p. 14).

Um ponto relevante é a “glória” expressa nas palavras de Boécio. A glória é

atacada a partir da mudança social da voz do interlocutor que é atravessado por posições

discursivas diferentes que o constituem, isto é, ao discorrer sobre a inversão de valores, é a

“glória”, como sendo a interlocutora que será atacada, pois ela, segundo o mosaico de

vozes que ecoam no dizer do locutor (homem que lamenta a vida) é procedente de opinião

enganosa de muitos homens, neste caso, onde estaria a glória ao ouvir elogios que não

condizem com a realidade?

Além disso, a boa ordenação da minha casa, as relações de amizade que tinha com os homens mais íntegros, o parentesco com meu sogro Símaco, cujo nome era quase tão venerado quanto o teu, todas essas coisas me defendiam da suspeita de tal crime. Mas, ah, infelicidade! Eles acolheram a acusação de tamanho crime e fui acusado de praticar magia negra, somente porque cultivava tuas disciplinas e agia segundo teus preceitos (BOÉCIO, I. 8, p. 9).

A riqueza não pode ser desejada como verdadeira felicidade, pois quem a tem

possui o medo de que ela seja roubada, logo é necessária ajuda externa para protegê-la. Sua

posse, portanto torna o homem dependente. Quanto mais riquezas um homem tem, mais

preocupações ele terá.

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Enfim, inflamado, atacaste violentamente a Fortuna, e, queixando-se de que não foste justamente recompensado pelos teus méritos, fizeste votos para que a terra fosse governada como o céu. Mas eis que tua alma foi grandemente perturbada por sofrimentos e sentimentos de cólera e desespero que te puxam por todos os lados e te fazem ter disposições de espírito tais que não é possível ainda tratar-te com um remédio eficaz (BOÉCIO, I. 10, p. 18-19).

É perceptível aqui uma enunciação dialógica entre Boécio e a Filosofia. Agora, a

Filosofia ao assumir sua posição de locutora, ela irá dizer ao seu interlocutor (homem que

lamenta a vida – ‘Boécio’) que as falsas buscas pela felicidade acontecem porque o homem

acaba por complicar as coisas mais simples. Tenta dividir o que é indivisível na natureza,

transforma o verdadeiro no falso e o que é perfeito em imperfeição. Isto tudo, se

materializa através de uma busca inútil pela felicidade por meio dos objetos.

Na verdade, é motivo de grande preocupação ter de zelar por seus objetos preciosos [...]. Com efeito, se é evidente que todo bem pertencente a outro vos parece mais valioso do que para aquele que o possui, quando considerais que os objetos mais insignificantes são bens para vós, então vos colocais a vós mesmos como inferiores a esses objetos (BOÉCIO, II 09, p, 40).

Boécio deixa claro que a felicidade é uma coisa só, e indivisível, e na ignorância do

homem, ele tenta, inutilmente, pegar uma pequena parte de um todo (sendo que neste todo,

as coisas podem ter nomes diferentes, mas no fundo é a mesma substância). Então a

Filosofia irá dizer que este todo, este um, é “Deus.”

Em todo momento vemos a posição intercambiável das vozes discursivas entre o

locutor e o interlocutor, revelando, portanto, que a noção de “dialogismo” está relacionada

à dinâmica do processo de interação das vozes sociais e, neste caso, estas vozes se

caracterizam por serem as vozes do locutor e do interlocutor que se entrecruzam e que,

neste processo de se relacionarem entre si, se subsistem em torno do “todo social” a partir

das diversas multiplicidades dialógicas.

Então sabes de donde provêm todas as coisas? “Sim”, respondi, e eu lhe disse que provinham de Deus (BOÉCIO, I. 12, p. 21).

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Assim, o homem ao reconhecer a existência de Deus, reconhece a causa de todos os

males, e passa a conhecer o princípio de tudo e não mais ignorar o fim, diz a Filosofia a

Boécio (homem que lamenta a vida).

Agora reconheço uma outra causa de tua doença, e talvez esta seja a causa principal: deixaste de saber o que tu és. Assim, desvendei completamente a causa de tua doença, bem como a maneira de te curar. De fato, é devido ao esquecimento que estás perdido, que te lamenta de ter sido exilado e privado de teus bens. É porque desconheces qual é a finalidade do universo que tu imaginas serem felizes e poderosos os que te acusaram. É porque esqueceste as leis que regem o universo que julgas que a Fortuna segue o seu curso arbitrário e que ela é deixada livre e soberana (BOÉCIO, I. 12, p. 21).

É em Deus que o homem deve orientar a sua busca e é nele que encontrarão a

felicidade.

Considerações Finais

Apesar de Boécio ter escrito sua obra em meio à tortura devido ao fato de ter sido

preso injustamente por supostamente ter praticado crimes políticos tais como: roubar

dinheiro público, esconder documentos do Senado entre outros, a obra é uma preciosidade

que deve ser lido e que será posteriormente muito utilizado pelos medievais para

solucionar diversas questões a fim de se contemplar a verdade.

Dessa forma, ao buscarmos a compreensão dos saberes e valores humanos na obra

“A Consolação da Filosofia” de Boécio, a partir dos fundamentos teóricos das noções

bakhtinianas de dialogismo e polifonia, constatamos que apesar da obra apresentar um

único locutor e interlocutor, entretanto em posições sempre intercambiáveis, o discurso da

obra se constitui a partir de outras vozes (polifonia), e essas outras vozes se correlacionam

em parte como vozes da virtude, da felicidade, do bem, da liberdade, de Deus, da glória, da

Filosofia e do homem lamentador de sua vida.

Quando essas vozes são condicionadas para um processo de enunciação, isto é, um

processo que envolve a língua, o qual os sujeitos e as condições sócio-históricas e

ideológicas se envolvem no momento em que um enunciado emerge, e, então, no ato em

que a intenção enunciativa do falante se concretiza, assume a sua materialidade linguística,

essas vozes em parte carregam em si seus desejos, seus valores e, posteriormente, a obra de

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Boécio passa a ser configurado por diversos “eus” que fazem do seu discurso um texto

tecido por múltiplas outras vozes.

Essas vozes que se constituem por outras diversas vozes, sendo estas, talvez,

condicionantes do mesmo enunciado que precede as vozes que tecem o “eu” do estudioso,

do político e do filósofo Boécio, que também constituem o seu “eu” com sentidos próprios

discursivos, nos fazem perceber que quando estudamos os estudos clássicos antigos e

medievais, ambos nos proporcionam ferramentas para reconstruir o passado educativo e

pensar a respeito dos valores que orientam a formação humana e que se tornam

permanentes para o entendimento do presente.

Neste sentido, a nosso ver, o pesquisador ao utilizar os clássicos como fontes para

pesquisa e compreensão dos valores, sentidos e princípios da construção do homem, em

particular na História da Educação, tem a possibilidade de recuar no tempo e por meio de

uma metodologia histórica de análise da educação como produto humano discutir a

“dinâmica e a permanência de valores produzidos historicamente com a preocupação de

direcionar o homem na busca pelo ser ideal e entender por que eles não permanecem reféns

de um tempo ou de uma época específica.” (PEREIRA MELO, 2010, p. 23).

Enfim, ao lançarmos mão do exercício da reflexão de obras clássicas como

referencial de pesquisa para os estudos da história e também da formação humana, os

clássicos, apesar de estarem situados em condições políticas e sociais diferentes do que

vivemos hoje, se fazem importante na medida em que seus estudos apontam para a

formação do homem para determinadas finalidades.

Em síntese, as obras clássicas, independente do aporte teórico utilizado para seus

estudos, elas sempre indicarão a necessidade do homem aprender os princípios de

formação humana (valores políticos, filosóficos, morais e éticos), princípios estes

indispensáveis ao convívio humano e independente do tempo, espaço e lugar em que

estiverem.

Como todo enunciado tem um começo e um fim determinado, esperamos, por

meio deste trabalho, encerrar as discussões em torno das questões que norteiam o estudo

em torno da obra “A Consolação da Filosofia de Boécio”, na expectativa de que as

reflexões que realizamos na composição deste trabalho tornem-se alvo de

questionamentos, reconstrução e negociação de novos significados em outros estudos sobre

os valores permanentes e indispensáveis ao convívio e formação do homem.

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REFERÊNCIAS

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