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A Electra de Eurípedes e a intertextualidade bakhtiniana Stanis David Lacowicz (UFPR/CAPES) Resumo: Em Electra, Eurípedes se volta ao ciclo dos atridas, recontando a história de Orestes e de sua irmã, que dá nome à peça, ou, especificamente, o retorno daquele para vingar a morte de seu pai, Agamêmnon. A base da qual os poetas dramáticos partem é o mito grego, de onde é selecionado um fragmento de história a ser modelado segundo a estrutura da tragédia, uma (re)organização do mito que o torna trágico, a fim de provocar no espectador temor e piedade. Conforme Burian (2010, p. 190-191), a forma como a tragédia se relaciona com o mito se apresenta no entrecruzamento de um relativamente pequeno número de conteúdos lendários (daí a recorrências de determinados ciclos e histórias de certas famílias gregas míticas) e do repertório de formas narrativas (padrões de enredos). Pode-se dizer, então, que essas obras dramáticas não se constituiriam isoladas entre si, fechadas, mas abrem-se umas para as outras, compartilhando temas, códigos, narrativas, em um jogo dialógico de contato e tensão, aproximação e repulsa. Partindo, então, da noção de intertextualidade, conforme apresentada por Kristeva (1974), a partir do dialogismo bakhtiniano, buscaremos apresentar uma leitura da peça Electra, de Eurípedes, em que se vislumbre essa abertura do texto dramático. Palavras-chave: Electra; Eurípedes; Sófocles; Ésquilo; intertextualidade. Abstract: In Electra, Euripides turns to the cycle of the Atreids, retelling the story of Orestes and his sister, which names the play; specifically, it tells his return home to revenge the death of his father, Agamemnon. The greek myth is the foundation from which the tragedians compose, from which they select a piece of story to be shaped according to the structure of tragedy. This comprises a reorganization of the myth that turns it tragical, in order to cause fear and pity. According to Burian (2010, p. 190-191), the tragedy relates to the myth through the intersection of a relatively small number of legendary subjects (which explains the recurrence of certain cycles and stories of mythical Greek families) and the limited repertoire of narrative forms (plot patterns). It is possible to state, thus, that this dramatic works were not constituted isolated, or closed, from themselves; on the contrary, they would open one to another, sharing themes, codes, narratives, in a dialogical play of contact and tension, approaching and refusal. Based on the notion of intertextuality, as it is elaborated by Kristeva (1974), from the Bakhtinian dialogism, we aim to propose in this article a reading of the euripidean Electra, in order to perceive the openness of the dramatic text. Keywords: Electra; Euripides; Sophocles; Aeschylus; intertextuality. A produção dramática grega do século V a.C se caracteriza pela padronização e rigidez dos modelos, com os poetas dramáticos buscando em fontes comuns os enredos, as formas narrativas, vinculando-se a uma maneira específica de arquitetar e desenvolver suas peças. Entretanto, em meio a estruturas pré-estabelecidas, os dramaturgos dispunham de um espaço para criação, de manejo do material que lhes era legado, sendo perceptível a variabilidade com

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Page 1: A Electra de Eurípedes e a intertextualidade bakhtiniana ... · A Electra de Eurípedes e a intertextualidade bakhtiniana Stanis David Lacowicz (UFPR/CAPES) Resumo: Em Electra, Eurípedes

A Electra de Eurípedes e a intertextualidade bakhtiniana

Stanis David Lacowicz (UFPR/CAPES)

Resumo: Em Electra, Eurípedes se volta ao ciclo dos atridas, recontando a história de Orestes

e de sua irmã, que dá nome à peça, ou, especificamente, o retorno daquele para vingar a morte

de seu pai, Agamêmnon. A base da qual os poetas dramáticos partem é o mito grego, de onde

é selecionado um fragmento de história a ser modelado segundo a estrutura da tragédia, uma

(re)organização do mito que o torna trágico, a fim de provocar no espectador temor e piedade.

Conforme Burian (2010, p. 190-191), a forma como a tragédia se relaciona com o mito se

apresenta no entrecruzamento de um relativamente pequeno número de conteúdos lendários

(daí a recorrências de determinados ciclos e histórias de certas famílias gregas míticas) e do

repertório de formas narrativas (padrões de enredos). Pode-se dizer, então, que essas obras

dramáticas não se constituiriam isoladas entre si, fechadas, mas abrem-se umas para as outras,

compartilhando temas, códigos, narrativas, em um jogo dialógico de contato e tensão,

aproximação e repulsa. Partindo, então, da noção de intertextualidade, conforme apresentada

por Kristeva (1974), a partir do dialogismo bakhtiniano, buscaremos apresentar uma leitura da

peça Electra, de Eurípedes, em que se vislumbre essa abertura do texto dramático.

Palavras-chave: Electra; Eurípedes; Sófocles; Ésquilo; intertextualidade.

Abstract: In Electra, Euripides turns to the cycle of the Atreids, retelling the story of Orestes

and his sister, which names the play; specifically, it tells his return home to revenge the death

of his father, Agamemnon. The greek myth is the foundation from which the tragedians

compose, from which they select a piece of story to be shaped according to the structure of

tragedy. This comprises a reorganization of the myth that turns it tragical, in order to cause fear

and pity. According to Burian (2010, p. 190-191), the tragedy relates to the myth through the

intersection of a relatively small number of legendary subjects (which explains the recurrence

of certain cycles and stories of mythical Greek families) and the limited repertoire of narrative

forms (plot patterns). It is possible to state, thus, that this dramatic works were not constituted

isolated, or closed, from themselves; on the contrary, they would open one to another,

sharing themes, codes, narratives, in a dialogical play of contact and tension, approaching and

refusal. Based on the notion of intertextuality, as it is elaborated by Kristeva (1974), from the

Bakhtinian dialogism, we aim to propose in this article a reading of the euripidean Electra, in

order to perceive the openness of the dramatic text.

Keywords: Electra; Euripides; Sophocles; Aeschylus; intertextuality.

A produção dramática grega do século V a.C se caracteriza pela padronização e rigidez

dos modelos, com os poetas dramáticos buscando em fontes comuns os enredos, as formas

narrativas, vinculando-se a uma maneira específica de arquitetar e desenvolver suas peças.

Entretanto, em meio a estruturas pré-estabelecidas, os dramaturgos dispunham de um espaço

para criação, de manejo do material que lhes era legado, sendo perceptível a variabilidade com

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que eles atualizavam mitos, histórias lendárias e procedimentos composicionais ao moldarem

as suas obras: “the plots of Greek tragedies are articulated through a limited but highly flexible

repertoire of formal units [...]”1 (BURIAN, 2010, p. 179); essa limitação, por sua vez, auxiliava

na criação de expectativas e possibilitava um direcionamento para as interpretações.

A base da qual os poetas dramáticos partem é o mito grego, de onde é selecionado um

fragmento de história a ser modelado segundo a estrutura da tragédia. O mito por si próprio

não é trágico, pois esse é um efeito que se consegue por meio de uma (re)organização do mito

que provocaria no espectador temor e piedade, conforme já colocado por Aristóteles. Conforme

Burian (2010, p. 191), a forma como a tragédia se relaciona com o mito se apresenta no

entrecruzamento de um relativamente pequeno número de conteúdos lendários (daí a

recorrências de determinados ciclos e histórias de certas famílias gregas míticas) e do repertório

de formas narrativas (padrões de enredos). Contudo, a produção tragediógrafa, ao utilizar-se

do mito, em retorno, o modifica, o transforma, atualizando-o em vista de questões culturais

contemporâneas ao poeta e aos espectadores, em vista de novas perspectivas sobre os assuntos

tratados. Desse modo, pode-se perceber como a instituição da tragédia não apenas deriva das

histórias míticas, mas participa, de maneira dialética, do que se chamaria o megatexto do mito

grego: “the repertoire of legendary subjects seen not as a corpus of discrete narratives, but as a

network of interconnections at every level, from overtly shared themes, codes, roles, and

sequences of events to the unconscious patterns or deep structures that generate them”2

(BURIAN, 2010, p. 191). As peças, então, não se constituiriam isoladas entre si, fechadas, mas

abrem-se umas para as outras, compartilhando temas, códigos, narrativas, em um jogo

dialógico de contato e tensão, aproximação e repulsa. Cada texto ou trilogia, entretanto, apesar

do constante diálogo que estabelecem entre si, diretamente ou por meio da recorrência ao

mesmo megatexto, constituiria um todo diegético (partindo da perspectiva de Genette sobre a

estrutura da narrativa literária), uma unidade, um universo ficcional que não seria o mesmo de

outros textos que reescreveriam o mesmo mito.

Nessa perspectiva, pode-se compreender a tragédia grega, em seu funcionamento, como

inerentemente intertextual, não apenas no sentido de influência entre autores, mas como

1 “Os enredos das tragédias Gregas se articulavam por meio de um repertório limitado, porém flexível, de unidades

formais [...]” (tradução nossa) 2 “O repertório de assuntos lendários visto não como um corpus de narrativas individuais, mas uma rede de

interconexões em todos os níveis, desde temas, códigos, personagens e sequências de eventos abertamente

compartilhados, até os padrões inconscientes e estruturas profundas que os geram” (tradução nossa)

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diálogo, interpenetração e embate que permite superar uma visão linear do tempo, comum a

certas formas de abordar a relação entre textos na história. Partindo, então, da noção de

intertextualidade, conforme apresentada por Kristeva (1974), a partir do dialogismo

bakhtiniano, buscaremos apresentar uma leitura da peça Electra, de Eurípedes, em que se

vislumbre essa abertura do texto dramático. A intertextualidade na tragédia grega se explicita

nessa recorrência de temas formais e míticos, ensejando uma circularidade e repetição que, no

entanto, produz algo novo:

If, from the point of view of its plots, Greek tragedy constitutes a grandiose

set of variations on a relatively few legendary and formal themes, forever

repeating but never the same, it follows that tragedy is not casually or

occasionally intertextual, but always and inherently so. Tragic praxis can be

seen as a complex manipulation of legendary matter and generic convention,

constituting elaborate networks of similarities and differences at every level

of organization3 (BURIAN, 2010, p. 179).

Ressalta-se, desse modo, a forma como a tragédia manipula referências e explicita sua

tessitura aberta, formando redes das quais o público participa durante o jogo que se constitui

entre a encenação e a contemplação da tragédia.

Ressalta-se que, pela noção de intertextualidade aqui utilizada, todo texto é percebido

como essencialmente dialógico e, portanto, intertextual. O texto é concebido, desse modo, por

meio da noção de enunciado concreto, uma sequência linguística que não existe isolada do

processo pelo qual ela surge, ou seja, a enunciação, a qual, por sua vez, corresponde a uma

realização histórica e social (VOLOSHINOV apud BRAIT, 2005, p. 68). Segundo Kristeva,

pela teoria bakhtiniana, a palavra literária é vista como um entrecruzamento de superfícies

textuais, o texto é situado na história e na sociedade, percebidos também como textos nos quais

o autor se insere, para lê-los e reescrevê-los (KRISTEVA, 1974, p. 62). Por meio do

dialogismo, então, a palavra se definiria na relação entre três elementos, o sujeito da escritura

e seu destinatário, o texto e os textos anteriores ou contemporâneos. Desse modo, pode-se

afirmar que “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e

transformação de um outro texto. (KRISTEVA, 1974, p. 64). Em nosso trabalho, focalizaremos

3 “Se, do ponto de vista de seus enredos, a tragédia grega constitui um grandioso conjunto de variações sobre um

relativamente poucos temas formais e lendários, eternamente se repetindo, mas nunca o mesmo, segue-se que a

tragédia não é intertextual casual ou ocasionalmente, mas sempre e inerentemente. A práxis trágica pode ser vista

como uma complexa manipulação de assuntos lendários e convenções de gênero, constituindo redes elaboradas

de similaridades e diferenças em cada nível de organização” (tradução nossa)

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na Electra os pontos em que esse jogo intertextual se faz mais autoconsciente, reescrevendo a

tradição e textos anteriores ao modo de uma espécie de citação e que, possivelmente, eram

percebidos e tomados como uma base para a compreensão pelo seu público dos sentidos que a

peça buscaria veicular.

Dos três principais tragediógrafos gregos, do século V a.C., Eurípedes era o mais novo

e considerado o mais ousado na maneira e nas escolhas que efetuava em sua reconstrução das

histórias míticas, buscando (re)moldá-las segundo a visão que possuía sobre o trágico. Em

Electra, ele se volta ao ciclo dos atridas, recontando a história de Orestes e de sua irmã, que dá

nome à peça, ou, especificamente, o retorno daquele para vingar a morte de seu pai,

Agamêmnon; como é frequentemente lembrado, tem-se nessa peça a encenação de um ciclo

mítico já tratado em peças de outros dois autores gregos: a Electra, de Sófocles, e Coéforas, de

Ésquilo (segunda parte da trilogia Oresteia). A versão de Ésquilo é tida como a mais antiga e,

desse modo, acaba servindo a Eurípedes, de maneira mais explícita, como um texto com o qual

se estabelece um diálogo paródico e que, conforme apontaremos, marca não apenas uma

possível crítica, mas a maneira diferente pela qual as personagens são construídas segundo

diferentes visões sobre o mito. As três tragédias, por sua vez, estabelecem um diálogo com

aquele megatexto do mito grego e, desse modo, também entre si, não ao modo da influência,

mas por um viés interacional que se consolida, por outro lado, na perspectiva do leitor moderno.

Assim, no caso de Sófocles e Eurípedes, dos quais não há certeza sobre a qual Electra teria sido

encenada antes, essa noção de intertextualidade permite um olhar que confronte os dois textos

sem a necessidade de se procurar uma referência explícita que um faça ao outro, pois a relação

é garantida pela própria concepção de texto, sem contar o contato indireto por meio do mito.

Um dos primeiros pontos que se pode ressaltar acerca da abertura intertextual da Electra

euripediana, mas também da relação entre as peças, está na construção da personagem de

Orestes. Logo após a introdução da peça de Eurípedes, a cena com Electra e seu marido (um

trabalhador comum, plebeu), o filho de Agamemnon aparece em cena, o dia ainda por

amanhecer, escondido com seu amigo Pílades, comentando que ainda não havia ultrapassado

os muros da cidade. Recém-chegado de seu exílio, sua única ação havia sido, na noite anterior,

visitar o túmulo de seu pai e lhe render homenagens; busca, então, por Electra, que viveria

longe do palácio, expressando também que fugiria rápido caso fosse reconhecido. Nas

Coéforas, de Ésquilo, a oferenda da mecha de cabelos abre a peça; podemos ver Orestes os

cortando e ofertando em memória de seu pai:

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Desejo consagrar a Ínaco esta mecha/ de meus cabelos, pois ele cuidou de

mim/em minha infância; está segunda mecha, pai,/ deponho aqui como

demonstração de luto.../ Não estive presente para lamentar/ a tua morte; não

ergui as minhas mãos/ na hora em que teu corpo foi posto no túmulo...

(ÉSQUILO, 1991, p. 91: 8-14).

Esse texto focaliza, desde o princípio, a determinação de Orestes frente ao seu dever de

vingar a morte de seu pai, matando sua mãe e Egisto, conforme exigido pelo deus Apolo, mas

em consonância com a própria vontade da personagem. Em Eurípedes a peça se inicia

focalizando a situação de Electra, forçada a se casar com um camponês pobre, ressaltando a

sua desventura; seu irmão, por outro lado, aparece escondido, contrastando com a imagem do

herói destemido. Aqui, ele apenas relata a homenagem no túmulo de seu pai, explicitando seu

desejo de encontrar com a irmã para dar seguimento à vingança. Se por um lado a excessiva

cautela e prorrogação da vingança (de modo semelhante ao que viria a ser feito com o Hamlet,

de Shakespeare) poderiam significar uma personagem covarde, sobretudo em contraste com a

versões de Sófocles e de Ésquilo, é possível também atribuir essa postura da personagem à

precaução, vinculada a certa racionalização que a obra apresenta sobre as dificuldades de se

entrar no Palácio e matar Egisto (em tensão com as outras versões), mas também alinhando-se

ao modo como Eurípedes pretendia focalizar o mito. Conforme se pode perceber pela cena de

reconhecimento entre Orestes e Electra, que analisaremos no decorrer do texto, o modelo de

herói ao qual Orestes retoma, nessa peça, estaria mais para um Ulisses, cuidadoso, astuto mas

ardiloso, ocultando sua identidade quando preciso.

O trecho final dessa primeira fala do Orestes, de Eurípedes, também serve para reforçar

a construção da imagem de Electra; ele propõe ao seu amigo que busquem se informar sobre a

situação de sua irmã: “Vejo ali uma criatura que conduz à cabeça uma vasilha d´água. Sentemo-

nos por aqui mesmo, Pílades, e tratemos de saber, por esta escrava, se é possível apurar alguma

notícia concernente aos fins que me trouxeram a esta terra” (EURÍPEDES, 2005, p. 9-10). Os

espectadores sabem que, possivelmente, trata-se de Electra, pois no início da peça ela havia

discutido com o camponês com quem se casara sobre os deveres dela enquanto sua esposa;

resignada, ela afirmava que deveria ir buscar água para cumprir o seu papel, embora aquele se

esforçasse para protege-la em sua nobreza. Se a afirmação de que se deteria em tarefas da vida

mais simples não tivesse tido impacto suficiente no público para perceber a caída social que a

personagem havia sofrido, a fala de Orestes serve para selar o rebaixamento ao qual Electra

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fora submetida por sua mãe e Egisto, comparando-a uma jovem escrava. Há certa ironia

também nesse não reconhecimento, reforçando essa distância entre a aparência e quem a

personagem realmente é, o que se aplicaria também ao próprio Orestes na sequência do texto.

A Electra sofocleana apresenta uma persistência heroica no lamento, em chorar de

modo incessante a morte de seu pai, a traição de sua mãe, contrariando continuamente os ditos

do Coro para que observe a justa medida. Como apresenta Vieira (2009) as personagens de

Sófocles são marcadas pela intensidade das emoções, mais do que a complexidade,

pressupondo uma visão heroica do mundo e, desse modo, recorrendo ao modelo de herói

homérico (VIEIRA, 2009, p. 10). Em Eurípedes, por sua vez, há o lamento, mas ele parece

pender mais entre a tristeza pela morte do pai e a aflição pela condição a que foi submetida:

“Pobre de mim! A que triste condição me reduziu a sorte!” (EURÍPEDES, p. 10); ressaltando

sua aparência decadente, “Vede o estado de meus cabelos e de minhas vestes. Por acaso

condizem com a situação de uma princesa? Ou se assemelham aos de uma troiana escrava que

na guerra tenha caído prisioneira de meu pai?” (EURÍPEDES, 2005, p. 12), uma possível

referência ao que ocorre com a personagem Cassandra, profetiza e filha do rei Priamo de Tróia

e que, como é encenado em Agamemnon, de Ésquilo (primeira parte da Oresteia), aparece

como escrava troiana de quem o rei havia se apoderado. Nisso também se ressalta a ideia de

trágico de Eurípedes, de que a sina dos ganhadores não é mais feliz que a dos perdedores: “It

is part of his tragic idea that the lot of the victors is no happier and much less glorious than that

of the conquered; that Troy not only has more honour than Greece, but also less suffering”4

(KITTO, 2003, p. 256). Em todo caso, a Electra euripediana, ainda que se aproxime da

sofocleana no objeto de suas lamentações, parece trocar a intensidade daquela por uma

sobreposição de preocupações, uma certa desarmonia e hesitação entre o drama mais individual

(a condição de princesa decaída) e aquele que a conecta à história de sua família e da cidade (a

traição de sua mãe e a necessidade de vingar a morte do pai, o rei, restituindo o trono a quem

ele é de direito).

O Orestes de Eurípedes, como colocado, apresenta-se de maneira mais furtiva que o das

outras versões, mantendo oculta a sua identidade ainda quando aborda Electra, já sabendo se

tratar de sua irmã por tê-la ouvido lamentar-se de sua situação (em cena que também serve para

4 “É parte da ideia trágica de Eurípedes que a sina dos vitoriosos não é mais feliz e é muito menos gloriosa do que

a dos conquistados; que Tróia não apenas é mais honrosa que Grécia, mas também menos desafortunada”

(tradução nossa)

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retomar a sua história). Ao se aproximar de sua irmã, provoca grande receio nela, por se

tratarem de estranhos que, estando escondidos, surgem repentinamente para falar com ela,

possivelmente mal-intencionados: “Aproximam-se de nós vultos suspeitos, que parecem sair

de algum esconderijo. Fujamos; vós, por este atalho e eu, no rumo de minha casa, para evitar

estes malfeitores”; Orestes, por sua vez, a interpela, “Não fujas, criatura; nada temas de mim”,

ao que é respondido por Electra, “Ó Apolo! eu te peço! Faze com que eu não morra!”. A opinião

de Orestes sobre a irmã, na cena em que a compara a uma escrava é espelhada na forma como

Electra percebe Orestes, como um possível malfeitor; a ironia daquela cena tem continuidade

aqui, com um toque de humor que se verifica na forma como Eurípedes busca construir a reação

das personagens em determinadas situações. Nesse sentido, a própria frase “nada temas de

mim!”, vinda de alguém suspeito, carregaria um tom de humor ao ressaltar o temor de Electra,

expresso no apelo ao deus. Para o leitor moderno, isso poderia se resumir a uma abordagem

mais realista da maneira como os personagens agiriam frente ao que encontram; contudo, no

conjunto da peça, isso serve a um propósito mais amplo, quer seja ressaltar o prosaísmo da

condição atual de Electra, seus receios frente a ausência de quem a protegesse; a postura de

Orestes, mais esquivo e hesitante, prorrogando a sua ação vingativa; a visão do trágico de

Eurípedes, por meio da qual os protagonistas não concentram em si a tragicidade da peça, mas

em sua incompletude, em seus níveis sobrepostos (um princípio de visão do humano com uma

maior complexidade), participam de algo que vai além de suas histórias, de suas trajetórias.

Com relação ao reconhecimento, a anagnórisis, temos em Eurípedes uma referência

clara a Ésquilo. Segundo Burian, as três peças que envolvem Electra se constroem em torno do

padrão de história chamado “Retribution pattern”, a punição por ofensas passadas (BURIAN,

2010, p. 187), bem como apresenta uma variante do padrão de enredos “return-recognition”,

no caso, o reconhecimento do outro (BURIAN, 2010, p. 189); nesse sentido, os três textos

retomam um motivo comum na tradição grega. Nas Coéforas, o reconhecimento de Electra

acerca da identidade de seu irmão, provocando-lhe alívio porque o vingador dos atridas teria

retornado do exílio, ocorre em três partes. O nome da peça situa o momento em que se inicia o

processo da anagnórisis: as coéforas seriam as que levam libações, ou oferendas, derramando

líquidos sobre o túmulo do morto, em sua memória e honrando a um deus.

Na peça, o Coro das coéforas é acompanhado por Electra, na cena em que efetuarão o

ritual. Finalizado o rito, Electra percebe os cabelos deixados por Orestes sobre o túmulo,

conforme a cena inicial da peça. Surpresa, começa a discutir com o Coro sobre a possível

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identidade de quem realizara tal oferenda: ela só poderia ter sido realizada pela própria Electra,

já que os outros, sendo inimigos, não haveriam de fazê-lo; sendo semelhantes aos cabelos dela,

deduz-se, então, que seriam de Orestes. O coro questiona como ele teria ousado vir ao local,

levando Electra a conjecturar que ele apenas havia enviado a oferta por meio de outra pessoa,

sendo talvez um sinal de que ele de fato jamais voltaria àqueles sítios. Lamentando a dúvida,

encontra outro vestígio a dar-lhe maior certeza sobre o que havia se passado: eram pegadas,

passos que considera iguais aos seus:

Eis aqui um segundo indício: estas pegadas/ parecidas com as minhas! Sim,

aqui estão/ duas marcas de pés! As dele, com certeza,/ e as outras de algum

companheiro de viagem!/ Os calcanhares e os contornos de seus pés/ se

assemelham aos meus em suas proporções! /Domina-me a aflição e me

perturba a mente! (ÉSQUILO, 1994, p.101: 270-273).

É perceptível nessa cena a forma como o tragediógrafo constrói a personagem de

Electra como marcada pelo sofrimento: ela não consegue acreditar nos sinais que lhe são

concedidos acerca da chegada de seu irmão, visto como o seu salvador; ela está aflita com os

sinais, pois teme que a sua delicada esperança, na beira do precipício, possa novamente ser

rompida. Na sequência, Orestes entra em cena e se apresenta a Electra, que desconfia, não

apenas ser alguém a enganando, como da própria possibilidade de terem sido atendidas as suas

preces. A isso, Orestes dá o terceiro sinal para que ela pudesse reconhecê-lo:

Embora me contemples não me reconheces, /mas há bem pouco tempo à vista

dessa mecha/ de meus cabelos, cortados como um sinal/ do luto que me pesa

sobre o coração,/ e quando ponderavas sobre essas pegadas,/ teu pensamento

criou asas e julgaste/ que me tinhas à tua frente! Põe a mecha/ de meus cabelos

no lugar de onde a cortei/e – de teu irmão e parecida com as tuas – e vê como

elas coincidem com as minhas!/ Observa este bordado, obra de tuas mãos,/ os

pontos das agulhas, as cenas de caça/ que ainda podes ver perfeitamente,

irmã!”(ÉSQUILO, 1994, p. 102: 290-299).

Orestes apela para a memória afetiva de Eléctra, retomando e reforçando a própria

euforia dela ao ver as mechas de cabelo e, na sequência, apresentando o presente que ela havia

lhe dado. Tratava-se de um pequeno véu, bordado por Electra e dado por ela ao seu irmão

bebê, algo que ele trazia sempre consigo, possivelmente como a única lembrança de sua

família, e também da vingança que precisaria ser consumada.

Em Euripedes, após Orestes interpelar Electra, ele se apresenta como alguém que traz

notícias do irmão dela (justificando estar com uma espada desembainhada). Conta-lhe, então,

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que ele está vivo, alimentado, mas o desterro lhe havia aproximado da indigência. Busca, desse

maneira, conseguir com a sua irmã mais detalhes sobre a condição dela: fica sabendo de seu

casamento com o camponês, mas que ele jamais a tocara (em respeito à sua nobreza e ao fato

de ela ter sido forçada ao casamento), bem como que a união havia sido obrigada por Egisto

para que, caso ela tivesse filhos, não fossem nobres e, dessa maneira, segundo é colocado, não

viessem a se tornar potenciais vingadores da morte de Agamêmnon. Orestes ainda questiona

Electra sobre o que ela esperaria fosse feito quando seu irmão voltasse: a morte dos assassinos

de seu pai, tarefa na qual ela auxiliaria o irmão. Na sequência, ela ressalta que não reconheceria

o seu Orestes, caso o visse, pois haviam sido separados quando eram ambos ainda infantes;

apenas o mestre do pai deles, que havia salvado o bebê e o levado consigo para outro sítio,

seria capaz de reconhecer o filho de Agamêmnon.

A revelação só se dará na parte posterior do texto, após o canto coral, com a chegada

do referido velho, que passa a analisar pistas de uma possível presença de Orestes na região.

Além de trazer alguns produtos para Electra, estaria com os olhos úmidos de lágrimas,

conforme comenta (uma vez que as máscaras utilizadas na tragédia não permitiriam perceber

essas nuances de expressão). Revela o motivo das lágrimas: tendo passado pelo túmulo

abandonado de Agamemnon, fez uma rápida libação e, em seguida, percebeu resquícios de

uma ovelha sacrificada e madeixas de cabelo. Sem possuir dúvidas, afirma a Electra que não

poderiam ser cabelos de ninguém mais que Orestes: “que teria vindo secretamente honrar o

jazigo de teu infeliz genitor. Vê estes cabelos; compara-os aos teus, e notarás que tuas madeixas

têm a mesma cor. Com efeito, por via de regra se assemelham aqueles que receberam o sangue

do mesmo pai” (EURÍPEDES, 2005, p. 34). A esse primeiro sinal, igual ao que aparece em

Ésquilo, a Eléctra euripediana responde com descrença e sarcasmo, afirmando que o que era

dito pelo velho não era digno de um homem prudente; primeiro porque, na sua visão, Orestes

não andaria escondido pela região, com medo de Egisto; segundo, porque os cabelos que o

velho mostrava eram de um homem “exercitado na palestra”, enquanto os dela eram finos e

lisos (além de que cabelos semelhantes poderiam ser vistos entre não parentes).

O velho, contudo, não desiste de sua posição e chama Electra para verificar supostas

marcas de sandálias, para comparar com as delas. Em resposta, ela apenas questiona como tais

pegadas poderiam ficar em um chão pedregoso, sem contar que os pés masculinos seriam

maiores. Como a pista anterior, é estabelecido um paralelismo com as Coéforas, retomando o

mesmo sinal que aquela Electra havia percebido para reconhecer a presença de Orestes, mas

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aqui sendo parodiado e ironizado. Por fim, o velho, ainda firme em sua opinião, questiona

Electra se ela não teria como reconhecer o irmão, por exemplo, “pela túnica que teceste, e na

qual eu o salvei da morte?” (EURÍPEDES, 2005, p. 35), o que seria, em Ésquilo, a terceira

pista, utilizada por aquele Orestes para revelar-se àquela Electra. O jogo intertextual nesse

trecho é de tal modo explícito que parece romper o tecido ficcional da peça. Conforme assevera

Kitto, o excessivo cuidado de Orestes em não ser reconhecido possibilita a eficiência do efeito

de ironia dessa cena: “Electra’s tirades against the murderers, the skit on Aeschylus, and the

clever variant on recognition-scenes, whereby one of the parties, trying to avoid recognition,

is unwillingly detected by a third”5 (KITTO, 2003, p. 339-340). Desse modo, no jogo com a

variação da cena de reconhecimento, no trecho satírico a partir de Ésquilo, há uma preocupação

sobretudo com os efeitos de cena, ao qual se subordinariam as caracterizações (ainda que

fossem próximas, vividas e consistentes); ao ter o efeito como um fim em si mesmo, expressaria

uma postura dramática que aproximaria o texto das tragicomédias (KITTO, 2003, p. 340). Essa

postura sinaliza a própria abertura do texto euripediano, em que a encenação se torna objeto da

outra encenação, espelhamento que rompe as fronteiras do universo da peça e da representação

mimética em sua feição tradicional. Por meio desse recurso ao metateatro, a peça também

explora, de modo intertextual, a referência, a ser ativada pela audiência, de experiências teatrais

anteriores (BURIAN, 2010, p. 195).

Electra, em resposta ao velho, apenas o lembra que ela e o irmão eram muito pequenos

quando foram separados, não podendo ela ter-lhe entregue tal presente, muito menos ele o ter

mantido enquanto homem adulto. O velho, por sua vez, redireciona a conversa para os hospedes

de Electra (Orestes e Pílades), aos quais gostaria de fazer perguntas sobre o pai dela. Ao

chegarem, Electra apresenta o velho a Orestes; aquele, entretanto, não para de mirá-lo,

causando estranheza nos presentes. Então, ele afirma que Electra deveria dar graças aos deuses,

por que ela havia recebido um dádiva, a frente de ambos estaria “o mais querido dos homens!”

(EURÍPEDES, 2005, p. 38). Electra, sem motivos para crer, lamenta que o velho

provavelmente não estaria bem com a mente, ele insiste e ela pede por um indício para tal

reconhecimento, que o velho revela: “Pela pequenina cicatriz na pálpebra, que ele fez, um dia,

em casa de teu pai, quando perseguido contigo um veadinho, caiu e machucou-se”

5 As diatribes de Electra contra os assassinos, a sátira sobre Ésquilo e a habilidosa variante das cenas de

reconhecimento, pela qual uma das partes, tentando evitar o reconhecimento, é relutantemente detectada por um

terceiro” (tradução nossa)

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(EURÍPEDES, 2005, p. 39). Por fim, eles se reconhecem e ela, já convencida, lhe faz a

derradeira pergunta, “És tu, meu Orestes?”, sendo respondida, “Sim... o teu vingador... se

consegui recolher os laços que atirarei... Mas, tenhamos esperança: seria preciso admitir que

não existem deuses, se o crime suplantar sempre a justiça” (EURÍPEDES, 2005, p. 40).

Conforme Kitto coloca, a ironia deve ser vista como parte da atitude de Eurípedes acerca de

sua forma de construir as personagens (2003, p. 254), que se aproximaria do que chamaríamos

realismo, mas também de uma certa indiferença para com eles. Nesse sentido, não apenas a

celebração do reencontro se mostra, de maneira irônica, sem a exaltação que exigiria, mas

também a personagem de Orestes é novamente mostrada em sua hesitação, inclusive sugerindo

uma dúvida acerca dos deuses (que é retomada depois quando ele, devendo se preparar para

matar sua mãe, se questiona se não teria sido guiado por um falso deus).

De certo modo, conforme mencionamos anteriormente, a personagem de Orestes parece

retomar o comportamento de Ulisses, no que diz respeito à atitude furtiva e à questão do

disfarce, utilizado pelo herói da guerra de Tróia tanto para espionar a cidade que seria atacada,

quanto quando volta a sua terra natal, disfarçando-se de mendigo. Também Ulisses é

reconhecido por uma cicatriz, no caso em sua perna, ao ter os pés lavados pela governanta da

casa de Penélope, em sinal de hospitalidade. Cabe mencionar que a questão da identidade e do

disfarce é também um recurso utilizado nas duas outras peças, valendo nelas também esse

possível diálogo com o Odisseu; nelas, entretanto, Orestes revela sua identidade mais

prontamente a sua irmã, além de mostra-se decidido frente a seu destino, mais firme em seguir

os desígnios do deus Apolo.

Conforme buscamos demarcar em nossa análise, o texto de Eurípedes se constrói de

modo intensamente intertextual, inclusive manipulando o roteiro de modo a explicitar o diálogo

com outros textos, promovendo uma espécie de autoreferência metaficcional, fazendo emerso

o seu caráter textual. Hall comenta que a tragédia estaria embebida em polifonia, em uma

conjunção de vozes: “Tragedy consists of polyphony and antiphony. No genre is so definitively

dialogic, nor conceals the authorial persona to such an extreme degree” (HALL, 2010, p. 119)6.

A forma multivocal da tragédia, permitindo vários personagens a falarem e a discordarem uns

dos outros pode ser vista como um reflexo do desenvolvimento da retórica na Atenas

democrática (HALL, 2010, p. 118). Essa multiplicidade de vozes, essa polifonia, também pode

6 “A Tragédia consiste em polifonia e antifonia. Nenhum gênero é tão definitivamente dialógico, nem oculta a

persona autoral a tal extremo” (tradução nossa)

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ser percebida nessa abertura que o texto realiza frente a outros textos, não apenas os textos

literários anteriores, mas também aos modos de produção dramática, aos textos não-literários,

de ampla circulação social, como o próprio discurso filosófico, que se enleia na forma como se

constrói o discurso da obra, a materialidade de sua linguagem.

Sobre tais questões, Eco comenta que “os livros falam sempre de outros livros e toda

história conta uma história já contada” (1985, p. 20), ou seja, há um diálogo incessante entre

textos, que se estabelece pela própria natureza da linguagem (dentro da biblioteca os livros

conversam entre si, comenta a personagem Adso em O nome da Rosa, de Eco). Ainda que não

falemos de livros, mas de peças teatrais (cuja materialidade plena existia apenas na encenação,

associada à Tragédia como uma instituição), o resquício textual que nos foi legado, quase uma

relíquia do que um dia fora essa arte, permite-nos perceber esse diálogo incessante entre os

textos, evocando essa tensão, esse embate, mas também certa solidariedade. Além disso, eles

participam da grande tessitura do megatexto do mito grego,

A Electra, de Eurípedes, promove uma releitura e atualização do mito, conforme as

especificidades do pensamento de seu autor, e resgata de modo irônico e paródico a versão de

Ésquilo. Promove conscientemente, então, um:

trabalho de assimilação e de transformação que caracteriza todo o e qualquer

processo intertextual. As obras literárias nunca são simples memórias –

reescrevem as suas lembranças, influenciam os seus precursores, como diria

Borges. O olhar intertextual é então um olhar crítico: é isso que o define.

(JENNY, 1979, p. 10).

O texto anterior é assimilado e transformado, sobre ele se projeta um olhar crítico,

demolidor. Mas essa retomada, contudo, não encontra jamais um terreno passivo, há uma

tensão e a ironia, de certo modo, possui um teor de consagração, de reescritura de uma memória

e de sua, por isso mesmo, manutenção. O velho pode ter parecido tolo e senil em suas

considerações a partir dos três sinais, mas no final, como afirma Kitto (2003, p. 340) e como o

próprio Eurípedes parece ter consciência, ele não deixava de, ironicamente, estar certo.

Referências bibliográficas

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