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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 181-206, 2008 181 A FORMAÇÃO DO SENTIDO E DA IDENTIDADE NA VISÃO BAKHTINIANA * Maria Teresinha Py Elichirigoity (UCPel/RS) RESUMO: Revisitar a teoria bakhtiniana parece imprescindível ao se buscar o sentido que sempre escapa da tradição de “uma única verdade”. A identidade de uma coisa é uma variável contrastante de todas as outras que po- deriam, sob condições diferentes, preencher a mes- ma condição na existência. Há forças opostas básicas no diálogo oriundo das práticas sociais, e a forma como operamos os valores, dependerá de como arti- culamos o que somos, em meio às possibilidades ide- ológicas circundantes. PALAVRAS-CHAVE: Sentido; identidade; diálogo. Introdução [...] em todo enunciado, contanto que o examinemos com apuro, levando em conta as condições concretas da comunicação verbal, descobriremos as palavras do outro ocultas, ou semi-ocultas e com graus diferentes de alteridade. Dir-se-ia que um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância dos sujeitos falantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados e totalmente permeáveis à expressividade do autor 1 . * Este artigo é uma síntese de tese de doutoramento em Letras, Argumentação na monografia: uma questão de polifonia, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2007. 1 BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 318.

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 181-206, 2008 181

A FORMAÇÃO DO SENTIDO E DA IDENTIDADE NAVISÃO BAKHTINIANA*

Maria Teresinha Py Elichirigoity (UCPel/RS)

RESUMO:

Revisitar a teoria bakhtiniana parece imprescindívelao se buscar o sentido que sempre escapa da tradiçãode “uma única verdade”. A identidade de uma coisa éuma variável contrastante de todas as outras que po-deriam, sob condições diferentes, preencher a mes-ma condição na existência. Há forças opostas básicasno diálogo oriundo das práticas sociais, e a formacomo operamos os valores, dependerá de como arti-culamos o que somos, em meio às possibilidades ide-ológicas circundantes.

PALAVRAS-CHAVE: Sentido; identidade; diálogo.

Introdução

[...] em todo enunciado, contanto que o examinemos comapuro, levando em conta as condições concretas dacomunicação verbal, descobriremos as palavras do outroocultas, ou semi-ocultas e com graus diferentes de alteridade.Dir-se-ia que um enunciado é sulcado pela ressonâncialongínqua e quase inaudível da alternância dos sujeitosfalantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteirasextremamente tênues entre os enunciados e totalmentepermeáveis à expressividade do autor1.

* Este artigo é uma síntese de tese de doutoramento em Letras, Argumentação na monografia:uma questão de polifonia, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul,em 2007.

1 BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 318.

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Embora muito já se tenha escrito, no Brasil, sobre Mikhail Bakhtin,e tantos filósofos e lingüistas tenham nele se inspirado para funda-mentar suas teorias (entre eles Ducrot e Pêcheux), buscaremos re-

tomar, além de reunir opiniões de outros autores, alguns prismas da obrabakhtiniana que nos parecem, apesar de todo tempo transcorrido desdesua produção, de fundamental importância para os estudos da constitui-ção tanto do sentido dos enunciados na enunciação, quanto da identidadedo sujeito mediante sua consciência social.

Autor soviético, formado em História e Filologia em 1918, MikhailBakhtin (1895-1975), segundo Tzvetan Todorov2, parece, à primeira vista,ser mais um teórico e historiador da literatura da época que agora chama-mos a dos “formalistas russos”. Mas, na verdade, Bakhtin foi um filósofo,um pensador cujos escritos abarcaram, ao lado da lingüística, da psicanáli-se, da teologia e da teoria social, a poética histórica, a axiologia (teoriacrítica dos conceitos de valor) e a filosofia. Clark e Holquist3 lembram,ainda, os trabalhos mais especializados de Bakhtin dedicados ao Vitalismo,ao Formalismo, a Dostoievski, a Freud, a Goethe e a Rabelais. Figura mar-ginal na intelectualidade russa, exilado político no período de Stálin, Bakhtinteve sua obra vertida para o inglês somente após quatro anos de sua morte.

Bakhtin não se insere na consagrada tradição dos lutadores pela ver-dade no meio da intelectualidade russa, até porque se opõe, fundamental-mente, à noção de que possa haver “uma única verdade”. Bakhtin passoupor várias fases, que se refletiram em suas obras, conforme apontam Clarke Holquist4:

a) fase filosófica, metafísica (aproximadamente entre 1918 e 1924):sob pesada influência do neokantismo e da fenomenologia, tentou pensarcabalmente uma compreensiva filosofia própria;

b) fase de diálogo com movimentos intelectuais como freudismo,marxismo soviético, o formalismo, a lingüística e até a fisiologia (entre1925 e 1929);

2 Todorov, prefaciador do livro Estética da criação verbal de Bakhtin, editado em Moscou em1979 e, no Brasil, em 1992, pela Martins Fontes.

3 CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakthin. São Paulo: Perspecitva,1998. p. 21.

4 Idem, p. 30.

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c) fase de procura de uma poética histórica na evolução do romance(durante os anos de 30);

d) retorno à metafísica a partir de uma nova perspectiva da teoriasocial e da filosofia da linguagem (nas décadas de 60 e 70).

Assim, Bakhtin é visto pelos críticos literários como o autor do li-vro sobre Dostoiévski que apresentou uma nova teoria sob o ponto devista autoral: a polifonia. Folcloristas e antropólogos o definem por seulivro sobre Rabelais, como o teórico do carnaval e da ruptura da hierar-quia social. Historiadores intelectuais e teóricos do campo social buscamseu livro O marxismo e a filosofia da linguagem 5, devido ao pensamento marxis-ta ali expresso. Já os intérpretes anglófonos o viram como o teórico doromance por sua obra A imaginação dialógica. Mas o próprio Bakhtin, comorelatam seus biógrafos6, não se via como um teórico da literatura, poisjulgava o que estava tentando fazer como uma “antropologia filosófica”.

Além disso, para entender Bakhtin, é preciso ver a identidade deuma coisa não como algo solitariamente isolado de todas as outras cate-gorias, mas como uma variável contrastante de todas as outras que pode-riam, sob condições diferentes, preencher a mesma posição na existência.Para entender essa simultaneidade difundida por toda a parte, Bakhtinbusca uma explicação no conhecimento da existência. Na própria ener-gia da existência encontram-se duas forças opostas básicas que também aproduzem, numa atividade incessante:

- as forças centrífugas – que se empenham em manter as coisas varia-das e apartadas umas das outras; que compelem ao movimento, ao devir eà história; e desejam a mudança, a vida nova;

- as forças centrípetas - que se empenham em manter as coisas juntase unificadas; resistem ao devir, abominam a história.

Bakhtin dedicou-se, ao longo de sua vida, à compreensão eespecificação dos vários modos particulares com que o grande diálogoentre tais forças se manifesta em outras espécies de diálogos: nas relaçõessociais, entre indivíduos, classes econômicas e culturas inteiras.

5 BAKTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995 [O originalrusso é de 1929].

6 CLARK; HOLQUIST, op. cit. , p. 31.

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Para Clark e Holquist7, o que diferencia Bakhtin dos outros filóso-fos que se ativeram a estudos semelhantes é ter colocado a dinâmica soci-al da prática observável da linguagem como força especificadora que es-trutura as relações interpessoais, em sua filosofia da linguagem. O que odistingue, portanto, é sua ênfase na linguagem como prática tanto cognitivaquanto social, aspectos esses que lhe permitem compreender e explicar oscomplexos fatores que tornam possível o diálogo que abrange, simulta-neamente, as diferenças.

Mas o que torna diferente as diferenças? Essa questão dos filóso-fos modernos também preocupa Bakhtin e ele se concentra na “possi-bilidade de abranger diferenças numa simultaneidade”. Assim, Bakhtinjulga como forças interativas, o que outros pensam ser excludentes,como por exemplo, a necessidade de estabilidade das sociedades serconciliada com sua necessidade de adaptar-se a novas condições histó-ricas, ou de um texto ser diferente em contexto diferente, ou, ainda,de um eu individual incorporar tanta coisa que é compartilhada comoutros.

O bloco fundamental com que Bakhtin constrói sua concepçãodialógica em que tais forças díspares coexistem é a elocução. Uma elocuçãoescrita ou falada sempre se expressa de um ponto de vista. O ponto devista, para Bakhtin, é mais um processo do que um lugar. Para Bakhtin8,o grau de consciência, de acabamento formal da atividade mental é dire-tamente proporcional ao seu grau de orientação social. Ele exemplificaisso com a sensação de fome cuja tomada de consciência pode dispensaruma expressão exterior, mas não uma expressão ideológica. Como todatomada de consciência implica “discurso interior, entoação interior eestilo interior”, a tomada de consciência de fome (por exemplo) podeser acompanhada de “deprecação, de raiva, de lamento ou de indigna-ção, com matizes mais grosseiros ou marcados da entoação interior,embora a atividade mental possa ser marcada por “entoações sutis ecomplexas”. A expressão exterior, na maior parte dos casos, prolonga eesclarece a orientação tomada pelo discurso interior, e as entoações queele contém.

7 Ibidem, p. 36.8 BAKHTIN, op. cit., p. 114.

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E é essa possibilidade de imprimir valor às palavras que permite aatividade autoral, quer quando falamos ou escrevemos. Essa é a idéia deautor para Bakhtin. Mas é preciso especificar que moldamos os valorescomo formas (palavras) a partir de um ponto de vista. A forma comooperamos os valores dependerá de como articulamos o que somos emmeio à heteroglossia9 de possibilidades ideológicas abertas a nós em qual-quer momento dado. Para Bakhtin, em nosso diálogo com o mundo, numlabor prático de construção, determinamos a arquitetônica de nossa pró-pria respondibilidade.

Clark e Holquist10 julgam Bakhtin um filósofo da liberdade, liberda-de essa assentada na natureza dialógica da linguagem e da sociedade e quese realiza por meio do jogo de valores condicionado pelas possibilidadessociais e políticas. Bakhtin vê a fonte do significado da linguagem no soci-al, ao contrário das correntes personalistas que sustentam que a fonte dosignificado é o indivíduo singular (Vossler, Croce, Wundt). Isso significaque, para Bakhtin, “nossas palavras já vêm envoltas em muitas camadascontextuais sedimentadas pelas numerosas intralinguagens e pelos váriospatoás sociais, cuja soma constitui a linguagem de nosso sistema cultu-ral”. Então, como o significado se produz? Onde se situa este significado?

A produção do significado

Para Bakhtin o significado está em algum lugar no entremeio, com-partilhado e múltiplo. Cada um pode significar o que diz, mas só indireta-mente, com palavras que são tomadas da comunidade e que são a ela de-

9 Como Bakhtin julga a linguagem num espaço semântico de “entremeio”, esse entre-meio sugere tanto a necessidade de compartilhamento do significado, como um cons-tante grau de multiplicidade e embate. De um lado reúnem-se as forças para unificar osignificado, na tentativa de uma estruturação e sistematicidade (forças centrípetas). Emoposição, colocam-se as tendências que mantêm abertos os caminhos da diversidade queconduzem ao mundo contextual, constantemente flutuante, que cercam qualquerenunciação. Bakhtin estuda as forças centrífugas da linguagem, à medida que se revelamnos vários patoás de profissões, classe, geração, período e outros que os governos, asescolas, a academia, enfim, as chamadas políticas de manutenção da unidade nacionalprocuram conter ao buscar manter uma linguagem nacional. A heteroglossia refere-se aessa estratificação, diversidade e aleatoriedade na vida da linguagem e esse conflito ani-ma todo proferimento concreto feito por qualquer sujeito falante.

10 CLARK; HOLQUIST, op. cit., p. 38.

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volvidas, conforme os protocolos que ela observa. Logo, “a voz de cadaum pode significar, mas somente com outros – às vezes em coro, mas namaioria das vezes em diálogo”. Assim acontece a criação e uso dos signos.

Além disso, considerando a concepção saussureana, entre a línguae a fala, ou seja, sistema e desempenho, Bakhtin propõe um continuum decomplementariedade entre ambos. Para Bakhtin11, “o sistema lingüísticoé produto de uma reflexão sobre a língua, reflexão que não procede daconsciência do locutor nativo e que não serve aos propósitos imediatosda comunicação”. Para o locutor não importa a forma lingüística, masaquilo que permite que a forma lingüística figure num dado contexto,aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situaçãoconcreta. Para o locutor importa somente a forma lingüística comosigno sempre variável e flexível, levando em consideração tanto o seuponto de vista (do locutor) como o de seu interlocutor e o meio social.Portanto, o elemento que torna a forma lingüística um signo, não é suaidentidade como sinal, mas sua mobilidade específica; isto quer dizerque a compreensão da palavra no seu sentido particular depende dacompreensão da orientação que é conferida a essa palavra por um con-texto e uma situação precisos. “A palavra está sempre carregada de umconteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”12. As formas lin-güísticas vazias de ideologias são apenas sinais da linguagem. Por outrolado, não há interlocutor abstrato, pois não teríamos linguagem co-mum com tal interlocutor. Quando pretendemos nos exprimir de for-ma impessoal, como se o nosso interlocutor fosse o mundo, estamos,na verdade, falando do prisma do meio social concreto que nos englo-ba. E, conforme Bakhtin,

na maior parte dos casos, é preciso supor, além disso, umcerto horizonte social definido e estabelecido que determinaa criação ideológica do grupo social e da época a quepertencemos, um horizonte contemporâneo da nossaliteratura, da nossa ciência, da nossa moral, do nossodireito13.

11 BAKHTIN, op. cit, p. 92.12 Idem, p. 95.13 Ibidem, p. 112.

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Sendo assim, cada indivíduo realiza suas reflexões e tem seu mundointerior com base em um auditório social próprio e bem estabelecido. Apalavra que usa está vinculada a si próprio e ao outro, ela é o produto dainteração do locutor e do ouvinte e, ainda que, como signo, essa palavra seja extra-ída pelo locutor de um estoque social de signos disponíveis, a própria realizaçãodeste signo social na enunciação concreta é inteiramente determinada pe-las relações sociais. Até os estratos mais profundos da estrutura daenunciação “são determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a queestá submetido o locutor” 14.

Há de existir sempre uma orientação social de caráter apreciativoem toda a atividade mental. Na relação com o outro, para Bakhtin15, hádois pólos dos quais se realiza a tomada de consciência e a elaboraçãoideológica: a atividade mental do eu e a atividade mental do nós. No primeiro caso,a atividade mental tem caráter primitivo, perde sua modelagem ideológi-ca, sua orientação social, sua representação verbal, aproximando-se da re-ação fisiológica do animal. No segundo caso, a atividade mental do nós permi-te diferentes tipos de modelagem ideológica. Então o mundo interior doindivíduo, seu grau de consciência será cada vez mais distinto e comple-xo, conforme a firmeza e organização da coletividade no interior da qualo indivíduo se orienta. Bakhtin16 dá como exemplos dessa atividade mental donós as diferentes formas de reação ante a situação de fome vivida tanto porgrupos de camponeses em seu país, antes da revolução de 1917, isolados eresignados - como por membros de uma comunidade unida por vínculosmateriais objetivos (operários que tenham amadurecido a idéia de “classepara si”, como operários reunidos no interior da usina, por exemplo)-cuja atividade mental leva ao protesto ativo e seguro de si.

Não se pode esquecer que o tema– dialogia – manifestou-se tambémna obra de Bakhtin, sob o prisma da literatura. Ele se preocupou com ocriador e os seres criados por este (autor e herói). No início, ele pensavaque a construção estética somente poderia acontecer se uma vida fossevista do exterior, como um todo (“englobada no horizonte do autor”),para ter sentido. Nessa fase, ele pensava ainda que a criação estética era

14 Ibidem, p.. 114.15 Ibidem, p. 115.16 Ibidem, p. 116.

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um exemplo particularmente bem sucedido de um tipo de relação huma-na, embora assimétrica de exterioridade e de superioridade, o que seriacondição indispensável à criação artística. Reconheceu, mais adiante, quetal exigência de “exotopia” correspondia ao clássico e que autores comoDostoievski esquecem essa lei estática de superioridade do autor sobre apersonagem e, em suas obras, abalam essas posições, colocando tanto autorcomo personagem no mesmo plano.

Então Bakhtin refere-se à sua concepção anterior (da relação desuperioridade do autor sobre o herói) com o nome de “monologismo”e trata o estilo de escrita e concepção do mundo encontrado emDostoievski como “dialogismo”, assinala Todorov17. Assim, apesar dacrítica de 1929, assinada por Volochinov (um dos nomes que assumi-ram os trabalhos de Bakhtin) – através da qual o autor denunciava quea sociedade moderna não ousava dizer nada com convicção e, para dis-simular as incertezas, as pessoas refugiavam-se nos diversos graus decitação, o que fazia o autor renunciar à sua superioridade – Bakhtintambém rejeita a referência ao absoluto e à realidade que sustentava aconcepção anterior. Reconhece, então, que o romance “monológico”só admite duas possibilidades:

a) ou as idéias são assumidas por seu conteúdo, e então são verdadei-ras ou falsas;

b) ou são tidas por indícios da psicologia das personagens.

Já a “arte dialógica” tem acesso a um terceiro estágio, acima do verdadeiro e do falso,do bem e do mal, assim como no segundo, sem que por isso se reduza a ele: cada idéia é a idéiade alguém, situa-se em relação a uma voz que carrega e a um horizonte a que visa, explicaTodorov18. Assim, no lugar do absoluto, encontramos uma multiplicidadede pontos-de-vista: os das personagens e o do autor que lhes é assimilado– sem privilégios ou hierarquias.

Bakhtin compara o pluralismo de Dostoievski e Dante, emborareconheça em Dante o caráter vertical das vozes do universo que apre-senta (os ocupantes de todas as esferas terrestres e celestes), enquanto

17 TODOROV, op. cit., p. 8.18 Idem, p. 8.

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Dostoievski apresenta um mundo “horizontal” de vozes que coexis-tem. A concepção bakhtiniana de “outro” desenvolve-se na análise datessitura polifônica do conjunto da obra de Dostoievski, desvendadapor Bakhtin em seu trabalho Problemas da poética de Dostoievski, especial-mente com relação à novela “O duplo”. Bakhtin analisa essa peça literá-ria sob o prisma discursivo, “enquanto trama sintática das formas depresenças de vozes que se espelham, que se mimetizam, que seantagonizam, expondo os conflitos existentes entre o mesmo e o ou-tro”, observa Brait19 E a autora conclui:

Com extremo rigor, Bakhtin vai perseguir no texto as váriasformas de presença da palavra do outro, do discurso dooutro no discurso do protagonista, descrevendo, analisandoe apontando as conseqüências das diferenciadas relaçõessuscitadas no que diz respeito a esse discurso, advindoficcionalmente da projeção e desdobramento do mesmo emoutro.

Ainda para Brait20, esse estudo de Bakhtin sobre a novela “O duplo”é uma das peças de resistência para o desvendamento dos conceitos de“outro”, “alteridade”, “vozes”, “polifonia” e “dialogismo”, pois em suaanálise da materialidade lingüística ele destaca os fios discursivos que vãoconstituindo vozes e estabelecendo conflitos constitutivos desse sujeito ede sua linguagem. Por exemplo, na análise do diálogo do protagonistaconsigo próprio mostra como esse protagonista trata a si como outra pes-soa, substituindo com sua própria voz a voz de outra pessoa. E a vozdessa segunda pessoa aparece como calma e segura e até provocante ezombeteira, enquanto a primeira é insegura e tímida.

Conforme Brait, Bakhtin, portanto, percebeu que a obra deDostoievski representava, simultaneamente e no mesmo plano, váriasconsciências, umas tão convincentes quanto às outras; mas, enquantoromancista, mantém uma fé na verdade como horizonte último. Mas “dopróprio conceito de verdade única não decorre, em absoluto, a necessida-

19 BRAIT, Beth. Alteridade, dialogismo, heterogeneidade: nem sempre o outro é o mesmo. In:______. (0rg.), Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. Campinas, São Paulo:Pontes, 2001. p. 13.

20 Idem, p. 13.

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de de uma única e mesma consciência. Pode-se perfeitamente admitir epensar que uma verdade única exige uma multiplicidade de consciências”(na obra Dostoievski, p.107). Então, ao admitir-se a pluralidade de cons-ciências não se exige a renúncia à verdade única?

A essa questão, Bakhtin interpõe a idéia de inter-humanidade. Ointer-humano é constitutivo do homem, ou seja, a multiplicidade doshomens é a verdade do próprio ser do homem – e essa convicção quetambém une Bakhtin a Dostoievski, por outro lado, como se vê, não sereduz a uma ideologia individualista.

Assim, na ordem do ser, a liberdade humana é apenas relativa e en-ganadora; mas na ordem do sentido, ela é absoluta porque o sentido nascedo encontro de dois sujeitos, e esse encontro recomeça constantemente -“O sentido é, de fato, esse elemento de liberdade que transpassa a necessi-dade. Sou determinado enquanto ser (objeto) e livre enquanto sentido(sujeito)”. Portanto, para Bakhtin o sentido é liberdade e a interpretação éo seu exercício. Mas com tudo isso, o homem não escapa de sua inserçãonos gêneros do discurso que emanam das mais diversas esferas da ativida-de humana, em qualquer enunciado que produza. Vejamos como issoacontece.

Os gêneros do discurso como reflexo de práticas sociais

Ao focalizar o problema dos gêneros do discurso, Bakhtin21 diz quea riqueza e diversidade dos gêneros do discurso são ilimitadas por doismotivos: primeiro, porque as possibilidades de atividade humana são ines-gotáveis e os integrantes de cada esfera de atividade humana, constante-mente, geram enunciados (orais ou escritos) únicos e concretos; e, segun-do, porque cada esfera de atividade contém um repertório inteiro de gê-neros de discurso que se diferenciam e se desenvolvem à medida em queessa esfera particular se amplia e se torna mais complexa.

Então, chama-se gênero do discurso tipos relativamente estáveis de enuncia-dos cujas características do conteúdo temático, do estilo lingüístico (ouseja, a seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua)

21 BAKHTIN, M. (1986). The problem of speech genres. In: EMERSON, C.; HOLQUIST,M. (Eds.). Speech genres and other late essays. Austin: University of Texas Press, 1986. p. 60.

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e, acima de tudo, de sua estrutura composicional fundem-se a aspectosque são determinados pela natureza específica da esfera particular deinteração social.

Devido à extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso, poderiaparecer que não há um nível comum único pelo qual eles pudessem serestudados. Mas Bakhtin22 considera dois tipos de discurso: o primário (sim-ples) e o secundário (complexo). O que muda, na verdade, é o grau decomplexidade da circunstância de interação social e a forma como o discur-so é apresentado. Assim, no processo de formação, os gêneros secundáriosdo discurso - como as novelas, o teatro, todos os tipos de discurso resultan-tes de pesquisa científica, os grandes gêneros de exposição de idéias etc. –surgem principalmente escritos e em circunstâncias de uma interação cul-tural (artística, científica, sócio-política, etc.) mais complexa e evoluída comrelação aos gêneros que lhe deram origem. Isso quer dizer que os gênerossecundários “absorvem e transmutam” os gêneros primários que se consti-tuíram em circunstância de uma interação verbal espontânea.

Os gêneros primários, que se caracterizam por sua relação imediatacom a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios (comoa réplica do diálogo cotidiano, a carta – eu diria, hoje, acrescentando gêne-ros da cultura eletrônica, o e-mail, a teleconferência, o chat e assim pordiante), poderiam ser inseridos, por exemplo, em outros gêneros maiscomplexos. Assim, todos os gêneros secundários (nas artes e nas ciências)incorporam tanto os gêneros primários do discurso na construção do enun-ciado como a relação entre estes gêneros primários (os quais se transfor-mam em função das transformações das práticas sociais). Recorrem-se,então, principalmente nos gêneros discursivos escritos, a recursoslingüísticos que tentam acomodar e, por vezes, subtrair essas vozes queteimam em se mostrar, fenômeno que pode ajudar a entender a complexi-dade do que se compreende como um sujeito cindido, heterogeneidadediscursiva, polifonia e dialogismo.

Além disso, é essa inter-relação entre gêneros primários e secundári-os e o processo histórico da formação dos gêneros secundários que escla-rece a natureza do enunciado e permite perceber a correlação entre lín-gua, ideologias e visões do mundo.

22 Idem, p. 61.

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O enunciado, então, é visto por Bakhtin23 como uma unidade deinteração discursiva, diferente, portanto, das unidades da língua: as pala-vras e as orações. Isso porque a oração só poderá funcionar como enunci-ado completo ao se tornar individualizada, e ser abstraída de uma situa-ção concreta de comunicação verbal.

Para Bakhtin24, cada obra de construção complexa tem como sujei-to falante o autor, que manifesta sua visão de mundo, o que distingue estaobra das outras obras com as quais se relaciona dentro de uma dada esferacultural, quer como apoio ou oposição. Portanto, toda obra tem tam-bém uma relação dialógica com as outras obras-enunciado. Para que sealcance o acabamento do enunciado (que proporciona a possibilidade decompreender de modo responsivo), há três fatores ligados em seu todoorgânico:

a) o tratamento exaustivo do objeto do sentido;

b) o querer-dizer do locutor (intuito discursivo);

c) a escolha de um gênero discursivo (formas estáveis do gênero doenunciado). Sendo assim, definida a temática, a individualidade do sujeitose adapta ao gênero discursivo determinado em função da especificidadede uma dada área da comunicação25.

Essas áreas ou esferas da comunicação verbal, há tanto tempodelineadas por Bakhtin, parecem corresponder ao que hoje, no Brasil,Marcuschi26 cita como domínios discursivos:

Usamos a expressão domínio discursivo para designar umaesfera ou instância de produção discursiva ou atividadehumana. Esses domínios não são textos nem discursos, maspropiciam o surgimento de discursos bastante específicos.Do ponto de vista dos domínios, falamos em discursojurídico, discurso jornalístico, discurso religioso etc., já que

23 Ibidem, p. 67.24 BAKHTIN, 1997. p. 298.25 Ibidem, p. 301.26 MARCUSCHI, L. A . Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A.

P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais & ensino. 2. ed. Rio de Janei-ro: Editora Lucerna, 2003. p. 24.

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as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não abrangemum gênero em particular, mas dão origem a vários deles.Constituem práticas discursivas dentro das quais podemosidentificar um conjunto de gêneros textuais que, às vezeslhe são próprios (em certos casos exclusivos) como práticasou rotinas comunicativas institucionalizadas.

Marcuschi não usa a terminologia gênero do discurso, mas gênerotextual. Ele parte do pressuposto básico de que toda comunicação verbalse realiza a partir de algum gênero, assim como também é impossível acomunicação verbal sem algum texto. Daí a comunicação verbal somen-te ser possível mediante algum gênero textual e, segundo ele, essa posiçãotambém é defendida por Bakhtin (1997). Mas se o texto verbal (parte donúcleo duro da comunicação) só se constitui a partir do uso efetivo dalíngua, da relação entre diálogos e lugares sociais, não será ambígua aterminologia “gênero textual” quando queremos nos referir ao gênerodo discurso que se constitui justamente na exterioridade da língua, nainteração social, em suas necessidades e seu condicionamento histórico,apesar de ter sua materialidade no texto? Essa terminologia (gênero tex-tual), apesar de compreendermos a intenção de Marcuschi, parece estarcompactando, de uma forma simplista, níveis diferentes da estruturaçãoda linguagem verbal.

Bakhtin27 , realmente, se preocupa com o problema do texto e oconsidera como “mônada específica que refrata (no limite) todos os textosde uma dada esfera...Interdependência de sentido (na medida em que serealiza através do enunciado)”. Além disso, ele analisa a bipolaridade dotexto. Por um lado, cada texto pressupõe o uso de uma língua, um sistemaconvencional além de elementos que se poderiam chamar de técnicos (as-pecto técnico da grafia, da elocução etc.). Tudo isso é reproduzível erepetitivo. Essas unidades da língua cumprem sua função lingüística e sedefinem por relações de oposição, comutação, distribuição, etc. Por ou-tro lado, o autor fala sobre o texto em sua qualidade de enunciado, consi-derando-o, por esse prisma, como único, irreproduzível (embora possaser citado) e individual. Aqui, o que liga as unidades de comunicação (osenunciados) é uma relação dialógica.

27 BAKTIN, 1997, p. 331.

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Lê-se também em Bakhtin28 que, no gênero, a palavra comporta cer-ta expressão social porque os gêneros correspondem a circunstâncias etemas típicos da interação verbal, o que acarreta significações específicasda palavra com relação à realidade concreta. É como se fosse uma superes-trutura da palavra, porque essa expressividade típica do gênero não per-tence à palavra como unidade da língua, e não entra na composição de suasignificação, mas apenas reflete a relação que a palavra e sua significaçãomantêm com diferentes práticas de interação social. A experiência verbalindividual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação con-tínua com os enunciados individuais do outro. Bakhtin29 julga isso umprocesso de assimilação mais ou menos criativo, das palavras do outro (enão das palavras da língua). Continuemos as reflexões e conceituações deBakhtin, feitas sob a influência da teoria marxista.

As relações entre ideologia/história – consciência social esigno, infra-estrutura e superestrutura no discurso

Marxismo e filosofia da linguagem é “um livro principalmente sobre asrelações entre linguagem e a sociedade, colocado sob a ótica da dialéticado signo, enquanto efeito das estruturas sociais”, diz Yaguello (p.13), naintrodução desta obra de Bakhtin (1995) no Brasil. Considerando o signoe a enunciação de natureza social, Bakhtin questiona em que medida alinguagem determina a consciência, a atividade mental; e, em que medidaa ideologia determina a linguagem. Entende o produto ideológico comoparte de uma realidade (social ou natural), como todo corpo físico, instru-mento de produção ou produto de consumo. Porém esse produto ideoló-gico – signo ideológico – também reflete e refrata uma outra realidadeque lhe é exterior, pois tudo que é ideológico possui um significado eremete a algo situado fora de si mesmo. Assim, um objeto físico vale porsi próprio, mas toda imagem artístico-simbólica ocasionada por ele (obje-to físico particular) constitui um produto ideológico. Essa é a conversãodo objeto físico em signo. A partir daí, esse objeto passa a refletir e arefratar uma outra realidade. Portanto, a ideologia surge dos embates so-ciais - tem sua existência nos signos, sendo que o signo verbal é o que vainos interessar nesse trabalho.

28 Idem, p. 312.29 Ibidem, p. 314.

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Para Bakhtin a língua poderia ser, como para Saussure, um fato soci-al cuja existência se funda nas necessidades da comunicação. Mas, enquan-to Saussure, os estruturalistas e seus seguidores se dedicam ao estudo dalíngua como um objeto abstrato ideal, um sistema sincrônico e homogê-neo, Bakhtin valoriza a fala, a enunciação, afirmando sua natureza social(não individual). Para Bakhtin, a fala está sempre ligada às condições soci-ais de interação que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas soci-ais. Portanto, a comunicação verbal revela e confronta valores sociais con-traditórios que lutam entre si estabelecendo relações de dominação, deresistência, de adaptação ou resistência à hierarquia; a comunicação ver-bal implica, também, a utilização da língua pela classe dominante comorecurso para reforçar seu poder. E essas relações são analisadas por Bakhtinno uso dos recursos lingüísticos que constituem a materialidade do enun-ciado, graças às formas de apresentação do discurso do outro.

Como sabemos, as diferentes classes sociais têm registros de línguadiferentes. Bakhtin considera a ideologia como um reflexo das estruturassociais; portanto, diferentes classes sociais possuem ideologias diferentes,o que acarreta modificações nos gêneros discursivos e na língua, também.

Ao observar os conflitos geradores das variações de um mesmo sis-tema, ele conclui que os motivos dessas variações da língua obedecemtanto a leis internas (reconstrução analógica e economia) quanto, princi-palmente, a leis externas, de natureza social. Bakhtin critica a idéia desistema de oposição língua/fala, sincronia/diacronia de Saussure30 por jul-gar o signo dialético, vivo. Bakhtin31 questiona qual o verdadeiro núcleoda realidade lingüística e opta não pela língua, mas pelo ato individual da

30 Para Saussure, a língua se opõe à fala como o social ao individual. Portanto, a língua,para Saussure, é um princípio de classificação, ela é um produto que o sujeito registrapassivamente. A fala, ao contrário é um ato individual de vontade e de inteligência nointerior do qual se distinguem, além de combinações – através das quais o falante utilizao código da língua para expressar seu pensamento pessoal –, também o mecanismopsicofísico que lhe permite exteriorizar estas combinações. Então o sistema lingüístico,que constitui um fato objetivo externo à consciência individual, ou seja, a língua, seriaum sistema sincrônico. Já a fala, que, para Saussure, constitui a história da língua, comseu caráter individual e acidental, seria um processo diacrônico. Para Bakhtin, esse siste-ma sincrônico, objetivamente, não existe em nenhum verdadeiro momento da históriae, portanto, em nenhum momento efetivo do processo de evolução da língua.

31 BAKTHIN, 1995, p. 89.

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fala - a enunciação. Para ele, o modo de existência da realidade lingüísticaé a evolução criadora ininterrupta e não a imutabilidade de normas idên-ticas a si mesmas. A forma lingüística é sempre mutável. Na enunciação,então, juntam-se outras condições (como entonação, conteúdo ideológi-co, situação social determinada) que afetam a significação, dando valornovo ao signo. É a classe dominante que tenta tornar o signo monovalente,mas o signo é sempre plurivalente e só a dialética pode resolver a contra-dição entre a unicidade e pluralidade de significação.

Como conceitua Bakhtin32, o signo é “o resultado de um consensoentre os indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processode interação”. Portanto, “as formas do signo são condicionadas tanto pelaorganização social de tais indivíduos como pelas condições em que ainteração acontece”. Isso significa que qualquer mudança dessas condiçõesou organização ocasiona uma modificação do signo. Existe uma mudançasocial do signo lingüístico num processo de refração realmente dialético doser no signo.

Outra crítica de Bakhtin, ao conceituar o signo, diz respeito aoobjetivismo abstrato da lingüística de Saussure que analisa um corpus deforma semelhante ao trabalho de um filólogo, num descritivismo abstra-to, fazendo do signo apenas um sinal. Para Bakhtin, a palavra pode serneutra em relação a qualquer função ideológica específica, mas o signonão o é. Apesar de essa neutralidade ser usada como símbolo virtual, apalavra pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética,científica, moral, religiosa. Isso por que a materialidade do discurso édiferente da materialidade da língua.

Criticando todos os procedimentos formalistas de análise lingüísti-ca (fonéticos, morfológicos e sintáticos), Bakhtin enfatiza que a unidadeda língua, a enunciação, seja ela constituída por uma palavra, uma fraseou seqüência de frases, não existe fora de um contexto social e históricoe, portanto, é ideológica.

Por outro lado, o signo (sendo ideológico) e a situação social estãosempre ligados. Então a ideologia modela sistemas semióticos e, por meiodeles, se revela. Mas as ideologias constituídas, reveladas pelas palavras –signos ideológicos, por excelência – estão se renovando cotidianamente,mediante os contatos e confrontos sociais.

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Se a palavra também é o material semiótico da vida interior, daconsciência, (discurso interior) não pode funcionar como signo sem ex-pressão externa. Portanto, a palavra acompanha os processos de compre-ensão de todos os fenômenos ideológicos que não podem operar sem odiscurso interior; ela é instrumento da consciência, funcionando comoelemento essencial que acompanha toda e qualquer criação ideológica,pois mesmo os signos não-verbais, por serem signos culturais, dotados deum sentido, tornam-se parte da unidade de consciência verbalmente cons-tituída por processos sociais e históricos. Como se vê, “a palavra estápresente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpre-tação”33, o que faz dela o objeto fundamental dos estudos das ideologias.Bakhtin conclui que deve haver uma filosofia do signo ideológico paraque o marxismo possa dar conta de todas as profundidades e de todas assutilezas das estruturas ideológicas “imanentes”.

Para Bakhtin, o psiquismo interage com a ideologia constantemen-te e de uma forma dialética. Isso por que o signo ideológico se realiza nopsiquismo e, por sua vez, a realização psíquica - como forma superior,que implica a consciência de classe, atividade mental do “nós”- se sustentana ideologia.

Tudo isso significa que “o pensamento não existe fora de sua ex-pressão potencial e, por conseqüência, fora da orientação social dessa ex-pressão e do próprio pensamento”. No entanto, “cada campo decriatividade ideológica tem a sua própria função no conjunto da vidasocial (representação do símbolo religioso, da fórmula científica, da for-ma jurídica, etc.), ainda que todos tenham o mesmo caráter semiótico”.

Por outro lado, a compreensão só se manifesta através de um mate-rial semiótico, no qual um signo somente adquire valor por sua relaçãocom determinantes históricos. Essa cadeia ideológica estende-se de cons-ciência individual a consciência individual, ligando-as em processo deinteração de onde emergem os signos. Assim, para Bakhtin, diferente-mente da filosofia idealista e do psicologismo, a consciência só se tornaconsciência quando se impregna de conteúdo ideológico.

32 Idem, p. 44.

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Se os signos só podem aparecer em um terreno interindividual, ébom esclarecer que essa relação deve ser constituída por indivíduos so-cialmente organizados, para que possam criar um sistema de signos.Isso por que, conforme o materialismo histórico, a consciência indivi-dual nada pode explicar, mas, ao contrário, ela própria deve ser explicadaa partir do meio ideológico e social. Assim, “a consciência individual éum fato sócio-ideológico”34. Isso significa que a psicologia deveria seapoiar no estudo da ideologia, pois a consciência desaparece se a privar-mos de seu conteúdo semiótico e ideológico. A realidade dos fenôme-nos ideológicos é a mesma dos signos sociais cujas leis são as da comuni-cação semiótica - diretamente determinadas pelo conjunto das leis soci-ais e econômicas. Então, a realidade ideológica é uma superestruturasituada imediatamente acima da base econômica, cujos elementos rea-gem sempre que há uma modificação da infra-estrutura, ou seja, no pro-cesso sócio-econômico.

Então, o que nos interessa, é saber como a infra-estrutura (a realida-de) determina o signo e como o signo reflete e refrata a realidade emtransformação, considerando-se a palavra como o signo por excelência.Ora, acontece que as lentas mudanças sociais se acumulam na palavra, atéque adquiram um novo caráter ideológico. Existe, então, um “inconsci-ente coletivo” (a psicologia do corpo social) que se exterioriza na palavra,no gesto, no ato. E, com base no materialismo histórico, Bakhtin35 carac-teriza todas as formas e meios de interação verbal entre os indivíduoscomo determinadas pela estrutura sócio-política que, por sua vez, derivadas relações de produção.

Portanto, todos os contatos verbais (no trabalho, na vida política,na criação ideológica) obedecem a essa “alma coletiva”- a psicologia docorpo social – que é o meio ambiente inicial dos atos de fala de toda espé-cie, e é neste elemento que se acham submersas todas as formas e aspectosda criação ideológica ininterrupta que caracterizam a fala do cotidiano, odiscurso interior, e a consciência auto-referente, a regulamentação social

33 Ibidem, p. 38.34 Ibidem, p. 35.35 Ibidem, p. 42.

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etc. Então, a psicologia do corpo social (teoria de Plekhánov36), conside-rada pelos marxistas como uma espécie de elo entre a estrutura sócio-política e a ideologia (no sentido estrito do termo - arte, ciência, etc) ma-nifesta-se nos mais diversos aspectos da enunciação, sob a forma de dife-rentes modos de discurso, interiores, exteriores. Esse conceito de umapossível ideologia do cotidiano, que permite a interação entre os homens,independentemente de sua esfera ideológica, como se vê, remete a concei-tos posteriores, formulados pela Análise do Discurso da linha francesa,como por exemplo, as idéias de interdiscurso e formação discursiva.

Além disso, Bakhtin37 preocupa-se com a pesquisa das formas con-cretas da expressão da psicologia do corpo social, isto é, com as formas decomunicação no contexto da vida e através de signos. A tipologia dessasformas é um dos problemas vitais para o marxismo, porque ancorada nocampo da práxis.

Por outro lado, Bakhtin, em conexão com o problema da enunciação,aborda o problema dos gêneros discursivos, que já foi visto anteriormen-te nesse trabalho. Considera então, a comunicação sócio-ideológica decada grupo social em sua época, o que resulta num repertório de formasde discurso. A cada forma de discurso social corresponde um grupo detemas. Assim, entre as formas de interação verbal, a forma de enunciaçãoe o tema existe uma unidade orgânica indestrutível que se baseia no com-ponente hierárquico do processo de interação verbal - ou seja – o domíniodas relações sociais sobre as formas de enunciação.

Embora pouca ou nenhuma referência seja feita a Bakhtin, muitodessa teoria toda é retomada pela AD francesa, por exemplo, quando, nasformações discursivas, se considera o que pode ou não ser dito. E Bakhtin38

fala, ainda, no “horizonte social de uma época e de um grupo social”,responsável pela inserção dos grupos de objetos que darão origem aos

36 Em meados do século XX, Plekhánov estabelecera na Rússia, uma base filosófica para aabordagem da obra literária ligada a idéias especificamente marxistas, argumentandoque o ser social determina a consciência social. Por isso, para avaliar uma obra de arte,os críticos deviam elucidar o aspecto particular da consciência social ou de classe por elaexpressa. Isso deu origem ao chamado “método sociológico” de análise literária a cujodeterminismo Bakhtin se opôs.

37 BAKHTIN, 1995, p. 43.38 Idem, p. 44.

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signos, assim como pela atribuição do valor que afeta o conteúdo dessessignos. Para que esses objetos, pertencentes a qualquer esfera da realidadese insiram no horizonte social do grupo, desencadeando reações semiótico-ideológicas (transformando-se em símbolos), é preciso que se relacionemàs condições sócio-econômicas essenciais do referido grupo.

Então, fazendo algumas retomadas, podemos dizer que a filosofiamarxista da linguagem, para Bakhtin39, coloca, na base de sua doutrina, aenunciação como realidade da língua e, ao mesmo tempo, da estruturasócio-ideológica. Assim, o discurso interior (sentido que algo tem paradeterminada pessoa) parte da consciência individual que se constrói pelaconsciência social (diálogo social). E a consciência individual está impreg-nada de conteúdo ideológico. Portanto, não existe uma consciência forada ideologia, embora possa haver modificações ideológicas. As transfor-mações ideológicas acontecem como reação a uma modificação da infra-estrutura (realidade vista como relações de produção e estruturas sócio-políticas derivadas) num processo dialético de transformação social. Essamesma realidade determina o signo cujas formas são condicionadas tantopela organização social dos indivíduos quanto pelas condiçõessuperestruturais.

Assim, “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ide-ológicos e servem de trama a todas as relações, em todos os domínios”40.Serão, por este motivo, as palavras, “os indicadores mais sensíveis de to-das as transformações sociais, desde as mais insipientes ou efêmeras”.

Mas, se os mesmos signos ideológicos (como os de uma língua) ser-vem a diferentes classes sociais, inevitavelmente irão se confrontar índicesde valores contraditórios. Isso torna o signo plurivalente, vivo e móvel,capaz de se transformar. Então, segundo Bakhtin41, “a refração do ser nosigno ideológico é determinada pela luta de classes (confronto de interes-ses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica).” Astensões da luta social fazem parte do signo, mas também o tornam uminstrumento de deformação e refração do ser. A classe dominante tende a

39 A obra original em que Bakhtin trata desse assunto. Marxismo e filosofia da linguagem, escritaem russo e assinada por Volochinov, data de 1929.

40 BAKHTIN, 1995, p. 41.41 Idem, p. 46.

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conferir ao signo um caráter monovalente. Mas o signo vivo é ambivalente,reflete a ordem heterogênea do real, carrega em si crítica e elogio; verdadee mentira, em sua dialética interna. Mas, observa o autor42, “essa dialéticainterna do signo não se revela inteiramente a não ser na época de crisesocial e de comoção revolucionária”. E é assim, a partir de uma ótica deenunciação embasada na filosofia marxista da linguagem que Bakhtinobserva as várias vozes que falam simultaneamente em seqüências de enun-ciados, dando ênfase ao domínio da polifonia nas condições de produçãoda enunciação.

Sintetizando, a condição da enunciação, em Bakhtin, é afetada pelaordem social e histórica. Ela é uma réplica do diálogo social. Portanto, aconsciência individual é reflexo de uma consciência social. A subjetivida-de só pode ser social e histórica e depende das práticas discursivas.

Então, fundamentado no materialismo dialético, Bakhtin afirmaas relações de contradição que estão presentes nas relações de produçãoe reprodução (toda realidade tem caráter refratário), daí considerar acondição inerente do signo como constitutivamente dialética. Isso por-que a realidade em sua totalidade é impossível de ser percebida, é ina-cessível porque não é homogênea. Então, o signo é dialético porquereflete uma realidade e refrata outra, o signo ao dizer, aponta tambémuma contradição.

Em síntese: a ideologia permite explicar as estruturas sociais que,ao se modificarem, acarretam modificações discursivas que modificam,por sua vez, a própria língua, motivo pelo qual a língua não é umasuperestrutura para Bakhtin. Portanto, se por um lado, ao tratar funda-mentalmente da enunciação na constituição do texto, Bakhtin manifes-ta sua concordância ao materialismo histórico (“Não é o conhecimentoque comanda a realidade, mas a realidade que comanda o conhecimen-to”, conforme Marx), por outro, vai de encontro a Stálin cuja práticarevolucionária de homogeneização de classes (Revolução bolchevique)pretendia tornar também a língua homogênea, apagando as diferençasde classe. Para Bakhtin, ao homogeneizar-se uma língua não se esvazi-am as diferenças de classe, mas o processo histórico, as condições deprodução, reprodução e transformação de uma língua.

42 Ibidem, p. 47.

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Conclusão

Em “O discurso de outrem”, Bakhtin43 afirma ser a sociedade quemassocia, às estruturas gramaticais da língua, os elementos de apreensãoativa, apreciativa da enunciação de outrem. Tais elementos são pertinen-tes e constantes e, como são inseridos pela sociedade, têm seu fundamen-to na existência econômica de uma comunidade lingüística dada. Comesse fundamento marxista, Bakhtin descarta a subjetividade individual epsicologista do indivíduo, mas não o sujeito. Por isso, a subjetividade, soba perspectiva bakhtiniana, encontra seu fundamento no materialismo his-tórico e transforma-se na polifonia.

Mas as formas de transmissão do discurso de outrem são uma rela-ção ativa de uma enunciação a outra que podem ser apreendidas por meiode construções específicas da língua. As formas sintáticas do discursodireto e indireto constituem-se em esquemas formados a partir de ten-dências dominantes em cada época, da apreensão do discurso de ou-trem. Se a língua é o reflexo das relações sociais dos falantes, dependen-do da época (história), dos grupos sociais, do contexto (espaço), vemosdominar diferentes variantes ao longo do tempo. Se os meios lingüísticospermitem a apreensão do discurso de outrem e mais, a infiltração deréplicas e comentários do dizer de um no dizer de outro, esse tipo deapreensão tem por objetivo neutralizar, apagar as fronteiras do discur-so de outrem para colocar em destaque um ponto de vista dominante.Sobre essa orientação temos, conforme Bakhtin44, o discurso indiretosem sujeito aparente; o discurso indireto livre e as variantes do discursodireto e indireto.

As variantes são formas que se encontram ou num processo degramaticalização, ou estão em vias de desgramaticalização. Seriam, noscasos limítrofes, formas ambíguas em que se podem captar as tendênciasda transformação da língua.

O discurso indireto e suas variantes são a versão analítica do discur-so de outrem, ou seja, implicam uma análise da enunciação simultânea aoato de transposição e inseparável dele. A tendência analítica do discurso

43 Ibidem, p. 146.44 Ibidem, p. 115.

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indireto é lacunar, principalmente, pelo fato de que os elementos emoci-onais e afetivos do discurso não são literalmente transpostos ao discursoindireto, na medida em que não são expressos no conteúdo, mas nas for-mas de enunciação. Por exemplo, para transpor essa enunciação direta:‘– Muito bem! Que grande realização!’ – para o discurso indireto, nãopodemos usar a estrutura: Ele disse que muito bem e que grande realiza-ção. Mas, sim: ‘Ele disse que estava muito bem e que era uma granderealização’. Tendo em vista que tal fato reflete uma lacunaridade na lín-gua russa, isso se reflete, com certeza, também em outras línguas.

Também as peculiaridades de construção e de entoação dos enunci-ados interrogativos, exclamativos ou imperativos não se conservam nodiscurso indireto, aparecendo apenas no conteúdo. A tendência analíticano discurso indireto pode tomar duas orientações:

-discurso indireto analisador do conteúdo;-discurso indireto analisador de expressão.

No discurso indireto analisador de conteúdo, a enunciação de ou-trem é apreendida no plano meramente temático, como uma tomadade posição com conteúdo semântico preciso por parte do falante (o quedisse o falante). O discurso indireto analisador de conteúdo abre-se àréplica e ao comentário, mas conserva distância entre o que diz onarrador e as palavras citadas. Parece preservar a integridade e autono-mia da enunciação, embora haja uma certa despersonalização do discur-so citado. Como exemplo, criado por nós, para melhor explicitar, te-mos a transformação de:

‘-Que lindo!’ em ‘Ele disse que era muito lindo’.

Já no discurso indireto analisador de expressão, as maneiras de dizeras palavras de outrem são introduzidas de tal forma que “sua especificidade,sua subjetividade, seu caráter típico são claramente percebidos”, sendocolocadas “entre aspas”, muitas vezes. Transcrevemos um dos exemplosdados por Bakhtin45. Nele, Bakhtin, observa, inclusive, a pontuação usa-da na construção do discurso indireto que retém a entoação expressiva damensagem original – discurso direto:

45 Ibidem, p. 162.

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Ele encontrou Nastasia Filippovna num estado próximo dacompleta loucura; dava gritos, tremia, berrava que Rogójinestava escondido no jardim na sua própria casa, que elaacabava de vê-lo, que ele ia matá-la...cortar-lhe a garganta!(Dostoievski, O idiota)

Essas duas variantes do discurso indireto exprimem abordagens lin-güísticas divergentes do discurso de outrem e da personalidade do falante.Na primeira variante (discurso indireto analisador de conteúdo) “a perso-nalidade do falante ocupa uma posição semântica determinada (cognitiva,ética, moral, de forma de vida)”, transmitida “objetivamente”. Na segun-da variante (discurso indireto analisador de expressão), “a individualidadedo falante se cristaliza ao ponto de formar uma imagem” que nem semprecorresponde à ordem do real. Neste caso, a individualidade do falante, dizBakhtin46 é apresentada como “maneira subjetiva (individual ou tipológica)como modo de pensar e falar, o que implica, ao mesmo tempo um julga-mento de valor do autor sobre esse modo”.

A meio do caminho, entre essas duas variantes, Bakhtin (ibid:165)refere-se à que trata o discurso de outrem com bastante liberdade e comouma transmissão do discurso interior, indicando apenas seus temas edominâncias. Chama, por isso a essa variante, de impressionista cujas par-ticularidades seriam próprias de uma época determinada.

Ao analisar o discurso direto, Bakhtin estuda variantes em que se cons-tata um estágio recíproco entre o discurso narrativo e o discurso citado.A primeira variante do discurso direto ele denomina discurso direto preparadoem que o discurso direto surge dentro do indireto livre, pois a naturezadesse último é meio narrativa, apagando, portanto, as marcas do dizer deoutrem. Há, neste caso, o enfraquecimento das fronteiras da enunciaçãode outrem.

Outra tendência é denominada de discurso direto esvaziado em que o pesosemântico das palavras citadas diminui e sua significação caracterizadora,sua tonalidade, se reforçam, pois o autor, com suas apreciações, antecipa aspalavras do personagem, esvaziando seu conteúdo ideológico.

46 Ibidem, p. 164.

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Já o discurso indireto livre, para Bakhtin47 constitui “o caso mais impor-tante e sintaticamente mais bem fixado de convergência interferente dedois discursos com diversas orientações do ponto de vista da entoação”.Ao discurso indireto livre, ele dedica um capítulo inteiro, e reporta-se aoutros estudiosos, como o alemão Lerch48, de quem tomou a terminolo-gia49 Para Bakhtin50, o falante nunca criará uma nova tendência na comu-nicação sócio-verbal, um novo esquema lingüístico. Suas intenções subje-tivas terão um caráter criativo apenas quando houver nelas alguma coisaque coincida com tendências em processo de formação na comunicaçãosócio-verbal dos falantes; e essas tendências dependem de fatores sócio-econômicos. Para que se constituísse o discurso indireto livre (uma formanova de percepção do discurso de outrem) foi preciso que se produzissealguma mudança no interior das relações sócio-verbais e da orientaçãorecíproca das enunciações. E, com base em Lerch, define o discurso indi-reto livre (DIL) como o “discurso vivido” em contraste com o discursodireto (discurso repetido), e com o indireto ou “discurso relatado”. Bakhtinse utiliza do DIL para elucidar como diferentes vozes podem povoar osmesmos enunciados sem estarem formalmente marcadas.

Por fim, Bakhtin51 conclui que há vários “caminhos para estudar atransformação dialética da palavra”. Mas o melhor caminho para estudara transformação dialética da palavra seria estudar a transformação da pró-pria língua como material ideológico, “como meio onde se reflete ideolo-gicamente a existência”. Este caminho leva ao estudo da “reflexão da evo-lução social da palavra na própria palavra”, dentro de contextos sócio-históricos.

47 Ibidem, p. 170.48 Lerch dá exemplos (retirados de Balzac) de discurso indireto livre e suas transforma-

ções, que constam como nota de rodapé (p. 174), escrita em francês, inserida pelostradutores na obra de Bakhtin. Apresento, a seguir, uma tradução para o portuguêsdesses exemplos com suas transformações, a fim de especificar mais as estruturas sobreas quais estamos falando.

49 Em português, usa-se a terminologia “discurso indireto livre”, adotada pela traduçãofrancesa e usada também por Mattoso Câmara Junior, embora o termo alemão Uneigentlichedirekte Rede tenha melhor tradução no inglês que usa “quasi-direct discourse”, é a opiniãodos tradutores (p.174) da obra de Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem. Também prefe-rimos, para esse termo, a tradução americana.

50 BAKHTIN, 1995, p. 176.51 Idem, p. 194.

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Para Bakhtin52, a palavra categórica e assertiva só existe em situa-ções científicas herdeiras da tradição positivista, pois em todas as outrassituações a atividade verbal consiste em “distribuir a palavra de outrem ea palavra que parece ser a de outrem”. O autor julga que não se leva maisa sério o conteúdo semântico da enunciação. Essa reificação da palavrasignifica uma deteriorização do valor temático da palavra.

Como se pode perceber, pelo que foi exposto até aqui, toda essareflexão multiforme de Bakhtin que engloba os conceitos de dialogismoou de polifonia parece, sob algum aspecto, fazer parte de campos referen-tes à análise do discurso, à pragmática, à sociolingüística, às teorias daenunciação, à semântica argumentativa, entre outras áreas do conheci-mento muito atuais, apesar das oito décadas decorridas desde seus primei-ros textos. Acredito que a obra de Bakhtin na plenitude de seu sentidoestá, assim, a se revelar na grande temporalidade, para usar um termo delepróprio, o que “o liberta de sua época” e suscita uma compreensão ativa, den-tro do nosso lugar, do nosso tempo e da nossa cultura.

ABSTRACT:

To revisit Bakhtin’s theory is very important when our goal is toget the meaning which always escapes from the tradition of just“one unique truth”. The identity of a thing is a contrasting variantof all other things that, under different conditions, could fulfil thesame condition in the existence. There are basic opposite powers inthe dialogue born in the social praxis, and the way we operate ourvalues is related to the way we articulate what we are in the middleof ideological possibilities.

KEY-WORDS: Meaning; identity; dialogue.

52 Ibidem, p. 195.