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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras A CONSTRUÇÃO/INTERPRETAÇÃO DO REFERENTE “ESPETÁCULO POLÍTICO” NO DISCURSO POLÍTICO-PRESIDENCIAL DE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Edna Aparecida Lisboa Soares Belo Horizonte – MG 2008

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Page 1: A CONSTRUÇÃO/INTERPRETAÇÃO DO REFERENTE ...discurso político-presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva / Edna Aparecida Lisboa Soares. – Belo Horizonte, 2008. 274f. Orientador:

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras

A CONSTRUÇÃO/INTERPRETAÇÃO DO REFERENTE “ESPETÁCULO POLÍTICO” NO

DISCURSO POLÍTICO-PRESIDENCIAL DE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Edna Aparecida Lisboa Soares

Belo Horizonte – MG

2008

Page 2: A CONSTRUÇÃO/INTERPRETAÇÃO DO REFERENTE ...discurso político-presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva / Edna Aparecida Lisboa Soares. – Belo Horizonte, 2008. 274f. Orientador:

Edna Aparecida Lisboa Soares

A CONSTRUÇÃO/INTERPRETAÇÃO DO

REFERENTE “ESPETÁCULO POLÍTICO” NO

DISCURSO POLÍTICO-PRESIDENCIAL DE LUIZ

INÁCIO LULA DA SILVA

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras, na

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –

PUCMINAS, como requisito parcial à obtenção de título de

Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa.

Área de concentração: Lingüística e Língua Portuguesa.

Linha de Pesquisa: Enunciação e Processo Discursivo.

Orientador: Prof. Dr. Hugo Mari.

Belo Horizonte – MG 2008

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Soares, Edna Aparecida Lisboa

S676c A construção/interpretação do referente “espetáculo político” no discurso político-presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva / Edna Aparecida Lisboa Soares. – Belo Horizonte, 2008. 274f.

Orientador: Prof. Dr. Hugo Mari Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

Departamento de Letras. Bibliografia. 1. Silva, Luiz Inácio Lula da – Crítica, interpretação. 2. Análise do

discurso. I. Mari, Hugo. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Departamento de Letras. III. Título.

CDU: 800.852

Edna Aparecida Lisboa Soares A construção/interpretação do referente “espetáculo político” no discurso político-presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva

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Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMINAS, como requisito parcial à obtenção de título de Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa.

Belo Horizonte, 2008

Hugo Mari (Orientador) - PUCMinas

Paulo Henrique Aguiar Mendes – PUC Minas

Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes – PUC Minas

Guilherme Jorge de Rezende – Universidade Federal de São João Del-Rei

Virgínia Beatriz Baesse Abraão – Universidade Federal do Espírito Santo

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho, com eterna gratidão, à minha

mãe: exemplo de força, dedicação, otimismo,

entusiasmo, perseverança e determinação;

incansável incentivadora de todos os meus mais

caros sonhos.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, carinhosamente, aos meus filhos, Rômulo e Túlio, e ao meu esposo, Jurandir, por

permanecerem presentes ao longo de todo o período em que estive ausente.

Agradeço, especialmente, aos meus mestres: àqueles que, no universo acadêmico, fizeram

despertar em mim o desejo incessante e inquieto pelo conhecimento. E, assim, incentivaram-

me a buscar, a questionar, a duvidar, a descobrir, a sentir, a conhecer, a (re)inventar... a,

enfim, observar e buscar compreender o mundo a partir de infindáveis, distintas e

complementares perspectivas.

Agradeço, também, de modo especial, aos meus alunos de ontem, de hoje e de amanhã, os

quais constituem singulares incentivadores da minha incessante e incansável busca pelo

conhecimento.

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela

concessão de bolsa de estudos, o que permitiu a realização deste trabalho de pesquisa.

Agradeço a todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste

trabalho.

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AGRADECIMENTO ESPECIAL

Agradeço, com distinção, ao Professor Doutor Hugo

Mari, pela orientação criteriosa, respeitosa, segura

e competente.

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... para conhecer bem a natureza do povo, é

necessário ser príncipe, para conhecer a natureza

do príncipe, é necessário pertencer ao povo.

Maquiavel

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RESUMO

O estudo aqui proposto constitui a referenciação sob uma perspectiva lingüístico-

discursiva, a fim de que se busque apreender tal fenômeno de forma abrangente. Tomamos

como objeto desse estudo a construção/interpretação do referente “espetáculo político” no

discurso político-presidencial, a partir da observação dos dois seguintes pronunciamentos

oficiais proferidos por Luiz Inácio Lula da Silva: (i) o pronunciamento que registra a tomada

de posse da presidência da República por parte de Lula, em 1º de janeiro de 2003 e (ii) o

pronunciamento que registra a sua recondução ao poder, em 1º de janeiro de 2007.

Para tal, organizamos o texto em três partes. Primeiramente, apresentaremos o

fenômeno da referenciação a partir de duas linhas de pensamento distintas, mas

complementares: a lógico-filosófica e a lingüístico-discursiva. Em seguida, discutiremos o

discurso político segundo uma perspectiva sistêmica, buscando, assim, examiná-lo em sua

totalidade. E, por último, procederemos às análises dos corpora selecionados, procurando

apreender o fenômeno da referenciação, por um lado, segundo uma dimensão lingüística, a

partir das seguintes categorias e dos respectivos estudiosos: pessoa e tempo (Benveniste),

indicadores para referência (Ducrot) e, por outro lado, segundo uma dimensão discursiva, a

partir das seguintes categorias e dos respectivos estudiosos: formação discursiva (Foucault),

interdiscurso (Maingueneau), gênero discursivo (Berrendonner) e, finalmente, a construção

referencial do espetáculo (Reboul e Mondada).

Objetivamos, desse modo, mostrar que o processo de intrepretação/construção de

objetos discursivos se realiza lingüística e discursivamente a partir de diferentes categorias

que não ocorrem desvinculadas umas das outras, mas, sim, de maneira integrada, em íntima

interação.

Expressões-chave: referenciação, referente “espetáculo político”, perspectiva

lingüístico-discursiva, discurso político-presidencial, Luiz Inácio Lula da Silva.

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RÉSUMÉ

On propose, dans ce travail, un étude à sujet de la réferentiation sous la perspective

linguistique et discursive, en cherchant l’appréhension de ce phénomène d’une façon

étendue. On a pris comme object de cet étude la construction/interprétation du réferent “le

spectacle politique” dans le discours politique-présidentiel, selon l’analyse de deux pièces

oratoires officielles proférees par le Président Luiz Inácio Lula da Silva: (i) la pièce

prononcée pendant la cérimonie de prise de possession comme président, au premier janvier,

2003; (ii) la pièce prononcée au premier, janvier, 2007, quand le Président a été réconduit au

charge, après sa réelection.

On a disposé le texte en trois moments. Avant tout, on présente le phénomène de la

réferentiation sous deux lignes de pensée différentes, mais complémentaires: la logique-

philosophique et la linguistique-discoursive. Tout de suite, on aborde la question du discours

politique, selon une perspective semantique, pour l’analyser d’une façon intégrale.

Finalement, on analysera les corpora choisis, en cherchant capter le phénomène de la

réferentiation, selon, d’un côté, l’aspect de la dimension linguistique, surtout selon les

catégories et les auteurs qu’on rapporte: personne et temps (Benveniste), indicateurs de

réference (Ducrot) et, dans un autre côté, selon une dimension discoursive: formation

discoursive (Foucault), interdiscours (Maingueneau), le genre discoursif (Berrendonner) e,

finalement, la construction referenciel du spectacle (Reboul e Mondada).

On se propose, alors, à démonstrer que le procès d’intérpretation/construction des

objects discoursifs se rend effectif , aussi linguistique que discoursivement, à partir de

différentes catégories qui ne peuvent pas survenir sans lien une de l’autre, Au contraire, elles

surviennent d’une façon intégrée, avec interaction intime.

Mots-clés: réferentiation, réferent “spectacle politique”, perspective linguistique et

discoursive, discours politique-présidentiel, Luiz Inácio Lula da Silva

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ABSTRACT

This study constitutes to reference under the linguistic discursive perspective, in order

that one seeks to learn such phenomenon in a broad way. We took as object of this study the

construction/ interpretation of the referenced “political spectacle” in the political presidential

discourse, from the observation of the two following official pronunciations conducted by

Luiz Inacio Lula da Silva: (i) the pronunciation that registers the assumption of the Presidency

of the Republic by Lula, in January 1st, 2003 and (ii) the pronunciation that registers his re-

conduction to the power, in January 1st, 2007.

For that, we organized the text in three parts. First, we presented the phenomenon of to

reference from two distinct, but complementary, lines of thought: the logical philosophic and

the linguistic discursive. In the sequence, we discuss the political discourse according to a

systemic perspective, seeking, so, to examine it in its totality. At last, we proceed the analysis

of the selected corpora, seeking to learn the phenomenon of to reference, by one side,

according to a linguistic dimension, from the following categories and respective researchers:

person and time (Benveniste), indicators for references (Ducrot) and, by other side, according

to a discursive dimension, from the following categories and respective researchers:

discursive formation (Foucault), inter-discourse (Maingueneau), discursive gender

(Berrendonner) and, finally, the reference construction of the spectacle (Reboul e Mondada).

We intend, this way, to show that the process of interpretation/ construction of

discursive objects takes place linguistically and discursively from the different categories that

don’t occur one apart of the others, but in fact in an integrated way, in intimate interaction.

Key-expressions: to reference, referenced “political spectacle”, linguistic discursive

perspective, political presidential discourse, Luiz Inácio Lula da Silva

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LISTA

FIGURA 1 - CHARGE - FOLHA DE SÃO PAULO, 22/05/2003 ........................................................ 45

FIGURA 2 - MODELO INTERLOCUTÓRIO TRIÁDICO POR BERRENDONNER ................................. 119

FIGURA 3 - DIAGRAMA DO DISCURSO POLÍTICO ...................................................................... 126

FIGURA 4 - CHARGE - FOLHA DE SÃO PAULO, 24/03/05 .......................................................... 132

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 162 O FENÔMENO DA REFERÊNCIA NA LINHA DO TEMPO ......................... 232.1 O pensamento lógico-filosófico .............................................................................. 232.1.1 NA IDADE ANTIGA: SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES. ......................................... 23

2.1.2 NA IDADE MÉDIA: A TEORIA DAS PROPRIETATES TERMINORUM ................................ 25

2.1.3 NA IDADE MODERNA: DESCARTES ............................................................................ 28

2.1.4 NA IDADE CONTEMPORÂNEA: FREGE ........................................................................ 30

2.1.5 CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES ......................................................................... 34

2.2 O pensamento lingüístico-discursivo .................................................................... 352.2.1 BAKTHIN/VOLOCHÍNOV: O PROBLEMA DA SIGNIFICAÇÃO .......................................... 37

2.2.2 BENVENISTE: A NOÇÃO DE "PESSOA” E A NOÇÃO DE TEMPO ...................................... 41

2.2.2.1 A noção de “pessoa” ................................................................................................ 412.2.2.2 A noção de tempo ..................................................................................................... 432.2.2.3 Exemplificando a noção de “pessoa” e a noção de tempo benvenistianas ............. 452.2.3 DUCROT: A NOÇÃO DE REFERÊNCIA/REFERENTE E OS INDICADORES PARA A

REFERÊNCIA .............................................................................................................. 50

2.2.3.1 A noção de referência /referente .............................................................................. 502.2.3.2 Os indicadores para a referência ............................................................................. 522.2.4 MONDADA E REBOUL: PREMISSAS SOBRE O PROCESSO DE REFERENCIAÇÃO .............. 55

2.2.4.1 Lorenza Mondada ..................................................................................................... 562.2.4.2 Anne Reboul .............................................................................................................. 592.2.5 CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES ......................................................................... 66

3 O DISCURSO: SISTEMA POLÍTICO ................................................................ 693.1 Formação discursiva e prática discursiva ............................................................ 703.1.1 MICHEL FOUCAULT: ENUNCIADO E FORMAÇÃO DISCURSIVA ..................................... 71

3.1.2 MICHEL PÊCHEUX: FORMAÇÃO IDEOLÓGICA E FORMAÇÃO DISCURSIVA .................... 74

3.1.3 DOMINIQUE MAINGUENEAU: FORMAÇÃO DISCURSIVA E PRÁTICA DISCURSIVA ......... 78

3.1.4 CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES ......................................................................... 83

3.2 Poder, discurso e mídia .......................................................................................... 833.2.1 O PODER .................................................................................................................... 85

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3.2.1.1 Política e poder político ........................................................................................... 863.2.1.2 A ascensão e a permanência de Lula e do PT ao/no poder ..................................... 893.2.1.2.1 A ascensão ao poder ............................................................................................. 913.2.1.2.2 A permanência no poder ....................................................................................... 993.2.1.2.3 Ascensão e permanência: “desradicalização” e estabilização ............................ 1083.2.1.2.4 Reflexões complementares ................................................................................. 1123.2.2 O DISCURSO POLÍTICO .............................................................................................. 113

3.2.2.1 Gêneros discursivos ............................................................................................... 1133.2.2.1.1 Gêneros políticos: o pronunciamento político-presidencial oficial .................... 1153.2.2.2 Particularidades do discurso político .................................................................... 1163.2.3 ESPETÁCULO, POLÍTICA E MÍDIA .............................................................................. 128

3.2.4 CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES ....................................................................... 138

4 CATEGORIAS E ANÁLISES ............................................................................. 1404.1 O evento Cerimônia de Posse da Presidência da República ............................. 1404.2 Pronunciamento proferido por Lula na sessão solene de posse: 2003 ............. 1434.2.1 BENVENISTE: CATEGORIA DE PESSOA E DE TEMPO – POSSE 2003 ............................. 143

4.2.2 DUCROT: INDICADORES PARA REFERÊNCIA – POSSE 2003 ........................................ 149

4.2.3 FOUCAULT: FORMAÇÃO DISCURSIVA – POSSE 2003 ................................................. 155

4.2.4 MAINGUENEAU: INTERDISCURSO – POSSE 2003 ....................................................... 166

4.2.5 BERRENDONNER: GÊNERO DISCURSIVO – POSSE 2003 ............................................. 170

4.2.6 REBOUL E MONDADA: A CONSTRUÇÃO REFERENCIAL DO ESPETÁCULO – POSSE 2003 ................................................................................................................................ 176

4.3 Pronunciamento proferido por Lula na sessão solene de posse: 2007 ............. 1834.3.1 BENVENISTE: CATEGORIA DE PESSOA E DE TEMPO – POSSE 2007 ............................. 183

4.3.2 DUCROT: INDICADORES PARA REFERÊNCIA – POSSE 2007 ........................................ 193

4.3.3 FOUCAULT: FORMAÇÃO DISCURSIVA – POSSE 2007 ................................................. 2044.3.4 MAINGUENAU: INTERDISCURSO – POSSE 2007 ......................................................... 214

4.3.5 BERRENDONNER: GÊNERO DISCURSIVO – POSSE 2007 ............................................. 218

4.3.6 REBOUL E MONDADA: A CONSTRUÇÃO REFERENCIAL DO ESPETÁCULO – POSSE 2007 ................................................................................................................................ 225

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 2376 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 2467 ANEXOS ................................................................................................................ 2537.1 Anexo I – Pronunciamento de posse - 2003 ........................................................ 2537.2 Anexo II – Pronunciamento de posse - 2007 ...................................................... 263

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15 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

INTRODUÇÃO

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16 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

1 INTRODUÇÃO

Grosso modo, o simples fato de ser alguém, de estar em algum lugar ou de estar com

alguém, isto é, de existir, leva o ser humano a, invariável e inevitavelmente, interagir com este

alguém que ele é, com quem está e, ainda, com o lugar em que se encontra, o que o remete à

complexidade do ser e do significar. Assim, o ser humano se situa no mundo e se constitui

como sujeito, a um só tempo, social e enunciativo, promovendo o espetacular encontro entre o

eu, o tu e o ele. E, desse modo, o homem adentra o fascinante e intrigante espaço da

referenciação1

1 Adotaremos, neste trabalho, preferencialmente, o termo referenciação, e não referência, uma vez que buscaremos conferir ao ato de referir a idéia de processo.

, cuja complexidade instigou-me, primordialmente, a desenvolver este estudo

com o olhar curioso do pesquisador e do investigador, a fim de melhor perscrutar e

compreender o processo por meio do qual, discursivamente, nos instauramos e instauramos o

outro como sujeitos sócio-discursivos, para, juntos, instaurarmos o que comumente

denominamos “realidade”.

Assim, debrucei-me sobre o meu objeto de estudo, a referenciação, buscando

compreender, conforme observa Foucault (1981:132), que “as palavras têm seu lugar não no

tempo, mas num espaço onde podem encontrar o seu local de origem, deslocar-se, voltar-se

sobre si mesmas, e desenvolver lentamente toda uma curva: um espaço tropológico”. Ou seja,

buscando perscrutar o espaço no qual as palavras ganham corporeidade, existência; no qual se

constroem o sentido e o significado; no qual se dá a enunciação, o encontro entre sujeitos

sócio-discursivos; espaço este que se traduz, enfim, como essencialmente discursivo, como o

palco em que se coloca em cena a referenciação, isto é, o espaço referencial.

Sendo assim, acreditamos que este estudo se justifica, primeiramente, pela relevância

de seu objeto, a referenciação, para os estudos lingüístico-discursivos, uma vez que, em

síntese, esta constitui o espaço em que nos instituímos como sujeitos e instauramos a

“realidade”. Entendemos, dessa forma, que o estudo da referenciação perpassa

invariavelmente, de alguma forma, todo e qualquer estudo acerca da língua, da linguagem e

do discurso, o que nos parece justificar, antes de tudo, a realização de estudos nesse campo,

por mais ínfima possa representar a contribuição destes para o vasto universo dos estudos

lingüístico-discursivos.

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17 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Em segundo lugar, acreditamos que o estudo que propomos desenvolver acerca da

referenciação no discurso político se justifica pelo fato de este se fazer presente em toda e

qualquer esfera da vida social, uma vez que a política, no sentido mais amplo do termo,

revela-se como algo intrinsecamente vinculado à vida social e ao poder. Dedicamo-nos ao

estudo do discurso político relativo, especificamente, à esfera do Estado, por compreendermos

que, por meio desta, manifesta-se o poder supremo, ou seja, o poder político, poder por meio

do qual a sociedade se organiza em dois blocos bastante distintos: dos representados e dos

representantes. Organização esta que acaba por interferir, de maneira decisiva, em todas as

demais esferas da vida social, visto que, na condição de representados, delegamos aos nossos

representantes o poder de decidir, por nós, acerca de variadas questões, como, por exemplo, as

políticas sociais a serem privilegiadas e implementadas e o modelo econômico a ser adotado

na comunidade em que vivemos.

Optamos por estudar a ocorrência do discurso político no momento em que Luiz

Inácio Lula da Silva assume formalmente a presidência da República, em 2003 e em 2007, a

fim de buscarmos focar a construção do referente “espetáculo político”, a partir das lentes

dessa instância, em dois momentos distintos, mas complementares. Em 2003, o fato de, pela

primeira vez, na história do País, um genuíno “homem do povo”, com um histórico singular,

conquistar, de forma legítima, o direito de assumir o poder supremo da nação constituiu, por

si só, um espetáculo a ser amplamente explorado pela instância política. Já, em 2007, após

quatro anos, a recondução de Lula ao poder é também espetacularizada pela instância política

como efeito discursivo, mas a partir de uma perspectiva diferenciada em relação a 2003, uma

vez que tal ocorrência não mais constitui o registro de um acontecimento marcado por uma

excepcionalidade sui generis.

Considerando que a contemporaneidade revela-se marcada pela construção do

espetáculo nos mais diversos âmbitos, estabelecendo o que se pode chamar de “cultura do

espetáculo”, escolhemos estudar a política como espetáculo, a partir de uma instância que luta

para deter a hegemonia sobre a construção/interpretação do modelo construído socialmente

acerca do que denominamos realidade e tornado público. Isso porque entendemos que a

espetacularização da política, a partir dessa lente, influi, de maneira decisiva e direta, sobre

como concebemos o mundo, as relações sociais; como atuamos em sociedade; como nos

constituímos como sujeitos, a um só tempo, sociais e discursivos. Ou seja, entendemos que tal

estudo nos auxilia a conhecer e a compreender a partir de que elementos a instância cidadã

constrói/interpreta o referente “modelo público de realidade”. Pareceu-nos, portanto,

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18 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

instigante e relevante investigar o papel do discurso na construção do que denominamos

“real”, a partir da espetacularização da política por uma instância de grande poder social e,

portanto, de significativa interferência na construção coletiva de objetos sociais.

O fato, ainda, de, por intermédio do estudo dessa construção lingüístico-discursiva,

ter-se acesso privilegiado à construção do espaço político, parece-nos também contribuir para

validar esta pesquisa. Este estudo parece, pois, justificar-se, em termos teóricos, por pretender

representar uma contribuição, mesmo que modesta, para a compreensão do fenômeno da

referenciação, tendo em vista a análise da construção do referente “espetáculo político”, em

dois momentos igualmente distintos e complementares. E, por conseguinte, por possibilitar,

do ponto de vista lingüístico-discursivo, o acesso ao processo de interpretação/construção do

“modelo público de realidade”, por parte de uma instância que nos parece, de modo

privilegiado, buscar assegurar, em nossa sociedade, o controle hegemônico da condução desse

processo.

Com base, pois, no que acabamos de expor, elegemos como objetivo geral deste

trabalho analisar como se engendra a interpretação/construção do referente “espetáculo

político”, em dois momentos distintos: a tomada de posse da presidência da República por

Luiz Inácio Lula da Silva em 2003 e em 2007. A fim de buscarmos alcançar esse objetivo

central, elegemos os seguintes objetivos específicos:

mostrar que o processo de interpretação/construção de objetos discursivos se

realiza lingüística e discursivamente a partir da co-ocorrência de diferentes

categorias;

identificar os principais referentes a partir de cuja interpretação/construção se

processa a interpretação/construção do referente “espetáculo político”.

observar a produção do espetáculo político como um fato discursivo dotado, a

um só tempo, de transparência e opacidade.

No intuito de alcançar tais objetivos, organizamos o desenvolvimento deste estudo em

três partes. Na primeira delas, “O fenômeno da referência na linha do tempo”, dedicamo-nos a

apresentar um percurso histórico, da Idade Antiga à Idade Contemporânea, dos estudos

desenvolvidos acerca da referência2

2 Adotaremos, por sua vez, o termo referência quando a ênfase deixar de ser o processo de referir para recair no ato pontual de referir, ou seja, quando tal ato for concebido como algo isolado e estanque e, portanto, desvinculado da idéia de processo.

concebida como fenômeno lógico-filosófico, para, em

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19 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

seguida, apresentarmos os estudos desenvolvidos acerca desse fenômeno no âmbito

lingüístico-discursivo. Objetivamos, com isso, compor uma visão ampla do fenômeno em

estudo, a fim de melhor apreendê-lo e compreendê-lo.

Dedicamos a segunda parte, “O discurso: sistema político”, primeiramente ao estudo

de aspectos concernentes à formação discursiva e prática discursiva. Em seguida, buscamos

melhor compreender o que caracteriza o discurso que comumente nomeamos discurso político

e o poder que dele emana. Buscamos também tecer um histórico da trajetória política de Luiz

Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores (PT), a qual culminou com a chegada

destes à Presidência da República nas eleições de 2002 e com a sua manutenção no poder nas

eleições de 2006. Finalizando a segunda parte, apresentaremos alguns apontamentos acerca do

que constitui o que hoje denominamos “espetáculo” e de suas ligações com os universos da

política e da mídia. Intentamos, assim, lançar luzes sobre o que constitui o discurso concebido

como sistema, buscando focar, particularmente, o sistema político, a fim de conhecer as

particularidades que o caracterizam. Introduzimos o estudo desse discurso por intermédio da

apresentação de aspectos referentes à formação discursiva e prática discursiva por

entendermos que essas particularidades podem ser mais bem explicitadas e compreendidas a

partir do estudo desses aspectos, se considerarmos que, conforme defende Maingueneau

(1997: 45), ao ocupar o lugar de enunciador, o sujeito o faz como parte integrante de uma

formação discursiva, a qual determina os efeitos de sentido que se pretende produzir sobre o

sujeito enunciatário. Quanto ao encerramento da segunda parte, optamos por fazê-lo por meio

da apresentação do discurso enquanto sistema, uma vez que acreditamos que só é possível

apreender o discurso, em sua totalidade, de forma sistemática.

Já a terceira parte, “Categorias e análises”, dedicada ao estudo dos corpora por nós

selecionados, foi organizada em três blocos. O primeiro deles apresenta breves considerações

sobre o evento Cerimônia de Posse, em decorrência do qual emergem os corpora por nós

analisados. Os dois seguintes blocos - “Pronunciamento proferido por Lula na sessão solene

de posse: 2003” e “Pronunciamento proferido por Lula na sessão solene de posse: 2007” -

apresentam-se subdivididos em seis partes, nas quais buscamos analisar a

construção/interpretação do referente “espetáculo político”, a partir de seis categorias

lingüísticas e/ou discursivas distintas, mas complementares. Na última dessas seis partes, na

subseção intitulada “Reboul e Mondada: a construção referencial do ‘espetáculo político’”,

relacionamos as categorias selecionadas, visando observar como estas interagem no processo

de construção do referente em questão.

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20 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Na primeira parte do desenvolvimento, “O fenômeno da referência na linha do

tempo”, adotaremos, como referencial teórico dos estudos lingüístico-discursivos, Mikhail

Bakhtin/Volochínov (o problema da significação); Émile Benveniste (a Teoria da Enunciação:

a noção de “pessoa” e a noção de tempo); Oswald Ducrot (a noção de referência/referente e os

indicadores para a referência); Lorenza Mondada e Anne Reboul (premissas sobre o processo

de referenciação). Na segunda parte, “O discurso: sistema político”, buscaremos apresentar

reflexões concernentes à formação discursiva e prática discursiva à luz de estudos

desenvolvidos por Jean-Paul Bronckart, Michel Foucault, Michel Pêcheux e Dominique

Maingueneau. Promoveremos, ainda, na segunda parte do desenvolvimento, primeiramente,

uma reflexão sobre política e poder, sob a ótica, dentre outros, de Aristóteles, Max Weber e

Norberto Bobbio, para, em seguida, a partir do modelo interlocutório de Alain Berrendonner e

do dispositivo do discurso político de Patrick Charaudeau, concebermos o discurso político, a

partir da perspectiva de Dominique Maingueneau. Finalizando essa parte, discutiremos o que

constitui o espetáculo no cenário político e midiático, a partir, primordialmente, de

pressupostos apresentados por Antonio Albino Canelas Rubim.

Já na terceira e última parte, “Categorias e análises”, procederemos às análises,

adotando, para tal, os postulados teóricos de Benveniste, acerca da Teoria da Enunciação,

associados aos postulados teóricos de Ducrot acerca da referenciação. A partir da Teoria da

Enunciação, buscaremos elucidar a instauração dos sujeitos e dos mundos discursivos no “eu-

aqui-agora” da enunciação, ao passo que, a partir dos postulados teóricos de Ducrot,

buscaremos explorar os indicadores para a referência, isto é, as condições apresentadas pela

língua para se referir a objetos. Adotaremos, também, os postulados teóricos de Foucault, no

que concerne a formações discursivas, e os de Maingueneau, acerca de interdiscurso. Em

nossas análises, adotaremos os postulados teóricos de Foucault, concernentes a formações

discursivas e de Maingueneau sobre formação e prática discursivas, os quais representam uma

releitura e uma ampliação dos postulados teóricos apresentados por Foucault a esse respeito, a

fim de destacarmos os aspectos textuais e sociais da atividade discursiva, procurando conferir,

assim, à nossa análise uma abordagem não só lingüística, como também sócio-discursiva.

Além disso, recorreremos ao “Modelo Interlocutório Triádico”, proposto por Berrendonner, a

fim de discutirmos a contribuição da categoria “gênero discursivo” no processo de

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21 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

construção/interpretação do objeto discursivo “espetáculo político”, a partir de um processo

triádico de influenciação3

3 Esclarecemos que, embora reconheçamos que Berrendonner não desenvolve estudos específicos acerca dos gêneros discursivos, propomos contemplar a aplicação dessa categoria, a partir do “Modelo Interlocutório Triádico” por ele proposto, uma vez que adotaremos, no estudo de tal categoria, uma perspectiva essencialmente discursiva, buscando focar o emprego do gênero pronunciamento oficial de posse como um recurso representacional, por meio do qual se inicia a construção de uma nova representação social para aquele que o utiliza. Entendemos que o modelo proposto por Berrendonner atende satisfatoriamente a esse estudo, tendo em vista que prevê que a interação entre os parceiros enunciativos se dá não só apenas entre dois universos individuais, o da locução e o da interlocução, mas entre três: esses dois universos individuais e um terceiro coletivo, denominado “universo público de realidade”. Defendemos, portanto, que a aplicação desse modelo ao estudo do gênero discursivo em questão, como recurso representacional, revela-se bastante profícua, pois contempla os universos que interagem na construção discursiva das representações sociais.

.

Por meio da aplicação conjunta desses postulados teóricos, procuraremos mostrar, a

partir da observação da materialidade lingüística, que, de fato, o referente só se torna dizível

pelo discurso que o refere, ou seja, que, de fato, o referente só conquista unicidade e

individualidade a cada nova situação em que é referido. Ao associar, em nossas análises, tais

postulados, intentamos, pois, mostrar que o processo de referenciação se opera a partir de

elementos lingüísticos, mas só se completa discursivamente. Objetivamos, assim, mostrar que

os discursos não constituem objetos isolados, uma vez que compõem uma rede composta de

relações interdiscursivas, por meio das quais se interpreta/constrói o referente “espetáculo

político”. Por fim, apresentaremos, na seção intitulada “Considerações finais”, as

considerações decorrentes das análises feitas.

A partir dessa linha teórico-metodológica, buscaremos, pois, apresentar, a seguir, um

estudo sócio-discursivo da referenciação, partindo do princípio de que os enunciados - a

materialidade lingüística a partir da qual temos acesso ao universo discursivo - apresentam-se

inscritos na história.

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22 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

PRIMEIRA PARTE

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23 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

2 O FENÔMENO DA REFERÊNCIA NA LINHA DO TEMPO

Quando se pretende explorar o campo da referência, faz-se necessário recuperar, na

linha do tempo, as idéias defendidas acerca desse fenômeno por alguns lógicos, filósofos e

lingüistas. Considerando a importância desse percurso para o nosso trabalho, uma vez que

este nos permite, a partir de uma visão, digamos, panorâmica do fenômeno, melhor

compreendê-lo, dedicamos este capítulo a uma breve retomada de alguns desses estudos.

Primeiramente, apresentaremos diferentes pensamentos lógico-filosóficos acerca de questões

que, direta ou indiretamente, dizem respeito à referência para, em seguida, abordarmos tal

fenômeno segundo pontos de vista lingüístico-discursivos distintos e/ou complementares.

2.1 O pensamento lógico-filosófico

Ao longo da história da humanidade, o fenômeno da referência/referenciação tem sido

objeto da atenção do homem. Como veremos a seguir, em um primeiro momento, na ânsia de

compreender as relações existentes entre as expressões lingüísticas e os fenômenos

pertencentes ao mundo que lhes é exterior e ao qual essas expressões se referem, os lógicos e

os filósofos se preocuparam em estabelecer tais relações com base, primordialmente, nas

noções de verdade.

2.1.1 Na Idade Antiga: Sócrates, Platão e Aristóteles.

Apesar de Sócrates (470/469-399 a C.) não nos ter deixado registro algum acerca de

suas atividades e de seu pensamento, a partir de textos antigos, temos acesso a divergentes

versões referentes ao seu perfil de homem e de filósofo, as quais nos permitem vislumbrar o

seu importante legado. De acordo com o que nos informa Cornford (2001), Sócrates dedicou-

se a perscrutar não só o significado das palavras como também dos valores que guiavam a

conduta dos homens, no desejo de despertar-lhes para o conhecimento de si mesmos.

Dedicando-se a cumprir a missão de dialogar com as pessoas, a qual acreditava lhe ter sido

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24 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

confiada pelo deus de Delfos, Sócrates reconhecia que “apenas sabia que nada sabia” e

procurava, por meio do diálogo, fazer com que as pessoas justificassem, por exemplo, as

virtudes e as habilidades das quais eram dotadas. Finalizando o diálogo, Sócrates convidava-

as a refletirem sobre o significado das palavras por elas ali empregadas, o que culminava na

constatação da ignorância da própria ignorância. Ao levar as pessoas a constatarem o

desconhecimento do exato significado das palavras, Sócrates acreditava estar conduzindo-as à

construção do autoconhecimento, isto é, à tomada de posse da própria alma. Pode-se assim

dizer que, ao se preocupar com a atribuição de significado às palavras, o filósofo revela-se

como um dos primeiros, dos quais se tem registro, a tangenciar os domínios da referência.

Já Platão (427/28-347/48 a C.), ao apresentar “o mundo perfeito das idéias", conforme

prefácio da edição brasileira da Nova Cultural (1999: 17-23), defende que os objetos físicos –

perceptíveis, pois, aos nossos sentidos – não passam de réplicas de idéias ou formas

incorpóreas, eternas e invisíveis existentes em um mundo imaterial por ele chamado de

mundo inteligível. Platão parece conceber essas formas como essências existentes em si

próprias, somente apreensíveis pelo intelecto, porque este, assim como aquelas, seria

incorpóreo. Essa apreensão das idéias por meio do intelecto só seria concebível se se

admitisse a preexistência da alma em relação ao corpo. Sendo assim, admitida essa tese, o

homem, retornando do plano imaterial ao plano material, guardaria, dessas formas

incorpóreas, reminiscências, recuperando-as mentalmente, de forma gradativa, ao ser

colocado novamente em contato com suas réplicas. Segundo esse prisma, não há construção

intersubjetiva e social do conhecimento, mas simplesmente reconhecimento e lembrança.

Considerando-se que, de acordo com esse ponto de vista, referenciar é não mais que

reconhecer e lembrar, toda referência parece se operar em relação a um padrão absoluto, a

modelos transcendentes, logo, preexistentes à matéria e imutáveis. Referenciar seria, portanto,

segundo uma visão platônica, um processo metafísico.

Aristóteles (384-322 a C.), por sua vez, ao contrário de Platão, defende, segundo

prefácio da edição brasileira da Nova Cultural (1999: 20-23), que o mundo físico, ou seja, a

realidade objetiva não se constitui a partir, simplesmente, do reconhecimento e da lembrança

de modelos incorpóreos, imutáveis e eternos, preexistentes em um plano imaterial, mas sim de

seres únicos, concretos e mutáveis. Por esse viés, busca compreender como o sujeito, partindo

da observação de seres concretos, isto é, de dados sensíveis, a lhe apontarem sempre o

individual e o concreto, chega a realizar formulações científicas, dotadas, pois, de um caráter

universal. Nessa busca, compreende que o universal é fruto de uma atividade intelectual capaz

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25 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

de formular conceitos com base na observação e no raciocínio indutivos, revelando-se

alicerçado não na subjetividade, mas na própria estrutura do objeto, conhecido pelo sujeito

por intermédio da sensação. Desse modo, a estrutura básica comum aos seres pertencentes a

cada uma das diferentes espécies de seres dotados de existência corpórea estaria manifesta, de

modo universal, no conceito de cada uma dessas espécies.

Em substituição à concepção de ser absoluto defendida por Platão, Aristóteles propõe

a concepção analógica, segundo a qual o ser seria dotado de diferentes sentidos. Assim, na

perspectiva aristotélica, todo termo que designa um ser dotado de existência designaria ou

uma substância (um ser) ou um acidente (um modo de ser). Por substância entende-se a

essência do ser – a qual não pode ser negada ou contestada – e por acidente, uma propriedade,

uma peculiaridade referente à substância. Preocupado com a organização e com o

desenvolvimento do pensamento lógico-filosófico, Aristóteles parece compreender a

referenciação como, acima de tudo, um processo de estabelecimento de relações lógicas

dotadas de precisão.

2.1.2 Na Idade Média: a teoria das proprietates terminorum

Conforme nos esclarece Kneale (1980: 250), nos séculos XII e XIII, a dicotomia entre

antiqui e moderni eclode com a elaboração da doutrina das proprietates terminorum, a qual

objetiva “explicar as funções diferentes que as palavras ou as expressões verbais podem

desempenhar quando figuram como termos nas proposições” (KNEALE: 252). Tal teoria, que

compõe parte da lógica medieval, teve, dentre outras, a finalidade de contribuir para a

constituição de uma teoria geral da linguagem e de elucidar determinadas noções como

sentido e referência (KNEALE: 279).

Guilherme de Shyreswood, autor da primeira versão impressa dessa teoria,

inicialmente, ao concebê-la, parece ter evidenciado termos gerais como “homem” e, mais

tarde, abrangido, além destes, termos singulares como “Sócrates”, o que parece presumir que,

para ele, “todos os termos significam uma forma” (SHYRESWOOD: 252). Infere-se com isso

que, na teoria das proprietates terminorum, toda palavra ou expressão verbal que tem a

potencialidade de funcionar como termo em uma proposição tem, necessariamente, de possuir

significatio, isto é, que todas essas palavras ou expressões significam uma forma. De acordo

com essa teoria, pode-se, portanto, atribuir a esses termos a appellatio, a qual é concebida

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26 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

como a aplicabilidade presente de um termo, na posição de predicado, a qualquer coisa

existente no momento da elocução, como na frase “Isto é um homem”, em que se faz uso de

um termo geral para referir um indivíduo presente (SHYRESWOOD: 252-253).

Para uma melhor compreensão dessa teoria, faz-se ainda necessário considerar outras

noções além da appellatio, tais como copulatio e suppositio, as quais, grosso modo, podem

ser definidas como sendo “respectivamente a subordinação e superordenação de um

pensamento a outro” (SHYRESWOOD: 253). Os substantivos, à luz dessa teoria,

considerando que representam as substâncias, compreendidas por Aristóteles como a essência

do ser, são dotados de suppositio, uma vez que sustentam os acidentes, os quais representam

uma propriedade do ser. Sendo assim, segundo Kneale (1980: 253), “a noção de suppositio

está especialmente associada com a ocorrência de substantivos como sujeitos das

proposições”, embora se considere a suppositio de termos na função também de predicado, o

que provavelmente pode ter motivado Shyreswood (apud KNEALE, 1980: 254) a especificar

a suppositio habitual em oposição à suppositio actual.

Como o gênero mais comum de suppositio, Shyreswood (apud KNEALE, 1980: 254)

concebe o que ele denomina de personalis, a qual trata de pessoas, como se observa na

proposição “Homo currit”. Ao atribuir suppositio a um substantivo comum, Shyreswood

(apud KNEALE, 1980: 255) revela acreditar que “o substantivo subordina o seu sentido ao

sentido do predicado”. Com essa generalização, evidencia-se que ele despreza a função dos

seres fora do sistema lingüístico, tornando, assim, obscuros certos fatos. Na proposição

“Homo currit”, por exemplo, parece não se considerar que o termo “homo” possa ser

interpretado como recuperando um elemento pertencente ao contexto extralingüístico, ou seja,

possa ser interpretado como um termo indicador de referência exofórica. É importante,

entretanto, lembrar, conforme nos informa Kneale (1980: 263), que, dentre as demais

suppositio, a personalis é a que melhor foi desenvolvida em toda a teoria das proprietates

terminorum e a que se conserva nos documentos até hoje existentes.

Considerando a época em que Shyreswood desenvolve suas idéias, é natural que

também se verifiquem dificuldades em suas exposições no que concerne a outras espécies de

suppositio. A suppositio simplex, por exemplo, gerou polêmica no meio filosófico quanto a se,

em proposições como “Homo est dignissima creaturarum”, o termo “homo” deveria ou não

ser tratado unicamente como um nome de uma espécie (KNEALE: 260). Essa mesma

polêmica revela-se como uma preocupação à qual se dedica Shyreswood (apud KNEALE,

1980: 266-267), que, no trato, por exemplo, do termo “homo”, ao mesmo tempo em que

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admite que este representa os homens existentes no momento em que é pronunciado, admite

que também possa representar o inexistente, excetuando-se a sua ocorrência em proposições

universais, as quais, segundo ele, devem estar submetidas à doutrina da implicação

existencial.

Mais tarde, Pedro Hispano (apud KNEALE, 1980: 269) destaca que a teoria das

proprietates terminorum, devido ao fato de contemplar basicamente o uso dos termos gerais,

não considera que um termo geral como “homo”, em proposições como “Homo est dignissima

creaturarum”, pode ser usado como nome em sentido próprio e que, portanto, nessas

condições, não possui objetos separados de significatio, suppositio e appellatio. Assim, ao

contrário de Shyreswood, Pedro Hispano parece, de fato, reconhecer que “representar” e

“significar” são fenômenos distintos.

Merece ainda destaque a forma como Shyreswood (apud KNEALE, 1980: 267) trata

os termos que ocorrem junto a verbos. No que diz respeito aos termos que ocorrem junto a

verbos conjugados no passado ou no futuro, Shyreswood defende que podem ter suppositio

para tudo aquilo que não seja dotado de existência no momento da elocução; quanto aos

verbos conjugados no presente, afirma que podem se referir a algo que igualmente não exista

no momento da elocução. Shyreswood (apud KNEALE, 1980: 267) considera que tais verbos

pertencem à categoria dos verbos com referências à possibilidade. Quanto a esse aspecto,

Pedro Hispano (apud KNEALE, 1980: 269) pressupõe que “se o contexto o permitir, um

termo geral representará exemplos passados e futuros da forma que significa, bem como os

que existem no momento em que se fala”. Isso revela que ele acredita, diferentemente de

Shyreswood, que “os tempos dos verbos restringem, mais do que amplificam, as

suppositiones dos seus sujeitos” (apud KNEALE, 1980: 269).

Posteriormente, segundo nos informa Kneale (1980: 271), na Summa Totius Logicae,

Ockham expõe uma visão bastante diversa das apresentadas por Shyreswood e Pedro Hispano

acerca das mesmas questões. Pode-se dizer que, para ele, não há como admitir a idéia de

universal conforme defendida por Shyreswood e Hispano, pois, segundo a sua ótica, não se

pode considerar que um termo geral signifique algo comum a vários indivíduos. A fim de

equacionar os problemas que essa doutrina gera, propõe a noção de descida lógica aos

indivíduos, o que representa “descer aos particulares apenas por meio de um predicado

disjuntivo” (KNEALE: 273). Dessa forma, o que, de fato, busca provar é o modo pelo qual os

termos gerais podem ser descritos como representação dos indivíduos. Em sua teoria da

verdade, toma como noção básica a suppositio, uma vez que considera que “uma proposição

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28 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

categórica singular afirmativa é verdadeira se e somente se o sujeito e o predicado

representarem a mesma coisa” (KNEALE: 273).

Embora, conforme nos foi possível constatar, os lógicos medievais tenham

privilegiado o estudo da representação, muito contribuíram para a evolução dos estudos

acerca do significado e da referência.

2.1.3 Na Idade Moderna: Descartes

Nos séculos XVI e XVII, quando o mundo se encontra mergulhado em uma atmosfera

de grandes transformações e descobertas, quando tudo é contestado, desde o prestígio da

Igreja e do Estado até as afirmações da ciência e da filosofia medievais, busca-se o caminho

certo capaz de conduzir o homem à descoberta de verdades perenes, incontestáveis e,

portanto, inabaláveis. Ambiciona-se, assim, encontrar o método para a ciência. Tal ambiente

de tantas inovações e incertezas faz eclodir uma revolução científica racionalista, tornando

propício o surgimento de filósofos como, por exemplo, René de Descartes, que busca, por

intermédio da razão, recuperar a certeza científica.

Recorrendo a Cottingham (1989), encontramos que, em um primeiro momento, ao

passo em que se mostra completamente decepcionado com a inutilidade prática das

humanidades, Descartes revela-se completamente seduzido pela certeza das matemáticas,

mas, posteriormente, descobre que entre as leis matemáticas e as leis da natureza existe um

acordo fundamental. A partir de então, passa a se dedicar à investigação não só científica,

como também filosófica e, ao assumir o desafio da dúvida próprio de sua época, chega à sua

máxima: “Sem dúvida, se duvido, penso”.

Aceitando a dúvida para combatê-la, Descartes observa que há idéias, as concernentes

ao campo das matemáticas, que são admitidas por todos igualmente, graças à sua clareza e

estabilidade, enquanto outras, aquelas que se referem a objetos físicos, são instáveis e

obscuras. Constata, entretanto, que a clareza dessas idéias não pode representar senão uma

garantia subjetiva, já que não se pode assegurar que tais idéias, mesmo dotadas de clareza,

correspondam a algo real. Ao duvidar até mesmo das idéias claras e estáveis, Descartes eleva

a dúvida a proporções extremas e levanta a hipótese de a realidade ser regida por um “gênio

maligno”, que seria responsável por fazer o homem errar mesmo ao ter certeza de estar

acertando. Com esse artifício, Descartes chama a atenção para o fato de que não se pode

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29 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

garantir que nem mesmo a ciência – considerando-se que ela permanece como representação

na consciência humana – tem um correspondente fora do mundo subjetivo, isto é, no mundo

objetivo. Sendo assim, ao fazerem a ciência emergir como uma criação subjetiva, os

questionamentos de Descartes colocam em xeque a objetividade do conhecimento científico.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a dúvida assume, para Descartes,

proporções incomensuráveis, propicia-lhe desenvolver uma certeza (“se duvido, penso”), que,

embora concernente à própria subjetividade (“penso”), possibilita-lhe alcançar a certeza

acerca da existência (“existo”). Nesse momento em que a existência do “eu” revela-se

dependente, por completo, do pensamento, o “eu” emerge como ser pensante e o pensamento,

por sua vez, vincula-se ao ser que pensa. Conseqüentemente, de um novo ponto de

observação, Descartes observa a subjetividade aproximar-se da objetividade, reduzindo o

abismo anteriormente estabelecido entre ambas.

A partir de então, Descartes dedica-se a provar a existência de Deus como fundamento

absoluto da objetividade e passa a conceber a ciência como construção clara sobre a realidade.

Abandona, assim, a hipótese do “gênio maligno” para adotar a hipótese do “gênio bom”,

defendendo que a existência de Deus se justifica pelo fato de a idéia de Deus existir na mente

humana. A evidência destaca-se, desse modo, como o critério da verdade, o que determina

que as idéias claras e estáveis tenham seu correspondente na realidade. Observa-se, assim,

segundo a perspectiva de Descartes, a transição da certeza sobre a existência do pensamento

para a certeza acerca da existência do mundo físico, o que acarreta, ao mesmo tempo, o

reconhecimento de que o universo da subjetividade é um universo distinto do da objetividade,

bem como o estabelecimento de um vínculo estreito entre esses dois domínios.

Toda a trajetória de Descartes buscando encontrar para tudo uma representação no

mundo objetivo, ou seja, todo esse seu esforço em objetivar até mesmo a subjetividade, o qual

o conduz da dúvida extrema acerca da objetividade da ciência à certeza da existência objetiva

de Deus, faz com que ele, mesmo que orientado por outros objetivos, tenha contribuído para

os estudos lingüístico-discursivos acerca do fenômeno da referência. Observa-se, por

exemplo, que, três séculos mais tarde, já no campo da lingüística, a defesa de que, quando nos

referimos a algo, não o fazemos em relação a um objeto real, mas, sim, a um objeto do

pensamento (DUBOIS, 1997: 511), reenvia-nos, de certa forma, ao encontro de Descartes.

Isso se considerarmos que este, a partir do fato de que Deus existe na subjetividade humana,

busca não só justificar a Sua existência no mundo objetivo, como, além disso, provar a

existência de Deus como fundamento absoluto da objetividade.

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30 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

É importante, entretanto, destacar que, mesmo tendo identificado essa correspondência

entre o alcance da existência pelo pensamento e o seu alcance pelo discurso, reconhecemos

que este último é dotado de uma “materialidade significante” que parece não se fazer presente

no pensamento. Descartes, ao admitir que o acesso ao mundo objetivo por intermédio do

pensamento é algo universal, revela defender um ponto de vista ontológico, segundo o qual o

“cogito” não conhece qualquer restrição e, portanto, o que dele deriva é universal. Já na esfera

da lingüística, no que tange ao discurso, o mesmo não se observa, pois muitas formas de

recuperação da referência podem estar circunscritas a determinadas formas discursivas e não a

outras, o que pode comportar alguma variação considerando-se sistemas distintos.

O modo pelo qual Descartes procura justificar a existência de Deus parece ainda nos

remeter, mesmo que de forma bastante indireta, a Searle (apud MARI: 2005), que, também no

século XX, busca defender a suposição de Frege (1978), como veremos a seguir, de que os

nomes próprios são condutores de sentido. Ao dizer que “usamos os nomes próprios em

proposições existenciais”, Searle revela aproximar-se de Descartes no que diz respeito ao

processo de nomeação por ele adotado, uma vez que defende que “nomear significa pressupor

a existência” (SEARLE apud MARI: 2005). Constata-se, assim, que tanto Descartes quanto

Searle e também Frege, como discutiremos a seguir, buscam, cada um a seu modo e

orientados por objetivos distintos, admitir a existência a partir do nome próprio.

Ao buscar estabelecer contatos entre Descartes e a lingüística e a filosofia

contemporâneas, o que, de fato, objetivamos é enfatizar como os diferentes campos do saber,

em diferentes momentos históricos, constroem, a partir de um movimento interativo, o

conhecimento. Pode-se assim dizer que, segundo esse prisma, em Descartes, a evidência

como critério da verdade contribuiu, mesmo que indiretamente, para abrir caminho a

posteriores estudos sobre a referenciação no campo da linguagem. Entendemos ainda que

Descartes representa uma contribuição nesse sentido, por constituir um antecessor de Frege no

que diz respeito ao estudo do pensamento.

2.1.4 Na Idade Contemporânea: Frege

Da segunda metade do século XVIII ao primeiro quarto do século XIX, Frege (1978)

desenvolve pesquisas matemáticas, ocupando-se, primordialmente, em esclarecer as noções

fundamentais da Aritmética, o que, com o tempo, configura-se de grande contribuição à

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31 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Lógica, uma vez que esta, conforme atesta o próprio Frege, constitui instrumento essencial à

compreensão dessas noções. Por considerar a linguagem natural ineficiente para usos

científicos, Frege (1978) propõe, em substituição a esta, uma linguagem logicamente perfeita,

por ele denominada ideografia. A preocupação com a criação de uma linguagem simbólica e

artificial leva-o a se dedicar a questões como a distinção entre sentido (Sinn) e referência

(Bedeutung), as quais, além de assumirem especial e crescente relevância em suas pesquisas,

viriam repercutir mais tarde, de maneira decisiva, nos domínios da lingüística.

Compreendendo o conceito de sentido como condição imprescindível para que se

alcance a referência, Frege (1978: 22-23) apresenta uma teoria do significado, propondo a

adoção de dois preceitos básicos: i) o sentido de uma palavra está diretamente vinculado ao

contexto lingüístico em que esta ocorre; ii) os aspectos de natureza subjetiva são

completamente distintos dos de natureza objetiva. Com isso, Frege (1978: 65) preocupa-se em

evidenciar que, ao contrário da representação, que é individual e, portanto, única para cada

ser, o sentido de uma palavra não apresenta natureza essencialmente subjetiva. Ao buscar

explicitar esse ponto de vista, a partir da seguinte comparação, Frege (1978: 65) não só

esclarece as noções de sentido e representação, como também torna mais clara a relação

existente entre referência, representação e sentido.

Alguém observa a lua através de um telescópio. Comparo a própria lua à referência; ela é o objeto da observação, proporcionado pela imagem real projetada pela lente no interior do telescópio, e pela imagem retiniana do observador. A primeira, comparo-a ao sentido, a segunda, à representação ou intuição. A imagem no telescópio é, na verdade, unilateral; ela depende do ponto-de-vista da observação; não obstante, ela é objetiva, na medida em que pode servir a vários observadores.

Observa-se que Frege (1978: 59-85) utiliza o termo referência para fazer alusão tanto à

referência (o processo de referir) quanto ao referente (aquilo que é referido), não distinguindo,

dessa forma, os dois conceitos, o que se mostra recorrente em todo o seu artigo “Sobre o

sentido e a referência”. No mesmo artigo, vale ainda destacar que Frege privilegia o estudo do

nome próprio – exemplificado, na comparação acima, pela expressão “a lua” – concebendo-o

como uma palavra, uma expressão, um sinal, uma combinação de sinais ou uma descrição

definida. Além disso, merece ainda destaque que, para ele, o nome próprio só se relaciona

com o objeto por intermédio do sentido, o que o torna, desse modo, portador de sentido, o

qual é usado por Frege na acepção do que alguns estudiosos do assunto descreveriam como

“significado”.

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32 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Ao comparar a referência à própria lua, tomada enquanto objeto da observação do

sujeito, Frege, embora faça uso do termo referência para aludir tanto ao processo de referir

quanto ao objeto referido, deixa claro que a referência não se confunde com o próprio objeto,

constituindo, assim, o processo pelo qual se atribui uma descrição assertiva a um objeto, no

caso, a lua. Esclarece, assim, que “a referência de um nome próprio é o próprio objeto que por

seu intermédio designamos” (FREGE, 1978: 65). Para Frege, no exemplo dado, a referência

só se torna possível, uma vez que o objeto da observação é proporcionado por meio de duas

imagens: uma imagem real e uma imagem retiniana do observador. A primeira – dotada, a um

só tempo, de traços de objetividade e de subjetividade – é comparada ao que ele denomina

sentido, ao passo que a outra, tida por ele como totalmente subjetiva, por constituir “uma

imagem interna, saturada de emoções” (FREGE, 1978: 65), é comparada à representação.

A partir dessa comparação, observamos que, do ponto de vista fregeano, o sentido não

é, por completo, objetivo, devido ao fato de não constituir o próprio objeto, no entanto, pode-

se dizer que a objetividade é um dos traços que o caracteriza, pois, como defende Frege

(1978), o sentido constitui um “modo de apresentação do objeto”, e não um “modo da mente

individual”. Em um primeiro momento, parece-nos que, para Frege, “o modo de apresentação

do objeto” representa, unicamente, o modo pelo qual o objeto se apresenta, por exemplo,

quanto às suas características formais, ao sujeito que o observa, ou, porque não dizer, se

impõe ao sujeito. Em um segundo momento, verifica-se, entretanto, que, para Frege, a

subjetividade também é um dos traços que o caracteriza, conforme se observa no trecho no

qual ele (1978: 65) assevera que “entre uma [a referência] e outra [a representação] está o

sentido que, na verdade, não é tão subjetivo quanto a representação, mas que também não é o

próprio objeto”.

O fato de Frege admitir que o sentido “não é tão subjetivo quanto à representação”

apenas distingue, quanto a esse aspecto, o sentido da representação, mas, em hipótese alguma,

nega que seja dotado de traços de subjetividade. Contrariamente revela, de forma

contundente, que Frege admite a subjetividade da qual é provido o sentido, o que nos leva a

inferir que, se, para ele, o sentido não é um “modo da mente individual”, nem tão pouco pode

ser concebido, unicamente, como um “modo de apresentação do objeto”. Infere-se, assim, que

Frege parece conceber o sentido como um modo de perceber não psiquicamente, mas, sim,

sensorialmente o objeto, se se considerar sensorial algo próprio da condição física, isto é, do

sentir, e psíquico algo próprio da mente, ou seja, da percepção. No que diz respeito a uma

perspectiva fregeana, parece-nos possível ainda inferir que o sentido de um nome próprio

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contém, simultaneamente, um “modo de apresentação do objeto”, que diz respeito à forma

pela qual o objeto se apresenta ao sujeito, e um modo de percebê-lo, o qual é concernente à

apreensão do objeto pelo sujeito. Logo, quanto a esse aspecto, pode-se afirmar que Frege

contribuiu, de modo decisivo, para a compreensão que se tem hoje de que o sentido de um

nome próprio contém, simultaneamente, um “modo de apresentação do objeto”, que diz

respeito à forma pela qual o objeto se apresenta ao sujeito, e um modo de percebê-lo, o qual é

concernente a como o sujeito apreende o objeto.

Buscando melhor esclarecer o sentido e a referência de nomes próprios, tomemos

agora os seguintes enunciados

(1) O derrotado no segundo turno da eleição presidencial brasileira em 1989. (2) O eleito na eleição presidencial brasileira em 2002.

para mostrar não só que, como no exemplo anterior, para sentidos diferentes tem-se o mesmo

referente, mas também que, mesmo na ausência de uma indicação definida do objeto

designado, pode-se afirmar que tais sentenças, de fato, referem um objeto (Lula), graças a

indicações precisas de espaço e de tempo, consideradas por Frege (1978: 77), sob o ponto de

vista lógico, nomes próprios. Esses dois enunciados são, pois, sob a ótica fregeana,

verdadeiros, uma vez que se pode designar, de maneira satisfatória, a sua referência.

Vejamos a seguir o sentido e a referência de sentenças assertivas completas, as quais,

de acordo com Frege (1978: 67), comportam um pensamento, considerado por ele como o

sentido da sentença e entendido como sendo “não o ato subjetivo de pensar, mas seu conteúdo

objetivo, que pode ser a propriedade comum de muitos”. Para ele, do ponto de vista lógico,

sujeito e predicado são as duas partes que compõem um pensamento. Frege (1978: 69)

reconhece ser a referência dessas sentenças o seu valor de verdade, que ele define como a

circunstância de a sentença ser verdadeira ou falsa. Frege ainda esclarece que toda sentença

assertiva, no que diz respeito à sua referência, deve ser considerada como um nome próprio, o

que equivale a dizer que valores de verdade são, para ele, objetos. Preocupado em

fundamentar, ainda mais, a idéia por ele defendida de que os nomes próprios têm referência,

Frege (1978: 68) vincula intrinsecamente a referência ao valor de verdade, alegando que não

nos basta o pensamento, pois estamos sempre em busca de seu valor de verdade, o que só não

ocorre em relação às obras de arte. Desse modo, Frege (1978: 69) defende que “é a busca da

verdade o que nos dirige do sentido para a referência”.

Observe-se que, para Frege, estas outras duas sentenças

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34 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

(3) Lula perde as eleições presidenciais. (4) Lula ganha as eleições presidenciais.

têm a mesma referência, pois a substituição de “perdeu” por “ganhou” faz com que se altere o

seu sentido, já que se altera o seu pensamento, mas não a sua referência. Isso significa que as

duas têm um valor de verdade, falso e/ou verdadeiro, o qual é concernente às sentenças como

um todo, e não à parte destas.

Ao tratar as sentenças subordinadas, o que não se aplica às sentenças destacadas

acima, Frege (1978: 79) aborda, entretanto, algo que merece ser comentado em relação às

sentenças em destaque: o tempo verbal. Frege nos remete ao tempo lingüístico de Benveniste

- o que será discutido na segunda parte deste capítulo - ao dizer que em sentenças como essas

o tempo presente do verbo não indica o presente temporal, o qual ele nomeia “o nosso

presente”. Além disso, enfatiza que somente por intermédio do contexto é possível que se

definam circunstâncias como tempo e espaço em que se dá o fato expresso pela ação verbal.

Dessa forma, Frege mostra, mais uma vez, reconhecer que não se pode interpretar uma

sentença isolada do contexto extralingüístico a que esta se refere.

Embora Frege estivesse interessado no estudo da referência como forma de buscar

estruturar teoricamente a matemática, por considerar tal estudo essencial para as ciências

demonstrativas, tudo o que vimos nos revela que as suas incursões nos domínios da

referência foram de fundamental relevância para os estudos lingüísticos que se desenvolveram

posteriormente acerca desse fenômeno.

2.1.5 Considerações complementares

Nesse percurso histórico, de Sócrates a Frege, observamos uma preocupação do

homem em conceber a referência como, acima de tudo, um processo de estabelecimento de

relações lógicas, o que o conduz à investigação de questões concernentes à relação entre

linguagem e realidade. Nessa investigação, mesmo buscando para tudo uma representação no

mundo objetivo e adotando, para tal, a verdade como critério básico, o homem, contribui, ao

longo do tempo, de forma cada vez mais decisiva, para os estudos lingüístico-discursivos que

se desenvolveriam posteriormente.

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35 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

2.2 O pensamento lingüístico-discursivo

Da Grécia Antiga ao século XVIII, “a língua permaneceu como objeto de especulação,

não de observação” (BENVENISTE, 1995: 20). Somente a partir dos séculos XVIII e XIX,

com o advento da lingüística, a língua emerge como objeto de observação e investigação,

embora, inicialmente, os estudos lingüísticos tenham assumido um caráter estritamente

histórico. Só posteriormente, questões tais como sentido, significado e referência deixaram de

ser contemplados exclusivamente como objeto da filosofia da linguagem e emergiram como

parte da realidade intrínseca da língua, ou seja, e constituíram objeto de atenção da lingüística,

como apresentaremos a seguir, a partir da ótica de cinco estudiosos dos fenômenos referentes

à língua e à linguagem: Mikhail Bakhtin/Volochinov4

Já Benveniste, ao longo de sua trajetória como autêntico lingüista, dedica-se a estudar

a complexidade da linguagem, compreendendo as línguas naturais como o único acesso a esse

universo. Em suas investigações, em que busca lançar luzes sobre o real funcionamento da

linguagem, reconhece ser esta espetacularmente marcada pela “subjetividade” do ser humano

, Émile Benveniste, Oswald Ducrot,

Anne Reboul e Lorenza Mondada.

Bakhtin/Volochínov (1997), buscando estabelecer relações entre linguagem e

sociedade, defendem que o ser humano não pode ser concebido fora das relações sociais, o

que determina que a linguagem seja algo, em sua essência, social. Considerando que todo

signo é ideológico, defendem que a língua é determinada pela ideologia, compreendida por

ele como um espelho das estruturas sociais. Dedicando-se a perscrutar os domínios da língua

e da linguagem sob esse prisma, adentram diversos domínios das ciências humanas,

configurando-se, dessa forma, não como lingüistas genuínos, mas, sim, como um estudiosos

múltiplos e versáteis. Em suas incursões nesses domínios, defendem que toda e qualquer

palavra é plurivalente e que o dialogismo é uma condição não só constitutiva da linguagem e

do sujeito, concebido em uma dimensão histórica e ideológica, como também do sentido do

discurso.

4 Conforme prefácio da obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (1997b), esta foi publicada em Leningrado, em 1929-1930, com a assinatura de V. N. Volochínov. Anos mais tarde, segundo consta também no referido prefácio, descobriu-se que tal obra, assim como tantos outros textos, cuja autoria se atribuía até então a Volochínov, haviam sido escritos por Bakhtin. Hoje essa discussão vem novamente à baila, mas, desta vez, buscando restituir a autoria da obra acima citada e de outros textos a Volochínov. Tendo em vista essa atual falta de precisão quanto à autoria, dentre outras, da obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, optamos, ao reportá-la em nosso trabalho, por fazer referência, simultaneamente, aos dois autores, atendendo, dessa forma, à referência constante na edição por nós consultada.

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que, na condição de sujeito da linguagem, ao colocar a língua em funcionamento, institui a

relação “eu”/”tu”. Benveniste (1989: 20) defende ainda que “uma língua é, primeiro, um

consenso coletivo” e que o seu aprendizado por uma criança representa, de fato, o

aprendizado do mundo do homem (BENVENISTE, 1989: 21). Ou seja, segundo a ótica

benvenistiana (op. cit), o homem, ao apropriar-se da linguagem, adentra o domínio do

“sentido”.

Ducrot, o terceiro desses estudiosos, apresenta-se como um lingüista que, em suas

investigações acerca da língua e da linguagem, ao explorar e elucidar os fenômenos

lingüístico-discursivos, revela manter estreita ligação com a teoria clássica da referência,

trafegando, desse modo, não só pelos domínios da lingüística, como também pelos domínios

da filosofia e da lógica. Aproxima-se de Bakhtin/Volochínov, ao defender que toda

enunciação é polifônica e que o sentido de um enunciado é, em grande parte, decorrência de

uma interpretação, ou seja, é construído, negociado, nas diferentes circunstâncias

comunicativas em que o enunciado ocorre. Em suas análises, tomando como ponto de partida

a enunciação, considera que inúmeros fatores, tais como os psicológicos e os sociológicos, e

não só os lingüísticos, são responsáveis pela pluralidade do sentido.

Anne Reboul e Lorenza Mondada, por sua vez, são lingüistas que observam o

fenômeno da referência a partir de lentes bastante distintas. Mondada e Reboul promovem

uma discussão acerca de questões concernentes à relação que se busca estabelecer, no âmbito

dos estudos sobre a referência, entre linguagem, realidade e sentido. Ao levantarem tal

discussão, trazem à baila - dentre outras questões - o confronto que ainda hoje se observa

entre pontos de vista díspares sobre a função da linguagem, no que diz respeito, por exemplo,

à realidade: afinal, a linguagem tem ou não por função descrever e representar a realidade? Há

ou não relação direta e verdadeira entre as palavras e os objetos? Cada palavra possui ou não

um sentido que lhe é imanente?

Reconhecendo que buscar conhecer e compreender o universo da referenciação

implica, inevitavelmente, buscar conhecer e compreender as questões que constituem esse

universo, discutiremos, a seguir, aquelas que julgamos mais pertinentes, sob a perspectiva dos

estudiosos que consideramos mais significativos, tendo em vista as análises que propomos

desenvolver no terceiro capítulo deste trabalho. Sendo assim, discutiremos aspectos relativos

à significação sob a ótica de Bakhtin/Volochinov; aspectos do processo enunciativo à luz dos

estudos realizados por Benveniste; a noção de referência/referente e os indicadores para a

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37 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

referência, segundo a perspectiva de Ducrot; premissas sobre o fenômeno da referenciação, a

partir das lentes de Anne Reboul e Lorenza Mondada.

2.2.1 Bakthin/Volochínov: o problema da significação

Bakhtin/Volochínov (1997: 128-136), ao discutirem o fenômeno da significação,

vinculam-no à noção de tema, esclarecendo ser este último “o sentido da enunciação

completa” (BAKHTIN;VOLOCHÍNOV, 1997:128), o qual é definido não só pelas formas

lingüísticas que o compõem, mas também por elementos discursivos, o que faz com que o

tema seja dotado de unicidade a cada enunciação. Se, por um lado, Bakhtin/Volochínov

defendem que tanto o tema quanto a enunciação não se repetem, graças ao seu caráter único e

individual, preocupam-se, por outro lado, em elucidar que a enunciação, assim como o tema, é

dotada de um significado. Este, por sua vez, embora se constitua de elementos instáveis e

dinâmicos, é ainda constituído de elementos os quais se repetem, de forma idêntica, a cada

nova enunciação, graças a uma característica da linguagem: a sua convencionalidade.

Para que se compreenda melhor essa característica fundamental da linguagem, faz-se

necessário considerar que as convenções são arbitrárias e procedem de um acordo e de uma

identificação social, o que torna a comunicação algo possível. Além disso, não se pode ainda

deixar de considerar que cada convenção é dependente da situação e/ou do contexto em que

ocorre. Vê-se, assim, que, ao admitir o caráter social da enunciação, Bakhtin (1997) defende a

língua como um fato social resultante da manifestação interindividual entre os falantes e,

conseqüentemente, a interação como algo próprio dos sujeitos e da linguagem. Mais tarde, a

fim de argumentar que as convenções constituem a base para a compreensão e para a

comunicação, Smith (1991) criou uma imagem bastante expressiva ao dizer que “as

convenções são a moeda corrente de cada transação com a linguagem”, à qual recorremos

para ilustrar a importância das idéias apresentadas por Bakhtin quanto à convencionalidade da

linguagem.

Mesmo reconhecendo que esses elementos reiteráveis e idênticos que constituem cada

enunciação são abstratos, por alicerçarem suas bases sobre uma convenção,

Bakhtin/Volochínov (1997: 129) enfatiza que formam “uma parte inalienável, indispensável,

da enunciação”. Mas, ao passo que, segundo a ótica bakhtiniana/volochinoviana (1997: 129),

o tema de uma enunciação não pode ser analisado, uma vez que não comporta segmentações,

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38 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

o mesmo não se verifica quanto ao significado desta. Tal análise revela-se possível a partir do

conjunto dos elementos lingüísticos que compõem o significado, observados em relação com

o todo do qual constituem partes integrantes, ou seja, em relação com a enunciação. Daí

resulta a impossibilidade de se determinar a significação de uma palavra isolada da situação

lingüística e discursiva em que ocorre, embora ao tema, para que se lhe assegure o sentido,

seja necessária alguma estabilidade de significação. Compreende-se, desse modo, que

Bakhtin/Volochínov (1997: 131), quando dizem que “a multiplicidade das significações é o

índice que faz de uma palavra uma palavra”, e não um mero sinal, sustentam que, no interior

de um tema concreto, a significação constitui apenas um vir a ser; algo, portanto,

potencialmente mutável a cada nova situação comunicativa.

Enfatizando ser imprescindível o reconhecimento da distinção entre tema e

significado para que se adentre, com segurança, o campo da significação, considerando que

tema e significado, embora distintos, são indissociáveis, Bakhtin/Volochínov (1997: 131-136)

relacionam à discussão acerca dessa questão o problema da compreensão e o do acento

apreciativo. Quanto ao primeiro, Bakhtin/Volochínov contrapõem o “modo de compreensão

passivo”, no qual se desconsidera o caráter mutável das situações de comunicação e, por

extensão, o caráter mutável das significações, ao “modo de compreensão ativo”, no qual o

reconhecimento da mutabilidade das situações comunicativas e da construção das

significações implica que os parceiros enunciativos orientem-se um para o outro em um

processo interativo, dialogal, responsivo. Por meio dessa contraposição, Bakhtin/Volochínov

(1997: 132) destacam a comunicação como o grande palco em que a significação revela-se

como “o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um

determinado complexo sonoro”, pois “ela só se realiza no processo de compreensão ativa e

responsiva”.

Já quanto ao segundo problema, Bakhtin/Volochínov (1997: 135) asseveram que a

apreciação é imprescindível na construção de uma enunciação, uma vez que esta sempre

compreende, além de um sentido, uma orientação apreciativa. Esclarecendo que a apreciação

não deve ser compreendida como uma significação subjetiva (conotação) em oposição a uma

significação objetiva (denotação), Bakhtin/Volochínov (1997: 135) conferem à apreciação o

status de agente criativo nas mudanças de significação, as quais constituem, na esfera da

evolução histórico-social, um movimento de reavaliação. Para Bakhtin/Volochínov (1997:

136), o caráter provisório da significação deve-se, portanto, à apreciação que se altera a partir

e em função da evolução histórico-social. Vê-se, assim, que, de acordo com a ótica

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39 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

bakhtiniana/volochinoviana (1997: 132), até mesmo a face objetiva da significação é

constituída do acento apreciativo, sem o qual não há sequer palavra.

A fim de ilustrar as idéias apresentadas por Bakhtin/Volochínov acerca da

significação, as quais envolvem, como vimos, noções de tema, compreensão e apreciação,

observemos o seguinte enunciado, tomando-o como em uma enunciação possível:

(5) “Lula está em campanha eleitoral”.

Consideremos que tal enunciado tenha se dado em dois momentos históricos distintos:

em setembro de 2002 e em setembro de 2004. Tanto o sentido quanto o tema desse enunciado,

nesses dois momentos, são completamente diversos, considerando-se que são dependentes da

situação histórica concreta em que tal enunciado é pronunciado. Em setembro de 2002, Lula,

como candidato à eleição presidencial, cujo primeiro turno aconteceria no mês seguinte,

encontrava-se em campanha eleitoral em favor, naturalmente, de sua própria candidatura.

Dois anos mais tarde, já como representante máximo da nação, Lula participa da campanha

eleitoral à prefeitura de candidatos do seu partido político, o Partido dos Trabalhadores (PT).

O que se verifica em relação ao tema e ao sentido do enunciado (5) não se observa no

que diz respeito ao significado do mesmo enunciado, pois, ao mesmo tempo em que tal

significado se constitui de elementos reiteráveis e idênticos, é dotado de um caráter instável e

dinâmico. Isso porque, se, por um lado, são idênticas as relações morfológicas e sintáticas

estabelecidas entre as palavras que constituem esse significado, por outro lado, o caráter

instável e dinâmico deste decorre do fato de o enunciado (5) estar submetido a

acontecimentos históricos distintos os quais, por sua vez, apresentam condições enunciativas

distintas. Pode-se então inferir que, no que diz respeito ao enunciado (5), a mudança de

instância histórica determinou uma mudança das condições enunciativas e, conseqüentemente,

da apreciação social.

Para que melhor se compreenda essa condição de instabilidade e de mutabilidade do

significado no enunciado (5), deve-se considerar que o engajamento de Lula não e´

interpretado pela sociedade brasileira da mesma forma nos dois processos eleitorais acima

mencionados. Isso se deve ao fato de, em setembro de 2002, Lula ter sido um dos candidatos

à eleição presidencial daquele ano e, portanto, ter trabalhado para se eleger, ao passo que, em

setembro de 2004, Lula, então presidente da República, participou da campanha eleitoral

municipal para eleger outros, isto é, para favorecer candidatos do seu partido político. Sendo

assim, a mudança do contexto histórico determina a transformação do contexto apreciativo,

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uma vez que Lula, no processo eleitoral de 2004, foi acusado, por seus opositores políticos e

pela mídia, de favorecer seus candidatos por intermédio do aparato do Estado, ou seja, por

colocar em funcionamento, na disputa eleitoral, a chamada “máquina do Estado”, em

favorecimento oficial a candidatos do PT.

Como vimos, a compreensão dessa enunciação implica o compartilhamento, dentre

outros, de certos conhecimentos referentes ao processo político-eleitoral brasileiro e, mais

especificamente, aos processos de 2002 e 2004, o que envolve não só o compartilhamento do

conhecimento de certas convenções lingüístico-discursivas, como também o de uma

orientação apreciativa. Constata-se, desse modo, conforme asseveram Bakhtin/Volochínov

(1997: 123), que “a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os

interlocutores” e se constrói, portanto, por intermédio de um processo de compreensão sempre

ativa e responsiva.

Acreditamos que o valor apreciativo negativo atribuído, especialmente em setembro

de 20045

Por fim, consideramos pertinente ainda enfatizar que Bakhtin/Volochínov (1997: 128),

ao iniciarem exposição acerca da significação, admitem ser o problema da significação um

dos mais difíceis da lingüística, o que se deve, segundo observam, ao fato de, comumente,

considerar-se a compreensão como algo passivo, e não como algo que se caracteriza pelo

movimento do encontro, do diálogo, isto é, da oposição da contrapalavra do interlocutor em

relação à palavra do locutor (1997: 132). Consideramos, entretanto, que a complexidade dessa

questão se deve, além desse aspecto apontado por Bakhtin/Volochínov, à atitude inversa de se

considerar que a significação é construída, por completo, na interação, à qual atitude

, ao enunciado (5), ao mesmo tempo em que compõe o horizonte imediato de um

determinado grupo social, inscreve-se no horizonte social desses interlocutores, considerando-

se que essa orientação avaliativa está atrelada à gradativa mudança de significação do termo

‘política’, alimentando-a e sendo por ela alimentada. É curioso observar que o processo de

transformação de significação desse termo deu origem a uma ampliação da significação do

mesmo, já que, para tal, inúmeros significados, até mesmo conflitantes, coexistem: desde “a

arte de bem governar os povos” a “astúcia, ardil, artifício, esperteza”. Verifica-se, entretanto,

que este último significado tem se inscrito, com maior força e vigor, no atual horizonte da

sociedade brasileira.

5 Consideramos importante assinalar que, também em 2002, a tal enunciado poderia ser atribuído valor apreciativo negativo, em determinadas circunstâncias, já que o pleito eleitoral daquele ano representava a terceira tentativa consecutiva de Lula como candidato à presidência da República.

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41 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Bakhtin/Volochínov acabam por responder ao elucidar que a significação, ao mesmo tempo

em que é dotada de um caráter instável e dinâmico, constitui-se de elementos reiteráveis e

idênticos.

Consideramos ser essa uma compreensão imprescindível quando se pretende explorar

os domínios da referência/referenciação, pois, igualmente, é necessário que se compreenda

que nem todos os detalhes referenciais são especificados na interação, uma vez que muitos

deles são antes pressupostos para, só depois, serem definidos em termos interlocutivos.

2.2.2 Benveniste: a noção de "pessoa” e a noção de tempo

2.2.2.1 A noção de “pessoa”

Ao discutir a natureza dos pronomes, Benveniste (1995: 277-283) revela que há

aqueles pertencentes à sintaxe da língua ao passo que há outros característicos das "instâncias

do discurso", tomando como exemplo destes últimos os pronomes classificados

tradicionalmente como pessoais. Partindo da noção de enunciação – deste “colocar em

funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1989: 82) –

levanta aspectos do processo enunciativo que não são considerados por teorias centradas na

descrição das formas. Assim, dedica-se a esclarecer que, quando considerados somente como

"instâncias de forma", ‘eu’, ‘tu’ e ‘ele’ são, de maneira equivocada, concebidos igualmente

como pessoas do discurso, pois ‘ele’ não contém a noção de "pessoa".

A partir de uma reflexão a respeito da relação ‘eu/tu’, da construção da relação

enunciador/enunciatário, Benveniste convida-nos a observar e a compreender a atuação das

“pessoas do discurso” na linguagem em uso. Tomando ‘ele’ como contraponto da relação

‘eu/tu’, esclarece que a “não-pessoa”, diferentemente de ‘eu’ e ‘tu’, alude não a si mesma,

mas a uma situação, digamos, “objetiva”. Aqui a palavra “objetiva”, que designa algo referido

pela linguagem, se nos descortina em oposição ao vocábulo “subjetiva”, parecendo enfatizar a

impossibilidade de ‘ele’ vir a atuar como sujeito. A “não-pessoa” configura-se, desse modo,

segundo a perspectiva benvenistiana, como uma noção capaz, ao mesmo tempo, de

permanecer virtual, isto é, de conservar toda a potencialidade do devir, guardando

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simultaneamente a indeterminação e a vocação concernente ao significado, e de atualizar-se,

conquistando existência como objeto único somente na e pela enunciação6

A “não-pessoa” surge, desse modo, como uma noção que guarda latente o incessante

movimento da (re)criação e da (re)invenção, o qual só adquire existência a partir da

subjetividade, ou, melhor dizendo, a partir da manifestação do “eu, a pessoa que enuncia a

presente instância de discurso que contém ‘eu’” (BENVENISTE, 1995: 278). Segundo esse

prisma singular, a "não-pessoa" é dotada de significado a cada vez que referencia a relação

‘eu/tu’ no exercício da linguagem, o que representa dizer que ‘eu’, ‘tu’ e ‘ele’ formam, juntos,

o “triângulo enunciativo”, embora constituam pólos distintos desse mesmo triângulo. O

conceito benvenistiano de “não-pessoa” remete, pois, ao fenômeno da dêixis, ao eixo de

coordenadas “eu-aqui-agora” do falante, compreendido como um ponto de orientação

subjetiva, conforme observado por Bühler

.

7

‘Eu’ e ‘tu’, por sua vez, não podem ser definidos em termos de objeto, já que a

“realidade” à qual se referem é uma “realidade de discurso”, que só se institui pela relação

‘eu/tu’ (enunciador/enunciatário). ‘Eu’ e ‘tu’ são, portanto, co-referenciados pelo ‘ele’ e co-

referenciam o ‘ele’. Dito de outra forma, ‘eu’ só adquire existência, e unicamente só, na

instância na qual se produz, como ser singular, instituindo ‘tu’, como parceiro enunciativo,

para, mudando alternativamente de estado, “co-referirem”. ‘Eu’ e ‘tu’ são, pois, “signos

vazios", não referenciais com relação à "realidade", sempre disponíveis e que se tornam

"plenos" assim que um locutor os assume em cada instância do seu discurso”

(BENVENISTE, 1995: 280). Considerando que são signos, íntima e inteiramente, vinculados

ao exercício da linguagem, não podem existir como signos virtuais, isto é, não carregam

consigo a potência, o vir a ser, uma vez que só existem na atualização; logo, na instância do

discurso. Só existem, pois, na atualização, porque existem como signos virtuais. Pode-se

assim inferir que “as instâncias de eu não constituem uma classe de referência [...]”,

considerando-se que “eu só pode se definir em termos de ‘locução’, não em termos de objetos,

.

6 Gostaríamos de suscitar aqui uma reflexão acerca dessa reduplicação enfática feita por Benveniste (na e pela enunciação), pois será lícito considerar que algo possa ser construído, refletido, referido pela enunciação, sem estar indiciado, de alguma forma, na enunciação? 7 Ao defender que a dêixis se circunscreve à organização de determinadas expressões lingüísticas em relação a uma origem de coordenadas expressa por meio do “eu-aqui-agora” do falante, Bühler (apud MATEU, 1994: 48) lança luzes sobre essa questão, introduzindo a noção de egocentrismo, que representa a orientação subjetiva em torno da qual se organizam as expressões dêiticas. Institui-se, assim, o falante, o seu aqui e o seu agora como o ponto dêitico, o eixo de coordenadas, a origem (“origo”) desse processo. O “origo” constitui, pois, segundo o ponto de vista bühleriano, o eixo central para a compreensão do fenômeno dêitico. É importante, porém, destacar que o fato de se considerar o eixo de coordenadas “eu-aqui-agora” do falante como um ponto de orientação subjetiva não determina que todo e qualquer traço relacionado com o sujeito seja dêitico.

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como um signo nominal. [...] Cada eu tem, assim, a sua referência própria e corresponde cada

vez a um ser único, proposto como tal” (BENVENISTE, 1995: 278).

O fato de a referência ser algo sempre presente e imprescindível à instância de

discurso faz com que ‘eu’ e ‘tu’ estejam permanentemente vinculados a “indicadores”, tais

como os pronomes classificados tradicionalmente como demonstrativos e os advérbios, os

quais se organizam em função dos indicadores de pessoas, delimitando a instância espacial e

temporal que ocorre conjuntamente à presente instância de discurso que contém ‘eu’.

Compreende-se, assim, o fenômeno dêitico a partir da relação entre o indicador e a presente

instância de discurso, considerando que os “indicadores” remetem não à “realidade objetiva”,

mas unicamente à enunciação. Responsáveis por organizar as relações espaciais e temporais a

cada nova enunciação, a esta conferindo dinamicidade e unicidade, esses “indicadores”

manifestam-se inteiramente dependentes da relação ‘eu/tu’.

Segundo esse prisma, a referência é, pois, construída a partir da necessidade contínua

de ‘eu’ estabelecer relação com ‘tu’ e com o mundo (‘ele’), o que faz da instância da

enunciação o grande espaço da referenciação.

2.2.2.2 A noção de tempo

Ao examinar questões relativas à linguagem e à experiência humana, Benveniste

(1989: 68-80) retoma a discussão a respeito da categoria de pessoa, a fim de inserir uma

discussão acerca de outra categoria também fundamental do discurso e essencialmente

vinculada à de pessoa: a categoria de tempo. Antes de apresentar o tempo lingüístico – o

tempo específico da língua – preocupa-se em elucidar outras duas noções do tempo: o tempo

físico e o tempo crônico. Esclarece-nos que o tempo físico mede a vida interior de cada ser

humano, o que representa dizer que esse tempo é variável e, portanto, único para cada

indivíduo, ao passo que o tempo crônico é o tempo socializado, por ser o tempo do calendário,

o qual contém os acontecimentos individuais ou coletivos, dispostos a partir de um momento

axial que fornece o ponto zero do cômputo, como, por exemplo, o nascimento do Cristo. Esse

ponto zero, por referir-se a algo ocorrido no mundo, não pode ser alterado, o que determina a

sua fixidez e, conseqüentemente, o seu caráter intemporal. Isso se deve ao fato de o calendário

não acompanhar o tempo, ser a ele exterior, isto é, os dias, os meses e os anos são apenas

denominações, quantidades fixas, adotadas a partir da observação das forças cósmicas, mas

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vazias de temporalidade. Segundo o calendário, os dias, os meses e os anos repetem-se

respectivamente idênticos uns aos outros, fazendo com que o tempo crônico, estranho ao

tempo vivido, não possa com este coincidir, limitando-se, assim, a situar os acontecimentos

numa linha temporal "objetivável".

O tempo lingüístico, por sua vez, conforme observa Benveniste, revela-se

organicamente ligado ao exercício da fala e, por isso, define-se e organiza-se como função de

discurso, a partir de um eixo de referência: o presente da instância da fala. Esse eixo de

referência funciona como uma linha de separação entre o passado e o futuro, que constituem

referências relativas não ao tempo, mas a visões sobre o tempo; referências estas que, ao

mesmo tempo em que são geradas como tempo presente, funcionam como atualizações deste

tempo. O presente enunciativo, por ser renovado e reinventado toda vez que o ‘eu’ se apropria

da fala constituindo-se como sujeito enunciativo, caracteriza-se, simultaneamente, pela

fixidez e pela flexibilidade, dotando cada acontecimento de unicidade, pois “é pela língua que

se manifesta a experiência humana do tempo” (BENVENISTE, 1989: 74). O tempo da

enunciação é, pois, o tempo real, único, primitivo, dos quais os outros apenas derivam.

Como ainda observa Benveniste, o tempo do discurso é um elemento de

intersubjetividade, uma vez que não se fecha em uma subjetividade completamente estranha e

inacessível ao alocutário. Além disso, não se reduz às divisões do tempo crônico,

comportando as suas próprias divisões, como, por exemplo, aquele que pronuncia "hoje"

localiza um acontecimento como simultâneo a seu discurso; da mesma forma, quando

pronuncia "ontem", localiza um acontecimento como anterior ao seu discurso. Quando,

porém, torna-se necessário fazer uso dessas referências intradiscursivas fora do presente

lingüístico, faz-se imprescindível, de forma a garantir a inteligibilidade da comunicação,

estabelecer a junção entre o tempo lingüístico e o tempo crônico. Isso se faz necessário em

situações de comunicação nas quais o falante transporta a sua visão temporal para fora dos

limites enunciados por "ontem" e por "amanhã", recorrendo, assim, ao emprego de operadores

responsáveis por efetuar a transferência do tempo lingüístico ao tempo crônico, tais como

"antes", “depois”, "há uma semana", "naquela ocasião", etc.

Compreendemos assim, com Benveniste, o tempo como um suporte essencial para as

operações lingüístico-discursivas, logo, para a instauração da realidade discursiva, cujo

parâmetro básico temporal é o presente – o único tempo da enunciação – capaz de, no entanto,

referenciar outros tempos não coincidentes com o tempo da enunciação, como, por exemplo,

um "passado" e um "futuro".

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2.2.2.3 Exemplificando a noção de “pessoa” e a noção de tempo benvenistianas

A charge destacada abaixo, veiculada no jornal Folha de São Paulo, em 22/05/03, bem

exemplifica as idéias apresentadas por Benveniste - a partir das noções de “pessoa” e de

tempo - acerca do processo de

referenciação. Antes, porém, de

analisá-la, gostaríamos de

retomar algumas categorias

examinadas por Benveniste, a

fim de expor e procurar elucidar

a forma de apresentação que

adotamos para cada uma dessas

categorias em nossa análise.

Primeiramente, esclarecemos

que, embora Benveniste não

tenha adotado essa forma de

apresentação, optamos por fazê-

lo, objetivando facilitar a

exposição e a compreensão de

nossa análise.

Observemos, assim, que cada enunciação ou instância enunciativa (En), que constitui

um evento singular, ao construir a sua referência, constitui-se na relação “eu” (E = sujeito-

enunciador) / “tu” (ET = sujeito-enunciatário), a qual se institui em um tempo (T) e em um

espaço (L) discursivos, compondo, desse modo, a tríade enunciativa (enunciador-

enunciatário-referência). A enunciação à qual denominamos enunciação zero (En0), ao se

instaurar no discurso, organiza-se em função do seu “eu” (E0), que institui um “tu” (ET0); do

seu “aqui” (L0) e do seu “agora” (T0). A enunciação zero (En0) é responsável por organizar a

construção e a instauração de novas enunciações (En1; En2; En3...) com as quais estabelece

uma contínua interação. Essas novas enunciações são constituídas, por sua vez, na relação

“eu” (E1; E2; E3...) / “tu” (ET1; ET2; ET3...), em seu tempo (T1; T2; T3...) e em seu espaço (L1;

L2; L3...) discursivos próprios.

Neste texto, observa-se a instauração de duas instâncias enunciativas distintas, En0 e

En1. Primeiramente, um sujeito-enunciador (E0), ao colocar a língua em funcionamento, ativa

Figura 1 - Charge - Folha de São Paulo, 22/05/2003

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uma enunciação (En0) por meio do mecanismo dêitico de lugar "no país das maravilhas",

promovendo o processamento dêitico da espacialização instanciada no "aqui" e no "agora" do

enunciador (E0). O autor institui-se, assim, como enunciador (E0), organizando a enunciação a

partir do seu "aqui" (L0) e do seu "agora" (T0), instituindo, simultaneamente, o enunciatário

(ET0), ao dirigir-se ao leitor.

Referindo-se unicamente a uma "realidade de discurso", constrói-se, dessa forma, a

relação "eu” (E0) e “tu" (ET0). A realidade instituída é um país – o Brasil – marcado, segundo

a ótica de E0, pelo contra-senso, pelo paradoxo, pelo absurdo. A expressão dêitica espacial

“no país das maravilhas” ativa a construção desse referente e dessa realidade concebidos

mentalmente, por meio de uma subjetividade, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Isso

revela que, conforme assevera Benveniste, os indicadores de tempo e de espaço organizam-se

sempre em função dos indicadores de pessoa, o que faz com que se delimite a instância

espacial (L0) e temporal (T0) concomitantemente à instância de discurso que contém “eu”.

Para que esse mundo discursivo possa então ser construído por intermédio da relação

"eu” (E0) e “tu" (ET0), torna-se imprescindível o compartilhamento de conhecimentos gerais e

particulares entre E0 e ET0. É preciso, pois, que os enunciadores compartilhem, dentre outros

conhecimentos, o de que a expressão “no país das maravilhas” remete à história “Alice no

país das maravilhas”, onde tudo, ou quase tudo, é possível, desde um gato ter a habilidade de

aparecer e desaparecer à vontade; de os relógios que não funcionam registrarem o tempo, até

a perda de identidade por parte da personagem central que não tem mais certeza de qual é o

seu nome. Nesse mundo, tudo pode deixar de ser o que era, e tornar-se aquilo em que se

transformou, para depois deixar novamente de ser, tornando-se outro para, em seguida, quem

sabe, retornar à “origem” e, assim, sucessivamente. Pode-se assim dizer que, no mundo

discursivo instituído por E0, a expressão dêitico-espacial “no país das maravilhas” está a

representar o país “Brasil”. Ou, melhor dizendo, está convidando o “Brasil” a ser “o país das

maravilhas” em En0. Sendo assim, “Brasil” e “País das Maravilhas” são co-referentes, mas

somente nesse mundo discursivo instituído por E0.

En0 parece também ser ativada por uma dêixis temporal não marcada formalmente. O

presente – o tempo da enunciação – parece referenciar, implicitamente, em En0, um outro

"tempo" não coincidente com o tempo da enunciação, mas por este referenciado. O tempo do

discurso, por ser um elemento de intersubjetividade, como observa Benveniste, referencia

esse outro "tempo" somente a partir da relação "eu” (E0) e “tu" (ET0), o que exige, mais uma

vez, o compartilhamento de um conhecimento não só geral, como também específico entre E0

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e ET0. Parece-nos que a “explicitação” dessa atualização do tempo da enunciação revela-se,

nesse caso, dependente de um conhecimento mútuo construído não só em En0, mas

anteriormente a esta. Torna-se, pois, imprescindível que o “eu” e o “tu” benvenistiano

compartilhem o que Tracy (apud MATEU, 1994: 56) denomina de “sistema de instruções

convencionalizado”. Com base nesse conhecimento mutuamente construído, pode-se dizer

que, em En0, o tempo zero (T0) referencia um "presente" contínuo que, pelo fato de ser

contínuo, parece ter início no passado, o que faz com que o tempo da enunciação referencie,

concomitantemente, um "passado" e um "presente". Essa atualização do tempo da enunciação

parece-nos poder, dessa forma, ser interpretada em função dos conhecimentos ativados pela

expressão dêitico-espacial “no país das maravilhas”: o que era deixou de ser, mas voltou a ser.

Ou melhor, no mundo discursivo instituído por E0, a era Fernando Henrique, embora pertença

ao “passado”, teima em atualizar-se ao ser continuamente evocada, no “presente”, pelas ações

do presidente Lula.

Nesse mundo discursivo fundado por E0, o que parece estar em jogo é a representação

da construção do papel social de presidente da República. Denuncia-se, assim,

implicitamente, as dificuldades experimentadas por Lula-retirante nordestino, por Lula-

torneiro mecânico, por Lula-sindicalista e por Lula-candidato à Presidência da República em

construir uma nova identidade: a de Lula-Presidente. Segundo a ótica de E0, o Presidente Luiz

Inácio Lula da Silva parece reconhecer, no início de seu mandato, a necessidade de construir

para si uma nova imagem que atenda aos diferentes segmentos da sociedade brasileira que

pactuaram com a sua candidatura e o levaram ao poder. E0 parece, portanto, por meio de um

jogo referencial, ter por finalidade denunciar o conflito vivenciado pelo Presidente Luiz

Inácio da Silva na construção da imagem Lula-Presidente: o de não poder negar nem assumir,

por completo, o perfil de político de esquerda que o caracterizou até ser eleito. Esse

movimento conflitivo de construção de uma nova imagem parece ser encarado por E0 como

sendo um movimento em direção à adoção de uma postura conservadora, caracterizada pelo

continuísmo das ações do governo anterior, ou melhor, pelo medo de assumir uma identidade

própria, capaz de romper, de forma significativa, com a gestão de seu antecessor, o que,

segundo a perspectiva de E0, parece ser evidenciado no campo das ações políticas, mas

negado no campo da palavra.

Observa-se, desse modo, que En0 instaura-se a partir da referenciação da relação “eu”

(E0) e “tu” (ET0), organizando-se a partir do eixo do “eu-aqui-agora” do locutor ao se instituir

como enunciador e instituir, simultaneamente, neste “aqui” (L0) e neste “agora” (T0), o

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enunciatário. Para que a relação “eu” e “tu” seja construída, os sujeitos-enunciadores

precisam, necessariamente, compartilhar conhecimentos referentes à construção da imagem

Lula-Presidente, o que envolve o conhecimento de aspectos não só da vida pública de Luiz

Inácio Lula da Silva antes e depois de sua eleição à Presidência da República, como também

de aspectos da vida pública de seu antecessor. Só assim torna-se possível ao locutor

constituir-se como sujeito-enunciador e, concomitantemente, projetar a imagem de seu

interlocutor, buscando, dessa forma, constituí-lo como enunciatário. Nesse processo, “eu” e

“tu”, ao co-referirem, co-referenciam, ao mesmo tempo, a “não-pessoa” (o “ele”

benvenistiano): a construção da imagem Lula-Presidente.

Uma segunda enunciação (En2), regulada pela enunciação zero (En0), instaura-se a

partir de um verbo (uia/olha) antecedido de travessão (sinalizador de “diálogo”) e seguido de

exclamação (nesse caso, sinalizador de surpresa, de espanto). Ao constituir-se uma nova

enunciação (En1), institui-se, simultaneamente, um novo enunciador (E1), que organiza a

enunciação a partir do seu "aqui" e do seu "agora", e um novo enunciatário (ET1). Vale

destacar que ET0 é também enunciatário em En1. Essa nova enunciação é ativada,

primeiramente, por meio de um verbo no imperativo (“uia”), o que sugere que o tempo

primitivo referencia em En1 um “tempo presente”, não coincidente, entretanto, com o tempo

da enunciação. “Uia” funciona, assim, como um marcador discursivo, responsável por não só

ativar, mas também estreitar a interação entre os sujeitos-enunciadores. Essa ativação se dá

também por intermédio de uma dêixis temporal (“está fazendo”), uma dêixis espacial (“ali”) e

pelo mecanismo dêitico de lugar "no país das maravilhas", se considerarmos que a imagem

que compõe o texto remete ao “país das maravilhas”.

Enquanto o “Brasil” torna-se o “País das Maravilhas” e “Lula” torna-se “Fernando

Henrique Cardoso” no mundo discursivo fundado por E0, em En1 o mesmo não se dá, pois E1

mostra-se perplexo ao acreditar ver Fernando Henrique refletido na lagoa, identificando-o

como alguém separado, distinto de si. Importa aqui destacar que a imagem refletida na lagoa é

a do próprio Lula, embora este não a reconheça, reconhecendo, em sua imagem, a imagem de

Fernando Henrique. Mesmo sem compreender o que acontece, reconhece, perplexo, o absurdo

da situação, o contra-senso, o que, nesse sentido, faz com que “o país das maravilhas” seja

também evocado em En1. Pode-se assim dizer que a realidade instituída em En1 é o “conflito

e/ou crise de identidade” experimentados pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos

primeiros meses de seu governo. “No País das Maravilhas”, a personagem Alice experimenta

perplexidade semelhante quando se vê perdida na lagoa de lágrimas:

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Puxa! Puxa! Como tudo está tão estranho hoje! E ontem as coisas estavam tão normais! O que será que mudou à noite? Deixe-me ver: eu era a mesma quando acordei de manhã? Tenho a impressão de ter me sentido um pouco diferente. Mas se eu não sou a mesma, a próxima questão é: ‘Quem sou eu?’ Ah! Esta é a grande confusão!

A grande diferença de Alice em relação ao E1 reside no fato de este não ter

consciência de que a imagem refletida na lagoa é a sua, e não a de Fernando Henrique. Mas

tanto Alice quanto Lula têm em comum a perda da identidade, consciente em um e

inconsciente em outro, e a perplexidade. Torna-se aqui, mais uma vez, imprescindível

ressaltar que “Brasil” e “País das Maravilhas”, assim como “Lula” e “Fernando Henrique

Cardoso”, só são co-referentes no mundo discursivo instituído por E0.

“Está fazendo” referencia o acontecimento no presente contínuo, sugerindo, além de

continuidade, concomitância de ações. Sendo assim, mais uma vez, o tempo zero (T0)

referencia um “presente” que, pelo fato de ser contínuo, parece ter início no passado, o que

faz com que o tempo da enunciação referencie, simultaneamente, um "passado" e um

"presente". Nesse caso, essa atualização do tempo primitivo parece denunciar que, embora de

forma inconsciente, Lula (E1) governa com/como Fernando Henrique, introjetando as ações

do governo FHC. Desse modo, “passado” e “presente” parecem se mesclar, já que o

“passado”, por ser constantemente evocado, reluta em deixar de ser “presente”.

A expressão dêitico-espacial “ali”, para que seja interpretada, precisa ser posta em

relação com outras duas expressões dêitico-espaciais: “aqui” e “lá”. O mecanismo dêitico de

espaço “ali” parece situar-se entre “aqui” e “lá”. Enquanto “aqui” sugere proximidade daquele

que enuncia, “lá” sugere distanciamento em relação a este. Quanto a “ali”, pode-se dizer que

se situa numa posição intermediária, ou seja, nem tão perto daquele que enuncia, nem tão

pouco longe deste. Sendo assim, no texto em estudo, o elemento dêitico “ali” promove tanto

uma orientação física quanto uma orientação avaliativa daquele que enuncia. Sendo assim, ao

mesmo tempo em que E1, ao não perceber a sua imagem, mas, sim, a de Fernando Henrique,

refletida na lagoa, nem tão perto, nem tão longe de si, não se percebe, no que diz respeito às

ações de governo, nem totalmente independente de nem totalmente subordinado a Fernando

Henrique. Aí parece estar a razão do conflito e/ou crise de identidade tematizados em En1. A

dêixis, nesse caso, não só no que concerne ao mecanismo dêitico de espaço “ali”, como aos

demais mecanismos dêiticos instanciados no “eu-aqui-agora” dos enunciadores (E0 e E1),

funciona, principalmente, como um mecanismo de modalização, como um qualificador do

referente.

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50 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Em suma, o texto em análise expõe o processo de construção da identidade Lula-

Presidente, segundo a ótica de dois enunciadores (E0 e E1), o que revela, como vimos, dois

universos não só distintos, como também conflitantes, em que se evidencia um jogo paradoxal

entre o ser (Lula = Lula) e o não-ser (Lula = FHC) e aos quais só temos acesso por

intermédio de elementos lingüísticos. O processo de construção de sentido(s) para o texto é

ativado a partir da instauração da relação “eu”/”tu”, que, uma vez instaurada, acessa esses

dois universos, identificando os seus respectivos referentes e promovendo entre eles um

movimento contínuo não só de interação, como também de integração. Sendo assim, pode-se

dizer que o processo de produção de sentido só se completa com a integração desses dois

universos.

Constatamos, pois, por meio desse exemplo, conforme assevera Benveniste (1989:

84), que “a referência é parte integrante da enunciação”, o que representa dizer que a relação

“eu”/”tu” só se constitui, no processo de construção de sentido, por intermédio de operações

de referência. Compreende-se, assim, sob um prisma discursivo, o fenômeno da

referenciação.

2.2.3 Ducrot: a noção de referência/referente e os indicadores para a referência

2.2.3.1 A noção de referência /referente

Em seus estudos acerca da referenciação, Ducrot (1984: 418-437) mostra reconhecer

que essa questão envolve uma série de problemas ligados não só à filosofia e à lógica, mas

também à lingüística e à análise do discurso. Sendo assim, sem renunciar ao viés filosófico e

lógico, define referência como a orientação existente em todo ato de fala para a realidade do

discurso, isto é, para aquilo que o discurso institui como realidade. Desse modo, a

referenciação deixa de ser concebida como uma mera orientação para uma realidade objetiva,

já previamente fixada e, portanto, preexistente ao discurso, para revelar a necessidade deste de

referir sempre, fundando a sua própria realidade, o que só se torna possível graças ao fato de

as línguas naturais serem dotadas do poder de construir mundos discursivos, como, por

exemplo, um “universo de discurso” imaginário (DUCROT, 1988: 229).

Considerando-se que a palavra constantemente pressupõe algo em relação a um

mundo exterior dotado de uma realidade própria que independe da realidade discursiva, ao

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51 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

qual ela precisa continuamente colocar-se em confronto para significar, não é a palavra que

contém a força geradora da significação, mas sim o discurso. A palavra não é, pois, o objeto

ou o mundo referido, mas ela os representa, da mesma forma que o referente não é a realidade

dita objetiva, mas sim aquela que a referência tenciona descrever ou transformar, isto é, a

realidade do discurso.

Pode-se assim dizer que, para Ducrot, o referente é tudo aquilo que se constrói sobre

um objeto, um fato. É aquilo em que pensa o sujeito referenciador, é aquilo que o sujeito

referenciador julga que ele (referente) é. Ressalta-se que, nessa concepção, o sujeito

referenciador corresponde à figura do sujeito enunciador, o que, entretanto, não parece

pressupor que tal concepção conflita com aquela segundo a qual a construção do referente

implica a negociação dos interlocutores. Para uma melhor compreensão dessa questão,

observe-se o seguinte: o fato de o referente ser o que se descreve dele faz não apenas com que

sejam destacadas determinadas descrições em detrimento de outras, porém, mais que isso,

com que traços do referente possam ser ignorados, objetivando-se evidenciar aquilo que, de

fato, deseja-se tematizar. Isso sugere que a seleção do que será objeto de referência cabe ao

enunciador, em função dos objetivos que almeja alcançar, mas não se pode, em hipótese

alguma, afirmar que exclui a participação do enunciatário nesse processo.

Ao contrário, evidencia ainda mais a sua importância, se se considerar que as escolhas

são feitas pelo enunciador em função dos efeitos de sentido que visa alcançar, o que só é

possível caso essas escolhas sejam orientadas por todos os fatores que compõem a situação

comunicativa em que ocorrem, dentre os quais se incluem os participantes desta. Vê-se,

assim, que o processo de referenciação pressupõe, necessariamente, o estabelecimento da

relação “eu/tu”, essencialmente interativa, defendida por Benveniste, o que, entretanto, é

importante destacar, não representa dizer que os objetos de referência são especificados

unicamente em termos interlocutivos.

Quanto a esse aspecto, torna-se de fundamental relevância esclarecer que, se há

particularidades referenciais que decorrem da interação e que, portanto, demandam-na para

serem definidas, não se pode desconsiderar que os objetos de referência, antes de serem

determinados pelo discurso, são pressupostos pelos falantes, uma vez que são socialmente

construídos. Vale aqui lembrar que os lógicos medievais, no trato da representação, já se

preocupavam com aspectos semelhantes a este no que concerne, por exemplo, à ocorrência de

termos como ‘homo’ em proposições universais, as quais, sob o ponto de vista lógico daquela

época, deveriam estar submetidas à doutrina da implicação existencial.

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52 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Esclarecido esse aspecto, é importante lembrar ainda que, embora determinado pelo e

construído no discurso, o referente situa-se fora deste, o que se justifica graças à necessidade

de se representar ou de se construir algo diverso da própria linguagem. Mas, mesmo situado

fora do discurso e distinto da linguagem, segundo a ótica ducrotiana, o referente conquista

singularidade a cada nova situação em que é referido, tornando-se dizível somente pelo

discurso que o refere. O referente é, portanto, segundo esse prisma, concebido a partir da

observação da realidade objetiva por parte da subjetividade do sujeito referenciador, ou,

melhor dizendo, é concebido mentalmente, por meio de uma subjetividade, ao mesmo tempo,

individual e coletiva. Infere-se daí que, para Ducrot, o real é sempre uma imagem, pois não

temos acesso a ele senão por meio de representações individuais e sociais.

2.2.3.2 Os indicadores para a referência

Ducrot (1988: 231-233) busca, ainda, explicitar as condições que a língua apresenta

para se referir a objetos, ou seja, para que, segundo a teoria da suppositio desenvolvida na

Idade Média, construam-se terminus (termos), os quais constituem indicadores para a

referência e representam condição indispensável para remissão a uma aliquid (coisa). Dentre

esses indicadores, a partir dos quais se promoveu o avanço da Teoria da Referência, Ducrot

(1988: 231-233) destaca as descrições definidas (descrição de um objeto), os demonstrativos

(anafóricos), os dêiticos (exofóricos), os determinantes (anafóricos) e os nomes próprios

(proximidade com os dêiticos).

As descrições definidas são compreendidas por Ducrot (1988: 231) como expressões

que contém um nominal, o qual tem por função descrever o referente e, conseqüentemente,

traduzir o sentido de tais expressões, que devem vir precedidas de artigo definido ou de

pronome possessivo. Ducrot (1988: 231) esclarece que a unicidade do objeto nem sempre é

explicitada lingüisticamente, mas, sim, pressuposta pelos falantes envolvidos na situação de

comunicação, o que pode ser observado neste fragmento do discurso proferido por Lula no 8º

CONCUT8

8 Disponível em: http://.cut.org.br/.

, em 04/06/03: “Os preconceituosos contra mim diziam assim: como é possível o

Lula governar um país, se ele não sabe falar inglês? Como é que ele vai conseguir conversar

com o Bush, com o Tony Blair?”

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53 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Nesse trecho do discurso, Lula, ao empregar a descrição definida “os

preconceituosos”, refere-se à parcela da elite brasileira que, nas três eleições presidenciais

consecutivas em que ele foi derrotado, não apoiou a sua candidatura, tomando, para tal, como

um dos argumentos, o fato de ele não ter uma boa escolaridade, condição esta, segundo esse

segmento da sociedade, imprescindível ao representante máximo de uma nação. Pode-se

afirmar que, nessa situação específica de comunicação, a expressão “os preconceituosos” foi

dessa forma interpretada por aqueles que compunham o auditório do congresso, se

considerarmos que estes sempre acompanharam e apoiaram, de perto, a trajetória política de

Lula. Sendo assim, facilmente associariam tal expressão àqueles que, no Brasil, sempre

defenderam os bancos escolares como o único passaporte legítimo capaz de autorizar o acesso

ao Palácio do Planalto e, apoiando-se, dentre outras, nessa tese, repudiaram a ascensão de um

torneiro mecânico ao poder máximo da nação.

Os nomes próprios são apresentados por Ducrot (1988: 231) como o segundo meio

oferecido pela língua para a referência a objetos. Ducrot (1988: 232) apresenta um argumento

genérico sobre a tese de Frege de que os nomes próprios possuem sentido, ao dizer que “o

nome próprio incorpora pelo menos um esboço de descrição”. Quanto a esse segundo meio

disponibilizado pela língua para referir objetos, Ducrot (1988: 232) aborda ainda uma outra

questão que diz respeito à especialização dos nomes próprios para determinadas espécies. O

nome “Lula”, apelido conferido ao atual presidente da República do Brasil, na época em que

militava no meio sindical, e, ainda nesse período, incorporado por ele ao seu nome de

batismo, parece-nos possibilitar observar, como exposto a seguir, o que Ducrot busca

sustentar a esse respeito.

Para a sociedade brasileira, ao longo dos últimos 20 anos, o nome próprio “Lula” vem

congregando e ampliando uma série de informações concernentes ao seu portador, tais como

representante das classes menos favorecidas, sindicalista, político de um partido de esquerda,

candidato à presidência da República do Brasil e, finalmente, presidente da República do

Brasil. Essa congregação e ampliação de informações acabam por formar uma rede de

descrições, o que, segundo Ducrot (1988: 232), consiste no sentido desse nome próprio. Ao

incorporar o nome “Lula” ao seu nome de batismo, já durante a sua trajetória como homem

público, Luiz Inácio parece desejar vincular, em definitivo, a sua imagem ao meio sindical e à

esquerda política. Isso se considerarmos não só o fato de que Luiz Inácio passou a ser

chamado de e conhecido por Lula no meio sindical, como também o de a incorporação oficial

do apelido ao nome de batismo ter se dado no período em que Luiz Inácio emergia como líder

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54 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

sindical, pouco antes de emergir como líder de um partido político de esquerda. Quanto a esse

aspecto, faz-se ainda necessário observar que um apelido, para que seja, dessa forma,

incorporado a um nome, precisa, necessariamente, ter uma extensão social; a sua importância

precisa, pois, estar assegurada por uma rede causal de descrições.

Como terceiro meio para referir objetos, Ducrot (1988: 232) aponta os demonstrativos,

preocupando-se, entretanto, em esclarecer que esses meios só tornam efetiva a referência caso

estejam vinculados, explícita ou implicitamente, a substantivos, uma vez que são estes “que

recortam o continuum sensível num mundo de objetos”. Por fim, como recursos

disponibilizados pela língua para referir objetos, Ducrot (1988: 232-233) apresenta os dêiticos

e os determinantes, elucidando que os referentes dos dêiticos só podem ser definidos se

vinculados aos interlocutores, o que faz com que, por exemplo, os demonstrativos e os nomes

próprios comportem dêiticos. Ducrot destaca ainda a importância do emprego dos dêiticos,

ressaltando que, explícito ou implícito, é esse emprego que torna possível o processo de

referência. A função de determinantes, por sua vez, é exercida por certas classes de palavras

como o artigo definido, os pronomes possessivos e os pronomes demonstrativos, os quais,

segundo Ducrot (1988: 233), são responsáveis por promover a passagem do sentido para a

referência.

O seguinte fragmento do discurso do presidente Lula no 8º CONCUT

Pois bem, meus companheiros e minhas companheiras, eu quero dizer para vocês que olhem bem nos meus olhos, e tenham a certeza que este companheiro, torneiro mecânico, nordestino de Pernambuco, que perdeu 3 eleições, que não desistiu em nenhum momento, e, por conta e responsabilidade de vocês, chegou à Presidência da República, não esquece e não irei esquecer nenhum dos compromissos que assumi na minha história política.

ilustra, de forma singular, a ocorrência desses três últimos recursos apresentados por Ducrot.

O pronome demonstrativo “este” contido na expressão “este companheiro” aponta para o

objeto “Lula”, desempenhando a função de demonstrativo, dêitico e determinante. Nessa

tripla função, designa o objeto em relação não só à primeira pessoa do discurso, situando o

“eu” no espaço (“aqui”) e no tempo (“agora”) discursivos,

... olhem bem nos meus olhos, e tenham a certeza de que este companheiro...

como também o designa em relação à terceira pessoa do discurso, situando o “ele” no espaço

(“aqui”/”lá”) e no tempo (“ontem”) discursivos,

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... e tenham a certeza de que este companheiro, torneiro mecânico, nordestino de Pernambuco, que perdeu 3 eleições, que não desistiu em nenhum momento, e, por conta e responsabilidade de vocês, chegou à Presidência da República, não esquece....

Ao empregar a 3ª pessoa, o enunciador deixa de se definir como “eu”, isto é, como

aquele que enuncia a presente instância do discurso, e passa a ser definido em termos de

objeto, que constitui as suas origens, a sua militância sindical e política, enfim, o seu passado

(‘... torneiro mecânico, nordestino de Pernambuco, que perdeu três eleições, que não desistiu

em nenhum momento,... ’). Imediatamente em seguida, com o emprego da 1ª pessoa do

discurso (não esquece e não irei esquecer nenhum dos compromissos que assumi na minha

história política’), o locutor se define novamente como “eu”. Assim, parece promover a

ruptura entre o passado e o presente/futuro, instituindo uma nova realidade discursiva: ontem

/ companheiro; hoje / Presidente da República. Ao mesmo tempo em que a alternância das

pessoas do discurso situa o locutor e suas ações em relação ao tempo e ao espaço, situa-o em

relação a si mesmo, instaurando, entretanto, instâncias e mundos discursivos distintos. Essa

alternância parece revelar um conflito entre dois lugares sociais distintos, o do companheiro

(“ele”) e o do Presidente da República (“eu”), os quais acabam por compor um mesmo espaço

caracterizado pela necessidade de o locutor continuar ocupando o lugar do companheiro e

pela dificuldade em assumir, de fato, o seu mais recente lugar: o de Presidente da República.

Concorrem, pois, para revelar essa dualidade - além do emprego de verbos ora na 1ª,

ora na 3ª pessoa do discurso, em referência a um único objeto (“Lula”) - o emprego de

elementos dêiticos como os possessivos “meus” / ”minha(s)” e o demonstrativo “este”. Tais

elementos funcionam como “determinantes” responsáveis por conferir um referente ao nome

próprio “Lula”, promovendo, assim, a passagem do sentido desse nome ao seu referente.

2.2.4 Mondada e Reboul: premissas sobre o processo de referenciação

Após longo período em que, conforme apresentado anteriormente, o fenômeno da

referência revelava-se como alvo de atenção de estudos relativos exclusivamente à filosofia e

à lógica ou sob forte influência destes, a lingüística contemporânea emerge como palco em

que se encontram duas tendências notadamente opostas no que diz respeito ao estudo desse

fenômeno. Grosso modo, de um lado, encontram-se os estudiosos que defendem a concepção

segundo a qual a língua não é um “sistema de etiquetas” que tem por função conformar-se aos

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56 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

objetos, o que determina a argumentação de que não há uma correspondência direta e

verdadeira entre as palavras e os objetos, isto é, de que as palavras não possuem um sentido

que lhes é imanente. De outro lado, encontram-se aqueles que, por sua vez, defendem que a

linguagem tem por função descrever e representar a realidade e que as palavras possuem

sentido preciso. Como representante dessa primeira tendência, destacamos Lorenza Mondada

e, como representante da segunda, Anne Reboul.

2.2.4.1 Lorenza Mondada

Mondada (2003: 52), ao defender a ausência de uma ligação direta e verdadeira entre

as palavras e os objetos, critica aquilo que comumente se denomina concepção imanentista do

sentido, o que, de acordo com a sua ótica, constitui um modelo fundamentado em um

mapeamento das palavras sobre os objetos, isto é, de uma cartografia dos objetos do mundo

considerado real, efetivada por intermédio da referência e da nomeação. Para Mondada (2003:

20), as atividades humanas, cognitivas e lingüísticas é que conferem, de fato, um sentido ao

mundo, pois o referente só é construído “na intersubjetividade das negociações, das

modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo”. Segundo esse

prisma, o referente - concebido como um objeto discursivo - apresenta-se como fruto de uma

versão pública do mundo, a qual, determinada por fatores sociais e culturais, constrói-se não

só discursiva, mas também cognitivamente.

Nesse processo de construção, o mundo é descrito a partir do emprego de categorias

consideradas por Mondada (2003: 23-24) como instáveis e flexíveis, tanto sincrônica quanto

diacronicamente. Assim, o objeto Luiz Inácio Lula da Silva pode ser sincronicamente

referido, por exemplo, a um só tempo, em agosto de 2006, como o presidente da República

Federativa do Brasil e como o candidato do PT à presidência da República Federativa do

Brasil. Diacronicamente, pode-se observar que, em 1987, Lula era considerado como alguém

radical e como uma ameaça à estabilidade política e econômica do País por uma parcela

significativa da sociedade brasileira e comunidade política, econômica e empresarial

internacional. Já em 2002, essa mesma parcela da sociedade brasileira e da comunidade

internacional passou a referi-lo como ponderado, sensato, bom negociador e, ao invés de

ameaça, como uma solução para os graves problemas sociais, políticos e econômicos da

nação. Vale notar ainda, quanto a esse aspecto, que, em 1987, enquanto uma parcela da

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57 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

sociedade brasileira abominava a idéia de Lula ocupar a presidência da República, outra

parcela o apoiava incondicionalmente.

O fato de, no mesmo espaço de tempo, ou seja, sincronicamente, Lula ser, por uns,

considerado uma ameaça e, por outros, uma solução, ilustra a preocupação de Harvey Sacks

(apud MONDADA, 2003: 23) de observar e compreender como os sujeitos, em suas práticas

sociais, resolvem o que ele denomina “problema de decisão de dependência”, a partir da

seleção de uma categoria em detrimento de uma outra. Mais que isso, tal fato revela que, de

tais escolhas, muitas vezes decorrem conseqüências significativas para aquele que é referido

por esta ou aquela categorização (SACKS apud MONDADA, 2003: 23). No caso em questão,

observa-se que o rótulo de ameaça parece ter contribuído para o fracasso de Lula não só nas

eleições presidenciais de 1987, mas também nas outras duas a esta subseqüentes, mesmo que,

ao longo de todo esse período, Lula contasse com o apoio sempre incondicional de uma

significativa parcela da sociedade brasileira. Observa-se, desse modo, que, em contextos

discursivos, a referência a Luiz Inácio Lula da Silva percorre, a um só tempo ou em

momentos distintos, diferentes categorias. Isso revela, conforme o ponto de vista defendido

por Sacks e seguido por Mondada (SACKS apud MONDADA, 2003: 23), que o mais

importante no estudo da categorização não é avaliar se a categoria selecionada é ou não a

mais correta no que diz respeito à sua adequação àquilo a que se refere, mas, sim, observar, a

partir da descrição minuciosa de procedimentos lingüísticos e sócio-cognitivos, como os

sujeitos, em suas práticas sociais situadas, referem-se uns aos outros. Vale notar que, em

especial, no âmbito da política, pode-se dizer que a escolha de uma categoria em detrimento

de outra tem implicações, não raro, ainda mais abrangentes e expressivas, uma vez que não

afeta somente o objeto referido. Isso se explica pelo fato de a escolha de um representante em

detrimento de outro(s) - o que parece, como vimos, encontrar explicações na seleção de

categorias lingüísticas - provocar conseqüências significativas para todo e qualquer segmento

social.

Lançando mão de outros exemplos que, como esses, colocam em evidência a

problemática da categorização apontada por Sacks (apud MONDADA, 2003: 23), Mondada

(2003: 33) defende que não há, de fato, uma correspondência entre as palavras e os objetos, o

que torna imprescindível a conformação das palavras ao referente no contexto em que estas

ocorrem, e não no mundo objetivo, isto é, no mundo considerado real. Através dessas lentes, o

referente, ou seja, o objeto de discurso só se constrói no decorrer do processo de

referenciação, evidenciando, desse modo, que não há descrição única, universal e atemporal,

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uma vez que tal processo, invariavelmente, situa-se em práticas sociais (MONDADA, 2003:

29). Em síntese, a partir dessas lentes, o processo de referenciação se caracteriza por

promover um ajustamento das palavras aos objetos e tal ajustamento se faz em relação não ao

referente inserido no mundo objetivo, mas em relação ao contexto, o que determina que a

construção do objeto de discurso se realize, por completo, ao curso do próprio processo de

referenciação. Partindo, pois, do princípio de que “as categorias não são nem evidentes nem

dadas de uma vez por todas” (MONDADA, 2003: 28), Mondada defende que a construção

dos objetos de discurso se processa cognitiva e discursivamente graças à representação

cognitiva socialmente compartilhada do mundo objetivo e ao conhecimento estabilizado

acerca das categorias empregadas em cada situação comunicativa.

Observa-se que, concebida dessa forma, a referenciação se apresenta como “uma

construção colaborativa de objetos de discurso” (MONDADA, 2003: 35), uma vez que os

sistemas cognitivos humanos aparentam estar conformados à construção de categorias que se

revelam dotadas de flexibilidade, e não de rigidez resultante de restrições impostas pela

materialidade do mundo (MONDADA, 2003: 24). Mas, se, por um lado, compreender a

referenciação como “uma construção colaborativa de objetos de discurso” pressupõe a

construção de categorias flexíveis, por outro, pressupõe certa fixidez, uma vez que, para que

se efetive a construção colaborativa desses objetos, faz-se necessário que os sujeitos

responsáveis por tal construção tenham, acerca dessas categorias, um conhecimento prévio

estabilizado. Caso contrário, a construção colaborativa do referente torna-se inviável, o que

pressupõe, por sua vez, que, no que diz respeito à construção de objetos discursivos, nem tudo

se opera somente ao longo do processo de referenciação.

Com base no exposto, observa-se que Mondada defende, em síntese, as seguintes

premissas básicas e complementares: (i) os objetos discursivos não são estabelecidos, a priori,

de acordo com propriedades intrínsecas do mundo (MONDADA, 2003: 34); (ii) tanto a

mudança quanto a instabilidade constituem dimensões próprias do discurso e da cognição

(MONDADA, 2003: 21); (iii) as descrições do mundo são, necessariamente, incompletas

(MONDADA, 2003: 40). Ao apresentar tais premissas, Mondada (2004: 434) defende o ponto

de vista de que conceber o mundo como um conjunto de signos ofertados à leitura, em que

estes, de maneira transparente, remetem ao mundo é uma forma ultrapassada de compreender

o fenômeno da referência. Esse ponto de vista é defendido considerando-se que o referente

não preexiste ao discurso, pois, antes de ser um objeto do mundo, apresenta-se como um

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59 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

objeto do discurso, já que a referência se processa por intermédio de práticas sociais

multimodais e não somente lingüísticas (MONDADA, 2004: 439).

Em contrapartida, Mondada (2004: 449) propõe que a problemática da referência seja

deslocada de um quadro estático e abstrato para um quadro dinâmico. Para ela (MONDADA,

2004: 449), enquanto, no primeiro quadro, formas lingüísticas não são postas em

correspondência com referentes extra-discursivos, o segundo constitui um quadro centrado

sobre práticas de referenciação, as quais implicam uma organização não só da fala, mas

também do espaço e do contexto em que esta ocorre e, portanto, da “materialidade” que é

modificada a cada nova e única enunciação.

2.2.4.2 Anne Reboul

Reboul (2000), por sua vez, adota uma postura, por ela denominada realista, em

oposição à defendida, por exemplo, por Mondada, a qual Reboul classifica de idealista. Na

defesa de seu ponto de vista, admite (REBOUL, 2000: 45) que, de fato, conforme sustentado

pelos idealistas, são necessários numerosos conhecimentos “extra-lingüísticos” para que se

explique a interpretação dos enunciados e principalmente a atribuição de referentes, mas

ressalta que a posição idealista faz comodamente desaparecerem as seguintes dificuldades às

quais uma posição realista não pode se furtar: (i) as expressões referenciais não referem

sempre; (ii) mesmo quando é esperado que estas refiram, elas não referem sob pena de

reenviarem a um objeto do mundo; (iii) as palavras são, com freqüência, vagas ou empregadas

de forma vaga.

Para Reboul (2000: 45), o não enfrentamento dessas dificuldades acaba conduzindo

alguns idealistas a defenderem comodamente que: (i) a linguagem não é distinta da realidade

extralingüística; (ii) a linguagem não tem por função descrever a realidade; (iii) as palavras

não têm sentido preciso; (iiii) a realidade não existe. Aceitando o desafio de enfrentar essas

dificuldades, Reboul (2000: 45) refuta tais premissas e, em contraposição a estas, defende as

seguintes: (i) a linguagem é distinta da realidade; (ii) a linguagem tem por função primeira

descrever a realidade; (iii) as palavras têm sentido preciso; (iv) a realidade existe.

No que tange às premissas (ii) e (iv) defendidas pelos idealistas, as quais se revelam,

entre si, complementares, uma vez que se pode inferir que a linguagem não tem por função

descrever a realidade, já que esta não existe, Reboul defende que a realidade existe e é

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autônoma em relação à linguagem, que, por sua vez, tem por função primeira descrever a

realidade. A defesa de Reboul (2000: 44) se pauta no argumento de que a linguagem confere

existência aos seres do mundo objetivo, e não materialidade, uma vez que tais seres,

anteriormente ao discurso, já se revelam dotados de materialidade, embora só adquiram

existência depois de referidos pela linguagem. Pode-se assim dizer que, segundo esse ponto

de vista, a linguagem se revela imprescindível para que se socialize o conhecimento, as

dimensões daquilo que se captura por intermédio da percepção, ou seja, daquilo que se

apreende por meio dos cinco sentidos. Entretanto o mesmo não se observa no que diz respeito

à apreensão dos objetos do mundo objetivo, pois, no que diz respeito à construção destes, a

linguagem e o discurso mostram-se, por completo, desnecessários. Observa-se, desse modo,

que, de acordo com essa perspectiva, a linguagem e o discurso constroem, sim, determinados

objetos, mas somente aqueles denominados objetos discursivos, tais como os objetos sociais e

os próprios do mundo ficcional.

Faz-se oportuno esclarecer que, embora, de acordo com essa perspectiva, admita-se

que a linguagem e o discurso não têm por função construir objetos do mundo objetivo, mas

unicamente objetos discursivos, defende-se que compete à linguagem e ao discurso e,

unicamente a estes, a fundamental função de descrever a realidade, de possibilitar a atribuição

aos objetos de uma predicação, de, enfim, referir tais objetos. Mas não se pode esquecer de

que, observado por lentes “realistas”, o referente se apresenta como uma versão daquilo que é

referido, o que determina que o objeto referido se mantenha intacto no decorrer do processo

referencial, ou, melhor dizendo, não seja alterado, nesse processo, pela versão. Observa-se,

entretanto, quanto a esse aspecto, que o objeto referido muitas vezes se altera, sim, no

decorrer do processo referencial, em função da(s) versão(ões) acerca do qual é(são)

construída(s). No discurso político, não raro, isso ocorre, como, por exemplo, verificou-se em

relação a Luiz Inácio Lula da Silva, de 1987 a 2002, período durante o qual Lula se

candidatou quatro vezes à presidência da República. Ao longo desses quinze anos, durante

contínuos processos por meio dos quais era referido, o objeto em questão, Luiz Inácio Lula da

Silva, foi se ajustando, se moldando, tendo em vista captar um eleitorado cada vez mais

amplo e diversificado. Tal adaptação se traduziu em expressivas mudanças de propostas, de

ideologia, de discurso, de postura e, inclusive, de aparência física, as quais foram sendo

intensificadas e aprimoradas no transcorrer desses anos.

Reboul (2000: 43) esclarece que a posição idealista de que a realidade é, por completo,

uma construção lingüístico-discursiva e de que compete, portanto, à linguagem a função única

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61 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

de construir a realidade, e não de descrevê-la, implica ainda as seguintes conseqüências

importantes para o estudo da referência: (i) as noções de verdade e de falsidade não se

aplicam às produções linguageiras; (ii) é vedada toda possibilidade de relação entre

linguagem e realidade. Quanto a essas conseqüências, pode-se inferir que, se se parte do

princípio de que a realidade não existe, não há como estabelecer entre linguagem e realidade

qualquer relação, pois tal princípio sugere a falta de uma realidade à qual referir, o que

determina, portanto, que não se possa aplicar às produções linguageiras as noções de verdade

e de falsidade.

Quando se busca relacionar, mais particularmente, a primeira conseqüência

apresentada à terceira premissa defendida pelos idealistas (as palavras não têm sentido

preciso), observa-se a construção de um raciocínio desenvolvido por Reboul (2000: 63) que

acaba por abarcar não só as outras três premissas defendidas pelos “idealistas”, mas também a

segunda conseqüência apontada por Reboul em relação à posição idealista de que a linguagem

não tem por função descrever a realidade. Reboul (2000: 63) sustenta que a terceira premissa

defendida pelos idealistas é dotada de um caráter relativista, que reside na defesa de que há

diferentes visões acerca do mundo, às quais, respectivamente, correspondem realidades

igualmente distintas, ou, melhor dizendo, tal caráter relativista consiste na defesa do ponto de

vista de que cada visão do mundo cria uma realidade particular e, portanto, unicamente a essa

visão correspondente. Segundo esse prisma, a linguagem não se apresenta, pois, como distinta

da realidade extralingüística, já que se parte do princípio de que não há uma única realidade

independente da linguagem, mas várias que se criam, impreterivelmente, a partir da

linguagem. Se, entretanto, observa-se, a partir de lentes “realistas” (2000: 63), que a

linguagem tem por função primeira descrever a realidade, admite-se que há uma única

realidade objetiva independente da linguagem, o que não nos parece constituir uma negação

de que há realidades discursivas distintas que se apresentam como fruto de visões igualmente

distintas acerca do mundo e que, desse modo, só se criam a partir da linguagem.

À adoção do princípio de que há uma única realidade vincula-se o reconhecimento de

que todas as proposições expressas são validadas como verdadeiras ou falsas por essa

realidade única. Em contrapartida, a negação desse princípio implica, de acordo com Reboul

(2000: 63), a impossibilidade de se aplicarem às produções linguageiras as noções de verdade

e de falsidade. Mas, quanto a esse aspecto, faz-se oportuno esclarecer que hoje só se concebe

a verdade em termos de um modelo específico, e não em termos de um modelo absoluto.

Reboul (2000: 63) defende que, para os idealistas, as palavras são percebidas como dotadas de

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62 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

sentido impreciso, já que são empregadas não para referir uma realidade única à qual todos os

falantes de uma mesma língua têm acesso, mas, sim, para referir realidades sempre

particulares, construídas continua e incessantemente a cada nova situação comunicativa.

Mesmo defendendo que as palavras são dotadas de um sentido preciso, Reboul (2000: 65) não

só admite que estas são, freqüentemente, imprecisas ou empregadas com imprecisão, o que,

segundo ela, constitui uma dificuldade à qual os “realistas” não podem se furtar, mas também

que tal caráter vago das palavras deve ser atribuído não à linguagem, conforme os “idealistas”

parecem considerar, mas, sim, a seu uso. De acordo com uma concepção realista (2000: 43),

esse caráter vago do qual a linguagem revela-se dotada faz com que, mesmo quando,

tecnicamente, um termo considerado referencial é empregado de forma referencial, este possa

não ter referente, quer seja de modo acidental ou não, como na ficção, no que diz respeito a

este último.

Sendo assim, ao examinar o caráter vago da linguagem, Reboul (2000: 45) acaba por

discutir as duas primeiras dificuldades concernentes ao fenômeno da referência, que dizem

respeito ao fato de as expressões referenciais não referirem sempre e ao fato de, mesmo

quando é esperado que refiram, estas não referirem sob pena de reenviarem a um objeto do

mundo. Ao trazer à baila tal discussão, Reboul (2000: 49) esclarece que uma expressão refere

se há um objeto que designa a expressão e um locutor refere se ele é capaz de identificar o

referente de uma expressão referencial que ele empregou em um dado enunciado. Ainda

quanto a esse aspecto, Reboul (2000: 55) argumenta que uma expressão é utilizada de forma

referencial se a identificação, pelo interlocutor, de um referente específico para a expressão é

indispensável à pertinência do enunciado. A teoria da pertinência, esclarece Reboul (2000:

55), fundamenta-se sobre a seguintes proposições, dentre outras: o objetivo é acrescentar

novas proposições ao ambiente cognitivo do interlocutor e modificar a força sobre a qual as

proposições do meio cognitivo são mantidas, o que leva a supor que as representações do

meio cognitivo são suscetíveis de receberem um valor de verdade, embora seja necessário

considerar que há representações incapazes de receber tal valor.

Buscando atrelar a discussão do fenômeno da referência a questões relativas à teoria

da pertinência, Reboul (2000: 57) recorre à noção de representações mentais (RMs),

defendendo que a gestão de tais representações se faz, mesmo que de maneira parcial,

pragmaticamente, o que implica que seja notadamente governada por sistemas de crenças

particulares tal como na psicologia popular e na física popular. Segundo essa ótica (2000: 58),

uma RM é um tipo particular de conceito que, potencialmente, corresponde a um objeto ou a

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63 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

um conjunto de objetos único. Observa-se, assim, que, grosso modo, as RMs apresentam uma

estrutura de conceitos, os quais: (i) têm um endereço na memória, que pode encontrá-los; (ii)

têm três entradas, uma lógica que indica com quais outras RMs estabelece relações lógicas;

uma entrada enciclopédica, que reúne todas as informações que se pode ter sobre o objeto do

qual a RM é a representação; uma entrada lexical, que reúne contrapartidas em linguagem

natural da RM. De acordo com essa perspectiva, a criação e a gestão de RM são largamente

tributárias de informações fornecidas pelo ambiente lingüístico, pois cada ação descrita no

enunciado seguinte modifica a RM na medida em que esta reúne às informações contidas na

entrada enciclopédica da RM novas informações sobre o estado presente do objeto. As

informações precedentes tomam, portanto, lugar em um histórico que é um subconjunto

ordenado de proposições da entrada enciclopédica.

Para Reboul (2000: 60), a noção de RM pode responder às necessidades de uma teoria

da referência, por permitir, por exemplo, dar conta, dentre outros, do problema dos referentes

evolutivos. Reboul (2000: 57) procura explicar tal questão a partir do seguinte exemplo:

“tome uma galinha viva e bem gorda, depene-a, tempere-a, corte-a em quatro pedaços e leve-a

ao forno durante uma hora. Em seguida, é só comê-la”. Observa-se, assim, que o problema

dos referentes evolutivos parece dizer respeito a exemplos em que um objeto é introduzido a

partir de certa descrição (tome uma galinha viva e bem gorda) e, em seguida, as ações

descritas acerca do objeto não mais respondem à descrição inicial deste (galinha morta,

cortada em pedaços e temperada). Nesse caso, verifica-se que o texto não apresenta uma nova

descrição congruente com o novo estado do objeto (os quatro pedaços de galinha assados).

Reboul (2000: 57) esclarece que esse fato é marcado, lingüisticamente, pela impossibilidade

de os pronomes sucessivos substituírem a descrição inicial, uma vez que, no exemplo

apresentado, em “em seguida, é só comê-la”, o pronome não recupera a galinha em seu estado

inicial, ou, melhor dizendo, apresentada inicialmente no texto (tome uma galinha viva e bem

gorda). Segundo a lingüista (2000: 57), a solução para tal problema passa, de acordo com uma

teoria de RM, pela questão da criação e da gestão de RM. Ou seja, segundo pressupostos

dessa teoria, cria-se uma RM quando se encontra uma expressão referencial à qual não

corresponde RM alguma já existente, o que é freqüente em casos nos quais as expressões

referenciais são utilizadas de forma não referencial como, por exemplo, a descrição indefinida

“uma galinha viva e bem gorda”, empregada no enunciado apresentado acima. Tal teoria

propõe que, nesse caso, encontrando-se a descrição indefinida em questão, constrói-se uma

nova RM e, ainda, que cada ação descrita no enunciado seguinte modifica a RM, na medida

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64 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

em que a ação descrita se reúne às informações contidas na entrada enciclopédica da RM de

novas informações sobre o estado presente do objeto. As informações precedentes passam,

dessa forma, a compor um histórico, isto é, um subconjunto ordenado de proposições da

entrada enciclopédica. Conforme essa teoria, deve-se ainda considerar que algumas dessas

ações não modificam a entrada lexical da RM, a qual, faz-se oportuno esclarecer, não pode ser

modificada senão por uma nova nominação ou categorização do objeto. Em síntese, conforme

a teoria de RM, no caso de referentes evolutivos, como o apresentado acima, modifica-se a

entrada enciclopédica, e mantém-se a entrada lexical.

Esse exemplo coloca, ainda, em destaque a noção de identidade, a qual, conforme

defende Reboul (2000: 59), exerce papel extremamente importante na gestão de RMs, tendo

em vista que a decisão de criar uma RM ou de acrescentar novas informações a uma RM

depende do fato de se considerar que há um objeto único ou dois objetos distintos. No

exemplo precedente, o fato do objeto (a galinha) mudar radicalmente de estado ao longo do

enunciado, de modo que não se lhe possa mais aplicar a mesma descrição, não impede que se

trate do mesmo objeto material, independentemente dos termos usados para designá-lo.

Reboul defende (2000: 58) que esse exemplo mostra que a maior parte de estudos tradicionais

do problema da interpretação de pronomes está equivocada, considerando-se que estes se

revelam fortemente substitucionalistas.

Segundo Reboul (2000: 60), além do problema dos referentes evolutivos, a noção de

RM pode dar conta, também, de outro problema concernente às necessidades de uma teoria da

referência, o qual é ilustrado pela lingüista por meio do seguinte exemplo: “O sabão se vinga

da humilhação que a água lhe faz ao se misturar intimamente a ela. Esse ovo, essa barcaça,

essa pequena amêndoa se revela rapidamente em veneno chinês, com seus véus, seus

quimonos e faz, assim, seu casamento com a água”. Nesse exemplo, Reboul (2000: 60)

esclarece que há um objeto representado pela expressão “o sabão”, o qual é designado por

outras expressões lingüísticas (esse ovo, essa barcaça, essa pequena amêndoa) e para o qual se

tem uma RM correspondente. De acordo com uma teoria de RM, tem-se, nesse caso, uma RM

correspondente a tal objeto, cuja entrada enciclopédica não se modifica pela série seguinte de

descrições definidas, o que não ocorre com a entrada lexical, uma vez que esta se modifica.

Vê-se, assim, que, de acordo com uma teoria de RM, ocorre, nesse caso, o inverso do que se

verifica no que diz respeito aos referentes evolutivos, ou seja, enquanto que, no exemplo do

sabão, mantém-se a entrada enciclopédica e modifica-se a lexical, no exemplo da galinha,

modifica-se a entrada enciclopédica e mantém-se a entrada lexical.

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65 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Reboul (2000: 60) busca também esclarecer como, a partir de uma expressão

referencial utilizada de forma referencial para referir um objeto precedentemente identificado,

determina-se a RM pertinente. Segundo a lingüista (2000: 60-61), a RM mais pertinente é não

só a mais fácil de ser alcançada, o que faz emergir o fator acessibilidade, como também

aquela que tem chances de produzir o maior efeito cognitivo. Reboul (2000: 60-61) defende

que a forma como se tem acesso à melhor RM depende largamente de informações

lexicalmente contidas na própria expressão referencial, as quais podem corresponder

simplesmente à própria expressão, se ela já faz parte da entrada lexical da RM, ou a uma das

informações contidas na entrada enciclopédica da RM. No que diz respeito ao fator

acessibilidade, Reboul (2000: 61) argumenta que uma RM está maximamente acessível se ela

está “aberta”, isto é, se o objeto que ela representa foi mencionado em um enunciado

precedente. De acordo com a lingüista (2000: 61), a acessibilidade de RMs é dependente de

relações lógicas estabelecidas entre RMs, o que implica que uma RM que estabelece uma

relação lógica com uma outra RM maximamente acessível esteja mais acessível que outra que

não estabelece relação lógica alguma com uma RM maximamente acessível.

Ao buscar tratar, a partir de uma teoria de RM, aspectos concernentes à ficção, ao

fazer parecer, à contrafactualidade, Reboul (2000: 62) primeiramente esclarece que, no caso

em que a criação de RMs é desencadeada pela percepção de um objeto material no mundo, o

lugar entre a RM e o mundo apresenta-se claro, o que não se verifica quando tal criação não é

dessa forma provocada. Reboul (2000: 62) defende que, embora seja por intermédio dos

conceitos que entram nas informações contidas em sua entrada enciclopédica que a RM

permite, se a ocasião se apresentar, determinar o objeto no mundo que ela representa, a

representação não nasce, necessariamente, a partir da percepção desse objeto. Segundo uma

teoria de RM (2000: 64), uma RM está, portanto, ligada ao objeto do mundo que ela

representa pelo viés de conceitos que entram nas proposições que compõem a entrada

enciclopédica dessa RM, o que permite a compreensão do que se passa na ficção, a qual, por

sua vez, explora precisamente a forma como são constituídas as RM. Nesse caso, cria-se, por

exemplo, para uma personagem de ficção, a partir de dados fornecidos pelo texto, uma RM, a

qual possui uma entrada enciclopédica em que se encontram reunidas todas as informações

com os seus respectivos conceitos. Sendo assim, de acordo com essa teoria, encontra-se, nessa

entrada, a proposição “X é um personagem de ficção”, responsável por bloquear toda tentativa

de determinação de um objeto particular no mundo ou de intervenção na ação. Barry Smith

(apud REBOUL) defende, por sua vez, que os limites entre uma realidade extensional

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66 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

autônoma e a realidade objetiva são estabelecidos por nós, a partir de nossas atividades

mentais e lingüísticas e de normas e hábitos convencionais que lhes são associados. Smith

defende ainda que, embora autônoma em relação à realidade objetiva, a realidade extensional

pode conter “pedaços de realidade”.

A partir dessa exposição, observa-se que, embora os “realistas”, aqui representados

por Anne Reboul, busquem, por meio da aplicação de uma teoria de RM, enfrentar

dificuldades do âmbito da referenciação, as quais, segundo eles, os idealistas fazem

comodamente desaparecerem, muitas dessas dificuldades nos parecem, mesmo assim, não

encontrar soluções satisfatórias. Parece-nos complexa a compreensão, por exemplo, do que

seria a entrada enciclopédica e como tal entrada comportaria todas as informações acerca de

um objeto e, também, o que constitui a entrada lexical e que informações fariam parte desta.

No que diz respeito à eficiência e à eficácia de tal teoria no enfrentamento de dificuldades do

âmbito da referenciação, somos levados ainda a indagar se, em toda e qualquer situação,

conseguimos estabelecer, fácil e claramente, os limites entre o mundo ficcional e o mundo

real. Entendemos, entretanto, que o estudo realizado por Anne Reboul, mesmo considerando-

se suas limitações, representa uma contribuição importante para que melhor se compreenda e

estude o fenômeno da referência.

2.2.5 Considerações complementares

À luz dos estudos realizados por Bakhtin/Volochínov, Benveniste, Ducrot, Anne

Reboul e Lorenza Mondada, constatamos não só que, de fato, com o advento da lingüística, a

língua emerge como objeto de observação e investigação, mas também que, somente sob uma

ótica lingüístico-discursiva, a língua passa a ser observada e investigada em situações de uso,

isto é, em seu pleno funcionamento. Sendo assim, os estudos desenvolvidos por Bakhtin

/Volochínov, Benveniste, Ducrot, Mondada e Reboul possibilitam-nos observar que a língua

disponibiliza ao falante um conjunto de instrumentos lingüísticos encarregados, por exemplo,

de construir a significação e a referência, os quais, para tal, são imprescindíveis, mas se

revelam insuficientes, pois os processos de significação e de referenciação, embora se

construam a partir de elementos lingüísticos, completam-se em uma esfera discursiva.

Entretanto, ao mesmo tempo em que tais estudos fazem emergir a real importância do

discurso nesses processos, abrem espaço, como vimos, para a manifestação e o

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67 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

reconhecimento de outras dificuldades para as quais “ainda” não se tem solução. Ou melhor,

revelam que, no campo do saber, a busca pelo equacionamento de dificuldades e por respostas

constitui uma eterna e infindável busca.

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68 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

SEGUNDA PARTE

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69 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

3 O DISCURSO: SISTEMA POLÍTICO

Freqüentemente, em nosso afã classificatório, preocupamo-nos em dispor, em

categorias, o que nos cerca, a fim de, por exemplo, distribuirmos tudo aquilo que constitui o

alvo de nosso interesse, de nossa atenção em classes e/ou grupos, de ordenar tais classes e/ou

grupos, segundo o que, definido de modo consensual, os particulariza. Esse nosso afã parece

ter por finalidade principal buscar garantir uma melhor compreensão daquilo que constitui,

em um determinado momento, o alvo de nossa atenção. Assim procedemos, mesmo

reconhecendo que, não raro, tais classificações revelam-se inadequadas, limitadoras e/ou

insuficientes para dar conta de tudo a que se propõem.

O mesmo também ocorre quanto aos discursos, uma vez que estes não se deixam

apreender passivamente em classificações. Nos estudos lingüístico-discursivos, mesmo

reconhecendo, no que concerne à constituição do ato de comunicação, que todo e qualquer

discurso se processa, em sua essência, de forma idêntica, incidimos na prática classificatória.

Normalmente isso ocorre por questões didático-metodológicas, a fim de buscarmos captar

algumas particularidades dos discursos produzidos pelas mais diferentes instâncias sociais.

Tendo em vista o caráter polissêmico do termo discurso, esclarecemos que este, no

presente trabalho, será contemplado, não só, mas, principalmente9

A fim de contemplar o discurso, primordialmente, como sistema, optamos por dividir

a segunda parte deste trabalho em dois grupos. No primeiro, serão abordadas questões

relativas à formação discursiva e prática discursiva, à luz de estudos desenvolvidos,

principalmente, por Foucault, Pêcheux e Maingueneau. No segundo grupo, serão

, como “o sistema que

permite produzir um conjunto de textos” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004: 169).

Buscando atrelar tal noção de discurso à de formação discursiva, promoveremos não só o

estudo do discurso político e o midiático, a partir da compreensão do sistema que permite

gerar tal discurso, como também de produções verbais próprias de um locutor, o presidente da

República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. No intuito de melhor organizar e

facilitar a apresentação de nosso objeto de estudo, adotaremos a nomenclatura discurso

político para nos referirmos aos discursos produzidos pela instância política, embora

reconheçamos, conforme vimos, o quanto as classificações são frágeis.

9 Admitimos que, graças a esse caráter polissêmico, o termo discurso pode ainda surgir empregado, neste estudo, em outras acepções como, por exemplo, na de texto.

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70 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

apresentados: (i) noções de poder, política e poder político; (ii) aspectos referentes à ascensão

e à permanência de Lula e do PT ao/no poder; (iii) discussão acerca da constituição do que se

concebe como discurso político; (iiii) aspectos relativos a espetáculo, política e mídia.

3.1 Formação discursiva e prática discursiva

Destacaremos, a seguir, formulações de alguns autores concernentes à formação

discursiva e a outras a esta relacionadas, as quais, associadas, entendemos que se

complementam, permitindo-nos avançar na observação do que hoje constitui o que

usualmente nomeamos discurso político e discurso midiático. Objetivamos, assim, encontrar

subsídios para o desenvolvimento da análise dos nossos corpora na terceira parte deste

estudo.

Recorrendo a estudos desenvolvidos por Habermas (1987), Bronckart (1999) nos

prepara para melhor apreender tais formulações, defendendo que a espécie humana tem um

modo particular de comunicação – a linguagem – que se caracteriza pelo “agir comunicativo”,

concebido por Habermas (apud BRONCKART, 1999: 30) como “a atividade de linguagem

em funcionamento nos grupos sociais”. Segundo essa concepção, os conhecimentos

construídos pelo homem representam negociações práticas sobre o meio, as quais se realizam

por intermédio dos signos, isto é, de formas criadas para estabelecer uma correlação entre

representações sonoras e demais representações do meio. De acordo com Popper e Habermas

(apud BRONCKART, 1999: 33-34), os signos remetem a três mundos, que têm origem na

atividade10: (i) o objetivo, que diz respeito ao meio físico; (ii) o social, relativo ao meio

cooperativo; (iii) o subjetivo, concernente ao meio próprio de cada indivíduo. O processo de

compreensão dessas relações designativas promovidas por intermédio dos signos se realiza a

partir da interação entre representações individuais e coletivas, fazendo emergir uma atividade

específica de linguagem que se apresenta organizada em discursos11

10 “Inspirada em Leontiev (1979), a noção geral de atividade designa as organizações funcionais de comportamentos dos organismos vivos, através das quais eles têm acesso ao meio ambiente e podem construir elementos de representação interna (ou de conhecimento) sobre esse mesmo ambiente” (BRONCKART, 1999: 31)

ou em textos. A

11 Bronckart (1999: 75), buscando escapar ao que ele concebe como confusão terminológica no que tange à classificação de textos, define como discurso os diferentes segmentos (de relato, de argumentação, de diálogo, etc.) que entram na composição de um gênero, por considerar que estes são produto de um trabalho particular de semiotização ou de colocação em forma discursiva. Ao apresentar essa justificativa para o fato de ter nomeado

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71 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

manifestação do “agir comunicativo” configura-se, pois, a um só tempo, constitutiva do

psiquismo humano e do social (BRONCKART, 1999: 33).

Essas representações individuais e coletivas são, entretanto, dotadas de um caráter

dinâmico, mutável e, portanto, transitório, o que determina a dinamicidade, a mutabilidade e a

transitoriedade dos signos e dos mundos aos quais os signos remetem, ou seja, dos mundos

representados. As comunidades verbais, por sua vez, revelam-se, na esfera social, marcadas

não só pela mutabilidade, como também pela heterogeneidade, uma vez que, dada a

diversidade, a complexidade e a hierarquização das organizações que as compõem,

constituem-se do que Bronckart (1999: 36) nomeia formações sociais, as quais traduzem as

relações estabelecidas entre os membros das comunidades verbais; relações estas

caracterizadas pela aliança ou pela divergência, pela assimetria e, não raro, pelo antagonismo.

Bronckart (1999: 36-37) argumenta que, em decorrência daquilo que essa caracterização

revela, as formações sociais elaboram “modalidades particulares de funcionamento da

língua”, as quais são nomeadas por Foucault de formações discursivas.

3.1.1 Michel Foucault: enunciado e formação discursiva

Em Foucault (1972: 144), o termo formação discursiva designa, “em sentido estrito,

grupos de enunciados”, ou seja, “conjuntos de performances verbais ligados ao nível dos

enunciados” (1972: 145); já o termo discurso refere-se ao “conjunto de enunciados que

provêm da mesma formação discursiva” (1972: 146). Essas definições revelam que a

compreensão do que, de fato, Foucault concebe como formação discursiva, requer,

primeiramente, que se esclareça o que é, para ele, enunciado. Justifica, ainda, a necessidade

desse esclarecimento o fato de a análise da formação discursiva se realizar de forma correlata

à análise do enunciado (1972: 146).

Segundo a ótica foucaultiana (1972: 133), o enunciado não pode ser definido como

uma unidade de tipo lingüístico, pois se constitui a partir de unidades diversas12

tais segmentos de discurso, Bronckart revela compreender discurso, em sua essência, como uma “unidade de comunicação associada a condições de produção” (MAINGUENEAU, 2000: 44), reconhecendo, assim, que este não pode ser objeto de um estudo unicamente lingüístico.

que são

12 Para Foucault (1972: 133), as unidades diversas “podem coincidir, às vezes, com frases, às vezes com proposições; mas são feitas às vezes de fragmentos de frases, de séries ou de quadros de signos, de um jogo de proposições ou de formulações equivalentes”. Foucault (1972: 134) acrescenta que tais unidades “podem ser,

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postas em jogo, e não apenas de unidades lingüísticas. Foucault, ao defender que a análise do

enunciado deve ultrapassar o nível lingüístico-gramatical e situar-se no nível discursivo,

revela priorizar questões discursivas, em detrimento de questões de ordem lingüística e da

formação textual, embora pareça reconhecer que o acesso ao nível discursivo só se realiza por

intermédio dos mecanismos próprios da língua.

Foucault (1979: 133) observa que compete à função enunciativa13

a modalidade de existência própria a esse conjunto de signos

relacionar e fazer

surgir essas unidades diversas, estabelecendo-as em um campo no qual o sentido se constrói

permanentemente, uma vez que “o discurso não é um jogo de significações prévias”

(FOUCAULT, 2001: 53). Sob as lentes foucaultianas (1972: 133), o enunciado revela-se,

pois, como algo dinâmico, indefinido e impossível, portanto, de ser pré-fixado; como algo que

se realiza em um processo de permanente construção e interação. E, melhor detalhando, como

14

Ao buscar descrever relações entre enunciados, a fim de estabelecer grupos de

enunciado, Foucault (1972: 44) verificou que a hipótese que lhe parecia mais verossímil e

fácil de ser comprovada, a de que formam um conjunto os enunciados que se referem a um

mesmo e único objeto, mostrava-se débil e insustentável. Isso porque, quando observados, por

exemplo, ao longo da linha do tempo, os enunciados não se relacionam a um único objeto,

: modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível. (1972: 134-135)

O enunciado revela-se, desse modo, concomitante e paradoxalmente, nem visível nem

oculto, já que, ao mesmo tempo em que não se exibe de modo tão ostensivo como, por

exemplo, uma estrutura gramatical, da mesma forma não esconde um sentido secreto,

fazendo-o repousar, inexplorado, sob a superfície das performances lingüísticas

(FOUCAULT, 1972: 137).

mas não de maneira necessária, de ordem gramatical ou lógica”. Observa-se que essas unidades são definidas por Foucault apenas no campo da possibilidade (“podem”) e da incerteza (“às vezes”), o que parece lhes dotar de um caráter instável, impreciso e/ou flexível. Além disso, essas unidades diversas, conforme exemplificadas por Foucault, ao contrário do que ele defende, parecem estar situadas no nível lingüístico. 13 A função enunciativa é o que, para Foucault, permite que se considere e se analise uma seqüência de elementos lingüísticos como um enunciado. 14 “Esse conjunto de signos” refere-se a “todo conjunto de símbolos efetivamente produzidos a partir de uma língua natural (ou artificial)”, o qual constitui o que Foucault (1972: 132) designa como performance lingüística (ou performance verbal).

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73 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

mas, ao contrário, a uma multiplicidade de objetos, uma vez que estes se transformam

continuamente. Sendo assim, Foucault (1972: 45) percebeu que, para definir, em sua

particularidade, um conjunto de enunciados, era preciso não só identificar as especificidades

próprias dos objetos aos quais se referem os enunciados, como também o que os diferencia, os

separa, os distancia. Era preciso, pois, considerar não só formas de repartição, como também

sistemas de dispersão15

Definindo os discursos como “práticas

. Foucault (1972: 51) sustenta, desse modo, que

no caso em que se pudesse descrever, entre um certo número de enunciados, [um] sistema de dispersão, no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se poderia definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), dir-se-á, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade”. Chamar-se-ão regras de formação às condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas). As regras de formação são condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma repartição discursiva dada.

Infere-se, assim, que, de acordo com uma abordagem foucaultiana (1972: 115), o

estudo das formações discursivas deve ser feito a partir de uma descrição do nível

enunciativo, o que pressupõe não uma análise formal ou uma investigação semântica dos

enunciados, mas, sim, uma análise das relações fundadas, por exemplo, entre enunciados. Isso

porque, conforme o ponto de vista foucaultiano (1972: 124), os enunciados não se

caracterizam pela imparcialidade e pela independência, uma vez que compõem séries e

conjuntos de enunciados, os quais constituem um jogo enunciativo, em cuja integração

observa-se que os enunciados revelam faixas ocupadas por outros enunciados. 16

15 Ao se referir a formas de repartição, Foucault (1972: 45) faz alusão ao que constitui a unidade de um discurso. No entanto, ele (1972: 47) admite não ser simples fundar a unidade de campos discursivos, já que só é possível reconhecer grupos de enunciados em um dado momento histórico específico, considerando-se que a mudança, por exemplo, do contexto temporal gera mudanças que podem conferir ao discurso uma falsa unidade. Para equacionar tal problema, ele (1972: 48) propõe que se busque analisar o jogo de aparecimentos dos objetos (formas de repartição) e de dispersão dos mesmos, ou seja, que se trate o discurso no jogo de sua instância (1972: 36). 16 Foucault (1972: 147) define prática discursiva como “conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiriam, em uma época dada, e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa”.

que formam sistematicamente os objetos de

que falam”, Foucault (1972: 64) não só consolida o seu ponto de vista acerca do enunciado

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concebido como um acontecimento discursivo, como também elucida o que se deve priorizar

na análise das formações discursivas, ao acrescentar que

[...] certamente, os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao discurso (parole). É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever.

3.1.2 Michel Pêcheux: formação ideológica e formação discursiva

Mas é a partir do olhar de Pêcheux que a concepção de formação discursiva se

introduz nos domínios da Análise do Discurso, revelando uma preocupação em atrelar aos

aspectos discursivos os aspectos lingüísticos, o que se observa quando Pêcheux (1995: 91)

afirma que é “sobre a base dessas leis internas17

Ao considerar que tais relações se estabelecem entre “homens”, e não, por exemplo,

entre coisas, máquinas e animais, Pêcheux (1995:152) sustenta que “o homem” é um “animal

que se desenvolvem os processos

discursivos”. Pêcheux (1995: 91) defende que fenômenos lingüísticos e questões filosóficas

compõem, concomitantemente, o ponto de conexão entre a Lingüística e a teoria histórica dos

processos ideológicos e científicos, o que justifica o fato de a língua constituir “a base comum

de processos discursivos diferenciados” (1995: 91). Embora o sistema da língua seja único, os

falantes de uma mesma língua, ao formarem diferentes grupos sociais, fazem uso desta de

forma distinta, produzindo, assim, discursos diferenciados.

Em Pêcheux (1995: 92), o sistema lingüístico caracteriza-se, pois, não só pela

unicidade, como também por uma relativa autonomia, o que determina que a língua coloque,

contínua e igualitariamente, os mecanismos lingüísticos à disposição de todo e qualquer

falante. Por outro lado, a intrínseca relação, defendida por Pêcheux (1995: 92), entre língua e

luta de classes faz com que os falantes, quando organizados em classes, empreguem a língua,

de forma distinta, como instrumento da luta política, sem que, entretanto, cada classe institua

a sua própria língua. Isso revela que, na perspectiva de Pêcheux (1995: 92), “todo processo

discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes”, a qual, por sua vez, tem origem na

luta de classes; luta esta que se manifesta nas relações de produção.

17 Pêcheux (1995: 91 apud Henry) defende que “todo sistema lingüístico, enquanto conjunto de estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas, é dotado de uma autonomia relativa que o submete a leis internas, as quais constituem, precisamente, o objeto da Lingüística”.

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75 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

ideológico”18 e adota a tese, defendida por Althusser19 (apud PÊCHEUX, 1995:148), de que

“a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos”. Partindo desse ponto de vista, Pêcheux

(1995: 130) chama a atenção para o fato de que o “sujeito” ideológico20 não pode ser

concebido como “sempre-já dado”, isto é, a um só tempo, como sujeito individual “concreto”,

como parte de um conjunto (ex: comunidade) e como elemento capaz, em sua unicidade, de

representar esse conjunto; isso porque não pode ser concebido como neutro ou indiferente em

relação à ideologia. Ao contrário, apresenta-se como um lugar “vazio” a ser preenchido, isto

é, como o “não-sujeito”, o qual, ao ser interpelado pela ideologia, constitui-se em sujeito, mas

um sujeito caracterizado pelo “assujeitamento”21. Tal subordinação se efetiva, entretanto, sob

uma aparente autonomia, uma vez que se realiza por meio de um falso esquecimento22

Já no que se refere aos indivíduos no exercício do papel de sujeitos discursivos,

Pêcheux (1995: 161), ao mesmo tempo em que defende que “são ‘interpelados’ em sujeitos

falantes pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações

ideológicas que lhes são correspondentes”, preocupa-se (1995:182) em esclarecer que, em tal

vinculação, observa-se que as formações discursivas mostram-se “intrincadas” nas formações

ideológicas. Ou seja, mostram-se a estas enredadas, mescladas, o que resulta do processo de

interpelação e remete ao que Foucault (2001: 9) denomina de interdição, o mais manifesto dos

procedimentos de exclusão, segundo o qual não se pode nem dizer tudo, nem em qualquer

circunstância, nem com qualquer pessoa; segundo o qual não se pode, enfim, dizer qualquer

coisa. Isso representa que nos encontramos, a todo tempo, submetidos às regras de uma

“polícia” discursiva, a qual, a cada discurso, deve ser acionada (FOUCAULT, 2001: 35).

por

parte do sujeito em relação àquilo que o determina.

18 Nesse sentido, o homem é compreendido como parte da natureza, e não, por exemplo, em seu aspecto antinatureza, transcendental ou, ainda, como sujeito da história (PÊCHEUX, 1995: 152). 19 Lois Althusser (1918 – 1990) - filósofo marxista francês - realizou, segundo um ponto de vista estruturalista, uma releitura controversa e singular de Karl Marx, identificando, nos estudos por este apresentados, duas fases: uma ideológica e outra científica. Ao reconhecer o caráter parcial da língua e da linguagem, defendeu a importância da Lingüística em todo e qualquer desenvolvimento estruturalista. Conferindo à língua uma indubitável finalidade ideológica, influenciou, de forma decisiva e marcante, os estudos lingüístico-discursivos desenvolvidos por Pêcheux. 20 Para Pêcheux (1995: 154), o sujeito ideológico, aquele que diz, “sou eu!”, ao se referir a si mesmo, revela-se vinculado ao “sujeito de direito”, “aquele que entra em relação contratual com outros sujeitos de direito; seus iguais”. 21 Pêcheux defende que o sujeito está assujeitado a uma ideologia, ou seja, que se submete, sem ter consciência disso e como se fosse por sua livre vontade, a uma ideologia, sendo, pois, conduzido a tomar lugar em uma das duas classes que compõem o modo de produção. 22 Pêcheux (1995: 183) esclarece que “esse esquecimento não designa ‘perda de memória’, mas acobertamento da causa do sujeito no próprio interior do seu efeito”.

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76 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Ao afirmar que “a ideologia designa, através do hábito, o que é e o que deve ser”,

Pêcheux (1995: 160) determina a importância da ideologia na constituição do sujeito23

O seguinte trecho extraído do discurso proferido pelo preside Luiz Inácio Lula da

Silva, em Nova Iorque, em 23/09/2003, na abertura da 58ª Assembléia Geral da ONU

e

define formação discursiva como

aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição de um programa, etc.)

Configura-se, assim, a formação discursiva como o lugar, por excelência, em que o sentido é

constituído (1995:162).

Mas, a partir do final dos anos 70 do século passado, conforme observam Charaudeau

e Maingueneau (2004: 241), Pêcheux passa a conceber formação discursiva sob uma ótica

diversa desta. Descrevendo, em 1983, a trajetória da Análise do Discurso em três épocas

distintas, Pêcheux (1997: 314) revela contemplar a noção de formação discursiva indissociada

da noção de interdiscurso, ao afirmar que

uma FD não é um espaço estrutural fechado, pois é continuamente ‘invadida’ por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras FD) que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo sob a forma de ‘preconstruídos’ e de ‘discursos transversos’).

24

Se se considera que todo e qualquer nome próprio tem, como pressuposto

(pressuposição existencial), o seu referente, pode-se dizer que os nomes próprios Sérgio

, bem

exemplifica essa noção de formação discursiva, concebida sob a nova ótica de Pêcheux.

Esta Assembléia se instala sob o impacto do brutal atentado à Missão da ONU em Bagdá que vitimou o Alto Comissário para Direitos Humanos, nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello. A reconhecida competência de Sérgio nutria-se das únicas armas em que sempre acreditou: o diálogo, a persuasão, a atenção prioritária aos mais vulneráveis. Exerceu, em nome das Nações Unidas, o humanismo tolerante, pacífico e corajoso que espelha a alma libertária do Brasil. Que o sacrifício de Sérgio e de seus colegas não seja em vão. A melhor forma de honrar sua memória é redobrar a defesa da dignidade humana onde quer que ela esteja ameaçada.

23 Aqui a palavra sujeito é empregada referindo-se ao sujeito expresso no que Althusser (apud PÊCHEUX, 1995: 183) nomeia “forma-sujeito”, que é “a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”. Sujeito, nessa acepção, designa, pois, “qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”. 24 Disponível em: http://www.info.planalto.gov.br/exec/inf_discursosdata1.cfm.

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77 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Vieira de Mello, ONU, Bagdá, Nações Unidas e Brasil funcionam como uma informação

dada no discurso proferido por Lula, na abertura da 58ª Assembléia Geral da ONU. Pode-se

admitir que os nomes próprios em destaque são, pois, uma forma de pré-construídos de ordem

referencial. Entretanto, no que diz respeito, particularmente, ao nome próprio Sérgio Vieira de

Mello é interessante observar que, embora funcione como um pré-construído, tenha recebido,

ao ser apresentado pelo locutor, uma atenção especial, o que nos leva a inferir que, na situação

comunicativa referida, embora constituísse um já-dito, tratava-se de um já-dito de natureza

diversa da dos demais nomes próprios. Observa-se, por exemplo, que a qualificação expressa

por intermédio da apresentação da função de Alto Comissário para Direitos Humanos

manifesta-se anteriormente ao nome próprio Sérgio Vieira de Mello, apresentando-o. Os

nomes Bagdá, Brasil, Nações Unidas e ONU revelam-se, por sua vez, diferentemente do

nome próprio Sérgio Vieira de Mello, dotados de um caráter de maior evidência, não

comportando, desse modo, dúvida alguma quanto a que se referem.

No trecho, “Exerceu, em nome das Nações Unidas, o humanismo tolerante, pacífico e

corajoso que espelha a alma libertária do Brasil”, os atributos conferidos à nação brasileira

constituem, além de um pré-construído, um discurso transverso, uma vez que parecem ter

origem em outra formação discursiva, pois expressam uma apreciação do senso comum no

que concerne à índole do povo brasileiro.

Já o trecho “Que o sacrifício de Sérgio e de seus colegas não seja em vão. A melhor

forma de honrar sua memória é redobrar a defesa da dignidade humana onde quer que ela

esteja ameaçada” constitui também um pré-construído e um discurso transverso, se

considerarmos, em primeiro lugar, que este se mostra atravessado por outro discurso que faz

referência ao fato de o sacrifício da morte ser compensado pela dignidade da causa. E, em

segundo lugar, que têm sido alvo de críticas em todo o mundo não só a invasão do Iraque,

como também a posterior ocupação deste lideradas por forças norte-americanas, uma vez que

se questionam as preocupações humanitárias segundo as quais os EUA e seus aliados afirmam

ter sido e estar sendo orientados. Particularmente o trecho “não seja em vão” e o verbo

“redobrar” evidenciam que o que tem sido feito, nesse sentido, sob a liderança dos EUA,

mostra-se insuficiente e/ou inadequado aos olhos daqueles que não apoiaram/apóiam a ação

liderada pelos EUA no Iraque.

Observa-se, por meio desse exemplo, que a noção de formação discursiva atrelada à

noção de interdiscurso denuncia a complexidade não só das relações estabelecidas entre

formações discursivas, mas também a complexidade da composição destas. Pêcheux (1997:

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78 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

315) defende que essa complexidade acaba por colocar em xeque a noção de fechamento

estrutural da formação discursiva e, até mesmo, a noção desta. Essa nova perspectiva

evidencia, por extensão, que a correlação de forças sociais que se constrói historicamente é

algo caracterizado pela instabilidade e, portanto, pela mutabilidade, o que determina que a

ideologia, ao se manifestar nas práticas políticas, revele-se, em sua essência, marcada pela

heterogeneidade. Heterogeneidade esta que se descobre na heterogeneidade enunciativa.

A partir dessas observações, pode-se constatar que, nessa fase, longe de apresentar um

caminho certo e seguro a seguir, Pêcheux descortina, por meio de dúvidas, constatações,

indagações e questionamentos, um caminho a ser desbravado, a ser trilhado e a ser construído.

3.1.3 Dominique Maingueneau: formação discursiva e prática discursiva

Argumentando que os objetos que provocam o interesse da Análise do Discurso

correspondem ao que se concebe comumente como formações discursivas, Maingueneau

(1993: 14) retoma a noção de formação discursiva foucaultiana (1993: 14), segundo a qual

uma formação discursiva constitui “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre

determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada e, para uma área

social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função

enunciativa”.

Ao retomá-la, busca elucidá-la e ampliá-la, a partir de um ponto de vista lingüístico-

discursivo-enunciativo. Para tal, Maingueneau (2000: 69) adota uma concepção

interdiscursiva de formação discursiva, em oposição a uma concepção contrastiva25,

revelando, assim, defender que o interdiscurso26

25 De acordo com essa concepção, as formações discursivas constituem espaços autônomos e fechados postos em relação com outros espaços, ou seja, estabelecem uma relação de contraste e de oposição com outros espaços, e não de interinfluenciação, de interação. 26 Maingueneau (2000: 86) esclarece que o termo interdiscurso pode designar tanto um conjunto de discursos pertencentes a um ou a diferentes campos discursivos (ou seja, a conjuntos de formações discursivas que se encontram em relação de concorrência) quanto o conjunto das unidades discursivas com as quais um discurso particular entra em ação.

responde pela composição e pela manutenção

das formações discursivas. Ao reconhecer, dessa forma, que as formações discursivas

apresentam contornos limítrofes indefinidos, móveis e, portanto, instáveis, Maingueneau

(1993: 112) concebe-as como realidades “heterogêneas por si mesmas”, as quais, envolvidas

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79 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

em um processo de contínua reconfiguração, alimentam-se de elementos pré-construídos, ou

seja, de elementos produzidos em outras formações discursivas.

Convém esclarecer que a noção de pré-construído e a de interdiscurso são

apresentadas não só por Maingueneau e, como vimos acima, por Pêcheux, mas também por

Bronckart e Foucault. Bronckart (1999: 37) defende que a linguagem é marcada, de forma

profunda, por um caráter histórico, considerando-se que todas as produções de linguagem são

caracterizadas pela intertextualidade, isto é, por produções de grupos sociais precedentes. Sob

o ponto de vista foucaultiano (1972: 36), os discursos apresentam-se impregnados de “já-

ditos” e de “jamais-ditos”, uma vez que “um enunciado tem sempre margens povoadas de

outros enunciados” (1972: 122); mas Foucault (1972: 39) adverte que, mesmo assim, cada

discurso é único, não podendo jamais ser substituído por outro. Pêcheux (1995: 162), por sua

vez, argumenta que o interdiscurso “caracteriza o complexo das formações ideológicas27

27 A expressão formação ideológica é aqui empregada “para caracterizar um elemento suscetível de intervir como uma força que se confronta com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social, num dado momento”. As formações ideológicas se constituem de uma ou mais formações discursivas e governam tanto estas quanto os discursos (ROBIN, 1977: 119).

”, se

se considerar que “‘algo fala’ (ça parle) sempre antes, em outro lugar e independentemente”,

isto é, “sob a dominação do complexo das formações ideológicas”. Por isso, “as diferentes

regiões de uma FD podem se realizar em lugares e formas enunciativas diferentes”

(PÊCHEUX, 1997: 273).

Compreende-se, desse modo, que a cada formação discursiva associa-se um conjunto

de redes, nomeado por Courtine (apud MAINGUENEAU, 1993: 115) de “redes de

formulações”, as quais equivalem às diferentes possibilidades de articulação de um mesmo

enunciado no interdiscurso. Tais formulações inscrevem-se na interseção de dois eixos: o

“vertical”, referente ao pré-construído, e o “horizontal”, à linearidade do discurso. O

“vertical” diz respeito a enunciados que se relacionam com outros enunciados que constituem

a mesma formação discursiva, compondo, assim, uma memória discursiva, a qual,

considerando-se que os enunciados são inscritos na história, é por estes presumida. Quanto ao

eixo “horizontal”, pode-se dizer que oculta o “vertical”, partindo-se do princípio de que o

enunciador se produz, de forma inconsciente, controlado pelo interdiscurso, que intervém em

cada formulação, regulando-a.

No enunciado

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Como têm dito nossos colegas uruguaios, ‘queremos uma ALCA que não impeça nem imponha’. Não é razoável querer regras e obrigações idênticas para 34 países de características e situações tão desiguais. Essas são as linhas principais do governo para as negociações da ALCA,

do pronunciamento proferido por Lula, em 20/10/03, em Brasília, na Câmara dos Deputados,

na abertura da Sessão Inaugural do Encontro Parlamentar sobre a ALCA28

No trecho “Não é razoável querer regras e obrigações idênticas para 34 países de

características e situações tão desiguais”, no qual o agente do verbo “querer” não aparece

explícito, o locutor, indiretamente, faz menção a um discurso que tem origem em outra

formação discursiva, a fim de marcar oposição em relação às regras e obrigações que os

países desenvolvidos têm buscado determinar, indistintamente, para as relações comerciais a

serem estabelecidas entre todos os países que viriam a compor a ALCA. Observa-se, assim,

que, de fato, as formações discursivas são realidades heterogêneas, que se alimentam,

continuamente, de elementos produzidos em outras formações discursivas, constituindo,

assim, um pré-construído e um discurso transverso. A partir dessa observação, parece-nos

possível poder, então, afirmar que o enunciado acima destacado se encontra em uma rede

interdiscursiva “vertical” de formulação semelhante a: “Nós, países em desenvolvimento,

, em que se discutiu

o papel dos legisladores na ALCA, verifica-se uma rede interdiscursiva “vertical”, uma vez

que tal enunciado relaciona-se com outros enunciados que fazem parte de uma mesma

formação discursiva. Constata-se, no excerto destacado acima, que, segundo o locutor, o

Brasil compartilha com os países em estágio de desenvolvimento análogo ao estágio em que

se encontra preocupações semelhantes, o que pode ser comprovado não só na comparação

explícita estabelecida, pelo locutor, entre Brasil e Uruguai (“Como têm dito nossos colegas

uruguaios, ‘queremos uma ALCA que não impeça nem imponha’.”), como também na

comparação implícita por ele instituída entre países desenvolvidos e países em

desenvolvimento (“Não é razoável querer regras e obrigações idênticas para 34 países de

características e situações tão desiguais.”). O locutor, ao dividir os países que compõem o

globo em dois grandes blocos distintos, parece situar o Brasil e o Uruguai neste último e, além

de solidarizar-se com os demais países que compõem tal grupo, busca explicitar vigorosa

disposição em tê-los como aliados na formação de um grupo forte, coeso e capaz, portanto, de

resistir às imposições do grupo dos países desenvolvidos, os quais são liderados, no que diz

respeito à constituição da ALCA, pelos EUA.

28 Disponível em: http://www.info.planalto.gov.br/exec/inf_discursosdata1.cfm.

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81 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

aceitamos participar da ALCA, desde que sejamos submetidos a regras e obrigações que

respeitem a nossa condição de países em desenvolvimento”.

Parece-nos, pois, ainda possível dizer que o enunciado acima em destaque se inscreve

em uma outra rede simétrica, a do discurso dos países desenvolvidos, especialmente os EUA,

os quais, graças à posição vantajosa que ocupam em relação ao desenvolvimento econômico,

lideram as negociações de constituição da ALCA, encontrando-se, pois, em posição favorável

para determinar as condições segundo as quais se deve estabelecer esse processo. Observa-se

a inscrição desse enunciado em outra rede simétrica por meio, por exemplo, do emprego do

termo “razoável”, o qual revela que o locutor responde ao discurso adotado pelos países que

lideram as negociações de configuração da ALCA, acusando-os indiretamente de injustos e

insensatos.

Ao buscarmos compreender, por meio desse exemplo, as “redes de formulações”

propostas por Courtine, não podemos nos esquecer de que, antes de tudo, o enunciado em

discussão institui ligação estreita com o seu contexto imediato, o que nos leva a considerar

que, aos dez meses de governo, o locutor discursa, na Câmara dos Deputados, em Brasília, no

evento inaugural de uma discussão complexa e delicada, para um auditório, digamos,

bipartido. Discursando para ministros de Estado do seu governo; para deputados e senadores

brasileiros e latino-americanos; para o deputado Ney Lopes, presidente do Parlamento Latino-

Americano e para o ex-presidente argentino Raul Alfonsín, o locutor procura bem demarcar o

espaço que anseia ocupar na constituição da ALCA: o de negociador representante dos países

latino-americanos. Para tal, busca adotar, em seu discurso, uma posição de firmeza, de

compromisso com a nação brasileira e nações vizinhas, de soberania e independência em

relação aos países que se encontram em posição de vantagem na constituição da ALCA e, a

um só tempo, de cumplicidade, de parceria com os países latino-americanos em

desenvolvimento. Isso porque, ao mesmo tempo em que discursa para um interlocutor interno

(deputados, senadores e ministros brasileiros), buscando firmar-se como representante maior

da nação, discursa para um interlocutor externo (representantes políticos de nações vizinhas),

procurando assumir uma posição estratégica de liderança no continente latino-americano. O

locutor trabalha, pois, nessa situação de comunicação específica, para construir a imagem de

governante/governo hábil e preparado para assumir a liderança dos países latino-americanos

na ALCA.

Esse exemplo leva-nos, em termos gerais, a considerar que, em uma rede constituída

de relações interdiscursivas, um discurso, assim como tem origem em outros discursos,

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82 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

influencia/determina outros tantos. Partindo dessa observação, somos compelidos a admitir

que os discursos não constituem objetos isolados, mas se revelam, a um só tempo, unidos e

separados, constituindo uma rede interdiscursiva que se traduz em um processo de contínua

reconfiguração. Isso explica o fato de as formações discursivas incorporarem elementos pré-

construídos, apresentando-se vinculadas a uma memória discursiva, o que pressupõe que uma

formação discursiva só possa ser compreendida em relação com outra(s) formação(ões)

discursiva(s), ou melhor, que se deve buscar apreender a interação entre formações

discursivas.

A cada discurso se associam grupos específicos, pois o espaço de enunciação de um

discurso presume, conforme defende Maingueneau (1993: 54-55), “a presença de um grupo

específico sociologicamente caracterizável, o qual não é um agrupamento fortuito de ‘porta-

vozes’” e só adquire existência em função da enunciação. Maingueneau defende ainda que o

funcionamento do discurso desse grupo específico revela-se associado ao funcionamento

deste último, colocando em evidência as duas faces da atividade discursiva: a social e a

textual. Considerando que a noção de formação discursiva proposta por Foucault (1972)

contempla apenas o aspecto enunciativo do discurso, mostrando-se insuficiente para integrar

as suas duas faces, Maingueneau (1993: 56) propõe adotar a noção de prática discursiva, que,

ao integrar o social e o textual, associa, por sua vez, outros dois elementos: a formação

discursiva e a comunidade discursiva29

Observa-se, assim, que, segundo a ótica de Maingueneau (2000: 43), o discurso

emerge como objeto de uma abordagem não só lingüística, como também sócio-histórica,

uma vez que, além de concebê-lo como um “modo de apreensão da linguagem”, Maingueneau

(2000: 43-44) concebe-o como uma “atividade de sujeitos inscritos em contextos

determinados”, tomando-o, pois, como uma “unidade de comunicação associada a condições

de produção determinadas”. Tais condições, entretanto, devem ser apreendidas em sua

complexidade, uma vez que, conforme asseveram Charaudeau e Maingueneau (2004: 114.),

dizem respeito ao que condiciona o discurso

.

30

29 Maingueneau (1993: 56) compreende “comunidade discursiva” como “o grupo ou a organização de grupos no interior dos quais são produzidos, gerados os textos que dependem da formação discursiva”. Além disso, esclarece que a noção de “comunidade discursiva” “não remete unicamente aos grupos (instituições e relações entre agentes), mas também a tudo o que estes grupos implicam no plano da organização material e modos de vida”.

e é por ele condicionado no contexto no qual

30 O termo discurso é aqui empregado não só enfocando o seu nível micro, referindo-se à situação de comunicação, isto é, ao “quadro espaciotemporal e à situação social local nos quais [se realiza] a troca

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83 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

emerge. Enfim, como afirma Maingueneau (2001: 54), “na realidade, não existe discurso

senão contextualizado”.

3.1.4 Considerações complementares

A partir do exposto acerca de formação social, formação discursiva e prática

discursiva, podemos observar que, com base, principalmente, na noção de formação

discursiva apresentada por Michel Foucault, outros estudos se desenvolveram, no intuito de

melhor elucidar, no âmbito dos estudos lingüístico-discursivos, o que envolve tais questões.

Na Análise do Discurso, abrigada e revista por Pêcheux, tal noção acaba por incorporar outra:

a noção de interdiscurso. Mais tarde, também no campo da Análise do Discurso,

Maingueneau propõe que se adote a nomenclatura “prática discursiva” para designar e

ampliar o que Foucault concebe como formação discursiva. Busca-se assim observar as duas

faces da atividade discursiva, a textual e a discursiva, preocupando-se em contemplar o

discurso não como objeto de uma abordagem meramente lingüística, mas também sócio-

histórica. A partir das lentes de Maingueneau, capta-se, pois, o discurso como algo que, no

contexto do qual emerge, caracteriza-se pela (inter)dependência, uma vez que os discursos,

embora singulares, se interinfluenciam contínua e incessantemente sob a forma de pré-

construídos e discursos transversos.

No estudo que ora se apresenta, buscaremos empregar a noção de formação discursiva

e de outras que com esta dialogam, tais como de pré-construídos e discursos transversos, a fim

de apreendermos o que, constitui, de fato, o discurso nomeado hoje de discurso político.

3.2 Poder, discurso e mídia

O estudo acerca do que costumeiramente, no campo da Análise do Discurso,

nomeamos discurso político, suscita inevitáveis indagações, como: o que é discurso? O que é

política? O que é poder? E o que vem a ser, afinal, discurso político? Mas tais indagações não

comunicativa”, como também o seu nível macro, destacando o seu aspecto institucional (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004: 127.).

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84 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

se esgotam, pois provocam inúmeras outras, o que se traduz em um processo que nos lança,

invariável e incessantemente, ao terreno, ao mesmo tempo, vasto, fértil e delicado da

significação.

Ao percorrer esse terreno, procuramos estar atentos ao fato de “que se nada esperamos

da palavra, se sabemos de antemão tudo quanto ela pode dizer, esta se separa do diálogo e se

coisifica” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1997a: 355), o que nos levou a constatar que a

compreensão do que nomeamos discurso político não está circunscrita aos domínios da

Lingüística e da Análise do Discurso, mas se revela em pontos de contato destes com outros

domínios como, por exemplo, o das Ciências Políticas, da Comunicação Social, da Filosofia,

da História e da Antropologia.

Sem pretendermos adentrar tais domínios, buscaremos simplesmente tangenciar

alguns deles, na tentativa de melhor fundamentar a análise dos nossos corpora, desenvolvida

no terceiro capítulo deste trabalho. A nossa decisão em buscar subsídios para a nossa análise

em alguns diferentes campos do saber resultou na apresentação de um estudo estruturado em

rede, ou seja, de um estudo constituído de nós que, embora distintos, se tocam e se vinculam

de modo complementar, constituindo, dessa forma, o que Pierre Lévy (1996: 44) concebe

como hipertexto. Assim sendo, a fim de buscar melhor compreender aquilo que ora constitui o

alvo da nossa atenção - o discurso político - propomos apresentar algumas noções que

corroboraram para a constituição desse objeto de estudo. Para tal, lançaremos mão não só de

noções do âmbito da Análise do Discurso, como também de outras esferas do saber. Essa

preocupação encontra explicações no fato de, no presente trabalho, concebermos o discurso,

acima de tudo, como um sistema que permite a produção de conjuntos de textos, e não só

como conjuntos de textos produzidos pela instância política.

Objetivando elucidar o caminho por nós percorrido ao tecermos esse hipertexto,

organizamos o conteúdo desta seção da seguinte forma: em um primeiro momento,

abordaremos questões referentes ao poder e à sua manifestação no campo político, para, em

seguida, buscarmos compreender o que comumente nomeamos discurso político. Por fim,

apresentaremos uma discussão acerca do que constitui o espetáculo concebido como objeto

discursivo, tendo em vista a espetacularização observada hoje das manifestações políticas, ou,

ainda, político-midiáticas. Buscaremos, assim, a partir dos subsídios teóricos a seguir

apresentados, orientar a análise dos nossos corpora, sob um olhar não só lingüístico-

discursivo, como também histórico-social.

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85 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

3.2.1 O poder

Bobbio (1997b: 934) define o poder como um fenômeno social, já que o concebe

como uma relação que se estabelece entre os homens, mas acrescenta que esta se trata de uma

“relação triádica”. Isso porque, para defini-lo, faz-se necessário determinar não só a parte que

o detém e aquela a que ele se sujeita, como também especificar a esfera em que o poder se

manifesta. Enquanto, na Antiguidade, o Estado era a esfera superior e centralizadora do poder

em torno da qual e em consonância com a qual todas as demais esferas sociais se

estruturavam e à qual, por completo, se subordinavam, fazendo do Estado a esfera absoluta e

legítima do poder, na atualidade o poder se encontra pulverizado em diferentes esferas, como,

por exemplo, a família, a empresa e a escola. Pode-se assim afirmar que a relação triádica do

poder exposta por Bobbio constrói-se hoje, graças às transformações sociais, como uma

evolução da relação diádica da Antiguidade.

Segundo Bobbio (1997b: 955), a organização do poder é também triádica, uma vez

que este se apresenta organizado em três classes: o econômico, o ideológico e o político.

Grosso modo, o primeiro refere-se à posse dos meios de produção; o segundo concerne às

idéias expressas pelos “sábios” de uma sociedade, ou seja, à posse do saber (ex: intelectuais e

cientistas); já o terceiro, o político, “se baseia na posse dos instrumentos mediante os quais se

exerce a força física (as armas de toda a espécie e potência): é o poder coator no sentido mais

estrito da palavra”. Bobbio resume essas três categorias de poder dizendo que

todas essas três formas de poder fundamentam e mantêm uma sociedade de desiguais, isto é, dividida em ricos e pobres com base no primeiro, em sábios e ignorantes com base no segundo, em fortes e fracos, com base no terceiro: genericamente em superiores e inferiores.

Berrendonner (1990), por sua vez, propõe compreender a interlocução a partir de um

modelo igualmente triádico, segundo o qual a interação entre os sujeitos do discurso se

processa envolvendo três universos distintos: dois individuais e um coletivo. Ou seja,

envolvendo a relação intersubjetiva entre os parceiros enunciativos, que não só compartilham

e negociam suas crenças individuais (universos individuais), como também interagem sobre

um “modelo público de realidade” (universo coletivo). Assim sendo, os parceiros

enunciativos, a um só tempo, influenciam um ao outro; buscam, cada qual, conformar esse

modelo de acordo com as suas próprias crenças e agem conforme a ele, instaurando, dessa

forma, um processo triádico de influenciação.

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86 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Associando-se as idéias apresentadas por Bobbio às apresentadas por Berrendonner,

pode-se vislumbrar o quão complexas são as relações de poder e perceber que essa

complexidade se observa graças ao universo de fatores que entram em ação na composição

dos três pólos que constituem essa relação triádica. Vê-se, com isso, que as relações de poder

não constituem relações simples nem previsíveis, o que faz com que os discursos fortemente

por estas marcados reflitam um intricado jogo de forças, que se estabelece entre universos

distintos e, embora não necessariamente, muitas vezes antagônicos. Por envolverem inúmeros

aspectos, questões delicadas devem ser consideradas quando se busca compreender essas

relações e os discursos por meio dos quais estas se manifestam, como, por exemplo: (a) que

imagens Y tem do poder e de X, o detentor do poder?; (b) Que imagens X tem de si próprio,

do poder e daquele que a este se submete?; (c) Que imagens X quer que Y tenha do poder e

daquele que o detém?; (d) O que confere autoridade a X para que este detenha o poder? (e) A

dimensão do poder de X é real ou idealizada por X e/ou Y?; (f) O poder de X se manifesta

igualmente em suas ações e em seus discursos ou entre estes se verifica um descompasso?

A formulação de indagações como essas nos parece constituir a primeira etapa do

estudo de discursos que, de uma forma ou de outra, apresentam-se marcados pelo poder. O

processo que constitui a busca da compreensão de discursos produzidos pela instância política

nos parece, pois, iniciar-se por intermédio da compreensão do que se concebe não só como

política, mas também como poder.

3.2.1.1 Política e poder político

Embora não haja como conceber vida social desvinculada do poder, uma vez que este

se evidencia nas mais diversas esferas da sociedade humana, é no campo da política,

conforme argumenta Bobbio (1997b: 940), “que o poder ganha seu papel mais crucial”, ou

seja, que essas questões se colocam com maior complexidade. O poder político se diferencia

dos demais, constituindo-se no poder supremo, pelo fato de deter o monopólio da força. Mas,

conforme adverte Bobbio (1997b: 955), para se exercer o poder político, o domínio da força

mostra-se como condição necessária, mas não suficiente, uma vez que se torna imprescindível

que o poder seja legítimo. Infere-se daí que “o Estado é a única fonte do ‘direito’ à violência”

(WEBER, 1979: 9).

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87 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Entretanto é importante que se considere que a força não é o único meio para que se

exerça o poder político, mas o específico (BOBBIO, 1997b: 955). Além disso, há que se

considerar que a força é o instrumento extremo a ser empregado para conter a insubordinação

que coloca em risco o exercício do poder político. Observe-se, por exemplo, que o poder se

mede em votos ou em armas, ou seja, “o potencial de legitimação do domínio ou de

aniquilação física” (HABERMAS apud REIS, 2000: 131). Sendo assim, deve-se fazer uso de

outros instrumentos para se assegurar tal poder, visando alcançar fins que se configuram de

acordo com as metas que o detentor do poder estabelece em função das circunstâncias em que

se encontra. Como formas alternativas ao emprego da força, para que se assegure o poder

político, verifica-se, por exemplo, o concurso tanto do poder ideológico quanto do econômico.

Há que se considerar, ainda, que o próprio poder político deve constituir um meio para se

alcançar um determinado fim, e não, a um só tempo, meio e fim, caso contrário, a política

perde a razão de existir.

A partir desse prisma, a política emerge como “a direção ou a influência sobre a

direção de uma associação política, ou seja, no nosso tempo, de um Estado31

Se, como vimos, “o Estado [...] é uma relação de domínio de homens sobre homens”

(WEBER, 1979:10), que se funda a partir da violência legítima, ser possuidor dessas

qualidades, além de conferir a um homem o direito de influir nos rumos da História, assegura-

lhe o poder para tal? Weber (1979: 10-16) defende que o domínio, para subsistir - o que só

ocorre caso os dominados se subordinem à autoridade daquele que domina - precisa se fundar

sobre motivações internas e sobre meios externos. São três as motivações internas

apresentadas por Weber, as quais, não raro, apresentam-se combinadas entre si: (a) a

” (WEBER,

1979: 8). Ao versar sobre a política como vocação, Weber (1979: 75) lança a seguinte

questão: “Como deverá ser um homem para ter direito a pôr a mão no leme da História?” À

qual ele responde dizendo que são três as características imprescindíveis a um político, as

quais devem se apresentar combinadas: (a) paixão, no sentido de se entregar, com entusiasmo,

a uma causa; (b) sentido de responsabilidade; (c) medida, no que se refere à capacidade de

estabelecer limites, de agir de forma fria e calculada, ou seja, de saber guardar distância em

relação aos homens e às coisas. Weber reconhece, entretanto, o quão difícil é, por exemplo,

encontrar combinadas, em uma única pessoa, a paixão e a medida.

31 Weber (1979: 9) define Estado como “a comunidade humana que, dentro de um determinado território (o “território” é o elemento definidor), reclama (com êxito) para si o monopólio da violência física legítima”. Essa definição de Estado prevalece ainda hoje atual embora tenha sido apresentada por Weber em uma conferência em 1919.

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legitimidade “tradicional” (ex: os patriarcas e os príncipes patrimoniais do antigo regime); (b)

a autoridade do encanto (ex: carisma pessoal); a legitimidade fundada na “legalidade” (ex: o

“servidor do Estado”). Weber esclarece que, embora essas três motivações internas sejam de

suma importância para a estrutura do domínio, a subordinação dos dominados àquele que

exerce o domínio apresenta-se também condicionada por outras questões como o temor e a

esperança. Como meios externos sobre os quais se apóia o domínio, Weber apresenta, por

exemplo, os meios humanos (ex: os funcionários que compõem um quadro administrativo) e

os meios materiais (ex: imobiliários e bélicos).

Além dessas, Weber (1979: 79) apresenta outra questão, que merece aqui ser

discutida: Qual é o lugar ético que a política ocupa em nosso modo de vida? Para responder a

esse questionamento, Weber defende que a política não deve ser o campo da ética absoluta,

pois esta não se interroga acerca das conseqüências dos atos praticados. Embora entenda que a

ética da política é a ética da responsabilidade, Weber argumenta que o político deve se

orientar ora segundo a ética da convicção, ora de acordo com a ética da responsabilidade32

Registram a mesma questão, apresentando aproximações quanto ao ponto de vista

defendido, outros autores como, por exemplo, Platão, Norberto Bobbio e Celso Lafer. Para

Platão (1964: 61-67), a mentira, no campo da política, pode ser empregada pelo governante

quando este precisa impedir uma má ação, tendo em vista o bem da comunidade, mas adverte

que a mentira do governado para com o governante é inadmissível em qualquer circunstância,

constituindo, assim, uma falta grave. Bobbio (1997b: 961) amplia as idéias apresentadas por

Weber, argumentando que a diferença entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção

corresponde à diferença entre ética individual e ética coletiva, o que faz com que as boas e

más ações políticas e as boas e más ações relativas à moral devam ser julgadas segundo

em

função da circunstância em que se encontre, uma vez que as duas concorrem para formar o

autêntico homem com vocação política. Ao reconhecer o dilema em que se encontra o político

no que diz respeito aos domínios da ética, e, mais especificamente, à intensidade da tensão

que experimenta ao ser convocado a determinar os meios e os fins de uma ação política,

Weber (1979: 89) argumenta que “quem se mete na política, ou seja, quem aceita utilizar

como meios o poder e a violência, selou um pacto com o diabo”, já que, nesse âmbito,

potências diabólicas estão em jogo (1979: 96).

32 Grosso modo, Weber entende como ética da convicção a ética absoluta e, como ética da responsabilidade, aquela que considera as conseqüências dos atos praticados, ou seja, a ética relativizada em função da situação apresentada. Weber esclarece que quem age movido pela ética da convicção não se responsabiliza pelas conseqüências dos atos praticados, pois considera natural que não tenha que por eles responder.

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critérios distintos. Lafer (1994: 231), por sua vez, ao discutir o problema da mentira na

política, apresenta e associa duas dicotomias: a distinção entre público e privado e a distinção

entre governante e governado, ressaltando que o público é o acessível a todos, ao passo que o

privado é o reservado a poucos. Sendo assim, acredita que, dependendo da circunstância em

que se encontre, o político pode e deve empregar a mentira como meio para alcançar

determinado fim.

Todas essas questões nos permitem entrever a vastidão do universo da política e,

embora se mostrem insuficientes e superficiais para, de fato, possibilitar-nos adentrar, com

segurança, esse universo, parecem-nos suficientes para sinalizar a complexidade do que

constitui o objeto deste trabalho e o cuidado que o seu estudo requer.

3.2.1.2 A ascensão e a permanência de Lula e do PT ao/no poder

Buscando compreender o objeto multifacetado e variável que constitui, como veremos

mais adiante, o discurso político, dedicaremos esta seção à exposição de aspectos referentes à

trajetória da ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores (PT) ao

poder no Brasil, culminando na apresentação de alguns aspectos concernentes à sua

permanência no poder. Acreditamos que a apresentação de tais aspectos nos auxiliará a

compreender, de forma conjunta e indissociável, esse multifacetado e variável objeto - ponto

de encontro de diferentes áreas do saber - e o contexto político do qual o discurso do

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifesta-se e para cuja composição contribui.

O resultado dessa ascensão ao poder - a eleição de Lula em 2002 - além de refletir as

profundas mudanças sociais, políticas e econômicas experimentadas hoje pelo homem nas

mais diferentes localidades do globo, representa, talvez, a maior alternância no poder de toda

a história brasileira. Acrescido ao fato de Luiz Inácio Lula da Silva ser a primeira liderança de

esquerda e o primeiro “homem do povo” a ocupar a presidência da República no Brasil, essa

alternância no poder acontece em um momento em que a representação política tem sido

considerada em crise e, nos países ocidentais, o conceito de democracia, repensado.

Em seu sentido clássico, a democracia é compreendida como a melhor forma de

governo para se realizar o bem comum, isto é, como “o ideal do bom governo” (BOBBIO,

1997a: 83). Observa-se que esta se revela, entretanto, uma compreensão bastante ampla e até

mesmo imprecisa se considerarmos que não explicita os critérios segundo os quais se deve

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90 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

estabelecer a melhor forma de governo. Em decorrência de tal amplitude e imprecisão e da

complexidade do cenário político contemporâneo, essa concepção tem sido hoje repensada.

Bobbio (1997a: 84), por exemplo, ao refletir sobre essa questão, compreende o governo

democrático como o governo do poder público em público, ou, melhor dizendo, como o

regime do poder visível. Muito mais do que ser concebido como o governo direto do povo ou

controlado pelo povo, pode-se dizer que, segundo essa concepção, o governo da democracia

faz emergir as instituições políticas como parte integrante da sociedade. Mas, se por um lado,

observa-se que, no governo democrático, a visibilidade das ações dos governantes revela-se

estritamente vinculada ao direito e ao dever de o cidadão acompanhar de perto as questões

que lhe dizem respeito, por outro lado, parece ainda permanecer obscuro qual é, de fato, o

papel exercido pelas instituições políticas. Quanto a este último aspecto, parece se configurar,

paradoxalmente, a dificuldade de se precisar até que ponto as instituições políticas (o Estado)

são elas próprias instrumentos de um processo de interação estratégica ou de domínio (REIS,

2000: 140).

No que diz respeito à crise da representação política, Manin (1995) comenta que, se,

por décadas, a representação mostrou-se alicerçada em uma relação entre os eleitores e os

partidos políticos, hoje isso já não ocorre. O eleitorado tem adotado um comportamento

inconstante, votando, de forma distinta, a cada eleição; vem se revelando, inclusive, crescente

o número de eleitores que têm demonstrado não se identificar com partido algum. Surge,

assim, o eleitorado flutuante e, por intermédio dele, chega ao poder os “comunicadores”, ou

seja, aqueles que manejam com habilidade os meios de comunicação de massa, os hábeis no

domínio das técnicas da mídia. Isso revela, conforme atesta Manin (1995), que o que se

observa hoje não é uma crise da representação política, mas uma mudança em seu formato,

isto é, uma mudança na combinação dos elementos que a compõem desde o final do século

XVIII.

Para que se compreenda essa mudança, é importante que se observe que constituem

três as formas de governo representativo: o parlamentarismo, a democracia de partido e a

democracia do público (MANIN, 1995). O surgimento dos partidos políticos de massa,

observado a partir da segunda metade do século XIX, representou, segundo Manin (1995: 6-

7), um avanço da democracia, uma vez que resultou em uma relativa aproximação33

33Essa aproximação é relativa, uma vez que, como esclarece Manin (1995: 13.), toda forma de governo representativo mantém a distância entre representantes e representados.

entre

representantes e representados, dando origem, em substituição ao parlamentarismo, a uma

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91 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

nova forma de governo representativo: a democracia de partido. O governo dos notáveis

cedeu, pois, espaço ao governo do ativista e líder partidário. Já na segunda metade do século

passado, começa a se delinear uma nova forma de governo representativo: a democracia do

público. Dessa vez, o governo do ativista e líder partidário cede espaço ao governo do

“comunicador”. Nesta última forma de governo representativo, embora os partidos ainda

exerçam um papel indispensável no universo político, apresentam-se como instrumentos a

serviço de um líder, priorizando a ênfase na individualidade deste, e não nas plataformas

políticas (MANIN, 1995). Em decorrência da valorização de fatores pessoais na relação

estabelecida entre representante e representados, verifica-se, nessa forma de governo, uma

tendência ao que Manin (1995: 25) denomina de “personalização do poder”.

Manin (1995) acrescenta que, se, por um lado, não se pode conceber o governo

representativo como um tipo particular de democracia, uma vez que este não consiste em um

sistema em que os representantes têm, obrigatoriamente, de atender à vontade dos

representados, por outro, acredita-se que o governo representativo vai ao encontro da

democracia. Ou seja, segundo essa perspectiva, democracia e representação política

manifestam-se, na esfera política, como questões intimamente ligadas. Talvez esses dois

aspectos da esfera política contemporânea - a reavaliação do conceito de democracia e a

“crise” da representação política - possam, em parte, ajudar-nos não só a compreender a

chegada ao poder, no Brasil, após três derrotas consecutivas, de um “homem do povo”, de um

líder de um partido de esquerda, como também a construção de Lula presidente e sua

manutenção no poder.

3.2.1.2.1 A ascensão ao poder

Ao buscar compreender, a partir desses dois aspectos, a ascensão de Lula ao poder,

faz-se necessário recuar um pouco ao passado e observar que, nos três pleitos eleitorais em

que Lula foi derrotado, a sociedade brasileira revelava-se receosa com relação à possibilidade

de ele ascender ao poder, principalmente no primeiro pleito em que concorreu à presidência

da República (1989), por ele ser um “homem do povo”, por ter sido um líder sindical e por ser

líder de um partido de esquerda. Além de considerá-lo radical em sua postura e em seus

ideais, ou seja, um representante “puro” do movimento socialista dos primeiros tempos,

consideravam-no, por ser um homem do povo, desprovido de pré-requisitos imprescindíveis

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92 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

ao governante de um país. Sendo assim, acreditavam que Lula não só constituía uma ameaça

aos interesses das elites da sociedade brasileira, mas também um prenúncio ao fracasso no

âmbito da política e da economia.

A partir da década de 90, após a primeira e mais expressiva derrota de Lula à

presidência da República, ao se reconhecer a necessidade de ampliar a base eleitoral do

partido com o objetivo de conquistar a vitória nas urnas, observa-se que passa a se configurar

como alternativa viável para se chegar ao poder a condição histórica sob a qual, conforme

afirma Przeworski (1991: 40), devem agir os socialistas: conciliar “a condição de minoria

com o governo da maioria”. Assumindo uma postura mais flexível, o partido aceita conviver

com a propriedade privada e com o mercado e passa a não mais conceber a burguesia como

“inimiga”, o que resulta na aproximação da classe média e na ampliação de alianças

(SINGER, 2001). Talvez isso encontre explicação no fato de, diferentemente de partidos

operários europeus do século XIX, que, segundo Przeworski (1991: 22), aceitavam participar

de eleições apenas como forma de propagar o socialismo, o PT ter sido criado com a

finalidade de participar das eleições para, assim, viabilizar a inserção dos trabalhadores no

Congresso Nacional, em Brasília. Conforme afirma Singer (2001: 48.), “a decisão de

participar das instituições veio antes da ideologia”, com o intuito de, por intermédio da

participação política, levar os trabalhadores à conquista do poder político. Essa intenção vai

ao encontro da crença que se alimentava, na Europa, na época da criação dos partidos de

massa, de que tais partidos promoveriam a ascensão do “cidadão comum” ao poder, pondo

fim ao elitismo característico do parlamentarismo34

Observemos, quanto a esse aspecto, que, embora em fevereiro de 1980, época da

fundação do PT, conforme afirma Singer (2001), predominassem no recém-criado partido os

sindicalistas, o mesmo não se verifica nos anos 90, uma vez que, a partir dessa época, o

partido passa a contar com a presença não só marcante, como também atuante e influente de

filiados, por exemplo, advogados, historiadores e economistas. Verifica-se, desse modo, uma

considerável redução da força relativa dos sindicalistas na estrutura do partido. Entretanto, se,

por um lado, já não se podia mobilizar o operariado como classe, uma vez que o PT não se

configurava como um partido só de operários, por outro, este tinha, obrigatoriamente, que

. Vê-se, assim, que, embora, em sua

essência, o PT revelasse manter a condição de minoria preparava-se, gradualmente, para se

tornar o governo da maioria.

34 Observa-se, entretanto, que o que ocorre, de fato, é a emergência de um novo tipo de elite, pois a liderança da base operária acaba por perder a marca distintiva da classe operária (MANIN, 1995: 19.).

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93 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

continuar sendo um partido de operários. Ao longo da primeira década de existência do

partido, defendia-se no PT que os trabalhadores deveriam constituir a classe dominante no

Estado, colocando o poder político a seu serviço, uma vez que acreditavam, conforme

apontava a História, que só assim seria possível a uma classe transformar a sociedade

(SINGER, 2001.). Até 1990, o PT revela uma relação ambígua com a democracia, pois se

apresenta

ora como um partido democrático, comprometido com a manutenção de ampla liberdade para a disputa dos postos de direção do Estado por meio de eleições, ora como um partido em que a luta eleitoral seria só uma fase da conquista da hegemonia, após a qual apenas os partidos que não se opusessem à classe trabalhadora subsistiriam. (SINGER, 2001: 38).

Já as derrotas de Lula à presidência da República, em 1994 e em 1998, ao também

contribuírem, de forma decisiva, para compor esse cenário de mudança, fizeram com que o

partido voltasse a atenção para a economia capitalista, buscando, conforme esclarece Singer

(2001: 43), construir a proposta de uma “nova política econômica”35, que viria a ser adotada

caso o PT conquistasse o poder. A evidência mais expressiva desse cenário de mudança, que

se processou ao longo da década de 90 do século passado, foi a promoção da cuidadosa

(re)construção da imagem de Lula como homem público. Parece que a decisão do PT por

investir na construção da imagem de Lula, reside, dentre outros aspectos, no fato de ele

“demonstrar ter um potencial próprio na dinâmica da eleição para presidente”36 (Singer. 2001:

65.), além de representar “um ponto de unificação dos dois campos, majoritário e

minoritário37

35 Sob o nome de “Revolução Democrática” (o vocábulo “democrática” faz alusão à transformação pretendida pelo partido e aos compromissos deste com a democracia, enquanto o vocábulo “revolução” revela o vínculo com o passado) o partido define o programa de reformas que almeja para o Brasil. Dentre as reformas pretendidas, encontram-se a promoção de “um gigantesco programa de educação”; a “renegociação soberana, imediata e abrangente da dívida externa”; a rediscussão da dívida interna; o estabelecimento de uma política industrial planejada; a reforma “radical” do sistema financeiro, que passaria a ser orientado, de forma decisiva, para o estímulo à produção (SINGER, 2001). 36 No pleito eleitoral de 1994, Lula apresentou um notável crescimento em relação ao primeiro turno de 1989, passando de 17% para 27% dos votos válidos, o que representa 17.126.291 votos em 1994 contra 11.662.673 em 1989. É importante ressaltar que esse crescimento se deu quando se compunha um cenário altamente favorável ao opositor de Lula, Fernando Henrique Cardoso, ou seja, em um momento em que a sociedade brasileira experimentava o impacto positivo do Plano Real (SINGER, 2001: 64-65.). Já em 1998, mesmo considerando-se a previsível vantagem de FHC sobre Lula, a qual se configura em decorrência do sucesso do Plano Real, Lula se revela em ascensão, conquistando 30% dos votos válidos e angariando votos para candidatos a deputado, senador e governador do PT (SINGER: 2001: 87.)

, que existem no partido” (SINGER, 2001: 87). Ao longo de sua trajetória

37 Desde sua fundação, o PT é composto por duas alas divergentes: a direita e a esquerda. Esta, por sua vez, ao longo da trajetória do partido, tem se segmentado em facções internas. A intensificação das divergências internas, que se observa, por exemplo, em função de um movimento de reavaliação do estilo de campanha

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94 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

política, Lula tem revelado ser dotado de um notável carisma pessoal, o que, segundo Weber

(1979), constitui a “autoridade do encanto", uma das três motivações internas essenciais para

a estrutura do domínio. Mas, como Lula, ao longo da década de 90, não detinha o poder

político, uma vez que ainda se encontrava na posição de candidato à presidência da

República, não ocupava o lugar legítimo do representante. Desse modo, na impossibilidade de

se valer da legitimidade fundada na “legalidade”, o seu carisma pessoal constituía um valioso

instrumento para que ele conquistasse a tão almejada autoridade alicerçada não só no carisma,

mas também na “legalidade”. Ou seja, a “autoridade do encanto” poderia vir a viabilizar a

conquista da autoridade fundada na “legalidade”, promovendo, assim, a profícua combinação

dessas duas formas de autoridade.

Além disso, o seu carisma se revelava como um grande trunfo para o PT e, por isso,

não poderia deixar de ser cuidadosamente explorado em benefício do partido. Investindo-se

na imagem de Lula, visava-se não só à conquista da presidência da República, como também

ao fortalecimento da imagem do partido, o que, conforme acreditavam, acarretaria na

construção de bases eleitorais, levando, assim, o PT à vitória nas urnas nos âmbitos federal,

estadual e municipal e, conseqüentemente, à ampliação da participação e da

representatividade políticas do partido. Pode-se assim afirmar que Lula constituía um

elemento chave na imprescindível construção de relações de confiança entre o partido e o

eleitorado. Saber explorar esse elemento configurava-se como uma estratégia de suma

importância para que, a partir da conquista da confiança do eleitorado, fossem criadas

condições propícias à conquista do poder político por parte do partido. Vale notar, entretanto,

que, ao mesmo tempo em que o carisma de Lula era considerado como um instrumento

importante para fortalecer o PT, esse fortalecimento do partido configurava-se como algo de

fundamental importância para que Lula não só conquistasse o poder político na disputa

eleitoral, mas também assegurasse, uma vez eleito, a tão necessária governabilidade. Verifica-

se, desse modo, que não só o PT se apresentava como um instrumento a serviço de Lula,

buscando pôr em destaque a sua individualidade, como também Lula se apresentava como um

instrumento valioso a serviço do fortalecimento da imagem do PT junto ao eleitorado.

adotado no pleito de 1982, faz com que o grupo dos moderados, dentre os quais se inclui Lula, crie, em 1983, a Articulação, como “uma maneira de organizar os independentes, que ‘tinham uma só camisa’” (SINGER, 2001: 32.). Esses diferentes pólos de força disputam, muitas vezes formando alianças, a composição do “campo majoritário” dentro do partido. A partir de sua criação, a Articulação, inclinando-se ora para a ala esquerda, ora para a direita, aliando-se, assim, ao centro, tem conquistado, exceto no período de 1993-1995, o controle do PT.

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95 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Nos dois pleitos (1994 e 1998) em que Lula foi derrotado por Fernando Henrique

Cardoso, pode-se observar, com maior nitidez, que se tentava, pouco a pouco,

“desradicalizar” a imagem de Lula e do PT, sem, contudo, desvincular a imagem de Lula e a

de seu partido de compromissos históricos assumidos pela esquerda política, como, por

exemplo, a reforma social. Nesse aspecto, vale recorrer a Przeworski (1991: 40), que defende

que a “desradicalização” dos movimentos socialistas representa uma estratégia adotada para

se alcançar a vitória eleitoral, e não um abandono dos objetivos do movimento. Adotando-se a

“desradicalização” da imagem de Lula e do PT como uma estratégia eleitoral, buscava-se

tranqüilizar as elites de nossa sociedade, objetivando, assim, ampliar a base de apoio político

à candidatura Lula. Ao mesmo tempo, trabalhava-se para assegurar que Lula, em sua essência

político-ideológica, não havia aberto mão de princípios que sempre foram caros à sua fiel base

eleitoral, ou seja, àqueles que, desde o início, acompanham a sua trajetória como homem

público, apoiando todas as suas candidaturas. Se, no que diz respeito a situações

comunicativas que se realizam na esfera política, o locutor parece sempre considerar que o

interlocutor tem uma imagem do referente diversa da imagem que ele, locutor, faz do mesmo

referente e busca moldá-la conforme os seus objetivos e interesses, Lula e o PT pareciam não

ter a simples impressão, mas a certeza de que a imagem de “Lula homem público” construída

por grande parte da sociedade brasileira era completamente distinta daquela que ia ao

encontro de seus objetivos e interesses. O mesmo, porém, não acontecia com relação à outra

parcela dessa sociedade: a sua fiel e significativa base de apoio político. Paradoxalmente,

configurava-se a exigência de se estabelecer, paulatinamente, um delicado movimento

pendular que oscilava da necessidade de “deixar de ser” à de “continuar a ser”.

O processo de (re)construção da imagem de Lula e do PT alcançou seu auge na

disputa presidencial de 2002, que foi caracterizada, conforme afirma Rubim (2004: 11), pela

superexposição midiática, em oposição ao pleito de 1998, que se caracterizou pelo

silenciamento38

38 Segundo Rubim (2004: 9), “a disputa eleitoral de 1998 vem sendo analisada como uma eleição que “não existiu”, como um pleito silenciado pela mídia”, já que, na medida do possível, foi retirada, pelo governo, da dimensão pública da sociedade, o que acabou por provocar um comportamento apático no eleitorado. Recebendo a atenção de um evento ordinário da política, o pleito de 1998 praticamente deixou de ser um momento excepcional da política.

. Mesmo antes do horário eleitoral gratuito, a mídia, não só televisiva, como

também jornalística, dedicou-se a promover debates, aparições e entrevistas dos candidatos,

ocupando-se, inclusive, em noticiar a agenda de cada um deles. Já a partir de janeiro,

procurou-se dar cobertura à formação das alianças, às dificuldades e aos impasses enfrentados

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96 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

pelos partidos, à construção e ao desmonte de candidaturas. Essa superexposição resultou em

uma maior visibilidade político-midiática da disputa presidencial, refletindo uma nova relação

entre os dois momentos/movimentos que compõem o posicionamento39

Mas o que se verificou, na disputa presidencial de 2002, foi que o movimento de

construção da imagem pública suplantou o movimento de construção da realidade

e a luta políticos: a

luta pela imagem pública e a luta pela hegemonia referente à interpretação da realidade

(RUBIM, 2004: 20-21). Se, até então, esses dois momentos/movimentos apresentavam-se

indissociáveis, quase unificados, na atualidade, embora ambos sejam imprescindíveis e devam

manter entre si uma relação de equilíbrio, manifestam-se dotados de certa autonomia e

distinção.

40. Essa

particularidade do pleito eleitoral de 2002 parece encontrar explicação em alguns aspectos

apontados por Rubim (2004: 22-23), tais como: (i) pequeno espaço reservado na mídia à

competição entre os candidatos no que se refere à interpretação da realidade; (ii)

apresentação, por parte dos candidatos, de plataformas bastante genéricas e semelhantes, no

que diz respeito a temas sociais41

39 O posicionamento político diz respeito, conforme esclarece Rubim (2004: 19-20), a afirmação social, por exemplo, dos candidatos à presidência da República em 2002, como atores políticos, os quais, necessariamente, precisavam buscar ganhar, por meio da luta político-midiática, existência pública. É importante lembrar, como adverte Rubim (2004: 19), que “na sociedade atual, a existência física já não assegura automaticamente a existência social”. 40 Embora a disputa presidencial de 2002 não seja o nosso objeto de estudo neste presente trabalho, reconhecemos que uma análise sócio-discursiva dessa disputa, realizada a partir do “modelo público de realidade” proposto por Berrendonner (1990), contribuiria para uma compreensão mais ampla e detalhada desse aspecto. 41 Rubim (2004: 22-23) esclarece que a candidatura Lula “buscou demonstrar estrategicamente a existência de um programa e de propostas específicas”, o que não ocorreu com outras candidaturas que investiram na imagem pública do candidato ou em seus feitos do passado.

; (iii) desqualificação pela mídia dessas plataformas, as quais

foram por esta consideradas apenas promessas eleitorais. Isso fez com que, conforme atesta

Rubim (2004: 23), o âmago da disputa presidencial de 2002 e de sua visibilidade fosse a

imagem pública dos candidatos, o que ocasionou um desequilíbrio entre os dois

momentos/movimentos que compõem o posicionamento e a luta políticos. Com isso, além de

haver um enfraquecimento do segundo momento/movimento da luta político-midiática, houve

um deslocamento do foco do segundo para o primeiro momento/movimento, ou seja, a

competição eleitoral teve como cerne a imagem pública dos candidatos em detrimento da

interpretação da realidade. Embora a mídia tenha contribuído para que esse deslocamento

ocorresse, a maior contribuição, nesse aspecto, deve-se às estratégias político-eleitorais

adotadas pelas principais candidaturas.

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97 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

No caso da candidatura Lula, há que se considerar que o seu principal opositor, José

Serra, viu-se prejudicado com tal deslocamento, uma vez que, além de lhe faltar carisma

pessoal, apresentava-se como o candidato do governo; governo este que, em seu segundo

mandato, enfrentava séria crise econômica, o que suscitava, portanto, mudanças. Sendo assim,

para Serra, constituía tarefa delicada, a um só tempo, ser o candidato do governo e representar

uma alternativa de mudança. Como o momento exigia, pois, uma liderança com competência

para enfrentar e superar a crise econômica, buscou-se trazer para o presente o passado bem

sucedido de Lula como líder sindical, a fim de ressaltar a competência do bom negociador.

Dessa forma, ao mesmo tempo em que se construía a imagem pública de Lula negociador,

desfazia-se a imagem pública de Lula despreparado para governar, desfazendo-se, assim, o

atributo negativo que o acompanhou, de forma decisiva, nos três pleitos eleitorais em que foi

derrotado. Uma vez valorizada a competência política em detrimento da competência técnico-

administrativa, Lula revelou-se, em meio aos demais candidatos e, principalmente, em relação

a José Serra, como o mediador e o aglutinador de forças ideal para enfrentar e suplantar a

crise que havia se instalado no governo FHC. Sendo assim, ao invés de simplesmente fazer

referências saudosistas a feitos do passado, a candidatura Lula soube vincular passado e

presente, de forma a não negar o passado de lutas do nordestino, do torneiro mecânico, do

líder sindical, do líder de um partido de esquerda e, principalmente, de forma a extrair desse

passado, até então rejeitado e temido por um significativo segmento da sociedade brasileira,

características essenciais a um governante capaz de debelar a crise enfrentada, sem sucesso,

por FHC. Ao buscar conquistar a confiança de um eleitorado amplo e heterogêneo,

congregando em torno de sua candidatura forças distintas e, até mesmo, antagônicas, Lula

trabalhava para, a um só tempo, ampliar a sua base eleitoral e assegurar a confiança e a

fidelidade de sua antiga e sólida base de apoio político.

O pleito eleitoral de 2002 representou, pois, o ápice do processo de “desradicalização”

da imagem de Lula e do PT. Os slogans veiculados na década de 80, tais como “Trabalhador

vota em trabalhador” e “Vote no treze que o resto é burguês” cederam espaço aos slogans

“Lulinha paz e amor” e “Faça a esperança vencer o medo”. Se, na década de 80, ninguém

queria ser um brasileiro igualzinho ao Lula, como ele mesmo afirma (KECK, 1991: 259.), em

2002, valorizava-se a sua trajetória de lutas e dificuldades, completamente diversa daquela

traçada, por exemplo, por FHC, conhecido e reconhecido por sua trajetória como acadêmico

notável, como homem culto e pelos livros que escreveu. Se, até então, os “notáveis” não

haviam conseguido enfrentar e debelar os problemas crônicos do Brasil, parecia ter chegado o

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momento de confiá-los a um “homem do povo”, que não só conhecia de perto as nossas

mazelas sociais, como também as sentira na pele. A formação acadêmica parecia ceder lugar

ao pragmatismo e à experiência. Até mesmo as três derrotas consecutivas à presidência da

República pareciam perder o caráter do fracasso, para assumir o da persistência, da vontade,

da paixão por uma causa, do discernimento, da experiência e do amadurecimento. Ao se

revelar, assim, possuidor dos três atributos imprescindíveis a um político por vocação

apontados por Weber (1979) - paixão, responsabilidade, medida –, Lula parecia ter,

finalmente, conquistado o direito de colocar a mão no leme da História do Brasil.

Todos esses atributos, acrescidos ao fato de o PT ter, ao longo de sua história,

fundamentado a construção de sua imagem no compromisso com as causas sociais, com o

combate a questões lesivas à sociedade, pareciam fazer com que Lula emergisse aos olhos do

eleitorado também como o político íntegro, honesto, ético e, portanto, digno de confiança. Em

um país marcado e desgastado por corrupções no âmbito de todas as esferas do poder político,

e, conseqüentemente, cada vez mais descrente na seriedade dos políticos no que se refere ao

trato das questões de caráter público, Lula e o PT pareciam ganhar o aval da sociedade

brasileira para não só enfrentar a crise econômica, como também para moralizar a vida

política no País. Se a política não é, conforme afirma Weber (1979), o campo da ética

absoluta, a confiança pessoal parecia se revelar como o critério mais adequado para a escolha

daquele que, muitas vezes, valendo-se de um poder arbitrário, deveria agir em favor do

interesse e do bem públicos. Por intermédio da vontade impositiva do voto, a sociedade

brasileira parecia revelar um intenso desejo de assumir o direito e o dever de acompanhar de

perto as questões que lhe dizem respeito, já que o que assumia visibilidade, até então, no

Brasil, era uma política, não do interesse e do bem públicos, mas do interesse pessoal em

detrimento do público. O que se parecia desejar era, de fato, conquistar o direito de interferir

no uso abusivo de autoridade e no poder excessivo do Estado, até então, apenas visíveis, e não

transparentes e tangíveis.

Vale aqui lembrar Aristóteles (Ediouro. 16ª edição. p. 70-71) (apud SOARES, 2005:

53), quando ele diz que “o desejo é uma tendência que nos impele para o agradável” e que os

desejos são providos ou desprovidos de razão. Os primeiros são aqueles que a inteligência nos

persuadiu a buscar, os últimos são os chamados desejos naturais, aqueles que, por exemplo,

provém do corpo. Aristóteles prossegue dizendo que sentimos prazer tanto na lembrança

(lembrar o passado), quanto na esperança (esperar o porvir) e que, embora a lembrança nem

sempre seja agradável, ela assim se torna se acompanhada de alguma conseqüência boa e

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99 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

agradável. A mudança, uma vez que se revela associada à esperança, retira-nos do estado

presente, tornando-se agradável, “porque mudar está na ordem da natureza”. Os slogans “Sem

medo de ser feliz” e “Faça a esperança vencer o medo”, pareciam impelir o eleitorado para o

agradável, convidando-no a relembrar o passado de crise e de corrupção do País, e a iniciar,

no presente, por meio do voto, a possível transformação futura desse passado. Associado a

isso, parecia remeter ao processo de (re)construção da imagem pública de Lula: o seu passado

de dificuldades e de lutas parecia fazer dele o político dotado de persistência, de vontade, de

paixão, de discernimento, de experiência e de integridade. Ou seja, o seu passado surgia como

tendo lapidado o hábil negociador e o político ético, tão necessários à construção do futuro

que se daria a partir do enfrentamento da crise econômica e da moralização da vida política no

País.

3.2.1.2.2 A permanência no poder

Mas, se, em 2002, o apelo à mudança mostrava-se presente, de forma incisiva, em toda

a campanha de Lula, convidando o eleitorado a dar um basta ao continuísmo e,

conseqüentemente, a experimentar o novo, em 2006, desenhou-se uma situação diversa desta.

Como candidato à reeleição, se, por um lado, Lula já não podia mais se apresentar como o

novo, como a esperança capaz de vencer o medo, por outro, não tinha a opção de atrelar sua

imagem ao conservadorismo, ao continuísmo, uma vez que isto acabaria por constituir uma

negação a tudo o que ele construiu ao longo de sua trajetória como homem público. E mais:

poderia vir a simbolizar falta de disposição não só para realizar o que havia sido prometido

em sua trajetória histórica como homem público e ainda não cumprido, como também para

mudar o curso daquilo em que o seu governo não havia sido bem sucedido. No que concerne a

este último aspecto, a defesa unicamente da continuidade poderia ser interpretada como um

silêncio, isto é, como uma omissão acerca, principalmente, dos escândalos42

42 Em matéria intitulada “Entenda as crises que atingiram o primeiro mandato de Lula”, a Folha Online divulgou, em 29/10/2006, às 19h e 38min., um resumo dos escândalos ocorridos no governo Lula. De acordo com a Folha Online, a primeira crise foi deflagrada em fevereiro de 2004, a partir da descoberta da negociação de propina do ex. assessor da Casa Civil, Waldomiro Diniz, com um empresário do ramo dos jogos. Em maio de 2005, a partir da descoberta de um funcionário dos Correios, Maurício Marinho, negociando propina com empresários interessados em participar de uma licitação, essa crise acabou por provocar outra de maiores proporções: a crise do Mensalão. Em 2006, irrompe outra crise, a dos Sanguessugas, envolvendo membros do Congresso Nacional e do Executivo, a máfia das ambulâncias. A última crise, a crise do Dossiê, foi deflagrada a 15 dias das eleições,

que marcaram a

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sua gestão, ou ainda, como uma declaração de que ocorrência alguma de caráter negativo fora

registrada no curso de seu mandato. Ou pior, como uma negação contundente dos fatos ou da

gravidade dos fatos que culminaram em escândalos durante a sua gestão. Sendo assim, na

campanha eleitoral para o segundo mandato presidencial de Lula revelava-se necessário

empregar uma estratégia que apelasse tanto para a inércia quanto para a mudança,

apresentando ambas como algo natural, agradável e, portanto, desejável.

A fim de ilustrar essa questão, recorremos, mais uma vez, a Aristóteles (Ediouro. 16ª

edição. p. 70-73), chamando a atenção para o fato de que, segundo a sua ótica, assim como a

mudança é agradável por estar na ordem da natureza, o habitual também o é, pois constitui

uma segunda natureza, caso se admita que “o hábito assemelha-se de algum modo à natureza:

‘muitas vezes não está longe de sempre’”. Observa-se assim que, a partir de uma perspectiva

aristotélica (Ediouro. 16ª edição. p. 70), tanto o habitual quanto a mudança conduzem ao

prazer que representa “certo movimento da alma que a reconduz inteiramente e de maneira

sensível a seu estado natural”. Perelman e Olbrechts-Tyteca (apud SOARES, 2005: 40)

aludem à mesma idéia, defendendo a mudança como algo desejável e inevitável e a inércia

como uma exigência social; ambas, nesse caso, caracterizam a dubiedade da condição

humana, marcada pelo “conflito [...] de, por um lado, atender ao curso natural e, portanto,

inexorável da vida, o qual se traduz em contínua mudança, e de, por outro, buscar o conforto

do conhecido”.

Aristóteles (Ediouro. 16ª edição. p. 73) defende ainda que, embora o habitual seja

agradável, uma vez que é algo natural, “a continuidade em uma situação estabelecida gera a

saciedade”. Além disso, o filósofo (Ediouro. 16ª edição. p. 70) sustenta que é agradável tudo

aquilo que está fora do âmbito da necessidade, o que implica admitir que toda mudança e toda

constância (desde que em relação a esta última não esteja associada a idéia de acomodação) só

serão agradáveis caso não se apresentem como frutos da imposição ou da necessidade.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2000: 120), por sua vez, atestam que, ao contrário da inércia, a

mudança precisa, necessariamente, ser justificada, considerando-se que, tomada uma decisão,

a alteração desta deva ser orientada por motivos plausíveis, o que parece encontrar

explicações no fato de que, por força do hábito, o homem naturalmente se acomoda ao já

estabelecido e conhecido. Conferindo outro enfoque a essa discussão, Perelman e Olbrechts-

Tyteca (2000: 121) prosseguem afirmando que “assim como é preciso dar a prova da utilidade com a apreensão pela Polícia Federal de vídeo, DVD e fotos que mostravam o candidato do PSDB ao governo de São Paulo, José Serra, na entrega de ambulâncias da máfia dos sanguessugas.

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101 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

de mudar um estado de coisas, é preciso dar a prova da oportunidade de mudar de conduta

diante de uma situação que se repete”.

Tomando como ponto de partida essas considerações, a observação dos três slogans

principais, adotados em 2006 na campanha eleitoral de Lula à reeleição à presidência da

República, fornece-nos elementos que nos auxiliam a buscar apreender o movimento que

resultou na permanência de Lula e do PT no poder. Tanto o slogan adotado na primeira fase

da campanha, ou seja, anterior às eleições do primeiro turno – “Lula de novo, com a força do

povo” – como o adotado no segundo turno – “Não troco o certo pelo duvidoso. Quero Lula de

novo” –, infundem, a um só tempo, a idéia de inércia e a de mudança.

O slogan original da campanha – “Lula de novo, com a força do povo” -, embora não

apresente caráter injuntivo, interpelando diretamente o interlocutor-eleitor, apresenta-se

imbuído de forte caráter apelativo, constituindo uma afirmação firme, uma certeza, cujo

propósito parece ser informar, constatar um fato já estabelecido: Lula é candidato imbatível à

reeleição, pois conta com a força, com o apoio incondicional do povo, ou seja, Lula é o

candidato aprovado pelo povo e, por isso, por ele escolhido. Parece, assim, atribuir-se o

favoritismo da candidatura Lula à aprovação de sua gestão pelas camadas sociais mais

expressivas, considerando-se o contingente de eleitores. Tal slogan revela possuir, portanto,

forte caráter apelativo-informativo, pois parece ter como função básica informar a todos os

segmentos da sociedade brasileira que Lula é o candidato escolhido pelo povo, pelos estratos

sociais mais populares, ou seja, que Lula é o representante do povo e, por isso, tem o aval do

povo para continuar no comando da nação.

É interessante observar que, nesse primeiro momento, por intermédio de um mesmo

slogan, buscam-se alcançar diferentes segmentos sociais de formas igualmente distintas, a fim

de se alcançarem finalidades também distintas. Observa-se, por exemplo, por um lado, que

um dos alvos desse slogan são as classes sociais mais populares; busca-se, por meio do

emprego deste, assegurar o apoio incondicional dessas classes à candidatura Lula, isto é,

conferir a esse apoio solidez, a partir do estabelecimento de uma estreita identificação de Lula

com as classes sociais mais populares e de uma forte relação de confiança entre ambos. Tal

contingente do eleitorado emerge, ao lado de Lula, como protagonista do processo eleitoral de

sua candidatura. Por outro lado, esse slogan abre o processo eleitoral se dirigindo à classe

política do País, e, principalmente, àqueles que, pertencentes a essa classe, ocupam o lugar de

adversários pertinazes à candidatura Lula. Pode-se dizer que tal estratégia tem também por

finalidade enviar um recado aos adversários políticos à candidatura Lula: Lula é imbatível

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porque tem o apoio do povo. Busca-se, desse modo, constatar que, embora seus adversários

políticos se empenhem em denegrir sua imagem com o intuito de afastá-lo do poder, a gestão

Lula é amplamente aprovada pelo povo que, por essa razão, deseja e apóia a sua permanência

no governo. Faz-se oportuno destacar que, considerando-se que o nome dado à coligação dos

partidos políticos (PT, PRB, PC do B) que apóiam a candidatura Lula é “A força do povo”, tal

slogan exerce tripla função básica, não necessariamente nesta ordem de prioridade: (i)

apresentar a coligação dos partidos políticos que o apóiam; (ii) buscar fazer crer que Lula

conta com irrestrito apoio popular (iii) e que a coligação dos partidos políticos que o apóiam

partilha com ele desse apoio.

Pode-se assim dizer que o slogan original abre o processo eleitoral por intermédio da

constatação de um fato, a partir de um comunicado dirigido a toda sociedade brasileira. Tendo

em vista que se almeja alcançar uma instância de interlocução ampla e multifacetada, é

curioso observar que se busca assegurar que aquilo que é apresentado como fato não seja

refutado ou questionado como tal por essa instância, o que faria com que a constatação feita

perdesse o seu estatuto de fato, ou seja, o seu estatuto privilegiado e, conseqüentemente, a

estratégia empregada se esvaziasse de sua carga persuasiva43

Uma vez delimitado o espaço da candidatura Lula e verificado que o emprego de tal

estratégia não foi suficiente para decidir as eleições a favor de Lula no primeiro turno, lança-

se, no segundo turno, o slogan “Não troco o certo pelo duvidoso. Quero Lula de novo”. Dessa

vez, o povo é convidado a assumir a palavra, a ocupar o lugar de enunciador, tomando, em

relação ao slogan original, o lugar de um enunciador dotado de uma impessoalidade tal que

chega a produzir o efeito de sentido do completo distanciamento, ou melhor, da completa

ausência ou até mesmo da inexistência. A constatação de um fato, verificada no primeiro

slogan, é substituída, no segundo, pela expressão de um desejo, manifesto no presente, em

. Sendo assim, o fato parece se

apresentar como um fato da natureza, e não como um fato social, e, desse modo, como se

fosse dotado de existência própria e, portanto, como se não fosse fruto de uma criação

discursiva, a única capaz de lhe conferir existência. A produção de tal enunciado, ao não ter

sido explicitamente assumida por uma instância de produção definida, parece contribuir

favoravelmente para a não refutação ou para o não questionamento do fato por parte da

instância de interlocução.

43 De acordo com Perelman e Olbreschts-Tyteca (2000: 75), “só estamos em presença de um fato, do ponto de vista argumentativo, se podemos postular a seu respeito um acordo universal não controverso”, uma vez que “o fato como premissa é um fato não controverso” (PERELMAN E OLBRESCHTS-TYTECA, 2000: 76).

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função, principalmente, de uma observação do passado recente de Lula, mas cuja realização é

projetada para um futuro próximo. Se, no primeiro slogan, o povo é apresentado como

protagonista do processo ao lado de Lula, no segundo, tal protagonismo é apresentado como

sendo assumido, por completo, pelo povo, o qual emerge como agente exclusivo do processo.

Tal estratégia lingüístico-discursiva, associada à empregada no primeiro slogan,

confere ao enunciado forte carga persuasiva, visando garantir o sucesso da segunda etapa do

processo eleitoral, ou melhor, da etapa decisiva deste. Sendo assim, se, no primeiro momento,

parecia ser conveniente apenas constatar um fato, no segundo, os personagens envolvidos no

fato precisavam ser dotados não só de existência, mas de corporeidade; precisavam ser

definidos e terem delimitados os seus respectivos lugares no processo, a fim de que se

buscasse garantir não só a força persuasiva do enunciado, como também a qualidade desta.

Se, no slogan em questão, o povo se manifesta como o agente do processo, expressando um

desejo e declarando o intuito de realizá-lo, Lula, ou melhor, a vitória de Lula, por sua vez,

configura-se como o objeto desse desejo.

A composição do enunciado - um segmento de valor negativo seguido de outro de

valor afirmativo, ambos constituindo uma declaração enfática – destaca e valoriza a

capacidade atribuída a esse agente de discernir, de escolher, de decidir, com firmeza e

maturidade, frente às duas opções que lhes são apresentadas: entre a dúvida (promessa) e a

certeza (realização/concretização), isto é, entre o político que apenas promete e aquele que, de

fato, cumpre o que promete. Nesse caso, faz-se alusão a um pré-construído largamente

divulgado e plenamente estabelecido em nossa sociedade: a classe política, com raríssimas

exceções, faz todo tipo de promessa em época de campanha eleitoral, mas, uma vez vencidas

as eleições, desconsidera, por completo, as promessas feitas, desrespeitando, desse modo, o

seu eleitorado. O slogan, ao ativar esse pré-construído, aponta Lula como pertencente a esse

seleto grupo das raríssimas exceções.

Ao mesmo tempo em que esse slogan é lançado, lança-se também uma variante deste:

“Não troque o certo pelo duvidoso”. Enquanto o segundo slogan parece buscar,

principalmente, conferir solidez aos laços estabelecidos entre Lula e as classes sociais mais

populares, as quais constituem o seu mais substancial apoio, a variante deste parece buscar

alcançar o eleitorado não fiel a Lula e/ou resistente à sua candidatura. É curioso observar que

as duas versões parecem dialogar entre si: enquanto na primeira o povo “toma” a palavra para

marcar posição, a segunda constitui uma proposição que tem por objetivo determinar o que

deve ser feito, ou melhor, determinar a posição a ser adotada por um contingente de eleitores

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104 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

indecisos, para o que contribui o slogan do qual este é variante. Se a primeira versão refere-se,

portanto, a um contingente decidido do eleitorado, a segunda refere-se a um contingente que

ainda tem dúvidas sobre que posição adotar. Contrapondo, nesse aspecto, uma versão à outra,

observa-se que a primeira exerce a função de exemplo, de conselho acerca da atitude que deve

ser tomada pelo contingente de eleitores ao qual alude a segunda versão.

Quanto à instância de interlocução à qual se destinam as duas versões, parece que se

pode afirmar que, enquanto a segunda versão dirige-se a um interlocutor mais específico, a

primeira parece pretender alcançar uma instância de interlocução mais ampla e multifacetada,

a qual, por exemplo, além do eleitorado indeciso, compõe-se da classe política, mais

especificamente dos adversários à candidatura Lula. Mais uma vez, parece que se tem por

finalidade, dentre outras, enviar um recado aos adversários políticos à candidatura Lula: Lula

é imbatível porque tem o apoio do povo. Observa-se, entretanto, que, no segundo turno, o

recado assume um caráter ainda mais contundente, pois perde a impessoalidade da qual é

dotado no primeiro slogan e passa a ser dado por um enunciador específico e privilegiado: o

povo brasileiro.

Também no segundo turno, veicula-se outro slogan: “Deixa o homem trabalhar”, o

qual parece ter por finalidade antecipar a vitória e, conseqüentemente, o segundo mandato de

Lula. Implicitamente, ao mesmo tempo em que se defende o sucesso do governo Lula e a

necessidade de um segundo mandato deste para que se dê continuidade às suas ações de

sucesso, rebatem-se as críticas que, por ventura, objetivem interromper a sua gestão. Tal

slogan parece, assim, representar a formulação de um apelo para que seja reconhecida e aceita

a iminente vitória de Lula, a fim de que se estabeleçam condições favoráveis ao novo

exercício de seu governo. Esse slogan parece dialogar, de forma estreita e especial,

principalmente com a primeira versão do slogan anterior, considerando-se que, se o povo

deseja a reeleição de Lula, não faz sentido haver oposição à sua recondução ao poder. E mais,

que, contando com o apoio do povo, não há oposição capaz de derrotar a candidatura Lula e,

muito menos, de impedi-lo de governar. Observa-se, assim, que, por intermédio de tal slogan,

parece que se busca prioritariamente alcançar não só a classe política - mais precisamente os

opositores à candidatura Lula -, como também determinados segmentos da mídia,

reconhecendo-se serem estes os principais entraves à sua reeleição.

Vale observar quanto a esse aspecto que a não determinação de um enunciador

explícito e específico para o enunciado “Deixa o homem trabalhar” parece ser positiva no que

diz respeito à finalidade comunicativa prioritária que parece que se almeja alcançar. Isso

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105 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

porque o emprego de tal estratégia permite que se possa inferir que se tenha atribuído o

enunciado ou aos segmentos sociais que apóiam Lula, ou aos segmentos da classe política que

apóiam/compõem a candidatura Lula, ou, mais especificamente, ao povo. Mas não é possível

inferir que tal enunciado seja atribuído a Lula, o que parece produzir um efeito de sentido

altamente positivo, uma vez que se reforça o apoio que se pretende mostrar que o/a

governo/candidatura Lula tem alcançado, principalmente, do povo. Parece que, por meio

desse anúncio, pretendeu-se conferir ainda mais solidez aos laços firmados entre Lula e o

povo, uma vez que o enunciado veiculado expressa a fala popular: (i) a forma imperativa

apresentada do verbo “deixar” constitui uma variante da forma formal desta (deixe); (ii) Lula

é referido por intermédio do vocábulo “homem”; (iii) o exercício do governo é aludido por

meio do verbo “trabalhar”. Quanto a esse aspecto, é interessante observar, que, se se atribui o

enunciado aos segmentos sociais que apóiam Lula, ou aos segmentos da classe política que

apóiam/compõem a candidatura Lula, admite-se, por sua vez, que estes se identificam com as

classes sociais mais populares. O conjunto do enunciado parece, desse modo, traduzir

principalmente a resposta que se deseja que o povo dê àqueles que se apregoa que têm

buscado interromper a administração Lula, perturbando-a e, conseqüentemente, causando

transtornos e prejuízos ao País. Desse modo, mais uma vez, a palavra é “tomada” por aqueles

que apóiam Lula, para que estes façam um apelo aos oponentes de Lula, convocando-os a

aceitarem e a respeitarem a aprovação de sua gestão e sua iminente vitória para o segundo

mandato. Busca-se, assim, neutralizar todo campo de forças opositor a Lula.

A campanha eleitoral de Lula para a reeleição apóia-se em um pilar composto,

basicamente, de três slogans, os quais apresentam, como vimos, uma gradação de ações: a

constatação de um fato, a manifestação de um desejo e a formulação de um apelo para que se

criem condições favoráveis à realização do desejo. Observa-se, a partir dos seguintes verbetes

do dicionário Aurélio (HOLANDA, 2000), que o desejo parece constituir uma versão

atualizada do valor esperança - valor este largamente explorado, com sucesso, na campanha

de 2002 - uma vez que, pode-se dizer, a esperança contém o desejo, embora o desejo não

contenha, necessariamente, a esperança:

Esperança [De esperar + -ança.] Substantivo feminino 1. Ato de esperar o que se deseja. [...] 3. Fé, confiança em conseguir o que se deseja. 4. Aquilo que se espera ou deseja: Minha esperança é que ele chegue logo.

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106 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

[...]

É importante notar que, enquanto a esperança remete à espera, a aguardar que algo

especial aconteça, o desejo se refere, como se observa abaixo, a vontade, a ambição, a apetite,

que, nesse caso, já não podem esperar para serem satisfeitos, o que faz com que a imagem de

Lula seja retirada do campo do ideal e projetada no campo do real.

Desejo (ê) [Do lat. vulg. *desidiu.] Substantivo masculino 1. Ato ou efeito de desejar. 2. Vontade de possuir ou de gozar. 3. Anseio, aspiração. 4. Cobiça, ambição. 5. Vontade de comer ou beber; apetite. 6. Apetite sexual: “Adeus, corpo gentil, pátria do meu desejo!” (Olavo Bilac, Poesias, p. 182.) 7. Pop. Na gravidez, vontade exacerbada de comer e/ou beber determinada(s) coisa(s).

Vale ainda notar que, na situação comunicativa em questão, tal desejo, ao ser

expresso, no segundo slogan, por meio do verbo querer, assume um caráter de exigência, ou

melhor, de ordem que emana do povo, de determinação de autoridade popular.

Retomando, como vimos, os estudos realizados por Aristóteles e Perelman e

Olbrechts-Tyteca acerca do par inércia/mudança, verifica-se que, ao se explorar essa

dualidade nos slogans apresentados, busca-se conferir especial destaque à mudança,

imprimindo ao discurso um caráter progressista em oposição ao das forças adversárias, ao

qual se busca atribuir um caráter conservador. A atribuição desse caráter conservador à

candidatura adversária encontra explicações no fato de a hipotética eleição de Alckmin - por

este ser representante do PSDB, partido de FHC, o qual ficou no poder por oito anos

consecutivos - ser qualificada pela candidatura Lula como um retrocesso, como um retorno a

políticas desgastadas. Lula emerge, assim, ainda como o representante do novo. A expressão

de novo, presente nos dois primeiros slogans, ao mesmo tempo em que sugere a idéia de

repetição, de permanência, sugere a idéia de renovação, de aperfeiçoamento, o que é garantido

pelo emprego do vocábulo “novo”, que carrega, em sua essência, o caráter de originalidade e

modernidade. Observa-se, assim, que, se de 1989 a 2002, buscou-se promover um movimento

de “desradicalização” da imagem de Lula, em 2006, tal movimento cede espaço ao de

estabilização da imagem construída.

Faz-se oportuno observar que, ao se buscar conferir solidez a essa imagem, promove-

se um movimento que busca, por sua vez, imprimir solidez à identificação de Lula com o

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107 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

povo brasileiro, resgatando-se, assim, a imagem de homem público construída nos primeiros

tempos de sua trajetória política, especialmente à de liderança popular. Constata-se essa

preocupação em firmar os laços construídos com os estratos mais pobres da sociedade

brasileira, no seguinte trecho do primeiro pronunciamento feito por Lula44

Portanto nós temos uma grande estrada a percorrer. As bases estão consolidadas. Os projetos já estão consolidados. E, portanto, nós não temos tempo a perder. É trabalhar, trabalhar e trabalhar. Porque é isso que o povo brasileiro espera e é por

; preocupação esta

que se verificou sistematicamente ao longo de toda a campanha eleitoral. Tal pronunciamento

foi feito, ainda em clima de campanha eleitoral, em 29/10/2006, poucas horas após a

confirmação de sua reeleição, em um dos hotéis do bairro Jardins, na cidade de São Paulo.

Continuaremos a governar o Brasil para todos, mas continuaremos a dar mais atenção aos mais necessitados. Os Pobres terão preferência no nosso governo. As regiões mais empobrecidas terão no nosso governo uma atenção ainda maior, porque nós queremos tornar o Brasil mais equânime.

Conforme vimos, em 2006, toda a campanha eleitoral de Lula é alicerçada sobre a

inércia e a mudança, a fim de que se possa justificar aquilo que se considera necessário

manter e aquilo que se admite demandar mudanças; tudo isso vai ao encontro das idéias

defendidas por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2000: 121), anteriormente apresentadas. Como,

por exemplo, “prova da oportunidade de mudar de conduta diante de uma situação que se

repete” (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 2000: 121), a candidatura Lula explora os

acertos nas esferas social e econômica alcançados de 2003 a 2006, o que parece autorizá-lo a

continuar no comando da nação, e admite ter atingido maior maturidade para tal, e, além

disso, para superar quaisquer desafios que, por ventura, surjam. Nos três seguintes trechos do

mesmo pronunciamento, observa-se a exploração da dualidade mudança/inércia.

Acho que esse momento nós devemos ao povo brasileiro. Sobretudo ao povo que foi incluído no patamar daqueles que já tinham conquistado a cidadania. Acho que a inclusão social de milhões e milhões de brasileiros, o acerto das coisas que o governo fez e os erros que também o governo fez permitiram que nós pudéssemos chegar no processo eleitoral mais amadurecidos, com mais consciência e consistência das dificuldades que o Brasil enfrenta para dar o salto de qualidade que o Brasil precisa dar. Eu durante a campanha citava muito o exemplo de que nós tínhamos construído um alicerce. As bases estão dadas para que o Brasil dê um salto de qualidade extraordinário neste próximo mandato. Primeiro porque todos nós aqui temos mais experiência, aprendemos muito. Segundo porque nós conseguimos resolver o problema da macroeconomia brasileira, da instabilidade econômica, conseguimos consolidar nossas relações internacionais [...]

44 Disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=3073

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108 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

isso que o povo brasileiro votou. É por isso que hoje na rua todo mundo fala: deixa o homem trabalhar, porque o Brasil precisa de trabalho.

3.2.1.2.3 Ascensão e permanência: “desradicalização” e estabilização

Concluído, nas eleições de 2002, o processo de “desradicalização” da imagem de Lula,

parece-nos que, em 2006, inicia-se uma nova etapa do processo de estabilização dessa

imagem, etapa à qual se busca imprimir a marca do amadurecimento, da experiência, não de

vida, conforme amplamente explorado em seu passado político, mas de governo, de exercício

do poder máximo da nação, conforme bem exemplificam os trechos selecionados acima. Vale

destacar que, ao longo do processo de “desradicalização” da imagem de Lula e do PT, embora

não se descuidasse em marcar a identidade destes com as classes mais populares, havia uma

grande preocupação em captar a adesão de outras camadas sociais, como, por exemplo, a

classe média. Já na campanha eleitoral de 2006, o movimento de fidelização do eleitorado

mais pobre, no qual se inclui a classe média baixa, parece ter ocupado lugar privilegiado, uma

vez que esse contingente do eleitorado confirmou ser o mais fiel a Lula.

Na campanha eleitoral de 2006, com o foco voltado para as classes sociais mais

populares, buscaram-se salientar questões que se sobrepusessem a questões de natureza

política, tais como ética e corrupção. Mesmo assim, a partir da observação dos slogans

apresentados, percebe-se que, implicitamente, tais temáticas acabaram por ser trazidas à tona,

em função de uma necessidade de se fazer frente a críticas e a denúncias que constituíram o

principal combustível dos adversários da candidatura Lula. Se, em 2002, Lula e o PT

levantaram a bandeira contra a corrupção e em defesa da ética, em 2006, procuraram se

esquivar dessa discussão, alegando que a diferença do governo Lula para os demais é que,

enquanto os outros nada fazem, Lula investiga à exaustão e pune, sem misericórdia, os

culpados. A fim de exemplificar esse aspecto, recorremos à propaganda eleitoral de

21/09/2006, veiculada em rede nacional de TV, quando Lula afirmou, em defesa às críticas

constantemente sofridas por parte de seus adversários, nunca ter se apurado e punido tanto

quanto em seu governo. Defesa esta que ele completou dizendo ter aumentado, em seu

governo, o combate à corrupção, e não a ocorrência da corrupção.

A exposição aqui apresentada acerca do movimento de ascensão e de permanência de

Lula e do PT ao/no poder merece, mesmo que, grosso modo, ser completada segundo a

perspectiva do referencial teórico por nós adotado, a fim de que se vislumbre a complexidade

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109 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

da qual o discurso político, alvo de nossa atenção na próxima seção, manifesta-se dotado. Ao

se observarem, por exemplo, os dois principais slogans da campanha de 2002, nota-se que, de

fato, o processo de “desradicalização” que, àquela época, se completava dava-se a partir de

pré-construídos que parecem ter origem em formações discursivas “exteriores” aos domínios

da política, objetivando-se captar o voto de segmentos sociais refratários à candidatura Lula.

O slogan “Lulinha paz e amor”, por exemplo, apresenta-se povoado de pré-construídos

advindos do movimento hippie que teve seu ápice na década de 60 e representou uma

verdadeira revolução sem armas, contra uma sociedade política e socialmente opressora. Tal

movimento, que tinha como bandeira a liberdade, alimentava-se, por sua vez, de elementos

pré-construídos em outro movimento, contrário às instituições: o movimento anarquista.

Movimento este que, oponente aos regimes totalitários, defendia a revolução armada e teve

seus integrantes sistematicamente perseguidos pelo Estado, em diferentes partes do mundo

ocidental. Pode-se assim dizer que o movimento hippie, graças ao seu caráter pacifista,

representou uma versão moderada do movimento anarquista.

O enunciado que compõe esse slogan, no qual se empregou o diminutivo de Lula

associado ao lema do movimento hippie, parece estar impregnado, a um só tempo, de pré-

construídos e de discursos transversos, pois se revela ocupado não só por elementos do

movimento hippie, como também do movimento anarquista. Considerando-se que, assim

compreendido, tal enunciado parece remeter às duas etapas da própria trajetória de Lula como

homem público, pode-se dizer que neste se encontram não só esses pré-construídos e

discursos transversos. Busca-se, desse modo, contrapor Lula a ele mesmo, enfatizando o

processo de “desradicalização” que resultou em uma versão moderada do líder sindical e do

líder de um partido de esquerda.

Em complementaridade ao primeiro slogan, o segundo - Faça a esperança vencer o

medo – representa, a partir, também, de pré-construídos e de discursos transversos, um apelo

às classes sociais que sempre refutaram a imagem de Lula e repudiaram a sua candidatura. A

palavra medo, em contraposição à palavra esperança, parece remeter ao longo período em que

a sociedade brasileira esteve privada de liberdade, especialmente política, no qual os

representantes da esquerda política, agindo na clandestinidade, eram rotulados de subversivos.

Parece ainda aludir ao curto período pós-ditadura militar, em que tais liberdades foram

restabelecidas, mas encontrou a sociedade brasileira ainda marcada pelo cerceamento da

liberdade, pelo medo e, conseqüentemente, despreparada para fazer novas escolhas políticas.

Tal enunciado parece, desse modo, denunciar estar tomado por elementos pré-construídos

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110 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

oriundos não só de diferentes formações discursivas referentes aos períodos ditatorial

brasileiro e pós-ditatorial, incluindo-se, neste último grupo, as forças políticas adversárias à

candidatura Lula, como também dos movimentos anarquista e hippie, presentes no enunciado

do primeiro slogan. Observa-se, assim, que, nesses dois slogans, elementos de diferentes

formações discursivas se manifestam, formando o que Courtine (apud MAINGUENEAU,

1993) batizou de redes de formulações. As duas descrições definidas, “a esperança” e “o

medo”, que compõem o enunciado, constituem o dispositivo por meio do qual são ativadas

RM arquivadas em domínios referenciais, nos quais é possível, dessa forma, interpretá-las.

Em 2006, os slogans da campanha Lula, aqui anteriormente apresentados, vêm compor

essa grande rede de formulações, uma vez que, ao fazer emergir outros elementos pré-

construídos e outros discursos transversos, interagem com os dois principais slogans da

candidatura Lula de 2002, expondo o complexo caleidoscópio que constitui hoje o discurso

político. Os enunciados que compõem os principais slogans veiculados em 2006, na

campanha de Lula à presidência da República, parecem estar ocupados por pré-construídos e

discursos transversos originados, principalmente, de formações discursivas advindas das

classes mais populares da sociedade brasileira e da classe política brasileira, mais

especificamente dos segmentos desta que compõem o grupo opositor a Lula.

É curioso observar que, em 2006, na campanha eleitoral à presidência da República,

embora a candidatura Lula tenha buscado promover um retorno do candidato àquilo que mais

o particulariza no meio político, às suas origens, visando alcançar as finalidades discutidas

anteriormente neste trabalho, a mídia chamou a atenção para a similitude existente entre os

candidatos Lula e Alckmin. O jornal inglês Financial Times, por exemplo, em 05/07/06,

último dia para o registro das candidaturas às eleições que aconteceram naquele ano, revela,

em matéria intitulada “Dois principais candidatos brasileiros têm muito em comum”45

Em matéria intitulada “Quem agüenta tanto café?”, veiculada na revista Época, em

11/09/2006, o mesmo fato é trazido à baila, colocando-se em foco a interferência das

pesquisas e do marketing não só nas campanhas eleitorais, como também na ação

, que

“em um nível eles (Lula e Alckmin) são adversários radicais”, referindo-se ao histórico

pessoal e político de cada um dos dois candidatos. E prossegue dizendo “mas, quando se fala

com os homens responsáveis pela elaboração do programa de governo de cada candidato, às

vezes é difícil diferenciá-los”.

45 Disponível em: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/fintimes/2006/07/05/ult579u1903.jhtm

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administrativa dos políticos. Alega-se que essa interferência, no que diz respeito às

campanhas eleitorais, estaria fazendo com que as propostas e os candidatos se tornassem cada

vez mais semelhantes. Na mesma matéria, o cientista político Leôncio Rodrigues alega que o

emprego crescente das pesquisas e do marketing, no âmbito da política, representa uma

decorrência natural de mudanças sociais, às quais os políticos buscam se ajustar. Há aqueles

que, por outro lado, defendem que tal emprego tem provocado o que, de acordo com a matéria

veiculada na revista Época, tem sido denominado de pasteurização das campanhas eleitorais.

Segundo essa perspectiva, a política estaria sofrendo uma descaracterização e, com isso,

deixando de representar o espaço privilegiado das discussões acerca da sociedade e do Estado.

Esse raciocínio parece nos permitir inferir que o que tem sido denominado de pasteurização

estaria provocando ou refletindo a extinção da clássica dualidade política direita e esquerda.

Embora a semelhança entre os dois candidatos tenha sido alvo de críticas, observa-se

que Lula suplantou Alckmin, revelando-se, mais uma vez, um bom “comunicador”. A

desvantagem de Alckmin em relação a Lula, no que diz respeito a tal atributo, em vários

momentos foi indiretamente destacada pela mídia, conforme se observa, por exemplo, no

apelido de “picolé de chuchu”, conferido ao candidato do PSDB por José Simão, colunista do

jornal Folha de São Paulo, conforme noticiado nesse jornal, em matéria intitulada

“Persistência de Alckmin continua sendo testada”46

46 Disponível em: http://eleicoes.uol.com.br/2006/campanha/biografias/alckmin.jhtm.

. Isso parece confirmar que vivemos um

período de identificação dos eleitores com o candidato, o que determina, muitas vezes, frente

a um eleitorado flutuante, o sucesso dos “comunicadores” em detrimento do sucesso da

melhor plataforma de governo. Mas, quanto a esse aspecto, faz-se importante destacar que se,

em 2002, ainda se verificava uma identificação forte de parte significativa do eleitorado não

só com Lula, mas também com o PT, em 2006, isso já não se observa. O que se verifica, por

parte do eleitorado, é que o PT parece ter caído no “esquecimento”. Em 2006, a vitória de

Lula, ao se revelar a vitória da individualidade do líder, denuncia que parece se estar vivendo,

neste momento, no Brasil, o que Manin (1995: 25) denomina de “personalização do poder”.

Face à valorização da figura do líder, a luta pela imagem pública parece, mais uma vez, ter

suplantado o movimento de construção da realidade, o que parece encontrar explicações

essencialmente no que se denomina hoje de pasteurização das campanhas eleitorais. Parece

que, principalmente em decorrência de tal fenômeno, temas relevantes como a criminalidade

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em São Paulo e as crises do governo Lula não receberam a devida relevância e, portanto, não

foram devidamente discutidos, no pleito eleitoral de 2006.

3.2.1.2.4 Reflexões complementares

Vê-se, assim, que o comportamento do eleitorado, conforme atesta Manin (1995), tem

se revelado, na atualidade, primordialmente determinado pela personalidade do candidato e

pelos problemas e questões que são postos em jogo em cada eleição, o que caracteriza a

democracia do público, e, de certa forma, parece refletir as razões pelas quais o conceito de

democracia tem sido reavaliado. Embora esses aspectos pareçam, como buscamos mostrar,

em parte explicar a ascensão de Lula e do PT à presidência da República e a permanência

destes no poder, reconhecemos que esse fato envolve inúmeras outras questões dotadas de

maior complexidade, as quais não temos, porém, a pretensão de aqui analisar. Grosso modo,

não podemos, por exemplo, nos esquecer, como adverte Manin (1995: 28.), de que a escolha

final, que cabe aos eleitores, não decorre de um projeto calculado dos políticos, mas da

combinação dos fatores apresentados pelo conjunto formado por todos os candidatos. E mais:

que inúmeros outros aspectos influenciam essa escolha, tais como os interesses da mídia, que,

por sua vez, refletem interesses de outros segmentos da sociedade. Além disso, se “as

preferências [do eleitorado] não preexistem à ação dos políticos” (MANIN, 1995: 28.), temos

de reconhecer que o ouvinte, lembrando Aristóteles (2003), no exercício do papel de juiz, tem

um poder de escolha e de decisão limitados. E, mais ainda, que o poder de ação dos políticos é

também limitado, se admitirmos que não é somente a ação destes o que interfere nessa

escolha.

Buscar observar a ascensão e a manutenção de Lula e do PT ao/no poder, a partir de

alguns aspectos que hoje se verificam no que concerne à “crise” da representação política e à

reavaliação do conceito de democracia, parece-nos contribuir, portanto, de forma satisfatória,

para o estudo que ora é proposto. Com base, pois, nos aspectos apresentados nesta seção sobre

a trajetória de Lula e do PT à presidência da República e de sua manutenção no poder,

objetivamos, na terceira parte deste trabalho, buscar identificar e analisar, a partir do exame

de pronunciamentos do presidente Lula, a produção do objeto discursivo espetáculo, em dois

momentos distintos: janeiro de 2003 e janeiro de 2007.

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113 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

3.2.2 O discurso político

Nesta seção, discutiremos alguns aspectos concernentes ao discurso que,

habitualmente, nomeamos de político, tendo em vista compreender a especificidade da qual é

dotada os textos por nós selecionados, os quais serão analisados na última parte deste estudo,

certos de que a compreensão dessa especificidade contribuirá para melhor compreendermos o

discurso do qual estes emergem. Reconhecendo que aquilo que particulariza cada um desses

textos pertence ao âmbito dos gêneros discursivos, dedicaremos, primeiramente, uma breve

parte desta seção à apresentação de alguns apontamentos acerca do que se concebe como

tipologia textual e, particularmente, acerca do gênero que constituirá o objeto de nossa

análise.

3.2.2.1 Gêneros discursivos 47

Em decorrência da necessidade de se buscar compreender e classificar os diferentes

tipos de texto que circulam em uma sociedade, alguns lingüistas têm desenvolvido contínuos

estudos acerca do que nomeamos gêneros discursivos. Em alguns aspectos, como, por

exemplo, a classificação, observam-se divergências entre aqueles que se dedicam a estudá-los,

enquanto a outros, isso não se verifica. Há certo consenso, por exemplo, em como concebê-

los em sua generalidade.

Bronckart (1999: 137), ao afirmar que “os textos são produtos da atividade de

linguagem em funcionamento permanente nas formações sociais48

47 Considerando que aquilo que faz com que os textos se diferenciem entre si, no que diz respeito à tipologia, é, substancialmente, da ordem do discurso e, ainda, que os textos são parte constitutiva do discurso, optamos por utilizar a nomenclatura gêneros discursivos, e não gêneros textuais. 48 Conforme apresentado na página 74 deste trabalho, Bronckart (1999: 36) defende que as formações sociais compõem as comunidades verbais, revelando as relações estabelecidas entre os membros desta, a partir da elaboração de “modalidades particulares de funcionamento da língua”.

”, defende que as diferentes

espécies de textos, elaboradas por tais formações, em atendimento a finalidades distintas,

caracterizam-se por certa estabilidade e são, portanto, disponibilizadas no intertexto como

modelos indexados. Mas adverte que o fato de as representações sobre os gêneros de textos

indexados estarem disponíveis no intertexto não representa que a classificação conferida às

diferentes espécies de texto seja definitiva e estável. Bronckart (1999: 138) esclarece que a

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114 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

instabilidade da qual se revela dotada tal classificação encontra diferentes explicações: (i) os

gêneros apresentam-se em número de tendência ilimitado; (ii) distintos, interativos e pouco

demarcáveis são os parâmetros que orientam os critérios de classificação; (iii) múltiplos são

os critérios nos quais se fundamenta essa classificação. Também em Marcuschi49

49 Esclarecemos que Marcuschi emprega a terminologia gêneros textuais.

(2002: 19-

20) encontramos que os gêneros são dotados de dinamicidade e maleabilidade, uma vez que

constituem fenômenos históricos, isto é, “são entidades sócio-discursivas e formas de ação

social”, o que determina que sejam caracterizados, acima de tudo, por funções comunicativas,

cognitivas e institucionais, e não por particularidades lingüísticas e estruturais. Observa-se,

assim, que os gêneros manifestam-se, a partir dessa perspectiva, como eventos dinâmicos e

flexíveis, revelando a dinamicidade histórico-social e a criatividade de seus usuários.

Assim os concebendo, somos compelidos a inevitavelmente admitir que “os gêneros

textuais não se caracterizam nem se definem por aspectos formais, sejam eles estruturais ou

lingüísticos, e sim por aspectos sócio-comunicativos e funcionais” (MARCUSCHI, 2002: 21).

Estes determinam, portanto, a seleção e o emprego daqueles. Mesmo reconhecendo que os

gêneros não se caracterizam nem se definem por aspectos formais, uma vez que estes são

escolhidos e empregados em função de aspectos sócio-comunicativos e funcionais, somos

compelidos a admitir que o estudo que normalmente deles se faz parte de uma observação da

forma, à qual se tem acesso de modo mais imediato. Isso nos leva a reconhecer que a

materialidade lingüística nos permite desvendar o discurso, pois constitui a chave que nos

permite abrir a porta que a este nos conduz. Faz-se oportuno observar, ainda, quanto a esse

aspecto, que os elementos formais funcionam, nesse caso, como o dispositivo que aciona RMs

arquivadas em domínios referenciais, as quais possibilitam o reconhecimento de diferentes

gêneros discursivos, a que se teve acesso anteriormente.

A seguir, buscaremos caracterizar, em linhas gerais, o gênero que será analisado na

terceira parte deste trabalho. Esclarecemos que os aspectos discursivos, os quais, de fato,

caracterizam-no serão explorados nas duas próximas seções desta parte e, principalmente, na

terceira parte deste estudo, dedicada, exclusivamente, às análises.

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115 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

3.2.2.1.1 Gêneros políticos: o pronunciamento político-presidencial oficial

Aos olhos do cidadão comum, o universo da política é considerado, não raro, um

universo, por natureza, enfadonho, inacessível e sisudo. Por isso, dentre outras razões, aqueles

que dele participam recorrem, com freqüência, a estratégias midiáticas, a fim de torná-lo -

quando julgam isso necessário - atraente e palatável, o que determina que alguns gêneros

próprios desse universo apresentem também características de outros domínios. Um exemplo

de gênero que compõe esse grupo é a propaganda eleitoral. Além deste, o universo da política

abriga outros tantos gêneros, tais como pronunciamentos oficiais, espontâneos, decretos

presidenciais. Alguns emanam de uma instância legítima do poder, como a presidência da

República; outros, não. Os políticos em campanha eleitoral representam uma instância política

que almeja o poder legítimo e luta para alcançá-lo; para isso, lança mão de gêneros como a

propaganda eleitoral. Muitos gêneros políticos, como este, abrigam outros.

Os pronunciamentos presidenciais oficiais são, por natureza, gêneros escritos

previamente por uma pessoa/equipe responsável para tal e, posteriormente, antes de serem

publicamente proferidos, submetidos à apreciação e aprovação daquele que o proferirá. A

instância responsável por sua elaboração não corresponde àquela responsável por proferi-lo.

Entretanto esta o assume como seu e se responsabiliza por seu conteúdo e por efeitos de

sentido provocados nas instâncias às quais se dirige e/ou tem acesso. Em função dessas

características, são originalmente escritos, para serem lidos publicamente em ocasiões

formais, tal como uma homenagem a algum chefe de Estado de alguma nação amiga. Outras

vezes, também marcados pela formalidade, prestam contas à sociedade no que diz respeito a

ações adotadas pelo governo. Ou, ainda, são proferidos em cerimônias de posse de chefes de

Estado, eventos estes marcados por alto grau de formalidade e, portanto, orientados por um

conjunto de regras que, prévia e socialmente estabelecidas, devem ser observadas, revelando,

assim, a importância sócio-política daqueles que protagonizam o evento. O pronunciamento

de posse de chefes de Estado constitui, pois, parte substancial de uma cerimônia oficial e

extraordinária, marcada por pompa e suntuosidade. Tais pronunciamentos, embora emanem

de uma instância legítima de poder, revelam-se profundamente marcados pelo tom de

promessa, uma vez que registram a passagem do candidato ao chefe de Estado. Mesmo

quando formalizam a recondução de um chefe de Estado ao poder, os pronunciamentos

oficiais de posse apresentam-se caracterizados pelo tom de promessa, considerando-se que

constituem um marco entre dois períodos distintos de governo: um que se conclui e outro que

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116 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

se inicia. Mas se faz oportuno destacar que, nesse caso, associado ao tom de promessa,

emerge o tom de justificação pelas ações prometidas no passado e não desenvolvidas na

gestão que, na ocasião da segunda posse, encerra-se. Observa-se, dessa forma, que os

pronunciamentos oficiais revelam-se orientados por uma pluralidade de finalidades

comunicativas, que podem ou não co-ocorrerem.

Mesmo caracterizados pela formalidade, alguns políticos costumam, em algumas

situações que permitem, segundo sua avaliação pessoal, menor grau de formalidade, alterá-los

no momento em que os enunciam, o que faz com que se tornem, a um só tempo, oficiais e

espontâneos. O grau de formalidade do qual é dotado determina a seleção dos recursos

lingüísticos a serem empregados e é, por sua vez, determinado pela situação, finalidade e

público a que se destina. Quando, por exemplo, são dotados de alto grau de formalidade,

apresentam, em sua composição formal, estrutura rígida, construções frásticas

gramaticalmente bem elaboradas e vocabulário requintado. Tal estrutura, além de rígida, pode

ser considerada previsível, tendo em vista que, socialmente, construímos, de forma

consensual, a sua representação.

Considerando-se, ainda, que são, com freqüência, divulgados pela mídia, os

pronunciamentos oficiais obrigatoriamente se inserem em um outro domínio, o midiático, o

qual é orientado por uma lógica e um funcionamento diversos do domínio originalmente

político. Conseqüentemente, na era atual, cada vez mais midiatizada, verifica-se que esses

dois domínios passam a exercer um sobre o outro intensa e contínua influência. Observa-se,

assim, que esses dois domínios se interpenetram, provocando não só o que hoje se denomina

de midiatização da política, pois esta acaba por incorporar uma lógica própria do domínio

midiático, como também a politização da mídia, tendo em vista que eventos políticos

participam, cada vez mais, da composição do espaço midiático.

3.2.2.2 Particularidades do discurso político

À medida que os aspectos apresentados referentes ao poder político, à ascensão e à

manutenção de Lula e do PT ao/no poder e aos gêneros discursivos políticos descortinam ou

contribuem para que se descortine o vasto, complexo e instigante universo da política,

surgem, de maneira mais enfática, as seguintes indagações: o que constitui, afinal, aquilo que

comumente denominamos discurso político? O que, de fato, caracteriza esse discurso que é

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117 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

alvo de nossa atenção no presente estudo? Segundo Maingueneau (2001: 51), a expressão

“discurso político” indica, em Análise do Discurso, um “uso restrito da língua”, podendo,

considerando-se especificamente o que constitui o nosso atual objeto de análise, não só

apontar um conjunto de textos produzidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como

também o sistema que possibilita a produção desses textos. Com base no que vislumbramos

acerca do universo da política, constatamos que, se nos parece impossível adotar a expressão

“discurso político” para apenas designar um conjunto de textos produzidos pelo presidente

Lula, parece-nos bastante delicada a tarefa de buscar dar conta do sistema que torna possível a

produção desses textos.

A fim de atender a essa difícil tarefa, a Lingüística disponibiliza instrumentos para a

análise privilegiada de textos e discursos, contribuindo, assim, para a compreensão de vastos e

complexos universos, como o da política. No entanto, não raro, na construção do

conhecimento, os instrumentos de investigação disponibilizados não só por essa área do saber,

como também por todas as outras são empregados, questionados, reavaliados, aperfeiçoados

e, até mesmo, substituídos por outros. No presente estudo, somos levados, por exemplo, a

refletir acerca de como e a partir de que elementos os discursos, por exemplo, midiático e

publicitário interferem na e contribuem para a constituição do que hoje se denomina discurso

político. E até mesmo a observar se a noção de formação discursiva estaria, no que diz

respeito ao discurso político, sendo colocada em xeque, conforme ponderou Pêcheux (1995),

uma vez que a complexidade de tal discurso tem exposto não só a complexidade das relações

que se estabelecem entre formações discursivas distintas, como, primordialmente, a

complexidade de sua composição. A noção de prática discursiva proposta por Maingueneau

(1993) para integrar as duas faces do discurso, a textual e a social, parece-nos ainda

insuficiente para abarcar tamanha complexidade. Ao se compor essa noção a partir da

vinculação estabelecida entre outras duas, a de formação discursiva e a de comunidade

discursiva, alarga-se a compreensão da natureza e da organização dos grupos que geram os

diferentes discursos. No entanto, parece-nos não elucidar, satisfatoriamente, o que constitui o

discurso compreendido como sistema, em sua totalidade. Ou melhor, parece-nos não nos

oferecer subsídios para compreender, de modo pleno, por exemplo, o que hoje constitui, de

fato, o discurso que comumente denominamos político.

Em meio a constatações como essas, somos levados a indagar: os discursos midiático e

publicitário simplesmente atravessam o discurso político, povoando-o de pré-construídos? Ou

têm a tal ponto penetrado neste desfigurando-o, descaracterizando-o por completo? A política

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118 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

e, conseqüentemente, o discurso político têm perdido sua essência e se tornado apenas

espetáculos midiáticos? O sucesso do político “comunicador” não seria um indício ou até

mesmo uma prova de que a política se reduz hoje a um espetáculo midiático? Caso tudo isso

esteja ocorrendo, pode-se ainda falar em discurso político? Ou estaríamos diante de uma

reconfiguração desse discurso ou, ainda, de um discurso híbrido? Considerando-se essas

questões, a partir de que elementos os referentes, por exemplo, “modelo público de realidade”

e “imagem de homem público” têm sido construídos pelas instâncias política e midiática e,

por estas, têm se tornado públicos?

Buscar compreender esse complexo sistema que possibilita a produção de textos no

âmbito da política demanda que estejamos atentos às particularidades do universo que

denominamos político, as quais se desvendam (ou se “ocultam”) no âmbito do discurso,

como, por exemplo, à constituição, por intermédio do discurso, em situações comunicativas

específicas, do poder político. Entender o poder político como o instrumento por meio do qual

se busca assegurar o domínio e que, por isso, representa uma espécie de unidade de valor, cuja

função é intermediar as transações políticas, implica, dentre outros aspectos, observar como e

por que se processam essas transações, que se realizam, discursivamente, entre os atores

políticos. E não só entre os atores políticos, mas também entre a instância política e outras

duas instâncias que com que esta continuamente interagem: a instância midiática e a cidadã.

Vê-se, assim, que, a partir desse olhar, o discurso se apresenta como “o lugar da encenação da

significação” (CHARAUDEAU, 2001: 25). Lugar este que, no universo da política, se deixam

conhecer, se transformam, se confundem, se mesclam ou buscam se esconder, em um

intricado jogo de significações, as particularidades de (in)distintos universos em contínua

interação, interinfluenciação e reconfiguração. Tudo isso nos faz admitir que, de fato, “o

discurso não é um jogo de significações prévias” (FOUCAULT, 2001: 53).

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119 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

O modelo interlocutório triádico proposto por Berrendonner (1999), representado a

partir do diagrama ao

lado, por constituir um

modelo capaz de dar

conta dos aspectos que

compõem uma interação

comunicativa, permite-

nos observar, de modo

satisfatório, os domínios

da política sob um prisma

sócio-discursivo.

Reconhecer que a

interação comunicativa, a

partir da qual se constrói

uma realidade pública, envolve três universos distintos que colocam em jogo diferentes

fatores psicossociais faculta-nos buscar compreender, discursivamente, o sistema capaz de

permitir a produção dos textos resultantes dos atos de linguagem com estatuto político

reconhecido. Esse modelo nos permite, de forma satisfatória, buscar desvendar o complexo

jogo do poder político, que se caracteriza pelo estabelecimento de significativas relações entre

dois universos individuais distintos, o do representante e o do representado, interagindo com

um universo coletivo, um “modelo público de realidade”.

Bobbio (1997 a: 97-98) defende que há dois tipos de relação de poder: uma simétrica e

outra assimétrica. Segundo ele, a primeira é própria da forma de governo democrático, uma

vez que se funda no acordo entre, por exemplo, governante e governado. A segunda, por sua

vez, funda-se na dupla comando-obediência. Entretanto, se, a partir do ponto de vista do

cientista político, há dois tipos distintos de relação de poder, o mesmo não se observa a partir

da perspectiva do analista do discurso. Charaudeau (38-37), por exemplo, defende que todas

as instâncias enunciativas são assimétricas, o que sugere, de acordo com uma perspectiva

discursiva, que as relações de poder caracterizam-se pela assimetria, podendo se tornar

simétricas em função de objetivos comunicacionais específicos. Assim sendo, adotando um

ponto de vista discursivo, somos levados a sustentar que, na ação política, a relação

estabelecida entre representante e representado caracteriza-se por um curioso “desequilíbrio”.

Curioso, uma vez que, mesmo partindo do princípio de que todas as instâncias enunciativas

Figura 2 - Modelo Interlocutório Triádico por Berrendonner

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120 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

são assimétricas, deva-se considerar que, no âmbito das relações políticas, manifestam-se

aspectos singulares no que se refere à posse e ao exercício do poder, os quais conferem ao

discurso denominado político algumas sutis, mas significativas especificidades. O poder,

elemento determinante na construção das relações e do discurso políticos, apresenta-se tanto

na construção das identidades sociais do locutor e do interlocutor quanto na construção das

identidades discursivas do enunciador e do enunciatário, revelando que os sujeitos se

constroem, a um só tempo, social e discursivamente.

Compreende-se, pois, segundo uma ótica discursiva, que todo ato de comunicação

constitui um processo em que entram simultaneamente em jogo a construção tanto das

identidades discursivas quanto das identidades sociais dos sujeitos envolvidos no ato

comunicativo. Nesse processo, observa-se o estabelecimento de uma relação entre instâncias

que, embora distintas, mantêm entre si relações de interdependência e interinfluenciação: de

um lado, a instância dos sujeitos empíricos, a qual se organiza em duas instâncias igualmente

distintas: a da produção (o locutor) e a da recepção (o interlocutor); de outro lado, a instância

dos sujeitos discursivos, a qual, por sua vez, também se organiza em duas instâncias distintas:

a da produção (o enunciador) e a da interpretação (o enunciatário). A assimetria que

caracteriza as instâncias enunciativas defendida por Charaudeau (1987) reside no

descompasso que se observa entre a instância responsável pela produção e a responsável pela

interpretação do enunciado.

Na esfera das relações políticas, tomando a política extraordinária como exemplo, ou

seja, a política eleitoral, observa-se que, se, por um lado, conforme observa Manin (1995: 23-

29), o eleitor, detém o poder de destituir seus representantes quando vencem os seus

mandatos, por outro, a vontade política dos eleitores não se revela independente da influência

dos políticos. A vontade do eleitor é, pois, na perspectiva do cientista político, algo produzido

pelos políticos, e não algo espontâneo. De acordo com essa ótica, pode-se dizer que os

eleitores não ocupam a posição de agentes, mas apenas respondem aos estímulos políticos.

Quanto a esse aspecto, é interessante ainda observar que não é o eleitor que decide em quem

votar. Antes disso, é o político quem escolhe o segmento social ao qual a sua campanha será

direcionada.

Schumpeter (apud MANIN, 1995: 28), ao defender que os eleitores apenas reagem aos

termos que lhes são apresentados pelos políticos, alega que nosso senso de realidade se

enfraquece quando nos afastamos das nossas preocupações rotineiras, ou seja, daquelas que se

limitam ao nosso universo familiar e profissional, para assumir preocupações referentes a

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121 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

universos mais amplos, tais como os que dizem respeito a assuntos nacionais e internacionais.

Schumpeter argumenta que esse enfraquecimento do senso de realidade empobrece o nosso

senso de responsabilidade e a nossa volição, o que parece fazer com que, ocupando o lugar de

eleitor, sejamos dominados por um efeito de ilusão, ou seja, acreditamos ser dotados, todo o

tempo, de racionalidade e de vontade, embora, no que se refere às escolhas políticas,

percamos, por assim dizer, a capacidade de julgamento. Acreditamos que o candidato, por sua

vez, embora seja o responsável por fabricar a vontade do eleitor, parece ser também dominado

por um efeito de ilusão, só que não de julgamento quanto à escolha a ser feita, mas no que diz

respeito à crença de que conhece o seu eleitor. No universo das questões políticas, essas duas

manifestações distintas de ilusão parecem se mesclar e, até mesmo, se fundir. Entretanto não

podemos nos esquecer de que, segundo esse ponto de vista, mesmo que a vontade do eleitor

não possa ser considerada espontânea, a decisão final, ou seja, o poder do voto ao eleitor

pertence.

Já no que concerne a uma perspectiva discursiva, verifica-se que não se pode dizer que

a vontade do interlocutor-eleitor seja, de fato, fabricada pelo locutor-político. O que se

observa é que o enunciatário-eleitor não corresponde, necessária e infalivelmente, ao

interlocutor-eleitor, o que faz com que o locutor-político consiga unicamente projetar uma

imagem de interlocutor-eleitor, procurando conformá-la de acordo com os seus interesses

políticos. No intuito de fabricar essa imagem de interlocutor, o locutor busca, na maioria das

vezes, focar um determinado segmento social, o qual, por sua vez, ocupando o lugar de

enunciatário, ao interpretar as ações político-discursivas do locutor-político, remete, não raro,

ao locutor uma imagem deste e de si (interlocutor-eleitor) diversa daquela por este projetada.

Esse descompasso entre ideal e real, que se verifica em toda situação de comunicação, parece,

na política, se dever ao fato, dentre outros, de que o interlocutor-eleitor está sujeito não à

influência de um único locutor-político, mas de vários, que, competindo entre si, buscam,

orientados por um único objetivo – a vitória eleitoral -, além de construir uma imagem de si

próprios distinta das dos demais, projetar uma imagem e uma interpretação igualmente

distinta do modelo de realidade vigente. Ao projetar e interpretar o modelo de realidade

vigente, o locutor-político propõe, a partir da apresentação de sua plataforma política,

reconstruí-lo ou aperfeiçoá-lo.

Isso revela que, no âmbito da política extraordinária, circulam e interagem imagens

distintas de dois referentes em especial: o modelo público de realidade e a imagem de homem

público. O estabelecimento desse intricado jogo de imagens faz com que o locutor-político,

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122 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

em um contínuo processo de ensaio e erro, não só busque remodelar a imagem de seu

interlocutor, como também de locutor, ou seja, a sua própria imagem. Considerando-se esse

aspecto, pode-se dizer que o locutor-político, ao buscar fabricar o interlocutor-eleitor, também

adota, assim como este, uma postura reativa, constituindo-se, desse modo, em um produto

fabricado pelo interlocutor-eleitor.

É curioso observar que tudo isso acontece até mesmo neste momento em que as

campanhas eleitorais têm sido acusadas de estarem passando por um processo de

pasteurização, conforme vimos anteriormente. E ainda mesmo que, por parte dos locutores-

políticos, o movimento de construção da realidade tenha sido, não raro, relegado a segundo

plano em favor da luta pela imagem pública. Caso isso não ocorresse, o interlocutor-eleitor

não reagiria de forma a eleger um locutor-político em detrimento de outro(s). Mas se faz

oportuno ressaltar que a relação entre locutor-político e interlocutor-eleitor/cidadão não se

estabelece de forma direta, mas intermediada pela instância midiática. Há ainda a ser

considerado que essa relação triádica sofre também a interferência/influência de outras

instâncias e de outros fatores exteriores ao completo domínio dessas três instâncias, como, por

exemplo, a instância judiciária e a ocorrência de fatos naturais. Mesmo sabendo-se que, sobre

a ação destes, as instâncias política e/ou midiática sempre buscam exercer algum tipo de

controle, a fim de atender aos seus propósitos, não há como impedir que estes se manifestem.

As quatro eleições consecutivas em que Lula concorreu à presidência da República

ilustram, de forma singular, a constituição do jogo de imagens que se estabelece, na esfera da

política extraordinária, entre os sujeitos sociais (locutor e interlocutor) e os discursivos

(enunciador e enunciatário). Como vimos na seção anterior, em 1989, quando Lula e o PT

estrearam na disputa pela presidência da República, o interlocutor-eleitor por eles focado era

o trabalhador, o que se observa por intermédio do slogan “Vote no 13, o resto é burguês”

adotado pelo partido na década de 80. Com a primeira derrota e as duas a esta subseqüentes,

Lula e o PT se viram impelidos a promover uma gradual e significativa “desradicalização” da

dupla imagem candidato-partido, a qual culminou, em 2002, com a consagração da imagem

“Lulinha paz e amor”. Embora o interlocutor-eleitor focado por Lula e pelo PT,

particularmente em 1989, tenha reagido, de forma bastante positiva, à imagem que lhe foi

apresentada de Lula-homem público, esta mesma imagem havia afastado outros segmentos de

eleitores. Esse afastamento parece poder ser discursivamente explicado pelo fato de o

conhecimento construído pelo interlocutor-eleitor, acerca do locutor-político, ter interferido,

desfavoravelmente ao locutor, no processo interpretativo construído pelo enunciatário-eleitor

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123 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

no que se refere às ações e à postura políticas do locutor, ao longo de sua trajetória como

homem público.

Mesmo reagindo de forma positiva, o interlocutor-eleitor selecionado mostrava-se

insuficiente para conduzir Lula e o PT ao poder. Ou seja, alcançar o poder político só se

configuraria como uma possibilidade caso Lula e o PT não fossem tão seletivos, o que se

verificou a cada nova derrota, resultando na busca de apoio de um interlocutor-eleitor cada

vez mais multifacetado. À medida que, sob a interferência direta e crescente de significativos

segmentos da instância midiática, promovia-se a gradual mudança da imagem de Lula,

promovia-se também uma mudança no conhecimento do interlocutor sobre o locutor;

conhecimento este que passou a interferir, favoravelmente ao locutor, na interpretação acerca

deste construída pelo enunciatário. A trajetória de Lula e do PT ao poder, caracterizada por

um expressivo movimento de ensaio e erro, revela, portanto, que a construção da imagem do

locutor-político se configura por intermédio de um processo de interinfluenciação, o que se

observa em todo e qualquer discurso, mas de maneira não só peculiar, como também mais

expressiva e ostensiva, no âmbito da política extraordinária.

Particularmente, a ascensão de Lula e do PT ao poder revela, pois, no que diz respeito

à imagem que os interlocutores têm do referente no que concerne a situações comunicativas

que se realizam na esfera política, que o locutor-político parece continuamente considerar que

o interlocutor-cidadão tem uma imagem do referente (ex: imagem de homem público e

imagem do modelo público de realidade) distinta da imagem que ele, locutor, faz do mesmo

referente e trabalha, contínua e incessantemente, para conformá-la de acordo com os seus

objetivos e interesses. Ou reconhece que o seu interlocutor é também interlocutor de seus

opositores, e não só acredita que pode tê-lo como seu aliado, mas também trabalha para tal, já

que não o percebe como seu adversário, ou, melhor dizendo, percebe-o como um aliado em

potencial. Ou, ainda, identifica o segmento do eleitorado que lhe é mais fiel e busca, com este,

estreitar laços de identidade anteriormente estabelecidos, como ocorreu, em 2006, na

campanha eleitoral de Lula à reeleição. Observa-se que, no caso de uma recondução ao poder,

como aconteceu com Lula em 2006, esse processo parece assumir contornos um pouco

diversos do que normalmente se verifica na política extraordinária.

Orientado por essa avaliação, o locutor, no intento de conquistar e/ou assegurar o

poder, busca, a um só tempo, no processo de construção do seu discurso, aproximar-se do seu

interlocutor e isolar os seus oponentes. Embora esse procedimento seja característico da

política extraordinária, verifica-se, com freqüência, na política ordinária, uma vez que os

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124 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

atores políticos se organizam, cotidianamente, grosso modo, em dois blocos distintos e

antagônicos: situação e oposição. Organização esta que se traduz na díade amigo-inimigo

apresentada por Bobbio (1995) para caracterizar o antagonismo próprio das relações de força

que se estabelecem no campo da política. Deve-se ainda considerar que, em torno desses dois

pólos, gravitam forças políticas que ora se agregam a um, ora se agregam a outro, ou seja,

caracterizam-se pela instabilidade. Além disso, não se pode esquecer que, na política

ordinária, torna-se imprescindível não só buscar assegurar a governabilidade, mas também,

por exemplo, a manutenção no poder, considerando-se aqui também a possibilidade da

reeleição, e a ampliação da ação do partido em outras esferas do poder político. Compreende-

se, desse modo, que a construção da imagem pública dos atores políticos se processa

paralelamente às interpretações da realidade por estes efetuadas, negociadas e disputadas,

visando a interferir na construção do “modelo público de realidade”.

Pode-se assim inferir que, embora o interlocutor não seja destituído de poder, o

locutor, aquele que detém o domínio, monitora, não raro, de forma “consciente”, a interação

comunicativa, atento, grosso modo, a duas categorias distintas, mas complementares de

objetivos: um imediato e predeterminado, a conquista e/ou a manutenção do poder político e

outro, não tão imediato e sempre definido a cada situação comunicativa, que só se alcança por

intermédio da posse do poder político. O poder se apresenta, assim, como a moeda corrente de

transação entre os universos individuais do representante (locutor) e os do representado

(interlocutor) sobre um “modelo público de realidade”, o qual se deseja, parcial e

intensamente, manter ou transformar.

O compartilhamento e a negociação de crenças individuais entre locutor e interlocutor,

os quais se processam por intermédio da interação comunicativa, a um só tempo, mascara,

simula e (re)vela a relação distinta que os interlocutores mantêm com o poder, compondo o

jogo da prática política entre verdade versus verossimilhança. Institui-se, assim, um jogo de

pressuposições de imagens entre os interlocutores, por meio do qual se processa, por exemplo,

a construção de noções de poder político, de homem público e do “modelo público de

realidade” em questão. No estabelecimento desse jogo, o locutor busca, por meio do discurso,

visando assegurar o poder político, selecionar e controlar as imagens a serem construídas pelo

interlocutor, uma vez que tem plena consciência da importância do papel por este exercido

nesse processo. É importante, entretanto, chamar a atenção para o fato de que, embora o

locutor busque agir sobre o interlocutor por meio de estratégias lingüístico-discursivas, ele

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125 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

não monitora, todo tempo, de maneira consciente e calculada, as estratégias empregadas nessa

ação.

No que diz respeito à importância do interlocutor nesse processo, consideramos

interessante ainda recorrer a Aristóteles (Ediouro. 16ª edição. p.39) que defende que “o

ouvinte é, necessariamente, espectador ou juiz”. No campo da política, pode-se dizer que o

interlocutor ora é juiz, pois delibera diretamente sobre causas futuras, quando, por exemplo,

exerce, na política extraordinária, o direito do voto; ora é espectador, pois elogia ou censura,

no tempo da política ordinária, as ações políticas e seus autores. É importante destacar que,

mesmo no papel de espectador, o interlocutor, além de interpretar a realidade, sofre influência

de e exerce influência sobre o “modelo público de realidade”. Ou seja, em circunstância

alguma, comporta-se como um espectador passivo. Uma comprovação disso encontramos em

Manin (1995: 30), quando ele diz que as pesquisas de opinião conferem voz aos cidadãos

“apáticos” e não engajados politicamente. Vale lembrar que o resultado dessas pesquisas

exerce influência sobre o “modelo público de realidade” e que, em função desses resultados, o

locutor (re)organiza o seu discurso, buscando reconstruir ou aprimorar a sua imagem de

homem público. Outra comprovação de que o interlocutor, em uma situação comunicativa na

qual estão envolvidos atores políticos, não se comporta de forma passiva mesmo em tempo de

política ordinária, refere-se à atuação da mídia televisiva e jornalística nesse processo.

Observa-se que, continuamente, a mídia, ocupando o lugar de enunciatário no discurso

político, interpreta o modelo público de realidade vigente e, ao assumir o lugar de enunciador,

ou seja, ao assumir o papel de protagonista da linguagem na dupla “eu” e “tu” proposta por

Benveniste (1995), busca interferir no modelo público de realidade, exercendo influência

sobre dois interlocutores/enunciatários distintos, que se (re)organizam em função dessa ação:

o político e o cidadão.

Estabelece-se, assim, uma ativa e complexa rede de influenciações envolvendo,

concomitantemente, os três pólos que compõem o modelo interlocutório proposto por

Berrendonner, ao qual podemos associar, a fim de melhor elucidar essa rede de influenciação,

o esquema apresentado a seguir, elaborado por Charaudeau (2002 apud SOARES, 2005: 71)

para descrever o dispositivo do discurso político.

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126 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Observa-se, dessa forma,

que, nesse processo de construção

da imagem do homem público e de

interpretação da/interferência na

realidade, a formação dos discursos

políticos caracteriza-se pela

heterogeneidade, uma vez que se dá

a partir tanto de elementos a serem

construídos na interação, quanto de

pré-construídos, isto é, de imagens

do homem público e da realidade

pressupostas e/ou conhecidas. Com

o intuito de assegurar o domínio, o locutor busca inserir no “modelo público de realidade”

suas crenças e seus valores e, com isso, aciona distintos sistemas de representações, que

colocam em cena diferentes formações ideológicas comportando diferentes formações

discursivas, que, interligadas, se compõem e se mantém por intermédio do interdiscurso. Isso

se revela de maneira mais enfática nos domínios da política contemporânea, pois, na

atualidade, o discurso político mostra-se, ainda e cada vez mais, influenciado, atravessado e,

até mesmo, invadido por outros discursos sociais.

Observa-se, por exemplo, que o locutor político tem ressaltado, cada vez mais, em

seus discursos, aspectos não previstos na relação política tradicional.

Quando, no 8º CONCUT, o presidente Lula diz “olhem bem nos meus olhos”, ele

lança mão de recursos próprios do discurso da sedução, os quais não condizem com aqueles

que caracterizam o discurso político tradicional: o discurso da persuasão. Embora não vise, no

imediato, à captação do voto, uma vez que fala do lugar de presidente da República, e não do

candidato, precisa fazer o interlocutor, em sua maioria sindicalistas que constituem a sua base

eleitoral (“antigos companheiros”), acreditar que ele não mudou, que ele ainda se identifica

com e defende os valores que são mais caros ao interlocutor. Isso não só para assegurar, no

presente, a tão necessária governabilidade, mas também se preparar para uma hipotética

futura reeleição. Observa-se, ainda, conforme atesta Rubim (2004: 7), que, com o final da

ditadura militar, instalou-se no Brasil a Idade da Mídia, com o desenvolvimento de um novo

ambiente comunicacional, que só então passou a interagir livremente com a política. Nesse

novo contexto, o discurso político assume contornos de um espetáculo midiático, mais

Ia

Ip

Im

Ic

Instância adversár ia

Instância midiática

Instância polít ica

Instância cidadã

Figura 3 - Diagrama do Discurso Político

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127 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

notadamente no que concerne à política extraordinária. No espaço da mídia, opera-se a

construção da imagem do homem público, a qual se processa, de forma singular, por

intermédio de um discurso que busca camuflar o embate entre o verdadeiro e o verossímil,

pois “o importante não é o que se diz, mas o que vai ser ouvido”. Tal recomendação dos

especialistas em comunicação com o público se observa no filme “Entreatos”, de João

Moreira Salles, que documenta os bastidores das eleições de 2002, no mês que antecedeu a

eleição do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República.

Por vivermos hoje a Idade da Mídia, só temos, pois, acesso aos discursos políticos por

intermédio desta, o que representa que só temos acesso a tais discursos filtrados e modelados

pela mídia televisiva e/ou impressa, a qual faz com que tanto a política extraordinária quanto

a ordinária se submetam às regras do espetáculo. E, ainda, que dela, muitas vezes, se

alimentem. É preciso, pois, como diz Bonnafous (1999: 318), que se considere, no estudo do

discurso político, a lógica comunicacional própria da mídia, a qual se caracteriza, por

exemplo, pelo espetáculo, pelo show publicitário, pelo marketing. Nesse novo ambiente

comunicacional, fica mais exposto, mas não necessariamente mais visível, não só o

movimento de construção e desconstrução da imagem pública dos atores políticos, como

também a disputa por eles travada pela interpretação da realidade e pela interferência no

“modelo público de realidade”. Na composição do jogo da prática política entre verdade

versus verossimilhança, essa superexposição parece, paradoxalmente, turvar a visibilidade de

tal movimento e de tal disputa, tornando-os, assim, dotados de opacidade, a qual, por

intermédio da análise lingüístico-discursiva se busca atravessar. Vale ainda enfatizar que a

mídia, ao dialogar, simultaneamente, com dois interlocutores/enunciatários de natureza

distinta, o político e o cidadão, ocupa uma posição privilegiada no que diz respeito à

possibilidade de interferir na construção não só dos atores políticos, como também do cidadão

e, conseqüentemente, no modelo público de realidade.

A partir dessa reflexão, pode-se, pois, observar que, no campo da política, em que

particularidades concernentes, por exemplo, ao poder e ao estabelecimento de relações entre

forças distintas, emergem sujeitos os quais, em meio a imaginários, representações e

ideologias, constroem-se, a um só tempo, social e discursivamente. Tal processo de

construção revela sujeitos que se apresentam de acordo com, influenciados por e influindo

sobre o “modelo público de realidade”, fazendo emergir um discurso dotado de uma

complexidade sui generis. Complexidade esta que nos faz reconhecer que o discurso que

denominamos “discurso político” apresenta-se indiferente a classificações, pois não cabe em

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128 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

categorias fixas e precisas, não comporta definições “fechadas”, mas apenas se permite

apreender e compreender no instante único da enunciação, o qual buscaremos recuperar em

nossa análise, em que se coloca em ação a competência político-discursiva dos interlocutores

para fazer manifestar-se, no discurso, o politicismo que lhe é próprio.

Foucault (2001: 9-10) apreende essa complexidade, a partir de um ponto de vista

perspicaz, ao dizer que, no campo da política, o discurso, longe de se apresentar como um

elemento neutro ou transparente, no qual esta se pacifica, revela-se vinculado ao desejo e ao

poder. E acrescenta que, nesse âmbito, o discurso “não é simplesmente aquilo que manifesta

(ou oculta) o desejo: é, também, aquilo que é objeto do desejo”, pois “o discurso não é

simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que,

pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. E parece-nos ser possível

acrescentar que o discurso constitui o meio pelo qual se busca turvar a visibilidade do

movimento de construção e desconstrução da imagem pública dos atores políticos, como

também a disputa por eles travada pela interpretação da realidade e pela interferência no

“modelo público de realidade”. E, paradoxalmente, constitui, ainda, o meio pelo qual se busca

atravessar essa opacidade e desvendá-la.

Com Foucault percebemos que não só a política verifica-se irremediavelmente

vinculada ao poder, como também o discurso, pois o discurso que nomeamos de “discurso

político” não só se apresenta como o discurso do poder por excelência, como (re)vela o

incomensurável poder de todo e qualquer discurso.

3.2.3 Espetáculo, política e mídia

Na era contemporânea, em que se verifica uma mudança substancial na sociabilidade,

observa-se o estabelecimento de uma relação triangular entre política, mídia e espetáculo,

dotada de singular complexidade. A emergência de uma nova modalidade de comunicação, a

midiática, provoca alterações referentes, por exemplo, às dimensões de tempo e espaço, às

formas de perceber, sentir e representar o mundo, à atividade política e, conseqüentemente,

não só àquilo que se concebe como espetacular, como também à própria noção de espetáculo.

No curso da história, o vocábulo espetáculo sempre foi empregado para designar

acontecimentos de caráter obrigatoriamente público, os quais rompem com o cotidiano,

provocando potente impacto social, graças à sua notabilidade no campo da grandeza ou do

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129 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

escândalo. Nesse sentido, essa noção tem se revelado, não raro, atrelada à de drama, uma vez

que o espetáculo não só desperta o interesse, como também comove, situando-se, não raro, a

um só tempo, no território do trágico e do cômico. Tendo em vista que a palavra drama

remete, em primeiro momento, ao universo teatral, mais especificamente a um gênero de

composição teatral, por extensão remete à encenação, à arte de representar.

Embora hoje se busque chamar a atenção para a relação existente entre política e

espetáculo, como se esta fosse irremediavelmente estabelecida por intermédio do aparato

midiático, pode-se constatar que política e espetáculo se vinculam, de forma estreita, muito

antes do surgimento da mídia: a política nasce, na Grécia Antiga, no século V, já

acompanhada do espetáculo. Entre os séculos VII e VIII, por exemplo, com o surgimento da

polis, conforme comenta Soares (2005: 27), quando “o debate conquista legitimidade no

equacionamento das questões de domínio público que envolvem conflitos de interesses, a

força da imposição vê-se compelida a ceder espaço à força da persuasão”. Com o surgimento

da retórica e, conseqüentemente, do destaque conferido à figura do orador, colocam-se em

cena, na ágora grega, estratégias próprias do espetáculo, com finalidades persuasivas.

Segundo Rubim (2002), até mesmo as Pirâmides do Egito destacam-se como uma afirmação

suntuosa do poder a que hoje denominamos político e, portanto, como pertencente ao domínio

do espetacular.

Com o passar do tempo, o espetáculo, na esfera da política, vai assumindo novos

contornos, mas, não raro, sem se distanciar, por completo, do caráter do espetacular de

outrora, graças, primordialmente, aos rituais próprios de atividades políticas, por exemplo,

extraordinárias, como os comícios, em época de eleições, e às cerimônias de posse,

formalização do direito legítimo ao exercício do poder. A encenação revela-se, desse modo,

uma característica marcante das manifestações políticas. Até mesmo no âmbito do ordinário, a

política revela grande afinidade com o espetáculo, graças a um componente, o poder, que lhe

é imanente, o qual não só tem necessidade de afirmação, como se manifesta presente em

diferentes e, com freqüência, conflitantes campos de força e de interesses. Sendo assim, não

só a suntuosidade e a grandeza caracterizam o espetáculo político, mas também o escândalo,

acompanhado do trágico e, muitas vezes, também do cômico. Vê-se, assim, que a política

sempre se alimentou do espetáculo, sem ter se expressado, em momento algum,

completamente alheia a este.

Na contemporaneidade, ocorre a midiatização do espetáculo, o que acaba por

promover o surgimento de uma política midiatizada espetacular. Assiste-se hoje à proliferação

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130 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

e à reconfiguração do espetáculo, em todas as dimensões, inclusive, na dimensão política. A

mídia emerge, assim, como o lugar privilegiado da produção do espetáculo, propiciando ao

homem público a tão necessária visibilidade em um mundo no qual a existência física já não é

garantia de existência social. A mídia atua, assim, na construção de cenários, propiciando a

instituição de imagens sociais, a partir da criação de imagens visuais, o que permite, no

território do imaginário, à conformação dessas imagens às manifestações próprias da política.

A partir da satisfação de necessidades de visibilidade e de imagem, considerando-se que o

homem político deve não só aparecer em cena pública, como também seduzir, busca-se

também satisfazer a necessidade de legibilidade, uma vez que o homem político precisa,

necessariamente, se fazer compreender. Desse modo, conforme defende Charaudeau (2005:

221), a política se desdobra sobre a cena pública, a qual se configura como uma cena teatral,

onde se expõem, a um só tempo, a pessoa e a personagem, podendo esta última ser

representada pelo ator. Na busca pela existência social, em um ambiente midiatizado, o

homem político desempenha, pois, o triplo papel de: (i) ator, aquele que desempenha um

papel público predeterminado e se mostra em cena, para ser visto; (ii) personagem, ser de

ficção, entidade figurada que pode ser representada pelo ator, por meio da qual o homem

público exerce seu papel de homem político; (iii) pessoa, indivíduo singular, que permite que

o homem político seja reconhecido como um ser humano.

Quanto à busca pela existência social, deve-se, ainda, considerar que nem sempre a

demanda do campo político é coincidente com a demanda do campo midiático, pois, não raro,

a mídia confere visibilidade, de modo espetacular, àquilo que o homem público deseja manter

oculto, no campo do privado. Se, no passado, conforme elucida Rubim (2005), após o campo

político ter conquistado autonomia e, em decorrência disso, se organizado, o homem político

detinha o controle na produção do espetáculo político, com o advento da mídia, isso já não

mais se observa. Hoje, a produção do espetáculo político tem sido compartilhada/disputada

com o campo midiático, possibilitando a organização dos seguintes quadros de investigação,

propostos por Rodrigues (apud RUBIM, 2005):

1. eventos não espetacularizados nem pelos políticos, nem pela mídia; 2. eventos espetacularizados pelo próprio campo político e apenas midiatizadas, isto é, divulgados pela mídia; 3. eventos não espetacularizados pelos políticos e transformados em espetáculo pelo campo midiático e, por fim, eventos espetacularizados pelos campos político e midiático.

Mas, se, por um lado, há o desejo e/ou a necessidade de mostrar, por outro, tem de

haver o desejo de ver e de se deixar seduzir, tornando coincidentes a demanda do homem

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131 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

político e/ou da mídia e a demanda do público, do cidadão. Na contemporaneidade, a mídia

tem se apresentado como veículo privilegiado do espetáculo, visando fazer com que essas

duas demandas coincidam. Na construção social do espetáculo, aciona-se, por meio de um

aparato midiático, o extraordinário, o grandioso ou o escândalo, demarcando-se o limite entre

dois mundos distintos: o do protagonista e o da platéia. Muitas vezes, embora distintos, esses

dois mundos parecem se apresentar como se fossem interpenetráveis ou, até mesmo,

intercambiáveis, provocando a paradoxal ilusão da distância próxima ou, ainda, do próximo

distante. Conforme esclarece Rubim (2002), na produção do espetáculo, suspende-se,

temporariamente, a vigência das normas cotidianas, como se se rompessem os limites entre a

realidade à qual chamamos objetiva e aquilo a que denominamos de ficção, a fim de que se

permita adentrar o mundo da contrafactualidade e viver ou um conto de fadas, ou uma história

de terror e suspense. A fabricação do espetáculo, ao provocar essa ruptura, instaura a

necessidade da adoção de outro conjunto de normas produtivas, alinhadas com o momento

extraordinário (RUBIM, 2002).

Rubim (2002) defende que o fato de o aparato tecnológico e midiático contemporâneo

ter possibilitado que a esfera cultural, em sua totalidade, tenha sido invadida pelo espetáculo,

acrescido ao fato de ter favorecido a produção e a circulação deste, parece, dentre outros

aspectos, fazer com que o espetacular não ocupe mais o lugar do extraordinário, do incomum

e perca, portanto, a sua potência. Segundo ele (2002), em uma sociedade em que tudo parece

poder ser transformado em espetacular, paradoxalmente, nada mais parece ser espetacular.

Observa-se, assim, a partir dessa perspectiva, a banalização do espetáculo, uma vez que este

sai da esfera do extraordinário para habitar a esfera do ordinário. Quanto a esse aspecto,

defendemos que, no âmbito da política, o que se verifica, em nossa sociedade, mais que uma

banalização do espetáculo, parece ser uma mudança no ponto de referência, no parâmetro em

relação à percepção do que seja o espetáculo e na valorização deste. Quando aquilo que

habitual, consensual e naturalmente se concebe como ordinário passa para o campo do

extraordinário e vice-versa, parece que se perde a noção e a dimensão do que seja, de fato, o

espetáculo. Esvai-se, portanto, a referência acerca do espetacular e parece que nada mais

impressiona ou escandaliza, ou pior, toma-se o ordinário pelo espetacular e este por aquele, o

que acaba por provocar uma confusa inversão de valores anteriormente adotados e

consolidados.

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132 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Na seguinte charge veiculada no jornal Folha de São Paulo, em 24/03/05, podem ser

observados, além desse deslocamento acerca do que constitui o espetacular e o ordinário,

outros aspectos acima discutidos.

Inicialmente, faz-se

necessário observar a inserção e

a disposição da charge no espaço

do jornal, as quais correspondem

às da charge destacada na seção

anterior, dedicada ao discurso

midiático: topo da 2ª página do

1º caderno, seção Opinião, acima

das crônicas políticas, em que

são debatidas questões atuais de

interesse público acerca do

universo político. Nessa página,

estão dispostos nove textos: na

coluna à esquerda, três editoriais;

na coluna central, a charge em

destaque seguida de três crônicas; na coluna à direita, um artigo e uma frase. Destes, apenas

um editorial parece não enfocar, nem mesmo de modo indireto, questões concernentes à

política atual brasileira.

A primeira crônica disposta abaixo da charge, de autoria de Clóvis Rossi, tem como

título “A morte do grilo falante” e como temática, a perda da consciência crítica por parte do

PT. A metáfora do grilo falante, personagem criado por Carlo Collodi50

50 Carlo Collodi é o pseudônimo de Carlo Lorenzini, jornalista e escritor italiano do século XIX, o qual, em 1881, dá início à publicação do "Giornale per i bambini", o primeiro periódico italiano que tem como alvo o público infantil, no qual publica a "Storia di un burattino", primeiro título das Aventuras de Pinóquio. A criação de tal personagem, que constitui a sua grande obra-prima, foi responsável por conferir-lhe fama (Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlo_Collodi).

, o qual representa a

capacidade própria do ser humano de não só conhecer valores de cunho moral, mas também

de saber aplicá-los nas mais diversas situações, constitui um pré-construído do qual se lança

mão, a fim de se construir uma crítica ao PT. No momento em que o texto é produzido e

publicado, o governo Lula promovia uma reforma ministerial na qual se evidenciava a velha e

conhecida disputa por cargos. Rossi, em seu texto, refere-se a uma crônica publicada no

Figura 4 - Charge - Folha de São Paulo, 24/03/05

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133 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

mesmo jornal, no mesmo espaço, no dia anterior, de autoria de Fernando Rodrigues, cujo

título é “A virtude de Severino”. Nessa crônica, Rodrigues comenta que Severino, ao não

conseguir o que pretendia, denuncia, em público, como funcionam as barganhas políticas e

acaba, com isso, prestando um serviço ao País. Rossi, ao recuperar o texto de Rodrigues,

denuncia a morte da consciência crítica do PT que, ao longo de 23 anos, havia sido uma

espécie de grilo falante da política brasileira. Segundo Rossi, a perda da consciência fez com

que, em relação aos demais políticos, o PT se tornasse “farinha do mesmo saco”. Recorre-se

aí a um pré-construído que tem como origem fala popular de sentido depreciativo, empregada

para se referir a pessoas que se identificam entre si no que diz respeito à similitude das idéias

e/ou comportamentos mesquinhos adotados. A segunda crônica da coluna, de autoria de

Eliane Catanhêde, cujo título é “Eles se merecem”, ao denunciar que a reforma ministerial

acirra a disputa por cargos, endossa e amplifica a denúncia feita por Rossi, também lançando

mão do pré-construído ativado na crônica de Rossi por meio do emprego da expressão

“farinha do mesmo saco”.

Segundo apresentado acima, dos nove textos que compõem a página do jornal, apenas

um editorial parece não abordar, nem mesmo indiretamente, questões relativas à política atual

brasileira. Mas, após uma leitura atenta, verifica-se que tal texto, cujo título é “O caso

Schiavo”, ao discutir o direito de morrer, a partir da apresentação do caso de uma mulher

norte-americana que há quinze anos encontrava-se em estado vegetativo persistente, amplifica

os efeitos de sentido supostamente pretendidos, orientando, assim, a construção de sentidos.

Quanto a esse aspecto, faz-se oportuno esclarecer que, nesse dia, a foto principal da primeira

página do jornal apresentava o Papa João Paulo. A legenda abaixo da foto informava que, sem

se pronunciar, o Papa, da janela de seu apartamento no Vaticano, abençoava os fiéis, após

rumores de que sua saúde havia se deteriorado. Por ter como tema a deterioração da saúde, o

que remete, inevitavelmente, à morte, observa-se que a primeira página do jornal dialoga, de

forma estreita, com a segunda, estabelecendo-se, assim, uma rede de discursos transversos e

de pré-construídos, o que contribui, sobremaneira, para a orientação da construção de

sentidos, a partir da amplificação dos efeitos de sentido supostamente pretendidos.

A deterioração, o comprometimento da saúde e a morte constituem, pois, o fio

condutor traçado pela instância midiática na construção do objeto discursivo “espetáculo

político”, o qual, por sua vez, oferece elementos para a construção de outros objetos

discursivos, tais como “imagem de homem público”, “política”, “poder político” e “modelo

público de realidade”. Constrói-se, assim, o cenário do espanto, o qual é mobiliado por

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134 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

imagens visuais, construídas a partir da foto do Papa e da charge, a fim de que se instituam,

no território do imaginário, imagens sociais. Observa-se que, por meio do fio condutor

adotado pela mídia, produz-se o espetáculo, a partir da notabilidade conferida ao escândalo de

ordem política, que, nesse caso, apela para o drama tanto na esfera do trágico quanto na do

cômico. Por meio do emprego de normas específicas da produção do espetáculo, parece que

se tem por finalidade convidar o leitor a visitar o mundo contrafactual do terror. Uma leitura

mais aguçada da charge nos permite visitar esse mundo, no intuito de buscar conhecê-lo e,

assim, desvendar a especificidade do espetacular que aí reside.

Na charge em destaque, instauram-se duas instâncias enunciativas: En0 e En1. Em En0,

um sujeito-enunciador (E0) ativa uma enunciação (En0), por meio da afirmativa “Política é o

fim”, a qual aponta para os referentes “política”, “poder” e “imagem de homem público”,

qualificando-os. Regulada pela enunciação zero (En0), instaura-se outra enunciação (En1),

instituindo-se um novo enunciador (E1), que, assim como En0, organiza-a em função de seu

“aqui” e de seu “agora”. Instauram-se também outros dois enunciatários, (ET1) e (ET2), os

quais interagem, juntamente com ET0, que é também enunciatário em En1, com E1. Vê-se,

assim, que En0 é instaurada pela instância midiática, enquanto En1, pela instância política,

intermediada pela midiática. Embora En1 seja protagonista do espetáculo político que tem

como espectador ET0, ou seja, a instância cidadã, nota-se que o evento de natureza política

destacado não é espetacularizado por E0, mas transformado em espetáculo por E1. Isso se

constata por meio da observação do ambiente privado, e não público, no qual E0 interage, de

forma reservada, com (ET1) e (ET2) e ao qual E0 tem acesso como observador e, ainda, acerca

do qual ET0 é informado por E0.

A respeito desse aspecto, vale lembrar que, na crônica “A morte do grilo falante”,

disposta imediatamente após a charge, Clóvis Rossi diz que, em virtude da morte da

consciência crítica do PT, “Severino Cavalcanti diz em voz alta o que antes ele e muitíssimos

de seus pares diziam baixinho”. Deduz-se que E1, ET1 e ET2 adotam uma prática política

mesquinha e tradicional, “dizer baixinho”, em detrimento daquela por eles outrora adotada,

quando, no exercício da função de grilo falante, encontravam-se sempre “com a mão no

gatilho, pronto(s) para disparar a bala da crítica impiedosa”. Ou seja, E1 não expressa

publicamente, mas apenas com seus pares, o que E0 presencia e informa a ET0, tornando

público o evento por meio da espetacularização. Denuncia-se, assim, que E1, em contato com

o poder, tornou-se “farinha do mesmo saco”, o que é explorado na segunda crônica, “Eles se

merecem”. A partir do ângulo de observação de E0, aquilo que E1 deseja manter reservado à

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135 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

esfera do privado torna-se público e espetaculariza-se aos olhos de ET0, provocando a

paradoxal ilusão da distância próxima e do sempre possível flagrante do instante. E0 confere,

pois, existência social àquilo que E1 deseja manter no âmbito privado.

A fabricação do espetáculo se opera a partir dos recursos verbais mencionados,

associados a recursos imagéticos. Ambos os recursos constituem, pois, o dispositivo que ativa

domínios referenciais nos quais serão interpretados. No campo imagético, compõe-se um

cenário no qual são postas em cena imagens visuais, no intuito de que se instituam imagens

sociais a estas equivalentes. A partir de seu lugar de observação, E0 apresenta a E1 uma cena

privada do universo político, trazendo-a para a esfera do público. O emprego da palavra

“companheiros”, jargão do PT, associado ao emprego da estrela vermelha, símbolo do PT,

constituem dispositivos, respectivamente, lingüístico e imagético, que permitem a construção

da inferência de que a cena privada é composta por três representantes do Partido dos

Trabalhadores (PT). Ao fundo, através de vidraças que isolam o espaço interno do externo,

avista-se, à esquerda, o Congresso e, à direita, o Palácio da Alvorada, compondo-se, assim, a

Praça dos Três Poderes, o que nos permite inferir que se encontram muito próximos do poder

supremo. As vidraças, embora delimitem o espaço interno, permitindo isolá-lo do externo,

não impedem que se tenha acesso a este por intermédio da visão, provocando a impressão de

que um constitui a extensão do outro. Mesmo assim, os três parecem tão absortos em uma

conversa reservada que se mostram completamente alheios ao espaço exterior, colocando-se

de costas para este. Trajam terno e gravata, como todo homem público no exercício da

política. Além disso, apresentam feições físicas semelhantes àqueles que, já com idade

relativamente avançada, fizeram carreira na política. Apenas em um aspecto se distinguem

dos políticos tradicionais: têm uma estrela vermelha, cravada na gola do terno escuro e bem

talhado. Em meio ao ambiente sóbrio, em que predominam o preto e o azul claro acinzentado,

a estrela vermelha, símbolo do PT, embora pequena, se destaca. A cor vermelha se repete no

título da charge, “Política é o fim”, quebrando a monotonia da sobriedade das cores

selecionadas para compor o texto. A reiteração da cor vermelha, na estrela e no título,

associada à palavra “companheiros” funcionam como dispositivos responsáveis por fazer

disparar RM do domínio referencial que permitem interpretar, já em um primeiro momento,

que o PT tornou-se “farinha do mesmo saco” e assim criar disposição favorável à leitura dos

demais textos que compõem a 2ª página do jornal, segundo a orientação interpretativa que se

lhes busca atribuir.

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136 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

No título, a palavra “fim” constitui uma descrição definida, uma vez que é

determinada pelo artigo definido “o”, a qual tem por função descrever o referente “fim”, por

meio do qual se promove a construção do objeto discursivo política. A palavra “fim” permite

aqui ser compreendida como finalidade e como término. Compreendê-la como finalidade

exige que se recupere um pré-construído que tem origem na máxima de Maquiavel “os fins

justificam os meios”. No texto em questão, a finalidade é colocar em prática “o nosso projeto

de um país justo, honesto, limpo e transparente”, o meio, “o apoio incondicional de todas as

imundices”. A partir dessa compreensão, percebe-se que E0 critica a política mesquinha, da

defesa dos interesses próprios, da vaidade pessoal, ou seja, o poder pelo poder. A instauração

do paradoxo de se alcançarem justiça, honestidade, limpeza e transparência por meio da

imundice, evoca, de forma indireta, um outro pré-construído que provém de autores como

Max Weber (1979) que defendem que a política deve ser encarada como um instrumento para

se alcançar um único fim: o bem comum. A compreensão, por sua vez, da palavra “fim” como

término exige que se acesse um discurso anteriormente construído pela fala popular, que

expressa desencanto, decepção ou indignação, quando se constata o término de algo dotado de

valor positivo. Nesse caso, “fim” remete à morte, o fio condutor empregado pela mídia para

orientar a construção do objeto discursivo espetáculo. Nesse sentido, pode-se dizer que E0

denuncia a morte da política entendida como arte, como ciência do bem governar, pela

politicagem. E, ainda, por extensão, parece-nos possível poder dizer que esse enunciado

guarda outro pré-construído também de origem popular, ao se referir ao absurdo, ao

inaceitável, considerando-se o emprego de tal vocábulo em enunciados como, por exemplo,

“Isto é o fim da picada!”. Segundo essa orientação, infere-se que E0 manifesta sua indignação

em relação àquilo que presencia nos bastidores da prática política.

No enunciado proferido por E1, apresenta-se outra descrição definida: “o nosso projeto

de um país justo, honesto, limpo e transparente”, que se revela povoado de discursos

construídos nos primeiros tempos de criação do PT, por aqueles que o fundaram guiados por

ideais da esquerda política. Pode-se dizer ainda que tal enunciado se mostra povoado de

discursos construídos em um passado remoto pelos socialistas dos primeiros tempos, dos

quais provem boa parte dos discursos construídos à época do surgimento do PT, nos quais se

buscou inspiração para a construção, entretanto, de um projeto singular (“o nosso projeto”),

acalentado e defendido até a ascensão do partido ao poder. Se, como vimos, os enunciados

produzidos por E0 têm um teor de denúncia e indignação, aqueles que, segundo orientação de

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137 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

E0, são proferidos por E1 guardam a contradição e a incoerência, na coexistência de valores

antagônicos.

Como vimos, a charge em questão apresenta a seleção de elementos que compõem

dois grupos distintos na fabricação do espetáculo: de um lado, a política como instrumento

para se alcançar finalidades mesquinhas, de outro, a política como instrumento para se

alcançar o bem comum. A política mesquinha emerge como o ordinário, enquanto a outra,

como o extraordinário. Parece-nos, desse modo, poder dizer que o espetáculo é o fato de o PT

ter se tornado como os demais partidos, ou seja, “farinha do mesmo saco”, e não a prática da

politicagem. O espanto, o escândalo está, portanto, no fato de o PT adotar práticas que, antes

de conquistar o poder, abominava e combatia. Admite-se, na charge e nos textos que

compõem a página do jornal na qual esta se insere, que tais práticas são adotadas como rotina

pela classe política brasileira, no exercício de suas funções públicas. Sendo assim, tais

práticas são instituídas como a regra, ao passo que a não adoção destas, como a exceção. O

exercício da politicagem emerge como a ordem, enquanto o da política de fato, como a

subversão da ordem, ou seja, como o extraordinário.

É interessante ainda considerar, quanto a esse aspecto, que, já no título, anuncia-se

uma constatação: a politicagem generalizada tornou-se regra. Espetaculariza-se, desse modo,

o anúncio de uma nova ordem: a generalização da politicagem. Infere-se, assim, que, a partir

desse anúncio, o extraordinário passa a ser a prática não generalizada da politicagem e, mais

extraordinário, ainda, a prática generalizada da política de fato. A partir do deslocamento que

se observa entre o ordinário e o extraordinário, entre ordem e subversão, elementos do drama

compõem o objeto discursivo “espetáculo político”: o trágico e o grotesco se mesclam,

parecendo fazer emergir o trágico-cômico dotado de uma especial singularidade.

Cabe, por fim, ressaltar que essa construção do objeto discursivo “espetáculo político

midiatizado” em questão, ao oferecer elementos para a construção de outros objetos

discursivos, tais como “imagem de homem público”, “política”, “poder” e “modelo público de

realidade”, parece-nos acabar por também inseri-los, de alguma forma, no campo do

espetacular, também de modo singular.

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138 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

3.2.4 Considerações complementares

Dedicamos esta seção ao estudo de aspectos que consideramos contribuir para que se

apreenda o discurso como sistema, ou seja, em sua totalidade. Procuramos, desse modo,

revelar de que modo pretendemos, em nossas análises, lançar o nosso olhar em direção aos

corpora por nós selecionados, a fim de apreendê-los como discurso. Para tal, entendemos que

se faz necessário contemplar as condições em que esses textos foram produzidos, ou melhor,

os fatores que condicionaram a sua produção. A discussão acerca de alguns aspectos

concernentes ao poder parece-nos fundamental, uma vez que, em linhas gerais, como

faculdade ou possibilidade de realização e de ação, este emerge com grande força, mesmo que

de maneira distinta, no discurso que nomeamos de político. A compreensão do poder que

deste emana nos parece contribuir para o conhecimento e a compreensão, por exemplo, da

luta de Lula e do PT pela presidência da República. Parece-nos ainda contribuir para que se

compreenda não só a emergência, como também a produção do espetáculo como algo

estreitamente vinculado aos discursos hoje produzidos pela instância política. O estudo do

espetáculo como objeto discursivo, por sua vez, parece-nos auxiliar a compreensão acerca da

manifestação e circulação, na contemporaneidade, de tais discursos. Conseqüentemente, a

partir de um olhar privilegiado, parece-nos permitir estudar a construção de referentes tais

como “imagem de homem público” e “modelo público de realidade” e sua publicização,

segundo a perspectiva dessa instância. Sendo assim, a partir dos estudos realizados nesta

seção, sentimo-nos aptos a assumir, na terceira e última parte deste trabalho, o discurso, de

fato, como sistema.

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139 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

TERCEIRA PARTE

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140 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

4 CATEGORIAS E ANÁLISES

Propomos organizar esta parte do trabalho em três segmentos, desta forma: (i)

considerações acerca do evento Cerimônia de Posse da Presidência da República; (ii) análise

do discurso político-presidencial referente à posse do primeiro mandato, em 2003; (iii) análise

do discurso político-presidencial referente à posse do segundo mandato, em 2007.

No primeiro segmento, apresentaremos algumas considerações acerca do que constitui

o evento Cerimônia de Posse, segundo uma perspectiva discursiva orientada para a construção

em rede do espetáculo, a qual conduzirá as análises a serem desenvolvidas nesta parte do

trabalho.

Pretendemos analisar, no segundo segmento a construção do referente “espetáculo

político”, a partir do estudo dos pronunciamentos oficiais proferidos por Luiz Inácio Lula da

Silva, em 1º janeiro de 2003 e 1º janeiro de 2007, no Congresso Nacional, na Cerimônia de

Posse da Presidência da República.

As análises apresentadas nesta parte desenvolvem-se ordenadas a partir da aplicação

das seguintes categorias propostas pelos seguintes estudiosos:

(i) Benveniste: de pessoa e de tempo;

(ii) Ducrot: indicadores para referência;

(iii) Foucault: formação discursiva;

(iv) Maingueneau: interdiscurso;

(v) Berrendonner: gênero discursivo;

(vi) Reboul e Mondada: referenciação51

4.1 O evento Cerimônia de Posse da Presidência da República

.

A Cerimônia de Posse da Presidência da República, pelo simples fato de constituir um

ritual, é um evento regido por um sistema de fórmulas e práticas, que compõem um conjunto

de formalidades a serem cumpridas, na exteriorização do poder político, ou melhor, na

formalização pública do direito ao exercício de tal poder. Por ser um evento público notável e, 51 Esclarecemos que, na subseção (vi), sob o título “Reboul e Mondada: a construção referencial do espetáculo”, buscaremos mostrar que a construção do referente “espetáculo político” se realiza a partir da ocorrência concomitante e interativa de todas essas categorias.

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141 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

por essa razão, capaz de atrair a atenção e despertar o interesse e a admiração, tal evento

constitui, por si só, um espetáculo. A Cerimônia de Posse apresenta-se, portanto, como um

momento extraordinário da política.

Tal evento, dada à sua natureza complexa, compõe-se de inúmeras cenas. O

pronunciamento proferido pelo presidente - por meio do qual ele apresenta si próprio e suas

intenções e promessas à nação, no momento em que assume o poder legítimo que lhe cabe e

que por ela lhe foi outorgado - representa uma dessas cenas que compõem o espetáculo.

Servindo-se do aparato midiático na produção e divulgação da Cerimônia, a instância política,

protagonista do evento, busca, não raro, fazer com que o espectador adentre o campo

contrafactual de um conto de fadas, sendo assim enviado ao mundo do fantástico. O

pronunciamento, cena fundamental na construção do evento, compõe-se de elementos que, em

harmonia com os demais empregados na composição das outras cenas, corrobora, de forma

significativa, para que o espectador penetre o mundo do fantástico. Faz-se oportuno esclarecer

que o mesmo aparato midiático do qual se serve a instância política a fim de tornar público o

espetáculo político e fazer com que o espectador adentre o campo da grandeza e do

encantamento é responsável ou por reconstruir, sob a mesma orientação conferida pela

instância política, o espetáculo político midiatizado ou por produzi-lo nos domínios

avaliativos do trágico, do irônico e do cômico, a partir da desconstrução do espetáculo

político.

Na produção de cada cena, a partir do emprego de diferentes elementos de caráter

referencial, por intermédio dos quais são instituídas imagens visuais, o espectador é levado a

(re)produzir, em sua tela mental, sob uma ótica orientada, essas imagens, arquivando-as sob a

forma de representações. A partir destas, constroem-se interpretações, criam-se imagens

sociais. Esse processo se desenvolve na construção do objeto espetáculo e de outros

referentes, tais como, por exemplo, “modelo público de realidade”, os quais, por sua vez,

podem acabar por conter elementos próprios do espetacular.

Ao mesmo tempo em que, por exemplo, o texto proferido pelo presidente compõe uma

cena do espetáculo cerimônia, comporta outras cenas, as quais, diferentemente daquelas que

formam o espetáculo maior, projetam imagens que tanto podem enviar o espectador ao mundo

do belo e da grandeza, quanto do trágico. Desse modo, ele é levado a produzir imagens sociais

distintas que, não raro, são por ele contrapostas, sob a orientação do produtor das imagens

visuais que favorecem a criação das imagens sociais. A projeção de imagens que enviam o

espectador ao campo do trágico não têm, entretanto, a finalidade de fazer o espectador

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142 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

adentrar tal território e de nele permanecer, mas de contrapor o trágico ao belo, ao grandioso,

para que assim ele desfrute, com maior deleite, o momento mágico que se constrói. Busca-se,

assim, promover a intensificação e a amplificação do efeito do encanto.

Há, ainda, que se considerar que cada cena do evento e o próprio evento são

suscetíveis de se desdobrarem em outras cenas e em outros eventos que irão buscar produzir

ou não, simultaneamente ou em outro tempo e espaço, os mesmos efeitos de sentido

pretendidos pelo protagonista da Cerimônia. Dentre esses desdobramentos, encontra-se, com

freqüência, o espetacular, com orientação igual ou distinta do evento que lhe deu origem. A

própria mídia, da qual se serve a instância política na produção e divulgação do evento, é

responsável, sobremaneira, por esse inevitável desdobramento. Tendo à sua disposição todo

um aparato tecnológico e midiático e sabendo, como ninguém, dele tirar proveito, a mídia,

principalmente a televisiva, seguida de parte da impressa, ao fazer largo e privilegiado

emprego de recursos imagéticos, institui, de modo igualmente privilegiado, diferentes

imagens visuais. Tais imagens, ao serem projetadas na tela mental do espectador, levam-no,

também sob uma ótica orientada, a construir imagens sociais a estas correspondentes. O

espectador, submetido, nesse caso, à influência tanto da instância política quanto da midiática,

é levado, agora com dupla orientação imediata, a contrapor as imagens visuais construídas por

cada uma dessas instâncias, a fim de construir imagens sociais a estas correspondentes e,

conseqüentemente, significação para as mesmas, o que irá exercer influência na construção de

outros referentes.

Observa-se, assim, que, produto da instauração de uma sucessão, ou melhor, do

entrelaçamento de cenas, o espetáculo constitui um objeto discursivo de natureza referencial,

o qual se constrói a partir de diferentes discursos que se atravessam e de tantos outros

construídos em momentos, lugares, situações e formações discursivas distintas daquele que

os recebe. Além disso, o espetáculo é obrigatoriamente responsável pela geração de outros

textos, outros discursos, outros objetos discursivos, outros eventos e outros espetáculos.

Promove-se, dessa forma, a continuidade da infindável cadeia interdiscursiva que, a partir da

constituição de um contínuo processo referencial, alimenta-se, com voraz apetite, de discursos

transversos, pré-construídos, formações discursivas...

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143 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

4.2 Pronunciamento proferido por Lula na sessão solene de posse: 2003

4.2.1 Benveniste: categoria de pessoa e de tempo – posse 2003

Obedecendo a um conjunto de regras próprias do evento Cerimônia de Posse, a

instância enunciativa primitiva (En0) constrói a sua referência instituindo a relação “eu”/“tu”

em seu tempo (T0) e seu espaço (L0) discursivos próprios. Conforme previsível no gênero

pronunciamento oficial de posse, o locutor se institui como enunciador, formalmente, a partir

da instituição de vários enunciatários. Parece-nos possível, quanto a esse aspecto, dizer que,

além desses, o locutor, ao se instituir como enunciador, instaura outros enunciatários que, no

mundo empírico, remetem, a um só tempo, a duas categorias específicas de locutores, a

sociedade e o povo brasileiros, embora não explicite isso verbalmente, como se verifica no

seguinte excerto do pronunciamento: “[...] senhoras e senhores presentes a este ato de posse”.

Observa-se, inicialmente, que o pronome demonstrativo “este”, ao se vincular à expressão

“ato de posse”, aponta para o tempo e o espaço da enunciação. Entretanto o adjetivo

“presentes” parece não pressupor apenas a presença física dos interlocutores ao evento, uma

vez que este, por ter sido, por exemplo, televisionado, foi acompanhado, a distância, por um

número expressivo de cidadãos brasileiros. Parece, assim, que, a partir da instauração do

tempo e do espaço da enunciação, projetam-se um espaço e um tempo midiatizados.

Uma vez instaurada a enunciação fundadora e, portanto, instituída a relação “eu”/“tu”,

promove-se a construção do objeto discursivo “espetáculo político”, a partir da construção de

outro referente - “mudança” - o qual constitui a “não-pessoa” benvenistiana (“ele”). Observa-

se, assim, que, a partir da necessidade de o locutor e de o alocutário estabelecerem a

comunicação, ou seja, de co-referirem pelo discurso, constitui-se uma referência (R). A

apropriação da linguagem pelo locutor, a qual se processa a partir da constituição de uma

referência, manifesta-se a partir do emprego de vários elementos suscetíveis de marca, tais

como formas verbais, advérbios e pronomes demonstrativos, por meio dos quais a linguagem

converte-se em um discurso único. Tais signos dêiticos ou mostrativos se organizam

correlativamente aos indicadores de pessoa, remetendo para a instância de discurso

(aqui/agora). No pronunciamento em estudo, o locutor se apropria da linguagem, instaurando-

se como sujeito enunciador e, concomitantemente, instaurando os sujeitos enunciatários, a

partir do emprego dos seguintes indicadores de pessoa: o pronome pessoal “eu” e o pronome

pessoal “nós” e a variante deste “a gente”. Observa-se, assim, nesse processo de construção

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discursiva, um desdobramento enunciativo, uma vez que o locutor enuncia ora a partir da

perspectiva do “eu”, ora a partir da perspectiva do “nós”. Enquanto o “eu” caracteriza-se,

sobretudo, pela unicidade, considerando-se que, conforme defende Benveniste (1995: 278),

“cada eu tem sua referência própria e corresponde cada vez a um ser único, proposto como

tal”, o “nós” caracteriza-se por compreender “eu” mais “não-eu”.

Faz-se relevante ainda considerar que, no pronunciamento em estudo, o “eu”, embora

corresponda a um ser único, é assumido por um locutor que enuncia a partir de múltiplos

lugares discursivos52

(1) Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu Presidente da República: para mudar. Este foi o sentido de cada voto dado a mim e ao meu bravo companheiro José Alencar. E eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes de nós, para reafirmar os meus compromissos mais profundos e essenciais, para reiterar a todo cidadão e cidadã do meu país o significado de cada palavra dita na campanha [...]

, conforme se pode observar a partir dos elementos lingüísticos

destacados na seleção de excertos apresentada a seguir. Nos dois trechos apresentados abaixo,

observa-se a emergência do “eu-líder político partidário e sindical”, considerando-se que Lula

foi eleito presidente da República, graças aos compromissos publicamente por ele assumidos

ao longo de toda a sua trajetória como homem público. Tais trechos revelam, portanto, a

presença marcante do “eu-candidato”, em um momento em que se promove oficialmente a

transição entre o candidato e o presidente.

(2) Quero reafirmar aqui o meu compromisso com a produção, com os brasileiros e brasileiras, que querem trabalhar e viver dignamente do fruto do seu trabalho. Disse e repito: criar empregos será a minha obsessão.

No último período do último trecho, “Disse e repito: criar empregos será a minha obsessão”,

por exemplo, verifica-se, a partir dos tempos verbais empregados (pretérito, presente e

futuro), a forte manifestação do “eu-candidato”, algo próprio de pronunciamentos de posse,

uma vez que estes normalmente fixam suas bases no campo da promessa. Isso se se

considerar que: (i) o pretérito (“disse”) se refere a uma promessa de campanha feita pelo

locutor, no passado, na condição de candidato à presidência da República; (ii) o presente

(“repito”) reitera tal promessa, no momento da tomada de posse da presidência da República,

reafirmando assim o compromisso de cumpri-la; (iii) o futuro (“será”) situa o cumprimento da

promessa fora do tempo da enunciação, ou seja, remete a concretização da promessa a um

tempo a este posterior. Verifica-se, assim, que, a partir do tempo presente, o tempo da 52 Lugares discursivos dizem respeito a diferentes posturas enunciativas adotadas pelo locutor no momento em que este enuncia.

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enunciação, são referenciados outros tempos com este não coincidentes: o passado e o futuro,

os quais constituem atualizações do tempo lingüístico.

Já no trecho exposto a seguir, verifica-se a manifestação do “eu-presidente da

República”, indício da imperiosa necessidade de o locutor ocupar o espaço por ele recém-

conquistado de forma legítima. Vale, entretanto, chamar a atenção para o fato de que o “eu-

presidente” revela-se fortemente influenciado pelo “eu-candidato”, o que se nota a partir, por

exemplo, de atualizações do tempo da enunciação.

(3) Por isso, defini entre as prioridades de meu Governo um programa de segurança alimentar que leva o nome de Fome Zero. Como disse em meu primeiro pronunciamento após a eleição, se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida.

No seguinte trecho, por sua vez, manifesta-se um “eu-mítico”, protagonista de uma

saga heróica e singular, amplamente explorada ao longo de toda a trajetória política do

locutor.

(4) Quando olho a minha própria vida de retirante nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, que se tornou torneiro mecânico e líder sindical, que um dia fundou o Partido dos Trabalhadores e acreditou no que estava fazendo, que agora assume o posto de Supremo Mandatário da Nação, vejo e sei, com toda a clareza e com toda a convicção, que nós podemos muito mais.

No que diz respeito à instauração das diferentes instâncias do discurso, esse trecho

merece especial destaque. Observa-se que tal excerto se inicia por intermédio do emprego do

pronome “eu” que remete, unicamente, à instância do discurso do locutor. Imediatamente

após, emprega-se a 3ª pessoa do singular, a “não pessoa”, o “ele” benvenistiano, que aponta,

não para si mesma, mas para um objeto que se encontra fora da relação “eu/tu”. Recupera-se,

em seguida, o emprego do “eu” e, imediatamente após, o do “nós”. Por meio do emprego do

“eu”, o locutor se assume, a um só tempo, como protagonista do discurso e como observador,

espectador de sua própria história (“Quando olho a minha própria vida...”). O retirante

nordestino e o menino que se transformou ao longo do tempo constituem o “ele”, objeto que o

locutor observa e, a partir do qual, constrói-se como “eu”. O “eu” situa-se no espaço (“aqui”)

e no tempo (“agora”) discursivos, instituindo o “ele”, em outro tempo e espaço discursivos: o

“lá” e o “ontem”. Busca-se, assim, demarcar os limites entre o “aqui” e o “lá”, entre o “hoje”

e o “ontem”, entre o “eu” e o “ele” e, com isso, instaurar a passagem de Lula-companheiro

para Lula-presidente. A instauração dessa passagem se processa a partir da construção dos

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146 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

objetos discursivos “homem público” e “modelo público de realidade” sob a perspectiva do

espetacular.

O “eu-indivíduo”, aquele que traduz a emergência do ser humano, revela-se dotado de

um caráter marcado pela duplicidade: (i) ora manifesta o ser social que compartilha com os

seus iguais os mesmos anseios, as mesmas experiências; (ii) ora revela o ser em sua

particularidade, em sua intimidade, com seus anseios e experiências pessoais, conforme se

observa, respectivamente, nos dois seguintes trechos.

(5) Este é um país extraordinário. Da Amazônia ao Rio Grande do Sul, em meio a populações praieiras, sertanejas e ribeirinhas, o que vejo em todo lugar é um povo maduro, calejado e otimista. Um povo que não deixa nunca de ser novo e jovem, um povo que sabe o que é sofrer, mas sabe também o que é alegria, que confia em si mesmo, em suas próprias forças. Creio num futuro grandioso para o Brasil, porque a nossa alegria é maior do que a nossa dor, a nossa força é maior do que a nossa miséria, a nossa esperança é maior do que o nosso medo.

(6) Peço a Deus sabedoria para governar, discernimento para julgar, serenidade para administrar, coragem para decidir e um coração do tamanho do Brasil para me sentir unido a cada cidadão e cidadã deste país no dia-a-dia dos próximos quatro anos.

Constata-se que, enquanto, no primeiro trecho, o “eu” faz emergir a voz do senso

comum, destacando algumas características estereotipadas do povo brasileiro, as quais são,

portanto, consensualmente admitidas e compartilhadas, no segundo, o “eu” manifesta o ser em

sua intimidade, caracterizada por solidão, fragilidade, carência e insegurança. Mas se faz

oportuno chamar a atenção para o fato de que a estereotipia observada no primeiro trecho

também se observa no segundo. Isso parece encontrar explicações no fato de o apelo e a

submissão do ser humano a Deus serem admitidos pelo senso comum, como algo inerente ao

homem, em uma busca infindável de, por exemplo, suprir, compensar, explicar a sua solidão,

fragilidade, carência e insegurança. Pode-se assim dizer que aquilo que determina o caráter

duplo do “eu-indivíduo”, que ora manifesta o ser social, ora o ser em sua particularidade, é o

lugar discursivo a partir do qual este enuncia.

Diferentemente do “eu”, o “nós”, conforme explicitado anteriormente, compreende

“eu” mais “não-eu”. Enquanto o “eu”, parte invariavelmente constitutiva do “nós”, revela a

manifestação de um único locutor que tem a liberdade de enunciar a partir de múltiplos

lugares discursivos, o “nós” contém uma parte caracterizada pela unicidade, o “eu”, e outra,

pela variabilidade, o “não-eu”, o qual se caracteriza, por sua vez, pela inclusão ou pela

exclusão. O “nós-inclusivo” compreende, na sua composição, os dois sujeitos da enunciação

(“eu” + “tu”/“vós”), ao passo que o “nós-exclusivo” compreende o “eu” e a “não-pessoa”

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(“eu” + “ele”/“eles”), acerca da qual a relação “eu” / “tu” se estabelece. Constata-se ainda,

quando a instância da interlocução apresenta-se multifacetada, que o “nós-inclusivo” pode

também ser formado pela combinação do “eu” mais um determinado segmento específico do

“tu”, privilegiando, desse modo, um segmento da instância da interlocução em detrimento de

outros. Considerando-se a natureza da situação de comunicação que se estabelece a partir do

pronunciamento em estudo em que a instância da locução interage com uma ampla e

multifacetada instância da interlocução, observa-se que o “nós-inclusivo” manifesta-se,

portanto, compreendendo uma curiosa combinação. Também em função da natureza da

situação de comunicação em questão, pode-se dizer que o “nós-exclusivo”, na combinação

“eu” + “ele”/“eles”, não se manifesta no pronunciamento em estudo.

Faz-se oportuno salientar que o “eu”, parte constitutiva do “nós”, é que determina o

lugar discursivo a partir do qual a enunciação se estabelece. No pronunciamento em estudo,

nota-se, por exemplo, no trecho destacado a seguir, a emergência do “nós-inclusivo”, nas

combinações “eu-presidente” + “tu-equipe de governo” e “eu-indivíduo” + “tu-sociedade

brasileira/nação”, respectivamente: “Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios

agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam os nossos produtores, privando-os de suas

vantagens comparativas”. Observa-se, nesse caso, que a equipe de governo (“buscaremos”)

apresenta-se como um segmento, embora não prioritário, que compõe a instância de

interlocução, uma vez que participa do evento Cerimônia de Posse, no momento em que o

pronunciamento é proferido, mas não constitui o segmento central com o qual o locutor

interage. A sociedade brasileira/nação (“nossos produtores”) constitui, por sua vez, o

segmento central da instância de interlocução com o qual o locutor estabelece a interação. Ou

seja, a natureza da inclusão que caracteriza o “nós- inclusivo” apresenta características

particulares em cada uma das situações em que este se manifesta.

Neste outro trecho, manifesta-se o “nós-inclusivo” (“eu-presidente” / “eu-candidato” +

“tu-Partido dos Trabalhadores”/ “tu-equipe de governo”), em que tanto o “eu” quanto o “não-

eu” que o constituem revelam-se, conforme se observa, marcado pela duplicidade.

(7) Além do apoio da imensa maioria das organizações e dos movimentos sociais, contamos também com a adesão entusiasmada de milhões de brasileiros e brasileiras que querem participar dessa cruzada pela retomada pelo crescimento contra a fome, o desemprego e a desigualdade social. Trata-se de uma poderosa energia solidária que a nossa campanha despertou e que não podemos e não vamos desperdiçar. Uma energia ético-política extraordinária que nos empenharemos para que encontre canais de expressão em nosso Governo.

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148 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Constata-se, portanto, no que diz respeito à alternância de emprego entre a 1ª pessoa

do plural e a 1ª pessoa do singular que, se o pronome “eu” remete unicamente à instância do

próprio discurso do locutor, o mesmo não se observa com o emprego do pronome “nós”. A

partir desse emprego, o locutor passa a se pronunciar não apenas da perspectiva solitária e

individual do “eu”, mas da perspectiva do múltiplo, remetendo, assim, também a outras

instâncias, com algumas das quais interage de modo direto e com outras, indiretamente.

Vale ainda chamar a atenção para o fato de que o locutor, ao enunciar, seja a partir da

perspectiva do “eu” ou do “nós”, instaura, ora um alocutário mais restrito, como, por

exemplo, a sociedade brasileira, segundo se pode constatar no trecho “Se queremos

transformá-lo, a fim de vivermos em uma Nação em que todos possam andar de cabeça

erguida, teremos de exercer quotidianamente duas virtudes: a paciência e a perseverança”.

Ora um alocutário bem mais amplo, que congrega toda a sociedade brasileira e a comunidade

internacional, de acordo com o que se constata em “E acreditem, acreditem mesmo, não

pretendo desperdiçar essa oportunidade conquistada com a luta de muitos milhões de

brasileiros e brasileiras”. Verifica-se, ainda, que, diferentemente do que ocorre em todos os

demais trechos que compõem o pronunciamento em estudo, neste último trecho, o “eu”

institui o “tu”, buscando com este estabelecer uma interação mais próxima e mais direta.

No que diz respeito ao colocar a língua em funcionamento por parte do locutor, ou

seja, à instauração da enunciação, vale ainda chamar a atenção para o fato de que, a partir da

enunciação fundadora (En0), são instituídas outras enunciações e outros enunciadores. Isso se

observa, por exemplo, no trecho abaixo apresentado em que questões referentes à política

internacional são colocadas em evidência a partir da perspectiva de outro enunciador, por

intermédio do emprego do verbo na voz passiva.

As resoluções do Conselho de Segurança devem ser fielmente cumpridas. Crises

internacionais como a do Oriente Médio devem ser resolvidas por meios pacíficos e pela

negociação. Defenderemos um Conselho de Segurança reformado, representativo da realidade

contemporânea com países desenvolvidos e em desenvolvimento das várias regiões do mundo

entre os seus membros permanentes.

Neste outro trecho,

(8) A reforma agrária será feita em terras ociosas, nos milhões de hectares hoje disponíveis para a chegada de famílias e de sementes, que brotarão viçosas, com linhas de crédito e assistência técnica e científica. Faremos isso sem afetar de modo algum as terras que produzem, porque as terras produtivas se justificam por si mesmas e serão estimuladas a produzir

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149 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

sempre mais, a exemplo da gigantesca montanha de grãos que colhemos a cada ano.

conforme se observa em destaque, o tema reforma agrária é inicialmente adotado por outro

enunciador, instituído por E0, mas, imediatamente em seguida, é assumido por outra instância

(“nós”: “eu-presidente/candidato” + “ele-equipe de governo”).

Considerando-se ser este um pronunciamento de posse, é natural que o tempo

lingüístico sofra atualizações, referenciando, conforme vimos, tanto o passado, a fim de que

se recupere o “eu-candidato”, como também o futuro, por meio do qual se alude a ações a

serem implementadas pelo “eu-presidente” no exercício de seu mandato, que ora se inicia.

4.2.2 Ducrot: indicadores para referência – posse 2003

Neste pronunciamento, observa-se o emprego de vários indicadores para a referência,

os quais constituem condição indispensável para que se estabeleça a referência a objetos e,

portanto, para que se promova a construção discursiva destes. Alguns desses recursos, tais

como os demonstrativos, os dêiticos e os determinantes, constituem indicadores

imprescindíveis no que diz respeito, por exemplo, à remissão ao tempo e ao espaço e, no caso

específico do pronunciamento em estudo, à apresentação da temática adotada como central.

Verifica-se, por exemplo, no seguinte trecho, terceiro parágrafo do pronunciamento, logo após

o locutor se instituir como enunciador e, ao mesmo tempo, instaurar os enunciatários,

(1) "Mudança": esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições de outubro. A esperança, finalmente, venceu o medo e a sociedade brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos.

que “a mudança” é apresentada como o objeto discursivo central a ser, de forma

espetacularizada, construído em todo o texto. O pronome demonstrativo “esta”, embora

funcione, prioritariamente, nesse trecho, como um elemento de sustentação metalingüística ao

reportar à expressão palavra-chave, apresenta o objeto discursivo “mudança”,

desempenhando, a um só tempo, a função de demonstrativo, dêitico e determinante. Em sua

função de dêitico, o pronome “esta” aponta para a situação em que o texto é proferido e, por

conseguinte, para o tempo em que este é enunciado. Instaura-se, assim, o processo de

construção do objeto discursivo “mudança”, a partir do qual se constrói, por sua vez, o

referente “espetáculo político”. O objeto discursivo “mudança” se engendra, desse modo,

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150 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

como a grande mensagem, como a esperança que derrotou o medo, como a abertura de novos

caminhos. Dessa forma orientado, o locutor apresenta, portanto, nesse parágrafo, a temática

central de sua fala, a fim de apresentar a tônica de seu governo, nos próximos quatro anos.

No parágrafo imediatamente subseqüente a este, ou seja, no quarto parágrafo, o qual

marca a fase introdutória do desenvolvimento do pronunciamento,

(2) Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu Presidente da República: para mudar. Este foi o sentido de cada voto dado a mim e ao meu bravo companheiro José Alencar. E eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes de nós, para reafirmar os meus compromissos mais profundos e essenciais, para reiterar a todo cidadão e cidadã do meu país o significado de cada palavra dita na campanha, para imprimir à mudança um caráter de intensidade prática, para dizer que chegou a hora de transformar o Brasil naquela Nação com a qual a gente sempre sonhou: uma Nação soberana, digna, consciente da própria importância no cenário internacional e, ao mesmo tempo, capaz de abrigar, acolher e tratar com justiça todos os seus filhos.

também se observa que os demonstrativos/dêiticos/determinantes “este” e “isso” apontam

para o que constitui a temática central do pronunciamento - a mudança - mas de modo a

estabelecer condições favoráveis à construção dos referentes “mudança” e “espetáculo

político”, a qual se processa ao longo de todo o texto. Já, enquanto “aqui” aponta para o

espaço a partir do qual o locutor enuncia, “neste” remete ao momento em que se estabelece a

enunciação, aludindo, respectivamente, a um local e a um momento específicos: o Congresso

Nacional e o dia em que se realiza a cerimônia de posse de Luiz Inácio Lula da Silva como

presidente da República. A expressão “dia sonhado”, determinada pelo

demonstrativo/dêitico/determinante “neste”, parece conferir ao momento da enunciação uma

dimensão histórica mais ampla, considerando-se que, a partir da perspectiva do locutor, o

momento em que se efetiva, no campo do mundo vivido, a sua posse como presidente da

República fora realizado, durante longo período, no campo contrafactual dos sonhos. O

demonstrativo/dêitico/determinante “naquela”, que determina a expressão “Nação com a qual

a gente sempre sonhou”, reafirma essa idealização, uma vez que remete a um objeto

construído na esfera da contrafactualidade. A contraposição, no mesmo trecho, do factual ao

contrafactual favorece a interpretação de que aquilo que antes habitava o mundo do sonho

passa a habitar o mundo vivido, contribuindo para que se produza o efeito de

espetacularização na construção do objeto “mudança” e na de outros como “homem público”

e “modelo público de realidade”.

Conduzindo para o fechamento do pronunciamento, verifica-se o parágrafo “O que nós

estamos vivendo hoje, neste momento, meus companheiros e minhas companheiras, meus

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151 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

irmãos e minhas irmãs de todo o Brasil, pode ser resumido em poucas palavras: hoje é o dia

do reencontro do Brasil consigo mesmo”, no qual se empregam vários indicadores para a

referência, dentre os quais se destacam aqueles que remetem à ordem do tempo: “hoje”,

“neste momento”, “o dia do reencontro...”. Introduzindo o parágrafo, encontra-se o pronome

demonstrativo “o”, o qual aponta não só para o evento Cerimônia de Posse em si e, portanto,

para o “aqui” e o “agora” da enunciação, como também para um momento mais amplo, de

maiores implicações: um momento histórico. Um momento que, interpretado no âmbito do

espetacular, mostra-se destinado à eternidade. Verifica-se, assim, uma dupla dimensão do

tempo, uma dupla referência: uma objetiva, outra subjetiva. O referente “espetáculo político”

parece assim se construir a partir da amplificação da dimensão daquilo que se concebe como

pertencente à ordem do fantástico, do extraordinário.

Além desses indicadores, chamam a atenção, nesse trecho, os possessivos em

destaque: “meus companheiros”, “minhas companheiras” e “meus irmãos”, “minhas irmãs”,

os quais exercem a função de determinantes. O primeiro grupo faz referência àqueles que

apoiaram a candidatura Lula, que acompanharam e incentivaram a sua ascensão à presidência

da República; o outro grupo faz indistinta referência a todos os segmentos que compõem a

sociedade brasileira, o que revela, no pronunciamento em estudo, a forte e espontânea

manifestação da instância “Lula-candidato” (“meus companheiros”, “minhas companheiras”)

e a cuidadosa instauração da instância “Lula-presidente” (“meus irmãos”, “minhas irmãs”).

No que diz respeito ao emprego de descrições definidas, observa-se, por exemplo, que,

em (1), a palavra “mudança”, à qual o demonstrativo (“esta”) reporta, é referida, no enunciado

“‘Mudança’: esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas

eleições de outubro”, por duas descrições definidas: “a palavra-chave” e “a grande mensagem

da sociedade brasileira”. Em (1), são também apresentadas outras duas descrições definidas,

“a esperança” e o “medo”, a partir das quais se constrói o objeto discursivo central, por

intermédio do qual se engendra, por sua vez, a construção do referente “espetáculo político”.

Verifica-se que, nesse trecho, essas duas descrições definidas, decisivas na construção do

referente “mudança” e, por conseguinte, do referente “espetáculo político”, vinculam-se a

uma outra descrição definida, “a sociedade brasileira”, com a qual estabelecem uma estreita

relação de complementaridade. O emprego conjunto dessas três descrições definidas acaba

por instituir uma relação triangular potente no sentido de buscar fazer com que o interlocutor,

ao penetrar o domínio referencial capaz de lhe permitir interpretá-las de modo pertinente ao

enunciado no qual se inscrevem, associe-as de maneira privilegiada.

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152 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Nesse processo interpretativo, o interlocutor é provavelmente conduzido a se perceber

como o vértice dessa relação triangular estabelecida entre sociedade brasileira, medo e

esperança, o qual, ao se opor à base, emerge como responsável por unir os dois lados que,

juntamente com a base, formam o triângulo. Desse modo, a partir dessas três descrições

definidas, o interlocutor pode ser levado a se perceber como o ápice, como o ponto mais

elevado dessa relação, e, assim, sentir-se como protagonista da história principalmente recente

de seu país. Observa-se, assim, que, o emprego desses indicadores parece buscar criar no

interlocutor disposições favoráveis à construção do referente “mudança” e,

conseqüentemente, do referente “espetáculo político”. A tessitura do objeto discursivo

“mudança” exerce, portanto, nessa situação, o papel de fio condutor na edificação de outro

objeto discursivo: o espetáculo político. Mudança, o elemento central na produção do

espetáculo político em questão, perpassa todo o texto, sob variadas nuanças, disponibilizando

ao interlocutor elementos que contribuem para a construção, sob uma perspectiva

espetacularizada, de outros objetos discursivos tais como “homem público” e “modelo

público de realidade”.

As duas descrições definidas, “a esperança” e “o medo”, a partir das quais se engendra

a construção do referente “mudança” e, por conseguinte, do referente “espetáculo político”,

contêm um nominal cujo sentido é construído ao longo de todo o texto. Ou seja, o nominal

que constitui tais expressões não descreve completamente, por si só, o referente, uma vez que

isso se opera não só a partir do acionamento de conhecimentos anteriormente construídos em

outras situações comunicativas. Isso também se processa, paulatinamente, ao longo de todo o

texto, a partir da apresentação de outros elementos lingüístico-discursivos, os quais suscitam a

construção de outros conhecimentos que serão agregados àqueles construídos anteriormente.

Observa-se, por exemplo, neste trecho, que, a partir das descrições definidas em destaque,

busca-se traduzir a expressão “o medo” e, por contraposição indireta a esta, a expressão “a

esperança”, por meio da apresentação da síntese seletiva, segundo a ótica do locutor, dos

principais problemas brasileiros.

(3) Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome; diante do fracasso de uma cultura do individualismo, do egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das comunidades, diante das ameaças à soberania nacional, da precariedade avassaladora da segurança pública, do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens; diante do impasse econômico, social e moral do país, a sociedade brasileira escolheu mudar e começou, ela mesma, a promover a mudança necessária.

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153 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Sendo assim, o referente “mudança”, cuja construção se instaura na abertura do

pronunciamento, constitui, a partir da perspectiva do locutor, a substituição de um modelo

sócio, político e econômico apresentado como tradicional por outro modelo apresentado como

progressista, a qual se promete efetivar a partir da troca de governo que ora se institui.

Já neste outro trecho, a tradução das expressões “a esperança” e “o medo” se processa,

de forma direta, a partir da apresentação concomitante das descrições definidas destacadas.

(4) Este é um país extraordinário. Da Amazônia ao Rio Grande do Sul, em meio a populações praieiras, sertanejas e ribeirinhas, o que vejo em todo lugar é um povo maduro, calejado e otimista. Um povo que não deixa nunca de ser novo e jovem, um povo que sabe o que é sofrer, mas sabe também o que é alegria, que confia em si mesmo, em suas próprias forças. Creio num futuro grandioso para o Brasil, porque a nossa alegria é maior do que a nossa dor, a nossa força é maior do que a nossa miséria, a nossa esperança é maior do que o nosso medo.

Observa-se, assim, que essas duas expressões definidas, a partir das quais se constrói o

objeto discursivo “mudança” e, por conseguinte, o objeto discursivo “espetáculo político”, são

traduzidas, por sua vez, a partir de outras descrições definidas que remetem ora ao passado

(“o medo”), ora ao presente/futuro (“a esperança”). Nesse processo de construção referencial,

a espetacularização é adotada como estratégia privilegiada, de modo que as descrições

definidas que aludem, por exemplo, ao medo, ou seja, ao passado, remetam, ao mesmo tempo,

à esperança, ou seja, ao presente/futuro, conforme se observa no seguinte excerto na

apresentação da expressão definida “a fome”.

(5) O povo brasileiro, tanto em sua história mais antiga, quanto na mais recente, tem dado provas incontestáveis de sua grandeza e generosidade; provas de sua capacidade de mobilizar a energia nacional em grandes momentos cívicos; e eu desejo, antes de qualquer outra coisa, convocar o meu povo, justamente para um grande mutirão cívico, para um mutirão nacional contra a fome.

Verifica-se que, nesse excerto, a fome emerge não só como grave problema social, de

significativas proporções, não equacionado por administrações anteriores, mas também como

causa social especialmente abraçada pelo novo governo. Vê-se, dessa forma, que a construção

do referente “medo” se engendra, neste pronunciamento, a serviço da construção dos

referentes “esperança”, “mudança” e “espetáculo político”.

A reforma agrária, bandeira político-social do PT, é introduzida, no seguinte

parágrafo, em vinculação direta com o tema combate à fome: “Para isso, será também

imprescindível fazer uma reforma agrária pacífica, organizada e planejada”. Verifica-se,

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154 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

nesse enunciado, o emprego em destaque de uma expressão que, embora introduzida por

artigo indefinido, remete, por associação, à reforma agrária ideal. A associação que permite

essa remissão se estabelece entre a reforma agrária que se conhece, isto é, a que se tentou

realizar em governos anteriores e a reforma agrária que o novo presidente promete realizar no

exercício de seu mandato. Sendo assim, a expressão em destaque parece naturalmente ativar o

seu oposto, ou seja, a expressão “uma reforma agrária pacífica, organizada e planejada”

parece recuperar, por associação, a expressão “uma reforma agrária em ambiente de conflito,

desorganização e falta de planejamento”. Mas essa contraposição, ao invés de permitir a

construção de dois referentes, permite que se construam dois sentidos para o mesmo referente:

a reforma agrária pode ser pacífica, organizada e planejada ou o contrário disso. Uma vez

definida, nos trechos anteriores, a reforma agrária que se deseja instituir no novo governo,

esta passa a ser referida por meio da descrição definida “a reforma agrária”, no trecho: “A

reforma agrária será feita em terras ociosas, nos milhões de hectares hoje disponíveis para a

chegada de famílias e de sementes, que brotarão viçosas, com linhas de crédito e assistência

técnica e científica”. Pressupõe-se, assim, que a reforma agrária defendida pelo PT é agora

conhecida. Mais uma vez, portanto, estabelece-se uma contraposição entre o medo e a

esperança, por meio da qual o referente “medo” se constrói a serviço do referente

“esperança”, a fim de que se construam, a um só tempo, os referentes “mudança” e

“espetáculo político”.

Na construção do objeto discursivo “mudança”, que se engendra na esfera do social,

assume fundamental importância a mudança pessoal apresentada no seguinte parágrafo, um

dos últimos do pronunciamento.

(6) Cada um de nós, brasileiros, sabe que o que fizemos até hoje não foi pouco, mas sabe também que podemos fazer muito mais. Quando olho a minha própria vida de retirante nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, que se tornou torneiro mecânico e líder sindical, que um dia fundou o Partido dos Trabalhadores e acreditou no que estava fazendo, que agora assume o posto de Supremo Mandatário da Nação, vejo e sei, com toda a clareza e com toda a convicção, que nós podemos muito mais.

A partir da apresentação da descrição definida “a minha própria vida de retirante

nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos [...]” são postas em

evidência três etapas de vida do locutor: retirante/menino; torneiro mecânico/líder sindical e

presidente da República, a fim de que o interlocutor se identifique com a mudança ora

proposta e, assim, assuma-a com disposição e confiança.

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155 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Observa-se, assim, que, neste pronunciamento, a mudança constitui o objeto

discursivo central, o qual se constrói, de forma espetacularizada, a partir da apresentação das

descrições definidas “o medo” e “a esperança”, por intermédio das quais são apresentadas

inúmeras outras que remetem ora ao passado, ora ao presente/futuro. Na construção do

referente “mudança” e, por conseguinte, do referente “espetáculo político”, o que se processa

por intermédio do emprego de vários indicadores para a referência, verifica-se que tudo

converge para a idéia de uma metamorfose em que, invariavelmente, o medo cede espaço à

esperança.

4.2.3 Foucault: formação discursiva – posse 2003

Ao assumir, pela primeira vez, a presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva

adota, conforme vimos, como temática central de seu pronunciamento de posse, a mudança, a

qual representa, na situação comunicativa em questão, segundo a ótica da instância da

produção, a substituição do velho pelo novo, do conservadorismo pela vanguarda.

Considerando-se que essa é uma temática recorrente em, não raro, todo e qualquer discurso

político-eleitoral, pode-se dizer que, no pronunciamento em análise, manifestam-se formações

discursivas político-eleitorais, que se revelam, a um só tempo, marcadas, sobretudo, pela

crítica e pela promessa. Isto porque, em campanhas eleitorais, a crítica aponta a necessidade

de mudança de governo enquanto a promessa de mudança de ações revela-se, habitualmente,

como uma estratégia de conquista de credibilidade na captação de voto. A crítica e,

principalmente, a promessa, manifestam-se também no momento em que formalmente toma

posse do poder um novo governante, a fim de que se busque instituir um ambiente favorável à

necessária governabilidade. Em qualquer uma dessas duas situações, especialmente a

promessa de mudança de políticas de gestão exibe-se como uma característica marcante, uma

vez que parece justificar, de modo satisfatório, a mudança de governante normalmente

proposta em campanhas eleitorais ou de plano de governo comumente apresentado em início

de um novo mandato.

No texto em estudo, caracterizado pela crítica e pela promessa, manifestam-se

formações discursivas tanto tradicional-conservadoras, quanto progressista-inovadoras. As

formações discursivas de caráter conservador se manifestam, não raro, a partir, por exemplo,

da apresentação de problemas sociais crônicos que afligem a sociedade brasileira, tais como

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156 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

desemprego, fome e segurança, associada à manifestação do compromisso de equacioná-los,

sem, entretanto, que se apresentem, para tais problemas, propostas de solução efetivamente

inovadoras, o que constitui estratégia adotada, de modo recorrente, em pronunciamentos

político-eleitorais e de posse. A partir da emergência de tais formações discursivas, manifesta-

se, portanto, postura político-partidária prototípica diante dos fatos e do mundo, isto é, postura

há muito adotada por toda e qualquer orientação político-partidária. O trecho apresentado a

seguir exemplifica bem isso.

(1) Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome; diante do fracasso de uma cultura do individualismo, do egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das comunidades, diante das ameaças à soberania nacional, da precariedade avassaladora da segurança pública, do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens; diante do impasse econômico, social e moral do país, a sociedade brasileira escolheu mudar e começou, ela mesma, a promover a mudança necessária.

Já em (2), verifica-se, a um só tempo, a adoção de estratégias lingüístico-discursivas

tradicionais de promessa de mudança e a adoção de uma postura vanguardista em relação aos

fatos sócio-políticos e econômicos vigentes e, portanto, a manifestação respectiva de

formações discursivas tradicional-conservadoras e progressistas. Se, por um lado, o locutor

adota a mesma estratégia praticada por todo e qualquer político, em campanha eleitoral ou ao

tomar posse do poder, de se apresentar como um agente de mudança, em atendimento a

demandas sociais, por outro lado, assume uma postura diferenciada destes em relação a

algumas dessas demandas. Observa-se, em (2), que o locutor faz remissão aos compromissos

assumidos em seu passado político, quando defendia o rompimento do status quo, no que diz

respeito, por exemplo, à soberania nacional, o qual se traduz, dentre outros aspectos, em não

submissão econômica do Brasil às regras impostas pelas nações desenvolvidas. Parece-nos

possível poder dizer que, no pronunciamento em estudo, esse posicionamento revela a

manifestação de formações discursivas progressistas, considerando-se que a defesa de tal

rompimento nunca foi defendida, no Brasil, por forças políticas tradicionalmente rotuladas de

conservadoras.

(2) Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu Presidente da República: para mudar. Este foi o sentido de cada voto dado a mim e ao meu bravo companheiro José Alencar. E eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes de nós, para reafirmar os meus compromissos mais profundos e essenciais, para reiterar a todo cidadão e cidadã do meu país o significado de cada palavra dita na campanha, para imprimir à mudança um caráter de intensidade prática, para dizer que chegou a hora de transformar o Brasil naquela Nação com a qual a gente sempre sonhou: uma Nação soberana,

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157 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

digna, consciente da própria importância no cenário internacional e, ao mesmo tempo, capaz de abrigar, acolher e tratar com justiça todos os seus filhos.

A partir dessa concomitante manifestação de formações discursivas tradicional-

conservadoras e progressistas, constata-se que, se, por um lado, atende-se a uma manutenção

da ordem, por outro lado, apresenta-se uma proposta de quebra da ordem, o que comumente

traduz a busca de atendimento a duas necessidades humanas distintas, mas complementares: a

necessidade de segurança/estabilidade e a necessidade de inovação.

A exploração da temática “mudança” se apresenta, no pronunciamento em análise,

conforme ilustram os dois trechos acima destacados, a partir do par medo/esperança, o qual

sintetiza o embate entre dois grupos de forças antagônicos, mas curiosamente

complementares: um tradicional e conservador, outro progressista e inovador. Esses dois

grupos de força se revelam complementares, pois, ao mesmo tempo em que o medo se

apresenta, nessa situação de comunicação específica, a serviço da esperança, ou seja, é

explorado de forma a valorizar as promessas feitas pelo locutor, a esperança, em

contraposição ao medo, amplifica os aspectos negativos deste e, conseqüentemente, institui a

necessidade premente de mudança. Vê-se, assim, que as formações discursivas que se

manifestam, de forma marcante, neste pronunciamento, caracterizam-se, portanto, a um só

tempo, pelo caráter conservador e pelo caráter progressista. Quanto a esse aspecto, observa-

se ainda que as formações discursivas rotuladas de progressista-inovadoras que emergem no

pronunciamento em estudo, embora traduzam uma postura vanguardista em relação ao

modelo sócio-político e econômico vigente, parecem se revelar, paradoxalmente, em sua

generalidade, também dotadas de um caráter marcadamente tradicional e conservador. Isso

parece encontrar explicações no fato de que, em pronunciamentos de posse, estabelece-se,

naturalmente, uma contraposição entre o passado, que representa o velho, e o presente/futuro,

representação do novo e, portanto, entre o que não mais se quer e o que se escolheu em

substituição ao velho. Ou seja, entre o medo e a esperança. Parece-nos possível, portanto,

poder dizer que o par esperança/medo, amplamente explorado neste pronunciamento,

manifesta-se, comumente, embora sob “roupagens” distintas, em pronunciamentos oficiais de

posse.

Verifica-se ainda que emergem, neste pronunciamento, formações discursivas de

natureza tradicional-conservadora próprias da classe política tradicional, pois se constata a

adoção, por parte da instância da locução, de uma postura continuísta em relação ao modelo

de gestão política tradicionalmente adotado no Brasil. Ou seja, em relação à forma de fazer

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158 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

política no Brasil, a qual prevê, freqüentemente, a adoção de uma estratégia que tem por

finalidade garantir a governabilidade - o elogio à nação seguido de apelo ao sacrifício desta –

e, portanto, de uma postura conservadora diante dos problemas de natureza sócio-política e

econômica a serem enfrentados. No pronunciamento em estudo, a emergência de tais

formações discursivas revela, ainda, a necessidade do estabelecimento de condições

favoráveis à instauração do novo governo, o que se observa a partir da preocupação em conter

a ansiedade popular no que diz respeito à mudança ampla e exaustivamente prometida.

No seguinte excerto, por exemplo,

(3) O Brasil é um país imenso, um continente de alta complexidade humana, ecológica e social, com quase 175 milhões de habitantes. Não podemos deixá-lo seguir à deriva, ao sabor dos ventos, carente de um verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional e de um planejamento, de fato, estratégico. Se queremos transformá-lo, a fim de vivermos em uma Nação em que todos possam andar de cabeça erguida, teremos de exercer quotidianamente duas virtudes: a paciência e a perseverança.

primeiramente, destacam-se atributos positivos do Brasil; em seguida, alerta-se sobre o perigo

de não se adotar “um projeto de desenvolvimento nacional e de um planejamento, de fato,

estratégico”, ou seja, de não se promover a mudança do projeto/planejamento adotado até

então; por último, convoca-se a sociedade brasileira ao sacrifício. Sacrifício este que se traduz

em aguardar, com paciência e perseverança, a mudança tão alardeada e esperada, ou seja, em

controlar a ansiedade e o desejo de mudar. Vale aqui lembrar que o sacrifício tem sido, ao

longo da história, habitualmente solicitado ao povo brasileiro pelos detentores tradicionais do

poder, especialmente quando medidas impopulares são anunciadas, na tentativa de se

equacionarem problemas principalmente de ordem econômica. Na situação em questão, a

manifestação de tais formações discursivas, cuja finalidade parece ser a manutenção do status

quo vigente, revela-se a partir do emprego de estratégias lingüístico-discursivas que seguem

esta ordem: a apresentação de um elogio (“O Brasil é um país imenso, um continente de alta

complexidade humana, ecológica e social, com quase 175 milhões de habitantes”), seguida da

apresentação de um alerta (“Não podemos deixá-lo seguir à deriva, ao sabor dos ventos,

carente de um verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional e de um planejamento, de fato,

estratégico”) e, por fim, de uma convocação (“Se queremos transformá-lo, a fim de vivermos

em uma Nação em que todos possam andar de cabeça erguida, teremos de exercer

quotidianamente duas virtudes: a paciência e a perseverança”). O elogio revela, por sua vez, a

emergência de formações discursivas ufanistas, as quais também compõem o grupo das

formações discursivas tradicional-conservadoras e, habitualmente, manifestam-se em

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159 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

contraponto àquelas da ordem do sacrifício, a fim de que o sacrifício imposto não pareça

penoso. Busca-se, a partir da exaltação dos atributos humanos e físicos da nação, criar

condições de aceitação e acolhida para aquilo que é alertado e para a convocação que é feita.

Observa-se, assim, uma mudança de postura do candidato que inflamava o povo com

propostas de mudança imediata, incitando-o a conferir um novo rumo à história do país, ao

presidente empossado que, uma vez assumindo a condução do país, já não mais incita à

mudança, mas busca conter a ansiedade social. Constata-se, desse modo, a manifestação de

formações discursivas próprias de dirigentes de uma nação que, diferentemente do candidato

que apenas promete, encontram-se na posição de, com cuidado, sinalizar que o cumprimento

das promessas feitas não é imediato.

Mas, tendo em vista que o pronunciamento de posse registra a transição do candidato

ao dirigente, verifica-se, ao longo do proferimento em análise, que, ao mesmo tempo em que

neste emergem formações discursivas próprias dos dirigentes de uma nação, conforme

observado em (3), manifestam-se, paralelamente a estas, formações discursivas próprias dos

candidatos a cargos políticos eletivos. Isto se se considerar que, no discurso político-eleitoral,

as gestões anteriores são freqüentemente alvo de críticas, o que pode ser constatado no trecho:

“[...] carente de um verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional e de um planejamento, de

fato, estratégico [...]”. Vale, entretanto, ressaltar que, embora tal característica revele-se de

forma mais acentuada no discurso político-eleitoral, esta acaba por caracterizar diferentes

instâncias do discurso político, tendo em vista que o estabelecimento de campos de força

adversários constitui um atributo marcante do ambiente político. Manifestam-se, pois, neste

pronunciamento, formações discursivas próprias do campo de forças político, principalmente

em situações nas quais a disputa e o antagonismo emergem de forma mais contundente. Vale

notar que estas também compõem o grupo das formações discursivas tradicional-

conservadoras, tendo em vista que, tradicionalmente, têm se manifestado em discursos de

natureza política.

Mas, no seguinte excerto, apresentado, no pronunciamento em estudo, imediatamente

após o destacado acima,

(4) Teremos que manter sob controle as nossas muitas e legítimas ansiedades sociais, para que elas possam ser atendidas no ritmo adequado e no momento justo; teremos que pisar na estrada com os olhos abertos e caminhar com os passos pensados, precisos e sólidos, pelo simples motivo de que ninguém pode colher os frutos antes de plantar as árvores. Mas começaremos a mudar já, pois como diz a sabedoria popular, uma longa caminhada começa pelos primeiros passos.

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160 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

o sacrifício solicitado é abrandado pela apresentação de promessa de mudança, embora

cautelosa, imediata. A promessa, nesse trecho, é apresentada a partir de metáforas de fácil

compreensão e de largo conhecimento do senso comum, as quais traduzem o que se nomeia

de sabedoria popular: “ninguém pode colher os frutos antes de plantar as árvores”, “uma

longa caminhada começa pelos primeiros passos”. Considerando-se que tais metáforas são há

muito aceitas e aplicadas pelo senso comum na compreensão e no enfrentamento de situações

rotineiras da vida de todo e qualquer ser humano, acabam por suscitar a emergência de

formações discursivas também tradicional-conservadoras. Essas imagens metafóricas

traduzem, portanto, uma forma consensual e socialmente admitida de serem concebidas e

enfrentadas determinadas situações comuns à vida de todo e qualquer ser humano e reforçam,

no texto em estudo, o apelo à paciência e à persistência, ou seja, ao sacrifício. Tendo em vista,

entretanto, que tais imagens metafóricas são empregadas em um pronunciamento oficial de

posse à presidência da República, o que foge ao esperado nesse gênero, estas acabam por

conferir a tal espécie de texto um caráter inovador.

Formações discursivas de caráter tradicional-conservador também se manifestam na

apresentação da temática “combate à fome”, conforme se observa no último período do

parágrafo dedicado à exploração dessa temática - “Em face do clamor dos que padecem o

flagelo da fome, deve prevalecer o imperativo ético de somar forças, capacidades e

instrumentos para defender o que é mais sagrado: a dignidade humana” - o qual se mostra

marcado de elementos de cunho religioso. Tendo em vista o processo a que se tem nomeado

de “homogeneização das propostas político-eleitorais”, pode-se dizer que tais elementos

provêm de todo e qualquer discurso político-eleitoral. Sendo assim, observa-se, também nesse

trecho, a manifestação de formações discursivas tradicional-conservadoras, a partir de

elementos que remetem, a um só tempo, ao campo do sagrado e ao do político-eleitoral

tradicional.

Em complemento à apresentação da temática “combate à fome”, explora-se a temática

“reforma agrária”, a qual sempre constituiu uma das principais bandeiras político-sociais não

só do PT, como da esquerda política. O trecho “Para isso, será também imprescindível fazer

uma reforma agrária pacífica, organizada e planejada” introduz tal temática, relacionando, de

forma estreita, o combate à fome à realização da reforma agrária. Dedica-se à exploração da

temática “reforma agrária” cinco parágrafos, o que revela o cuidado de se privilegiar aquilo

que constitui uma das maiores causas abraçadas pelo locutor. Embora se constate a larga

atenção dedicada à exploração desse tema, o que sugere a emergência de formações

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161 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

discursivas progressistas, o modo como esta é apresentada parece, ao contrário, denunciar a

manifestação de formações discursivas de natureza tradicional-conservadoras, conforme se

verifica nos seguintes trechos.

(5) Para que o homem do campo recupere sua dignidade sabendo que, ao se levantar com o nascer do sol, cada movimento de sua enxada ou do seu trator irá contribuir para o bem-estar dos brasileiros do campo e da cidade, vamos incrementar também a agricultura familiar, o cooperativismo, as formas de economia solidária. Elas são perfeitamente compatíveis com o nosso vigoroso apoio à pecuária e à agricultura empresarial, à agroindústria e ao agronegócio; são, na verdade, complementares tanto na dimensão econômica quanto social. Temos de nos orgulhar de todos esses bens que produzimos e comercializamos. A reforma agrária será feita em terras ociosas, nos milhões de hectares hoje disponíveis para a chegada de famílias e de sementes, que brotarão viçosas, com linhas de crédito e assistência técnica e científica. Faremos isso sem afetar de modo algum as terras que produzem, porque as terras produtivas se justificam por si mesmas e serão estimuladas a produzir sempre mais, a exemplo da gigantesca montanha de grãos que colhemos a cada ano.

No segundo período que compõe o primeiro parágrafo acima destacado, observa-se

uma cuidadosa preocupação em justificar as medidas a serem adotadas na implementação da

reforma agrária, ressaltando-se os ganhos que advirão dessa adoção, primeiramente, no

âmbito econômico, seguido do social (“[...] são, na verdade, complementares tanto na

dimensão econômica quanto social.”). O segundo parágrafo acima em destaque revela, por

sua vez, excessiva preocupação em deixar claro que a reforma agrária será feita em terras

ociosas (“Faremos isso sem afetar de modo algum as terras que produzem [...]”). Observa-se,

desse modo, um cuidado em tranqüilizar determinado segmento da instância de interlocução,

composto, por exemplo, por latifundiários e empresários, que temem a reforma agrária

defendida pela esquerda política. Constata-se, assim, que, em resposta a uma formação

discursiva político-econômica reacionária manifesta-se uma formação discursiva de caráter

político-ideológico conciliador, e não uma formação discursiva de caráter político-ideológico

de esquerda. Nota-se, desse modo, criteriosa cautela em conciliar interesses de segmentos

sociais distintos, buscando-se destacar, por exemplo, os ganhos econômicos que

possivelmente resultarão da implementação da reforma agrária, o que revela atenção especial

em atender a interesses de segmentos privilegiados da sociedade. Revela-se, portanto, a partir

de criteriosa apresentação de uma das maiores causas político-sociais da esquerda política, a

dificuldade de atender a compromissos historicamente assumidos, sem contrariar significativo

segmento social detentor de poder econômico e, por conseguinte, de força política.

Evidencia-se, assim, a emergência de formações discursivas de caráter marcadamente

tradicional-conservador, considerando-se que, em sua maioria, as forças políticas que, até

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162 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

então, detiveram o poder no Brasil sempre se mostraram comprometidas com os segmentos

privilegiados da sociedade. E, por isso, sempre revelaram criteriosa cautela no atendimento a

demandas das classes menos favorecidas, conforme se verifica, por exemplo, em (5).

No seguinte excerto,

(6) Por tudo isso, acredito no pacto social. Com esse mesmo espírito constituí o meu ministério com alguns dos melhores líderes de cada segmento econômico e social brasileiro. Trabalharemos em equipe, sem personalismo, pelo bem do Brasil e vamos adotar um novo estilo de Governo, com absoluta transparência e permanente estímulo à participação popular.

embora também se manifestem formações discursivas de caráter progressista em

contraposição a formações discursivas de caráter tradicional-conservador, tal contraposição

parece “ocultar” a manifestação primaz de formações discursivas de cunho tradicional-

conservador. Ao mesmo tempo em que se propõe algo inovador, ou seja, “um novo estilo de

governo”, a partir da adoção de um pacto social e de estímulo à participação popular, confere-

se primazia ao econômico sobre o social, o que acaba por caracterizar “o velho estilo de

governo” acima mencionado, segundo se verifica neste segmento: “Com esse mesmo espírito

constituí o meu ministério com alguns dos melhores líderes de cada segmento econômico e

social brasileiro”. Confere-se, desse modo, prioridade ao econômico sobre o social, o que

constitui conduta tradicionalmente há muito adotada no âmbito da política no Brasil. Revela-

se, assim, na situação de comunicação em estudo, a emergência de formações discursivas

tradicional-conservadoras, as quais se apresentam escamoteadas pela promessa de adoção de

um pacto social e de estímulo à participação popular e, portanto, pela manifestação, à primeira

vista, de formações discursivas de caráter progressista.

Já neste trecho,

(7) As negociações comerciais são hoje de importância vital. Em relação à Alca, nos entendimentos entre o Mercosul e a União Européia, na Organização Mundial do Comércio, o Brasil combaterá o protecionismo, lutará pela eliminação e tratará de obter regras mais justas e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento. Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam os nossos produtores, privando-os de suas vantagens comparativas. Com igual empenho, esforçar-nos-emos para remover os injustificáveis obstáculos às exportações de produtos industriais. Essencial em todos esses foros é preservar os espaços de flexibilidade para nossas políticas de desenvolvimento nos campos social e regional, de meio ambiente, agrícola, industrial e tecnológico. Não perderemos de vista que o ser humano é o destinatário último do resultado das negociações. De pouco valerá participarmos de esforço tão amplo e em tantas frentes se daí não decorrerem benefícios diretos para o nosso povo. Estaremos atentos também para que essas negociações, que hoje em dia vão muito além de meras reduções tarifárias e englobam um amplo espectro normativo, não criem

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restrições inaceitáveis ao direito soberano do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento.

vê-se que, na apresentação do tema negociações comerciais internacionais, manifesta-se

formação discursiva de caráter político-ideológico (ou social) em contraposição a uma

formação discursiva político-econômica. Em resposta às nações desenvolvidas que

estabelecem as regras das relações econômicas internacionais, conforme se verifica, por

exemplo, no segmento “Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios agrícolas dos países

desenvolvidos que prejudicam os nossos produtores, privando-os de suas vantagens

comparativas”, confere-se primazia ao aspecto social, uma vez que “o ser humano [apresenta-

se como] o destinatário último do resultado das negociações” e defende-se “o direito soberano

do povo brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento”. Se se considerar que, no

Brasil, as forças políticas detentoras tradicionalmente do poder adotaram, ao gerir o país, uma

postura marcadamente político-econômica em detrimento de uma postura político-social,

pode-se dizer que, nesse trecho, manifestam-se formações discursivas de caráter progressista

em contraposição a formações discursivas de caráter tradicional-conservador, pois o

econômico se apresenta, mais uma vez, sobreposto ao social.

Entretanto, neste excerto,

(8) Sim, temos uma mensagem a dar ao mundo: temos de colocar nosso projeto nacional democraticamente em diálogo aberto como as demais nações do planeta, porque nós somos o novo, somos a novidade de uma civilização que se desenhou sem temor, porque se desenhou no corpo, na alma e no coração do povo, muitas vezes, à revelia das elites, das instituições e até mesmo do Estado.

parece se observar, à primeira vista, a emergência conflituosa de formações discursivas de

caráter distinto e, até mesmo, antagônico, considerando-se que, ao mesmo tempo em que se

valoriza, no estabelecimento de relações internacionais, a adoção de uma postura democrática,

a instauração de um diálogo aberto, admite-se, no estabelecimento de relações internas, a

ausência de diálogo, o embate entre forças sociais distintas, a dificuldade de se instituir, de

fato, a democracia. Parece-nos possível poder dizer que, de um lado, o apelo à democracia

revela a emergência de formações discursivas de cunho progressista se se considerar que a

democracia constitui um sonho social historicamente defendido por forças políticas e

populares concebidas como progressistas, uma vez que estas propõem a mudança do status

quo, tradicionalmente caracterizado pelo desequilíbrio entre forças sociais. No trecho “temos

de colocar nosso projeto nacional democraticamente em diálogo aberto com as demais nações

do planeta”, o locutor propõe a democracia nas relações internacionais, o que representa o

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rompimento de uma ordem há muito estabelecida, segundo a qual as nações mais ricas detêm

o controle dessas relações. Por outro lado, a referência às “elites”, às “instituições” e ao

“Estado” acaba por revelar a manifestação de formações discursivas de caráter tradicional-

conservador tendo em vista que essas expressões remetem, nesse caso, a forças sociais que,

historicamente, contribuíram para que a democracia fosse apenas um sonho social. Constata-

se, desse modo, a aparente manifestação concomitante e contrastante de formações

discursivas progressistas, no que diz respeito às relações externas, e tradicional-

conservadoras, às relações internas. Parece-nos, entretanto, possível poder dizer que essa

emergência conflituosa de formações discursivas de caráter distinto é apenas aparente,

considerando-se que, tradicionalmente, a democracia tem sido, no plano do discurso,

defendida por toda e qualquer orientação política, objetivando-se alcançar distintos objetivos

político-ideológicos. Denuncia-se, assim, no pronunciamento em análise, a manifestação do

tradicional abismo existente, no âmbito de toda e qualquer orientação política, entre a esfera

da idealização/da promessa e a esfera da realização.

No que diz respeito às formações discursivas de caráter progressista que emergem, no

pronunciamento em estudo, conforme se observa, por exemplo, em (9),

(9) O Brasil pode dar muito a si mesmo e ao mundo. Por isso devemos exigir muito de nós mesmos. Devemos exigir até mais do que pensamos, porque ainda não nos expressamos por inteiro na nossa História, porque ainda não cumprimos a grande missão planetária que nos espera. O Brasil, nesta nova empreitada histórica, social, cultural e econômica, terá de contar, sobretudo, consigo mesmo; terá de pensar com a sua cabeça; andar com as suas próprias pernas; ouvir o que diz o seu coração. E todos vamos ter de aprender a amar com intensidade ainda maior o nosso país, amar a nossa Bandeira, amar a nossa luta, amar o nosso povo.

a partir da proposta de mudança, parece-nos possível afirmar que estas se manifestam, a partir

também da manifestação de formações discursivas salvacionistas. Tal traço de utopia

salvacionista parece se revelar imbuído de forte teor tradicional-conservador, embora emirja

até mesmo em discursos revolucionários, tendo em vista que, ao longo de nossa história, os

líderes políticos que conquistaram amplo apoio popular se construíram, não raro, como

salvadores. No pronunciamento em estudo, observa-se que aquilo que é proposto pela

instância da locução é assumir o protagonismo da mudança de uma situação consolidada há

séculos, partindo-se da adoção de postura salvacionista e heróica, postura esta herdada de

líderes políticos de nossa história. A remissão à figura do salvador/do herói, que abraça a

missão de instituir uma nova ordem caracterizada pela justiça, acaba por suscitar a

manifestação de formações discursivas de caráter tradicional-conservador, considerando-se,

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165 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

também, que, paradoxalmente, remete à instauração de uma ordem rígida, há muito

estabelecida. Tal ordem funda-se na instituição de dois grupos distintos: um caracterizado

pela atividade, composto pelo herói, e outro caracterizado pela passividade, composto por

aqueles que meramente aguardam o surgimento do herói, ansiando por se beneficiar da

existência deste e das ações por este adotadas. Ao longo da história da humanidade, a figura

do salvador/herói tem sido cultuada em diferentes esferas, principalmente a religiosa seguida

da política, como aquele que tem o poder e a missão de transformar o curso da vida de toda

uma coletividade, conduzindo-a ao caminho da felicidade plena. E, por fim, faz-se ainda

oportuno observar, quanto a esse aspecto, que o teor idealista deste discurso revela-se

próximo de um contraste com o realismo das práticas protecionistas de subsídio, apresentadas

em (7).

Também em (10) revela-se a emergência de formações discursivas tradicional-

conservadoras em contraposição a formações discursivas progressistas.

(10) Cada um de nós, brasileiros, sabe que o que fizemos até hoje não foi pouco, mas sabe também que podemos fazer muito mais. Quando olho a minha própria vida de retirante nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, que se tornou torneiro mecânico e líder sindical, que um dia fundou o Partido dos Trabalhadores e acreditou no que estava fazendo, que agora assume o posto de Supremo Mandatário da Nação, vejo e sei, com toda a clareza e com toda a convicção, que nós podemos muito mais.

Observa-se, nesse excerto, o discurso progressista da conquista do poder pelas classes

populares em resposta ao discurso estereotipado da conquista do poder pelas classes sociais

privilegiadas, evidenciando-se a manifestação simultânea de formações discursivas

progressistas e tradicional-conservadoras. Mas se constata, de fato, que, ao se buscar

desconstruir o discurso da conquista do poder pelas classes sociais privilegiadas, produz-se,

paradoxalmente, o inverso, uma vez que se atesta a dificuldade de, no Brasil, um

representante das classes mais populares assumir o poder maior da nação. Apresenta-se,

assim, a ascensão ao poder experimentada pelo locutor como um feito inédito, o que acaba,

por sua vez, por expressar a emergência de formações discursivas salvacionistas e, portanto,

de caráter tradicional-conservador. Verifica-se, ainda, a manifestação de formações

discursivas de caráter tradicional-conservador, a partir não só da alusão a Deus, como também

da manifestação de submissão a este, algo tradicionalmente presente no discurso religioso.

A partir deste estudo, constata-se, em síntese, que o pronunciamento proferido por

Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia em que, oficialmente, ele assume, pela primeira vez, a

presidência da República, apresenta-se fortemente marcado pela promessa de mudança e pela

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166 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

crítica a gestões anteriores, revelando a complexidade da transição que ora se opera entre duas

instâncias distintas: Lula-candidato e Lula-presidente. A partir da exploração do par

esperança/medo, a promessa de mudança apresenta-se, nessa situação de comunicação,

orientada pela crítica, considerando-se que esta se manifesta como responsável por exibir

elementos que justifiquem a necessidade de mudança. Embora tais elementos sejam exibidos

de modo a tornar a mudança ainda mais desejável, parecem conferir-lhe uma nova

configuração, tendo em vista que se desenha, sob a ótica da instância da produção, a

necessidade de, também, conter a ansiedade social. Nesse momento em que a mudança

prometida parece necessitar ganhar contornos mais definidos e a crítica dotar-se de um caráter

menos hostil, emergem, contrapostas entre si, formações discursivas tradicional-

conservadoras e inovador-progressistas. Mas o que, de fato, se observa é que essa

contraposição acaba por, a um só tempo, ocultar e desvelar a primazia da emergência de

formações discursivas de caráter tradicional-conservador, as quais parecem conferir ao texto,

embora escamoteada por um caráter idealista, acentuada sobriedade no que diz respeito ao

posicionamento político adotado.

4.2.4 Maingueneau: interdiscurso – posse 2003

A contraposição que se verifica, no pronunciamento em estudo, entre formações

discursivas de caráter tradicional-conservador e progressista, a qual guarda a manifestação

dominante de formações discursivas de caráter tradicional-conservador, a um só tempo,

constitui relações interdiscursivas e é por estas constituída, em um processo que se redefine

continuamente. Observa-se, a partir do estudo do pronunciamento em foco, a constituição de

uma rede interdiscursiva em que o discurso político-eleitoral, o da esquerda política e o dos

detentores tradicionais do poder se apresentam, ao mesmo tempo, separados e unidos.

Manifesta-se, em todo o pronunciamento, elementos advindos do discurso político-

eleitoral, uma vez que a promessa de concretização de novos projetos e a crítica a gestões

anteriores permeia todo o texto. Na apresentação da temática reforma agrária, por exemplo,

conforme se observa, dentre outros, no segmento “Para isso, será também imprescindível

fazer uma reforma agrária pacífica, organizada e planejada”, que introduz o excerto (5),

destacado na subseção anterior, ao se prometer a realização de uma reforma agrária “pacífica,

organizada e planejada”, denuncia-se a ocorrência, até então, sob responsabilidade de

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167 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

governantes antecessores ao que ora assume o poder, de uma reforma agrária oposta a esta.

Também, nesse excerto, confere-se ênfase a uma das mais expressivas bandeiras sócio-

políticas da esquerda política, o que constitui um compromisso historicamente assumido pelo

PT e por Luiz Inácio Lula da Silva. Esse trecho, dentre outros, revela-se, pois, povoado de

pré-construídos durante toda a trajetória política de Lula e do PT, como herança, por sua vez,

de valores altamente apreciados e defendidos pela esquerda política ao longo de toda sua

trajetória. São estes a justiça social e o direito à propriedade, os quais se revelam

intrinsecamente vinculados, uma vez que, segundo os ideários da esquerda política, a

cidadania apresenta-se inevitavelmente condicionada ao direito à propriedade. Entretanto o

modo como se apresenta a temática reforma agrária manifesta a emergência de pré-

construídos que têm origem no discurso dos detentores tradicionais do poder, tendo em vista

que estes, não raro, adotam postura conciliadora, a fim de buscarem não ferir interesses de

segmentos sociais privilegiados. Tais pré-construídos emergem, no pronunciamento em

estudo, por exemplo, conforme vimos, mesmo que de forma escamoteada, a partir da

prioridade conferida à dimensão econômica sobre a social.

No interdiscurso, observa-se que tais discursos, embora separados, já que são

identificados a partir de características particulares que os diferenciam dos demais,

apresentam-se, paradoxalmente, unidos, pois parecem se agregar, além de se atravessarem,

fornecendo elementos capazes de contribuir para a composição e a reconfiguração de outros

discursos. Vê-se, por exemplo, que, na situação comunicativa em questão, o discurso da

esquerda política, o político-eleitoral e o dos detentores tradicionais do poder parecem se

alimentar mutuamente instaurando o discurso da esquerda política brasileira recém-chegada

ao poder. Este se apresenta, por sua vez, como um discurso homogeneizado, tendo em vista

que parece se confundir não só com o discurso político-eleitoral, o que nos parece natural,

considerando-se que o pronunciamento em questão é o proferido na cerimônia de posse, mas

também com o discurso dos detentores do poder de orientação político-ideológica

tradicionalmente distinta do locutor; orientação esta, pode-se dizer, até mesmo antagônica

àquela adotada até então pelo locutor. Na instauração do discurso da esquerda política

brasileira recém-chegada ao poder, são constituídas, portanto, três redes interdiscursivas

simétricas: (i) a da esquerda política; (ii) a político-eleitoral e (iii) a dos detentores

tradicionais do poder político. Verifica-se, assim, a constituição, segundo Courtine (apud

MAINGUENEAU, 1993: 115), de redes de formulações inscritas na interseção de um eixo

“vertical”, referente a pré-construídos advindos da esquerda política, do discurso político-

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168 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

eleitoral e dos detentores tradicionais do poder político, muitos dos quais se revelam

recorrentes em todo o pronunciamento, e de um eixo “horizontal”, tendo em vista que o

enunciador se institui, inconscientemente, orientado pelo interdiscurso, que se apresenta como

responsável por regular cada formulação, a fim de compor o que constitui a linearidade do

discurso.

Na configuração do eixo “vertical”, no que diz respeito a pré-construídos provindos do

discurso político-eleitoral, explora-se, conforme vimos, de forma enfática, o par

esperança/medo, a partir de elementos pré-construídos referentes à crítica e à promessa,

advindos da campanha eleitoral do PT à presidência da República, como bem exemplifica este

excerto: “Creio num futuro grandioso para o Brasil, porque a nossa alegria é maior do que a

nossa dor, a nossa força é maior do que a nossa miséria, a nossa esperança é maior do que o

nosso medo”. Concernentes a pré-construídos provindos do discurso político-eleitoral e dos

detentores tradicionais do poder político, manifestam-se, por exemplo, de modo recorrente,

em todo o pronunciamento, elementos oriundos do discurso ufanista, em trechos em que se

exalta o povo brasileiro e/ou os recursos naturais do País, conforme se observa em (1) e (2).

(1) O povo brasileiro, tanto em sua história mais antiga, quanto na mais recente, tem dado provas incontestáveis de sua grandeza e generosidade; provas de sua capacidade de mobilizar a energia nacional em grandes momentos cívicos; e eu desejo, antes de qualquer outra coisa, convocar o meu povo, justamente para um grande mutirão cívico, para um mutirão nacional contra a fome.

(2) O Brasil é grande. Apesar de todas as crueldades e discriminações, especialmente contra as comunidades indígenas e negras, e de todas as desigualdades e dores que não devemos esquecer jamais, o povo brasileiro realizou uma obra de resistência e construção nacional admirável. Construiu, ao longo dos séculos, uma Nação plural, diversificada, contraditória até, mas que se entende de uma ponta a outra do território. Dos encantados da Amazônia aos orixás da Bahia; do frevo pernambucano às escolas de samba do Rio de Janeiro; dos tambores do Maranhão ao barroco mineiro; da arquitetura de Brasília à música sertaneja. Estendendo o arco de sua multiplicidade nas culturas de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e da região Centro-Oeste. Esta é uma Nação que fala a mesma língua, partilha os mesmos valores fundamentais, se sente que é brasileira. Onde a mestiçagem e o sincretismo se impuseram, dando uma contribuição original ao mundo. Onde judeus e árabes conversam sem medo. Onde toda migração é bem-vinda, porque sabemos que, em pouco tempo, pela nossa própria capacidade de assimilação e de bem-querer, cada migrante se transforma em mais um brasileiro.

Já no que concerne a pré-construídos que têm origem no discurso da esquerda política,

encontram-se, no pronunciamento em questão, elementos referentes não só à reforma agrária,

como também, por exemplo, à valorização do trabalho, os quais se apresentam, entretanto,

amalgamados a elementos provindos do discurso dos detentores tradicionais do poder e do

discurso político-eleitoral. Observa-se, assim, que os elementos originados do discurso da

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169 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

esquerda política que povoam o pronunciamento em estudo se manifestam fundidos a outros,

ou, até mesmo, completamente diluídos em outros discursos, o que resulta em significativas

descaracterização e perda de identidade do discurso da esquerda política. Isso pode ser

constatado não só no trecho que se segue, como também, por exemplo, em (5) e (6), trechos

destacados na subseção anterior.

(3) Para repor o Brasil no caminho do crescimento, que gere os postos de trabalho tão necessários, carecemos de um autêntico pacto social pelas mudanças e de uma aliança que entrelace objetivamente o trabalho e o capital produtivo, geradores da riqueza fundamental da Nação, de modo a que o Brasil supere a estagnação atual e volte a navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social. O pacto social será, igualmente, decisivo para viabilizar as reformas que a sociedade brasileira reclama e que eu me comprometi a fazer: a reforma da Previdência, a reforma tributária, a reforma política e da legislação trabalhista, além da própria reforma agrária. Esse conjunto de reformas vai impulsionar um novo ciclo do desenvolvimento nacional. Instrumento fundamental desse pacto pela mudança será o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social que pretendo instalar já a partir de janeiro, reunindo empresários, trabalhadores e lideranças dos diferentes segmentos da sociedade civil.

Verifica-se que, em (3), embora se busque conferir destaque ao trabalho, ou este é

apresentado no mesmo patamar de importância do capital (“... de uma aliança que entrelace

objetivamente o trabalho e o capital produtivo...”), ou a este inferior (“... o Conselho Nacional

de Desenvolvimento Econômico e Social que pretendo instalar já a partir de janeiro, reunindo

empresários, trabalhadores e lideranças dos diferentes segmentos da sociedade civil...”). Nota-

se, neste último fragmento, que, ao serem listados os segmentos sociais que serão convidados

a compor o Conselho, os empresários, representantes do capital, são os primeiros a se

apresentarem enumerados. Vale notar, a partir desse exemplo, que os elementos oriundos do

discurso da esquerda política, manifestos no pronunciamento em questão, sofrem, nessa

situação comunicativa específica, expressiva interferência de elementos advindos de outros

discursos, mas, curiosamente, não parecem nestes interferir da mesma forma, com a mesma

força e com a mesma intensidade.

No que diz respeito ainda à constituição do eixo vertical, faz-se oportuno chamar a

atenção para o fato de que, ao mesmo tempo em que são suscitadas, no pronunciamento em

estudo, formações discursivas de caráter progressista em resposta/oposição a formações

discursivas de caráter tradicional conservador, recorrendo-se a pré-construídos oriundos, por

exemplo, de discursos da esquerda política, conforme se observa em (8), apresentado na

subseção anterior, são suscitadas formações discursivas de caráter conservador, recorrendo-se,

por exemplo, a pré-construídos advindos do discurso ufanista, como se verifica em (1) e (2),

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170 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

nesta subseção. Vê-se, assim, que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se criticam

determinados segmentos sociais (“... à revelia das elites, das instituições e até mesmo do

Estado...”), valorizam-se estratégias empregadas, freqüentemente, por alguns desses

segmentos. Isso pode ser constatado em (3), excerto destacado na subseção anterior, o qual se

revela povoado de elementos originados do discurso ufanista, dos quais se lança mão visando

a fazer crer na necessidade da adoção de uma postura perseverante e paciente em relação às

mudanças intensamente prometidas e ansiosamente esperadas. Ou seja, nesse trecho, os

elementos provindos do discurso ufanista apresentam-se a serviço da aceitação resignada do

sacrifício, estratégia amplamente empregada no Brasil por detentores do poder político de

orientação político-ideológica oposta à defendida e adotada até então pelo locutor e pelo

partido político pelo qual foi eleito presidente da República. Isto é, estratégia largamente

empregada pelos adversários políticos do locutor, quando detentores do poder supremo.

Talvez isso em parte explique o fato de os elementos provindos do discurso da esquerda

política, presentes no pronunciamento em estudo, manifestarem-se intensamente

influenciados por elementos advindos de outros discursos, mas nestes não interferirem com

igual força e intensidade.

Constata-se, assim, a partir da observação dos aspectos apresentados nesta subseção e

na anterior, dedicada à formação discursiva, que o espaço enunciativo em que se constitui o

que denominamos “o discurso da esquerda política recém-chegada ao poder” evidencia as

duas faces do discurso: a social e a textual.

4.2.5 Berrendonner: gênero discursivo – posse 2003

Como produto da atividade de linguagem, o texto em estudo, embora se classifique

como um pronunciamento político-presidencial oficial de posse e se caracterize, portanto, por

uma rigidez estrutural, guarda, a partir das escolhas lingüístico-discursivas feitas no ato de sua

produção, traços da instância que o assume e do momento histórico-social em que se

manifesta. Considerando-se que, conforme vimos anteriormente, os aspectos estruturais e

lingüísticos que compõem todo e qualquer gênero são decorrência de aspectos sócio-

comunicativos e funcionais que determinam a sua emergência, procuraremos, nesta subseção,

voltar a nossa atenção para como o locutor, ao se apropriar do gênero em estudo, busca

atender às exigências da situação comunicativa em questão, orientado por aspectos

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171 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

específicos de natureza sócio-comunicativa e funcional. Ou seja, a partir da observação das

escolhas lingüístico-discursivas realizadas pela instância da produção, em atendimento ao

modelo socioculturalmente construído do gênero utilizado, buscaremos apreender o modo

como os aspectos sócio-comunicativos e funcionais determinam tais escolhas. Para tal,

recorreremos ao Modelo Interlocutório Triádico, proposto por Berrendonner.

Considerando-se que o pronunciamento em estudo celebra a passagem do candidato

para o presidente da República, pode-se dizer que tal gênero constitui um recurso

representacional, pois, por meio deste, inicia-se a construção de uma nova representação

social para aquele que o utiliza. No caso específico deste pronunciamento, deve-se ter em

vista que, pela primeira vez na história política do País, assume a presidência da República

alguém com antecedentes pessoais e políticos completamente diversos daqueles que, até

então, assumiram-na, o que significa que a construção da nova representação social de Lula se

apresente marcada por aspectos sui generis. Isso porque, enquanto seus antecessores, ao

tomarem posse do poder, iniciaram a construção de uma nova representação social, sem

provocar grandes e distintas expectativas sociais, Lula, ao contrário, inicia essa construção

sob grandes e distintas expectativas sociais. No caso dos antecessores de Lula, de um modo

geral, os elementos a serem construídos no momento da tomada de posse revelaram-se, de

certa forma, coincidentes com os elementos construídos anteriormente a esse momento. Ou

seja, a imagem de homem público dos antecessores de Lula, construída no momento da

tomada de posse, já era, de certa forma, pressuposta, o que não se confirma no caso de Lula.

Pode-se assim dizer, quanto aos antecessores de Lula, que o “modelo público de realidade”,

principalmente no que diz respeito à representação de “homem público” pré-construída

socialmente, já era pressuposto. Sendo assim, nos momentos de alternância no poder, não

havia uma expectativa social de que essa representação se alterasse de modo significativo e,

por conseguinte, não havia uma expectativa social de que se alterasse significativamente,

quanto a esse aspecto, o “modelo público de realidade”. A partir desse raciocínio, parece-nos

possível a inferência de que, se, na interação entre as instâncias política e cidadã com o

“modelo público de realidade”, não havia expectativas de mudanças expressivas quanto à

representação social de “homem público”, conseqüentemente também não havia grandes

expectativas de que se alterasse, de modo expressivo, o modelo sócio-político e econômico

então vigente. Ao contrário disso, Lula, ao iniciar, para si, a construção de uma nova

representação social, em interação com a instância cidadã e com o “modelo público de

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172 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

realidade”, gera profundas expectativas sociais de mudança da representação de “homem

público” e do “modelo público de realidade” até então vigentes.

Constata-se, desse modo, que, no momento em que o locutor, ao proferir o

pronunciamento em questão, inicia a construção de uma nova representação social para si

próprio, instaura-se, conseqüentemente, a construção de uma nova representação social para

aquele que ele institui como seu interlocutor e, ainda, para o “modelo público de realidade”.

Instaura-se, assim, a partir do proferimento do pronunciamento em questão, novas relações

sociais entre o locutor e seu interlocutor, os quais, além de interagirem entre si, passam a

interagir com o “modelo público de realidade”, buscando, ora alterá-lo, ora mantê-lo. Essa

mudança no estabelecimento das relações sociais entre o locutor e o interlocutor interfere na

seleção daquilo que se diz e de como aquilo que é selecionado é dito, no momento em que o

locutor toma formalmente posse da presidência da República. Ao ser oficializada a posse

legítima do poder, as promessas e as críticas, características deste gênero e tão recorrentes e

enfáticas no discurso político-eleitoral, ganham nova dimensão, uma vez que a relação social

ora estabelecida entre locutor e interlocutor se altera em relação à estabelecida no período

eleitoral. Tal alteração parece encontrar explicações no fato de que a relação social

estabelecida entre locutor e interlocutor passa, no momento da tomada de posse, a ser

mediada, de forma distinta, pelo poder. No caso específico de Lula, essa mudança no

estabelecimento de relações sociais com o interlocutor manifesta-se marcada por traços

significativos e particulares, tendo em vista que, ao se apresentar, ao longo de sua trajetória

como homem público, como alguém pertencente às classes mais populares, distanciou-se das

classes mais privilegiadas. Mas, ao longo dos quatro pleitos eleitorais à presidência da

República dos quais Lula participou, promoveu-se, conforme vimos anteriormente, uma

gradual “desradicalização” de sua imagem, a fim de que tal distância fosse minimizada e,

conseqüentemente, sua candidatura captasse, também, o voto das classes sociais mais

abastadas.

O pronunciamento em estudo simboliza o coroamento desse movimento e a

instauração de uma nova relação social entre o locutor e o interlocutor, em especial, entre o

locutor e a sociedade brasileira. Observa-se, assim, que, ao construir a representação social de

Presidente da República, o locutor opta por estabelecer com o seu interlocutor uma

proximidade distante e calculada. Sendo assim, ao mesmo tempo em que se aproxima das

camadas sociais mais populares, apresentando-se como um representante genuíno do povo, ao

revelar conhecer de perto as dificuldades por este enfrentadas, por ser parte deste, dele se

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173 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

distancia, uma vez que reconhece ter ascendido socialmente como nenhum outro

representante autêntico do povo até então conseguiu. Também se revela como responsável por

promover esse distanciamento a proximidade cautelosa e parcimoniosa que o locutor busca

estabelecer com os segmentos sociais mais privilegiados, ao conferir, por exemplo, como

vimos anteriormente, simulada prioridade à dimensão econômica sobre a social. A construção

dessa nova relação social do locutor com seu interlocutor se evidencia a partir da prioritária

emergência de formações discursivas de caráter tradicional-conservador, considerando-se que

o pronunciamento em questão apresenta-se, de forma significativa, povoado de elementos

provindos de discursos de caráter tradicional-conservador, como, por exemplo, de elementos

oriundos do discurso ufanista.

Faz-se oportuno observar que essa nova relação social que se constrói entre locutor e

interlocutor instaura, por sua vez, o estabelecimento de uma nova relação de ambos com o

“modelo público de realidade” vigente. Observa-se, por exemplo, que a tomada de posse do

poder pelo locutor instaura a necessidade de conter o ímpeto social pela mudança imediata, o

qual o locutor se encarregou, entretanto, de alimentar durante a campanha eleitoral quando

trabalhava para derrotar as forças políticas que o detinham, até então, na conquista do poder

supremo. Justifica-se, assim, a exploração, no pronunciamento em estudo, dos valores

paciência e persistência, o que se processa a partir da retomada de pré-construídos por essas

mesmas forças, as quais, durante a campanha eleitoral, a candidatura Lula se dedicou a

combater e a derrotar. Quanto a esse aspecto, é interessante observar que o locutor, ao longo

de sua trajetória como homem público, ao negociar com o interlocutor crenças e valores na

instauração de um “modelo público de realidade”, instituía um duplo movimento: denunciava

a vigência de um modelo que se traduzia em completa ausência do atendimento a demandas

sociais mais básicas e prometia alterá-lo, por completo, a partir da construção de um modelo

inverso a este. Observa-se, assim, que, antes de tomar posse oficialmente da presidência da

República, o locutor interage com a instância cidadã, compartilhando com ela o lugar de

representado, convidando-a a interagirem, juntos, com o “modelo público de realidade”

vigente, visando alterá-lo. Já no momento em que o locutor assume oficialmente a presidência

da República, este passa a ocupar o lugar de representante, o que implica, quanto a esse

aspecto, a quebra de simetria anteriormente observada no estabelecimento dessa relação. Em

decorrência dessa quebra de simetria, nota-se um movimento da instância política no sentido

de manter o “modelo público de realidade” vigente até então.

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174 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Ao tomar posse da presidência da República, o locutor, embora adote a mudança como

fio condutor de seu pronunciamento, assume, portanto, uma postura continuísta, defendendo,

conforme vimos, a manutenção do status quo das classes sociais mais privilegiadas e o

sacrifício das classes menos favorecidas. Sendo assim, observa-se, a um só tempo, um

movimento aparente em defesa da alteração do “modelo público de realidade” vigente e um

movimento simulado em defesa da manutenção deste, o que promove o estabelecimento de

um jogo entre verdade e verossimilhança. A instituição desses dois movimentos acaba por

promover um expressivo apagamento do ideário da esquerda política, em prol da adoção de

uma postura cautelosa, contida e conservadora. Faz-se oportuno ressaltar que esse

apagamento se estabelece gradualmente ao longo de toda a trajetória política de Lula e do PT,

graças ao movimento de “desradicalização” pelo qual estes passaram. Parece-nos possível

poder dizer que o momento em que o locutor toma posse da presidência da República

constitui a efetivação desse apagamento. Vale chamar a atenção para o fato de que, embora tal

apagamento se revele drástico, busca-se fazer, no pronunciamento em estudo, com que não se

extinga, por completo, no discurso da esquerda política brasileira, representada por Lula e

pelo PT, os traços desse ideário. Parece que esse movimento de conservação do ideário da

esquerda política tem por finalidade fazer com que o “modelo público de realidade” continue

a comportar o confronto de forças políticas distintas e, até mesmo, antagônicas, alimentando,

assim, a díade amigo-inimigo, a qual, por sua vez, parece autorizar e justificar o discurso da

mudança.

Verifica-se, assim, que cabe à instância da produção, a partir da seleção e do emprego

de recursos lingüístico-discursivos, buscar monitorar a construção de uma nova representação

social para o locutor e, por conseguinte, uma nova representação de homem público e de

modelo público de realidade, de modo a atender a finalidades específicas, em uma situação

social que constitui a tomada de posse legítima do poder supremo. Nessa situação, são selados

novos laços de relação social entre dois universos individuais distintos - locutor e interlocutor

- os quais, mediados pelo poder, passam a interagir, de forma igualmente distinta, com um

universo coletivo - o “modelo público de realidade” - a partir do estabelecimento dessa nova

relação. A partir, portanto, do emprego do gênero discursivo pronunciamento político-

presidencial de posse da presidência da República, faz-se uso da linguagem, a fim de que se

dê início à construção de uma nova identidade social para o locutor, do que decorre o

estabelecimento de uma nova relação social entre locutor e interlocutor.

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175 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

A partir do exposto nesta subseção, pode-se constatar que, no caso específico do

pronunciamento em estudo, a construção dessa nova identidade social e o estabelecimento

dessa nova relação social se apresentam marcados por particularidades sui generis. Isso

parece encontrar explicações na natureza da relação social estabelecida até então entre o

locutor e a multifacetada instância da interlocução por este instituída a partir do proferimento

do pronunciamento em questão e os papéis sociais até então desempenhados pelos

participantes dessa relação. Quanto a esse aspecto, vale destacar, por exemplo, que, enquanto

aqueles que tradicionalmente tomaram, até então, posse da presidência da República no Brasil

se encontravam socialmente distantes das classes sociais mais populares e próximos das

classes mais favorecidas, o que lhes exigia um esforço para se aproximarem daquelas sem se

distanciarem destas, o inverso se observa com Lula, em contexto sócio-comunicativo análogo.

Vale ainda destacar que a maior proximidade experimentada com esta ou com aquela classe

social determina, automaticamente, significativas implicações, tais como o grau de

proximidade e o tipo de relacionamento estabelecidos entre o locutor e outro segmento que

compõe a instância da recepção: o mercado internacional. Entretanto a mais expressiva

implicação parece dizer respeito à relação de poder que a instância da produção busca instituir

entre o locutor e a multifacetada instância de interlocução, o que parece ter em vista um

significativo e calculado grau de controle da instância da locução sobre a instância da

interlocução.

Observa-se, assim, conforme prevê o “Modelo interlocutório Triádico”, de

Berrendonner, que a realidade pública se constrói a partir da interação comunicativa que se

estabelece entre três pólos distintos - dois individuais, o da locução e o da interlocução, e um

coletivo, o “modelo público de realidade”. No caso do discurso político, o qual aqui se

observa, de forma particularizada, a partir do estudo do pronunciamento que registra a tomada

de posse oficial da presidência da República por parte de Lula em 2003, o poder emerge como

o fator preponderante na construção dessa relação. Nesse caso específico, a mudança que se

institui nas relações de poder entre esses três universos determina a emergência de novos

fatores psicossociais, os quais, por sua vez, atuam, de forma decisiva, na interação

comunicativa que, a partir do evento cerimônia de posse, se instaura entre esses três universos

distintos.

Esses aspectos parecem contribuir para que melhor se compreenda como, por

intermédio do gênero discursivo pronunciamento oficial de posse da presidência da

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176 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

República, inicia-se a construção de uma nova representação social para a instância da

locução e que fatores são determinantes nessa construção.

4.2.6 Reboul e Mondada: a construção referencial do espetáculo – posse 2003

No pronunciamento em estudo, a construção do referente “espetáculo político” se

engendra, primordialmente, em dois domínios avaliativos53 opostos, mas complementares: o

domínio da grandeza e o domínio do trágico54. Além desses, o factual e o contrafactual55

53 Consideramos domínios avaliativos aqueles que se revelam mais associados a algum tipo de predicação, tais como os domínios da grandeza, do trágico, do irônico, do factual, do contrafactual, do extraordinário e do ordinário. 54 Vale aqui lembrar que, na seção intitulada “Espetáculo, política e mídia”, observa-se que o vocábulo espetáculo sempre foi empregado para designar acontecimentos públicos que rompem com o ordinário, provocando potente impacto social, em função de sua notabilidade no campo da grandeza ou do escândalo. Por remeter à noção de drama, o espetáculo muitas vezes se situa, concomitantemente, no território do trágico e do cômico. Remetem ao território da grandeza fatos que suscitam alegria, contentamento, admiração e/ou bem-estar e são considerados, portanto, social e consensualmente, como de vultosa importância e/ou altamente belos e/ou positivos. Já ao território do trágico, remetem os fatos que despertam, social e consensualmente, lástima, desprezo, mal-estar, indignação e/ou revolta, tendo em vista as suas características e conseqüências negativas e nefastas. 55 Os domínios avaliativos do factual e do contrafactual são, ao longo do pronunciamento em estudo, acionados de modo a amplificar os efeitos de sentido produzidos com a ativação do par trágico/grandeza, contribuindo, assim, para o redimensionamento, na situação de comunicação em questão, da exploração do par de descrições definidas “o medo”/ “a esperança”, amplamente explorado ao longo de toda a trajetória política de Lula e do PT. Verifica-se, por exemplo, nesse aspecto, a contraposição do sonho à realidade, no excerto (2), destacado na subseção “Indicadores para a referência”, em que a menção enfática ao sonho (“[...] eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes de nós [...] chegou a hora de transformar o Brasil naquela Nação com a qual a gente sempre sonhou [...]”) ativa, naturalmente, o seu oposto: a menção à realidade sócio-política e econômica vigente até então no Brasil, ou melhor, ao modelo sócio-político e econômico adotado até então no País. Sendo assim, a expressão, por exemplo, “neste dia sonhado” funciona como dispositivo por meio do qual é ativado o domínio avaliativo do contrafactual, posto em relação lógica com o domínio do factual, a fim de que tal expressão seja interpretada de modo pertinente ao enunciado e à situação de comunicação em questão.

também constituem domínios avaliativos opostos, mas complementares, nos quais se processa

tal construção, a qual se institui por meio do estabelecimento de uma relação de contraposição

ou de disjunção entre “medo” e “esperança”, ou seja, entre velho e novo, entre ontem e

hoje/amanhã. O estabelecimento dessas relações de contraposição, por intermédio da exploração do par medo/esperança, opera-se a partir da emergência de elementos previamente construídos ao longo da trajetória política de Lula e do PT e, mais intensamente, na última

campanha eleitoral destes à presidência da República. A construção do referente “espetáculo

político” opera-se, portanto, a partir da instituição da relação entre “medo” e “esperança”, a

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177 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

qual se instaura por intermédio das descrições definidas “o medo” e a “esperança”, conforme

se observa no seguinte trecho, o qual constitui o terceiro parágrafo do pronunciamento:

“‘Mudança’: esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas

eleições de outubro. A esperança, finalmente, venceu o medo e a sociedade brasileira decidiu

que estava na hora de trilhar novos caminhos”.

Funcionando como potentes pistas de interdiscursividade, tais descrições definidas,

por meio das quais se constrói o referente “espetáculo político”, parecem, portanto, ativar

RMs construídas em momentos anteriores a este, quando o interlocutor provavelmente foi

colocado em contato com outros discursos, em outras situações. “A esperança”, descrição

definida interpretada até então no domínio avaliativo da grandeza e do contrafactual, mais

uma vez é contraposta à descrição definida “o medo”, a qual encontra interpretação nos

domínios do trágico e do factual. Vale chamar a atenção para o fato de que o processo de

interpretação dessas duas descrições não se dá de forma estanque e isolada, mas, sim, de

modo interativo. Isso porque cada uma delas não comporta conjuntos estanques de RMs, mas

sim em constante e intensa intercomunicação e interinfluenciação, tendo em vista que as RMs,

que apresentam uma estrutura de conceitos, têm uma entrada lógica que indica com quais

outras RMs estabelecem relações lógicas. Sendo assim, o domínio do trágico, associado ao

domínio do factual, é acionado, a fim de que se confira maior expressividade à construção que

se processa no domínio da grandeza, com o concurso do contrafactual. Objetiva-se, assim, a

amplificação do caráter positivo do espetacular do qual a instância política busca dotar o

momento em que, formalmente, toma posse da presidência da República e,

conseqüentemente, visa-se à amplificação dos efeitos de sentido que se almeja produzir: a

recepção favorável ao novo governo por parte do interlocutor. Vê-se, assim, que o domínio

avaliativo do trágico é ativado, a fim de que sejam potencializados os efeitos de sentido

produzidos a partir da ativação do domínio avaliativo da grandeza. Nesses dois grandes

domínios avaliativos - o da grandeza e o do trágico -, não raro, com o concurso dos domínios

do factual e do contrafactual, são avaliados domínios referenciais, os quais dizem respeito aos

temas abordados, tais como reforma agrária, relações internacionais e fome.

O referente “espetáculo político” se constrói, no pronunciamento em questão, a partir

da construção de outro referente, “a mudança”, a qual emerge, assim, como objeto discursivo

a ser (re)construído na relação “eu”/”tu”, instituída pela enunciação primitiva. A construção

de tal objeto discursivo se engendra, por sua vez, a partir da construção de outros referentes,

tais como “imagem de homem público” e “modelo público de realidade”. Faz-se oportuno

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178 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

chamar a atenção para o fato de que a construção do objeto discursivo “mudança” é ratificada

no momento em que a instância política assume formalmente o poder, tendo em vista que o

processo de construção de tal objeto se estabeleceu no interdiscurso ao longo de toda a

trajetória política de Lula e do PT. A instância política, no pronunciamento de posse, recupera

tal construção, buscando acrescentar-lhe outras dimensões referenciais. Se, no início de sua

trajetória como homem público, o locutor promovia a construção do objeto discursivo

“mudança”, a partir da irrestrita e contundente negação do modelo sócio-político e econômico

vigente àquela época, ou seja, a partir da (re)construção do “modelo público de realidade”, o

mesmo não se verifica, como vimos anteriormente, após a sua primeira derrota na disputa pela

presidência da República em 1989. Nos pleitos a este subseqüentes, a mudança proposta pela

candidatura Lula perde, pouco a pouco, o tom agressivo do qual se apresenta dotada nos

primeiros tempos da construção de Lula como homem público, sem, entretanto, deixar de

constituir uma recusa ao modelo sócio-político e econômico tradicional vigente.

Neste pronunciamento de posse, busca-se conferir outras dimensões referenciais a tal

objeto, em função, primordialmente, da mudança de lugar social experimentada pelo locutor:

de crítico contumaz aos detentores do poder a detentor do poder. Observa-se que, em sua

trajetória política, o locutor inicialmente constrói o referente “mudança”, evocando formações

discursivas progressistas e inovadoras, dotadas de um caráter rebelde, agressivo e

revolucionário, as quais, pouco a pouco, cedem espaço a outras, tradicionais e conservadoras,

que conferem ao locutor e aos pronunciamentos por ele proferidos um caráter mais comedido,

cauteloso e sereno. Essa gradual transformação faz com que o referente “mudança” se

construa, ao longo da trajetória política do locutor, também a partir de elementos dotados de

características cada vez mais distintas daqueles elementos a partir dos quais se iniciou o

processo de construção desse referente. Em função disso, a mudança proposta pelo locutor, ao

longo de toda sua trajetória política, ao mesmo tempo em que teve gradualmente enfraquecido

o seu caráter inovador, teve fortalecido o seu caráter conservador. Considerando-se que o

objeto discursivo “mudança” se (re)constrói a partir da (re)construção dos objetos “imagem

de homem público” e “modelo público de realidade”, a (re)construção destes também se

apresenta fortemente influenciada por aspectos de caráter tradicional-conservador. Verifica-

se, assim, que os elementos pré-construídos em outras situações de comunicação anteriores a

esta, os quais compõem o interdiscurso, constituem RMs a respeito do que constitui a

mudança, às quais se agregam informações construídas no momento da enunciação. Parece-

nos, portanto, possível poder dizer que as formações discursivas são constituídas de RMs,

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179 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

algumas das quais com o status de pré-construído, conforme se observa no que diz respeito,

por exemplo, à manifestação recorrente, no pronunciamento em estudo, de elementos

oriundos do discurso ufanista, os quais provêm de formações discursivas de caráter

tradicional-conservador, conforme vimos anteriormente. Vale aqui reforçar que,

paradoxalmente, embora tais pré-construídos sejam acionados visando a corroborar com a

construção do novo e do inédito, emanam de formações discursivas conservadoras e elitistas,

tendo em vista que são peculiares a discursos há muito produzidos por forças políticas

qualificadas pelo senso comum e, até mesmo, pelo próprio locutor, em seu passado político,

como altamente reacionárias. Contando com a emergência de pré-construídos e formações

discursivas de natureza distinta, o pronunciamento em estudo representa, a um só tempo, o

coroamento do processo de (re)construção referencial do objeto mudança e o início de um

novo que ora se instaura a partir de promessas feitas pelo locutor: o da realização da mudança.

A construção do objeto discursivo “espetáculo político” se engendra a partir desse duplo

processo referencial, marcada, portanto, pela manifestação de elementos de natureza distinta

e, até mesmo, conflitante e contraditória.

Tendo em vista que essa (re)construção do objeto discursivo “mudança” se apresenta

fortemente influenciada por aspectos de caráter tradicional-conservador, os domínios

referenciais ativados, nessa (re)construção, são avaliados em domínios avaliativos, que são,

por sua vez, acionados, a partir de elementos igualmente orientados por um caráter

tradicional-conservador. A construção do referente “fome”, por exemplo, engendra-se, a um

só tempo, nos domínios avaliativos do trágico e da grandeza, uma vez que, ao mesmo tempo

em que a fome é apresentada como um problema social crônico a ser vencido pelo novo

governo, contribui, graças à forma como se apresenta, para que se enalteça o povo brasileiro.

Vê-se, assim, que os elementos pré-construídos, advindos da esquerda política que

naturalmente poderiam emergir, no pronunciamento em estudo, na abordagem desse tema,

acabam cedendo espaço à emergência de elementos provindos do discurso ufanista, elementos

estes tão presentes no discurso político-eleitoral tradicional e dos detentores tradicional-

conservadores do poder. O objeto discursivo “espetáculo político” constrói-se, desse modo,

predominantemente, a partir de estratégias próprias do discurso político tradicional-

conservador, no qual problemas sociais são explorados de forma espetacular, a fim de que se

espetacularize, por sua vez, o fazer político e, conseqüentemente, os atores políticos.

Contribui, de forma decisiva, para tal espetacularização, o gênero a partir de cujo

emprego a instância política enuncia, considerando-se que este decorre de uma situação de

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180 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

comunicação protocolar, caracterizada por alto grau de formalidade. Tendo em vista que o

gênero em questão, assim como todos os demais, encontra-se disponibilizado no intertexto,

uma vez que constitui uma produção social, o alto grau de formalidade que lhe é próprio

acaba por constituir uma característica naturalmente associada a esse gênero pelo interlocutor.

O estabelecimento dessa natural associação favorece, assim, a criação de disposições

favoráveis à recepção de um pronunciamento marcado por aspectos tradicional-

conservadores, como o pronunciamento em estudo, tendo em vista que formalidade e tradição

se apresentam habitualmente vinculadas de modo estreito. O caráter formal próprio do gênero

em questão parece, portanto, contribuir para que o tom tradicional-conservador, do qual se

dota o texto, seja recebido com naturalidade pela multifacetada instância de interlocução. Ou

seja, contribui para que, a um só tempo, tal tom não cause estranheza naqueles que constituem

e sempre constituíram a fiel base de apoio político a Lula e agrade àqueles que a ele sempre se

opuseram. A pompa e a suntuosidade próprias do evento Cerimônia de Posse, do qual

emanam formalidade e tradição, harmonizam-se com o tom conferido ao pronunciamento, o

qual, por sua vez, parece apenas contrastar com a natureza político-social do locutor,

produzindo, assim, uma história digna de figurar entre os contos de fadas, o que contribui para

que o espetáculo que se produz assuma contornos ainda mais espetaculares. Ou seja, contribui

para que se amplifique o caráter excepcional característico do evento e, por conseguinte, do

objeto discursivo “espetáculo político” que se constrói naturalmente a partir de eventos como

esse. O gênero em questão representa, assim, o endereço para RMs elaboradas pelo

interlocutor acerca do objeto discursivo a ser por ele (re)construído em parceria com o

locutor. Tal gênero constitui, pois, o dispositivo por meio do qual o domínio referencial no

qual se mostrar possível interpretá-lo será acionado pelo interlocutor.

Nessa situação de comunicação específica, a instância política assume o lugar de

maior evidência, para assumir, por sua vez, formalmente, o poder supremo. Sendo assim, ao

mesmo tempo em que se sela, formal e publicamente, íntima relação entre a instância política

e o poder, institui-se, entre esta e a instância cidadã, uma relação marcada por curiosa

assimetria no que diz respeito à posse do poder, pois, enquanto a instância política passa a

deter, de modo privilegiado, o poder supremo, a instância cidadã detém, por sua vez, o poder

de mantê-la em ou de destituí-la de tal poder. No caso específico do pronunciamento em

estudo, esses aspectos apresentam-se marcados por notável peculiaridade, se se considerar que

o locutor interage com uma instância de interlocução multifacetada, composta por segmentos

sociais distintos e, até mesmo, antagônicos, tais como sem-terra e latifundiários, com os quais

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181 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

o locutor interagiu, até então, de modo bastante distinto. Partindo-se desse exemplo em

especial, como os sem-terra representam o segmento social com o qual o locutor se dedicou a

tecer estreitos laços de confiança ao longo de toda sua trajetória como homem público, ao

contrário do que se verificou até então com o segmento social representado pelos

latifundiários, observa-se, na abordagem do tema reforma agrária, o predomínio do emprego

de estratégias lingüístico-discursivas próprias dos detentores tradicionais do poder. Tudo isso

faz com que tal pronunciamento caracterize-se por uma falta de originalidade que ultrapassa a

rígida organização estrutural característica desse gênero, apresentando grande similaridade

temática com pronunciamentos proferidos por tantos outros ao experienciarem situação

comunicativa análoga, até mesmo por aqueles com orientação político-ideológica oposta

àquela adotada pelo locutor. Em decorrência disso, o que emerge como o grande espetáculo,

no pronunciamento em estudo, não é a mudança, temática central do proferimento, mas, sim,

aquele que se apresenta como o agente responsável por imprimir a mudança: o locutor

político. O objeto discursivo “espetáculo político” que se constrói a partir desse

pronunciamento constitui, portanto, a ascensão de um genuíno homem do povo à presidência

da República, ou seja, o espetáculo construído constitui aquilo que, de fato, na situação de

comunicação em questão, diferencia o locutor dos detentores tradicionais do poder supremo.

Tendo em vista a composição multifacetada da instância de interlocução com a qual o

locutor interage a partir do proferimento do pronunciamento em questão, tal condição especial

de genuíno representante do povo, embora se apresente como um aspecto do qual se busca

tirar proveito, apresenta-se, igualmente, como um aspecto que requer cuidadosa atenção. Isso

devido ao fato de o locutor precisar, a um só tempo, continuar sendo concebido como um

autêntico representante das classes mais populares e passar a ser aceito como o mandatário

maior da nação. Observa-se, no pronunciamento em estudo, que, buscando atender a essa

dupla necessidade, o locutor enuncia a partir de múltiplos lugares discursivos, o que se

processa a partir, por exemplo, do emprego de distintos indicadores de pessoa, como vimos na

subseção “Categoria de tempo e de pessoa”. Sendo assim, o “eu”, por exemplo, embora

corresponda a um ser único, é assumido por um locutor que enuncia a partir de múltiplos

lugares discursivos, referindo-se não só, invariavelmente, à singularidade de cada enunciação,

como também a outras distintas condições, tais como à exclusividade do agente propulsor da

mudança. O locutor, ao assumir a presidência da República, busca, assim, atender, dentre

outras, a uma dupla e delicada demanda: estabelecer uma nova relação de proximidade com as

classes sociais mais populares e construir uma relação de proximidade com as classes sociais

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182 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

privilegiadas, de modo a não provocar a retração destas, o que parece ser favorecido pelo

caráter formal do qual é dotado o gênero pronunciamento político-presidencial de posse. Os

diferentes indicadores de pessoa apontam, portanto, para uma realidade discursiva, na qual se

instaura o processo de construção do referente “espetáculo político”.

Na construção do referente “espetáculo político”, o povo brasileiro emerge, embora

em segundo plano, em relação ao locutor, como, a um só tempo, agente e objeto privilegiados

da mudança, a qual se apresenta, na introdução do pronunciamento, como o grande

espetáculo, o extraordinário, que vem quebrar a ordem. Ao longo do pronunciamento, a

mudança se bifurca: de um lado, apontando para a transformação do modelo sócio-político e

econômico até então vigente; de outro, para a transformação de um genuíno representante do

povo a mandatário maior da nação. A mudança de lugar social assume, em detrimento da

mudança do modelo sócio-político e econômico, o lugar de extraordinário, ou seja, de grande

e singular espetáculo. A ordem, por sua vez, apresenta-se como sendo o continuísmo e o

imobilismo, os quais, portanto, pertencem ao campo do ordinário. Denuncia-se, assim, a

ocorrência, até então, de uma lógica deslocada e deturpada de valores, uma vez que, em um

país com orientação democrática, o continuísmo político e a imobilidade social não poderiam

ser a ordem. A alternância de forças e a mobilidade social é que seriam o ordinário. Orientado

pela mudança, o referente “espetáculo político” se constrói em domínios caracterizados pelo

contraste, dentre os quais se destacam o do trágico em contraposição ao da grandeza e o do

ficcional em contraposição ao do real. Tal construção se engendra a partir da instituição de

outros dois pares opositivos de referentes, construídos não só neste pronunciamento, como

também ao longo de toda a campanha eleitoral de Lula à presidência da República: o medo e a

esperança.

Toda essa construção se processa, portanto, a partir de outra: a construção do referente

“mudança”, o fio condutor que atravessa, sob variadas formas, todo o texto, fundando a

tessitura de uma singular rede intertextual e interdiscursiva. Observa-se, por exemplo, que,

se, por um lado, na campanha eleitoral de Lula e do PT à presidência, a esperança pertencia à

esfera do extraordinário, ao passo que o medo, à do ordinário, por outro lado, no

desenvolvimento do pronunciamento em questão, embora a mudança se apresente sob o

prisma do espetacular, busca-se fundar uma lógica inversa desta, sem, entretanto, que a

esperança deixe de se apresentar envolvida pela aura do encanto. Além disso, a partir da

emergência de formações discursivas também contrastantes, denuncia-se o desconforto do

qual se revela dotada a passagem que se inaugura, no momento da posse, da instância Lula-

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183 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

companheiro para a instância Lula-presidente. Por intermédio, portanto, do fio condutor

mudança, o objeto discursivo “espetáculo político” se constrói não só determinando a

(re)construção/desconstrução de outros referentes como, por exemplo, “homem público” e

“modelo público de realidade”, mas também revelando a inserção da mudança,

concomitantemente, em dois domínios distintos: o do extraordinário e o do ordinário.

4.3 Pronunciamento proferido por Lula na sessão solene de posse: 2007

4.3.1 Benveniste: categoria de pessoa e de tempo – posse 2007

Cumprindo as regras que regulamentam o ritual próprio desse gênero discursivo, o

locutor se institui como enunciador, a partir da instauração de vários enunciatários, dentre os

quais se destacam quatro aos quais o locutor se refere de forma mais espontânea e aos quais

ele não se refere explícita e diretamente em 2003: “meus amigos, minhas amigas, minhas

queridas brasileiras e meus queridos brasileiros”. Isso parece revelar, na abertura do

pronunciamento, que, embora cumprindo as formalidades exigidas pelo ritual característico

desse gênero, o locutor se apresenta mais à vontade em sua segunda posse que na primeira.

Após se instituir como enunciador e instituir os seus respectivos enunciatários, o

locutor, por meio do enunciado “Quatro anos atrás, nesta Casa, em um primeiro de janeiro,

vivi a experiência mais importante de minha vida, a de assumir a Presidência do meu País”,

por intermédio do emprego do pronome pessoal “eu”, alude a si mesmo, construindo sua

própria referência, com dupla ancoragem dêitica, no que diz respeito ao tempo discursivo:

“hoje”, “quatro anos atrás [...] em um primeiro de janeiro”. A expressão dêitico-espacial

empregada – “nesta casa” - aponta, entretanto, para um mesmo espaço discursivo. A partir

desse trecho, a instância política institui, portanto, sua própria referência, situando-se no

tempo e no espaço discursivos. Assim, o locutor se apropria da linguagem, constituindo uma

referência (R), e, ao mesmo tempo em que se institui como sujeito enunciador, institui os

sujeitos enunciatários; instituição esta que se engendra a partir do emprego dos seguintes

indicadores de pessoa: o pronome pessoal “eu” e o pronome pessoal “nós”. Em tal processo

de construção discursiva, ocorre um desdobramento enunciativo, conforme observado no

pronunciamento de 2003, uma vez que o locutor enuncia ora a partir da perspectiva do “eu”,

ora a partir da perspectiva do “nós”.

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184 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

A partir da instituição da relação “eu”/“tu”, engendra-se a construção do objeto

discursivo “espetáculo político”, o qual constitui a mudança, que se configura, entretanto, de

modo diverso do apresentado pela instância política no pronunciamento de 2003.

Considerando-se ser este um pronunciamento por meio do qual é formalizada a recondução de

Lula à presidência da República, a justificação emerge como característica marcante, embora

o tom de promessa revele-se ainda bastante acentuado. Isso parece encontrar explicações no

fato de, no pronunciamento de 2007, buscar-se dotar a mudança prometida em 2003 de

“pressa, ousadia, coragem e criatividade”, a partir da implementação de três ações: “acelerar,

crescer e incluir”, conforme se observa nos dois trechos abaixo destacados. Ou seja, busca-se

prometer a impressão de um novo ritmo à referida mudança.

(1) Sou igual quando volto a conjugar, nas suas formas mais afirmativas, o verbo mudar, como fiz aqui quatro anos atrás. Mas sou diferente, pois, sem renegar a paciência e a persistência que aqui também preguei, quero hoje pedir, com toda ênfase, pressa, ousadia, coragem e criatividade para abrir novos caminhos.

(2) Quatro anos atrás eu disse que o verbo mudar iria reger o nosso governo. E o Brasil mudou. Hoje, digo que os verbos acelerar, crescer e incluir vão reger o Brasil nestes próximos quatro anos. Os efeitos das mudanças têm que ser sentidos rápida e amplamente.

Sendo assim, se, no proferimento de posse de 2003, o grande espetáculo é o agente da

mudança prometida, a qual se traduz, a um só tempo, na mudança de lugar social e na

mudança de modelo sócio-político e econômico, em 2007, o grande espetáculo é, também, o

agente da mudança, sendo esta igualmente caracterizada por um duplo, mas distinto aspecto.

No pronunciamento ora em estudo, foca-se o amadurecimento do agente da mudança do

modelo sócio-político e econômico, no que diz respeito à posse do poder supremo, e o ritmo a

ser impresso à mudança de tal modelo. O objeto discursivo “espetáculo político”, construído a

partir desse pronunciamento, constitui, portanto, não mais a ascensão de um genuíno homem

do povo à presidência da República, mas, sim, o amadurecimento no poder desse genuíno

homem do povo. Busca-se enfatizar que tal amadurecimento é decorrência direta do

desenvolvimento inédito, extraordinário e intenso de características tais como sensibilidade,

determinação, coragem e força; características estas valorizadas pela instância política, no

pronunciamento em questão, como essenciais à impressão de um novo ritmo à mudança

sócio-política e econômica.

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185 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Quanto a esse aspecto, observa-se, por exemplo, que, enunciando a partir de múltiplos

lugares discursivos, o locutor, após instaurar a relação “eu” / “tu”, inicia o pronunciamento a

partir da emergência do “eu-indivíduo”, conforme se verifica no trecho

(3) Quatro anos atrás, nesta Casa, em um primeiro de janeiro, vivi a experiência mais importante de minha vida, a de assumir a Presidência do meu País. Não era apenas a realização de um sonho individual. O que então ocorreu foi o resultado de um poderoso movimento histórico do qual eu me sentia, e ainda hoje me sinto, parte e humilde instrumento.

no qual ele se coloca como “parte e humilde instrumento” de um processo de mudança

decorrente de uma vontade, acima de tudo, coletiva. Ao referenciar a sua primeira tomada de

posse da presidência da República, em 2003, o locutor não só se apresenta como um indivíduo

comum, como também apresenta a presidência da República como algo a ele externo, dele

separado, como um objeto de observação, ou, melhor dizendo, como um objeto por ele

referido. Dessa forma, o simples homem do povo é visto separado do “mais alto posto da

República” e, assim, a ele naturalmente contraposto, o que parece não só individualizá-lo,

como, principalmente, dotá-lo de excepcionalidade. Nesse caso, a partir da perspectiva do

“eu-indivíduo”, o locutor alude a uma experiência única por ele vivida, algo jamais

experimentado por qualquer outro indivíduo provindo do mesmo segmento social do qual ele

provem. Traduz-se, assim, a emergência do locutor em sua unicidade, com seus anseios e

experiências pessoais.

Marcando essa contraposição, curiosamente, o “eu-mítico” manifesta-se a partir da

construção do referente “protótipo homem do povo”, como se constata no seguinte excerto.

(4) Pela primeira vez, um homem nascido na pobreza, que teve que derrotar o risco crônico da morte na infância e vencer, depois, a desesperança na idade adulta, chegava, pela disputa democrática, ao mais alto posto da República. Pela primeira vez, a longa jornada de um retirante, que começara, como a de milhões de nordestinos, em cima de um pau-de-arara, terminava, como expressão de um projeto coletivo, na rampa do Planalto.

Enquanto que, em 2003, conforme se observa no trecho (4), da subseção “Categoria de

tempo e de pessoa”, da seção “Pronunciamento proferido por Lula na sessão solene de posse:

2003”56

56 “Quando olho a minha própria vida de retirante nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, que se tornou torneiro mecânico e líder sindical, que um dia fundou o Partido dos Trabalhadores e acreditou no que estava fazendo, que agora assume o posto de Supremo Mandatário da Nação, vejo e sei, com toda a clareza e com toda a convicção, que nós podemos muito mais.”

, o “eu-mítico”, protagonista de uma saga heróica e singular, manifesta-se a partir da

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instauração alternada do “eu” e do “ele”, no trecho acima destacado, o “eu-mítico” se

constrói a partir da construção do referente “protótipo homem do povo”, ou seja, a partir do

“ele” benvenistiano. Ou seja, manifesta-se a partir da construção de um objeto discursivo

situado fora da relação “eu”/ “tu”, mas que se constrói nessa relação. Constata-se, desse

modo, que se busca delimitar as fronteiras não entre o “aqui” e o “lá”, mas entre o “hoje”

(2007) e o “ontem” (2003). Registra-se, assim, a contraposição das duas posses de Lula à

presidência da República, e não a instauração da passagem de Lula-companheiro para Lula-

presidente, o que parece registrar, por sua vez, não a presença marcante do companheiro na

instância do presidente, mas a necessidade de não deixar que o passado pessoal e político de

Lula seja esquecido pelo interlocutor, a fim de que se confira ênfase ao ineditismo de sua

trajetória político-pessoal. A partir da observação do emprego distinto das pessoas do discurso

que se opera no momento das duas posses de Lula à presidência da República, constata-se

que, se, em 2003, o passado pessoal do locutor se manifesta de modo intenso e marcante, o

mesmo não se verifica em 2007, quando este se manifesta como uma simples reminiscência,

embora a instância política se esmere em dotá-la de expressividade. O modo como o passado

pessoal de Lula é evocado em 2007 acaba, portanto, por denunciar o quanto o locutor se

distanciou de seu passado ao longo do cumprimento dos quatro anos de seu primeiro mandato

como presidente da República. Mas, ao mesmo tempo, traduz o cuidado de recuperá-lo, a fim

de não só deixar que o interlocutor não só o esqueça, como também o perceba como um norte

a orientar, contínua e constantemente, a conduta do locutor, conforme se pode observar no

excerto apresentado a seguir, a partir da manifestação do “eu-indivíduo”.

(5) Um dos compromissos mais profundos que tenho comigo mesmo é o de jamais esquecer de onde vim. Ele me permite saber para onde seguir.

O “eu-indivíduo” manifesta-se, também, marcando outra contraposição, no que diz

respeito a dois momentos distintos: a primeira e a segunda tomada de posse da presidência da

República pelo locutor, como se pode notar no trecho a seguir.

(6) Tudo é muito parecido, mas tudo é profundamente diferente. É igual e diferente o Brasil; é igual e diferente o mundo; e, eu, sou também igual e diferente. Sou igual naquilo que mais prezo: no profundo compromisso com o povo e com meu País. Sou diferente na consciência madura do que posso e do que não posso, no pleno conhecimento dos limites. Sou igual no ímpeto e na coragem de fazer. Sou diferente na experiência acumulada na difícil arte de governar.

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187 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Busca-se, nesse trecho, a partir da emergência do “eu-indivíduo”, destacar os valores

mantidos pelo locutor e a experiência por ele acumulada, “na difícil arte de governar”, ao

longo dos quatro anos de cumprimento do primeiro mandato presidencial. É interessante

observar que, embora adotando a perspectiva do “eu”, o locutor se apresenta, a um só tempo,

como agente e como observador/avaliador de um processo. Ou seja, apresenta-se inserido no

processo, como participante ativo e exclusivo, e fora deste, como observador/avaliador. A

adoção desse duplo papel parece, a um só tempo, apresentá-lo completamente envolvido em

seu processo de mudança pessoal e distanciado o suficiente desse processo para observá-lo e

avaliá-lo com discernimento e isenção. O emprego de tal estratégia lingüístico-discursiva

parece contribuir, sobremaneira, para a construção do referente “espetáculo político”, o qual

constitui, no pronunciamento em estudo, além do ritmo a ser impresso à mudança do modelo

sócio-político e econômico, o amadurecimento do agente dessa mudança. Ou, melhor

dizendo, a mudança pessoal experimentada pelo responsável por implementar a mudança do

modelo sócio-político e econômico.

No seguinte trecho, que conduz para o fechamento do pronunciamento, verifica-se,

mais uma vez, a manifestação do “eu-indivíduo”, por meio do qual o locutor revela sua

unicidade a partir da expressão de íntimos anseios.

(7) Minhas Senhoras, meus Senhores, Reconheço que Deus tem sido generoso comigo. Mais do que mereço. Eu pedi forças... e Deus me deu dificuldades para fazer-me forte. Eu pedi sabedoria... e Deus me deu problemas para resolver. Eu pedi prosperidade... e Deus me deu cérebro e músculos para trabalhar. Eu pedi coragem... e Deus me deu perigos para superar. Eu pedi amor... e Deus me deu pessoas com dificuldades para ajudar. Eu pedi dádivas... e Deus me deu oportunidades. Eu não recebi nada do que pedi, mas eu recebi tudo que precisava.

Vale notar que, diferentemente do que ocorre no pronunciamento de 2003, não se

observa, neste pronunciamento, a emergência do “eu-indivíduo”, como manifestação do ser

social, em compartilhamento de experiências e anseios com o interlocutor. Parece que, ao

focar-se apenas a manifestação do “eu-indivíduo”, em sua essência particular, confere-se

destaque especial à construção do referente “imagem de homem público”, a qual, por sua vez,

alicerça a construção do referente “espetáculo político”. Algo semelhante se observa no que

diz respeito à manifestação do “eu-líder político partidário e sindical”, da qual se tem registro

somente no pronunciamento de 2003. A ausência de tal manifestação, neste pronunciamento,

parece denunciar que não só o passado remoto pessoal de Lula sofreu um apagamento, como

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também o seu passado remoto político. Mas se faz oportuno ressaltar que, enquanto aquele

ainda é evocado, a fim de evitar que se apague, por completo, a origem social do locutor, este

não é sequer referido, o que parece revelar, na situação de comunicação em questão, a

ausência de preocupação de mantê-lo vivo.

O “eu-candidato” emerge, por sua vez, a partir da necessidade de se ajustar a

justificação própria do discurso político-presidencial - que, no caso específico do

pronunciamento em questão, diz respeito ao cumprimento das promessas feitas na campanha

eleitoral de 2002, - à apresentação de novas promessas. Promove-se, assim, como se observa

no excerto a seguir, a estratégica associação do discurso político-presidencial ao discurso

político-eleitoral, considerando-se que, enquanto este é marcadamente caracterizado pela

promessa, aquele o é pela justificação. Mas vale chamar a atenção para o fato de que, nessa

situação específica de comunicação, tanto a promessa quanto a justificação, provêm de uma

instância detentora, de forma legítima, do poder político.

(8) Quatro anos atrás eu disse que o verbo mudar iria reger o nosso governo. E o Brasil mudou. Hoje, digo que os verbos acelerar, crescer e incluir vão reger o Brasil nestes próximos quatro anos. Os efeitos das mudanças têm que ser sentidos rápida e amplamente.

Já nos excertos expostos a seguir, nota-se a manifestação do “eu-presidente da

República”, a partir da qual se revela o detentor do poder supremo, consciente e seguro acerca

do lugar que ocupa, diferentemente do que se verifica no pronunciamento de 2003, quando o

“eu-presidente da República” se apresenta fortemente influenciado pelo “eu-candidato”.

(9) Tenho claro que nenhum país consegue firmar uma política sólida de crescimento se o custo do capital, ou seja, o juro for mais alto do que a taxa média de retorno dos negócios.

(10) Sinto que em matéria de segurança pública, um verdadeiro flagelo nacional, crescem as condições para uma efetiva cooperação entre a União e os estados da Federação, sem a qual será muito difícil resolver este crucial problema brasileiro.

(11) Meu governo, atento às manifestações das ruas e, em especial, aos movimentos sociais, construiu grande parte de suas políticas públicas e importantes decisões governamentais, consultando a opinião da sociedade organizada em Conferências Nacionais, Conselhos e Foros.

(12) Convido todos os senhores para nos sentarmos à mesa e iniciarmos o seu debate e urgente encaminhamento, ao lado de outras reformas importantes, como a tributária, que precisamos concluir.

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189 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Contrapondo esses excertos ao (3), destacado na subseção “Categoria de tempo e de

pessoa”, da seção “Pronunciamento proferido por Lula na sessão solene de posse: 2003” 57

No que diz respeito ainda à emergência do “eu”, pode-se dizer que ela ocorre ao longo

de todo o pronunciamento, e, principalmente, na primeira parte deste, em que se verifica, de

modo exclusivo, tal manifestação. Mas vale notar que, se, no início do pronunciamento, a

partir do trecho “Quatro anos atrás, nesta Casa, em um primeiro de janeiro, vivi a experiência

mais importante de minha vida, [...]”, ao recuperar o passado, o locutor enuncia sob a

perspectiva exclusiva do “eu”, o mesmo não ocorre a partir do trecho “Quatro anos depois, o

Brasil é igual na sua energia produtiva e criadora”, em que o locutor faz referência ao tempo

presente. Ao se dedicar à apresentação das conquistas observadas, no presente, como

,

constata-se que, enquanto, no pronunciamento de 2003, o tempo da enunciação sofre

atualizações, a fim de que se faça referência a ações passadas e futuras, no pronunciamento de

2007, isso já não ocorre da mesma forma. Em (12), por exemplo, observa-se a ocorrência do

tempo da enunciação, ao passo que, em (8) e (9), o tempo da enunciação é atualizado,

referindo-se a um presente atemporal, ou seja, a um tempo não só coincidente com o

momento da enunciação, mas contínuo. Em (10), o tempo da enunciação é atualizado,

remetendo ao primeiro mandato presidencial do locutor. Já, em 2003, atualização a esta

semelhante do tempo da enunciação é feita, a fim de que se remeta à época da campanha

eleitoral.

No excerto “Quero reafirmar, neste dia tão importante, que o meu sonho é ajudar a

transformar o Brasil no país mais democrático do mundo no acesso à universidade”,

manifesta-se a curiosa confluência do “eu-indivíduo”, do “eu-presidente” e do “eu-

candidato”. Nesse trecho, o sonho manifesto pela instância política parece ser assumido, a um

só tempo, pelo “eu-indíviduo”, em sua particularidade, e pelo “eu-presidente”, em sua

representação social. Parece se agregar a essas manifestações a do “eu-candidato”,

considerando-se a promessa de realização de um feito de grandes proporções (“transformar o

Brasil no país mais democrático do mundo no acesso à universidade”). Ou seja, o “eu-

candidato” parece também se manifestar nesse trecho se se considerar que a promessa é

característica marcante do discurso político-eleitoral, e, ainda, que, nas campanhas eleitorais,

as promessas não raro assumem um caráter apoteótico.

57 “Por isso, defini entre as prioridades de meu Governo um programa de segurança alimentar que leva o nome de Fome Zero. Como disse em meu primeiro pronunciamento após a eleição, se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida.”

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190 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

decorrência de ações desenvolvidas no cumprimento de seu primeiro mandato, e, ao projetar

as ações a serem desenvolvidas ao longo do mandato que ora se inicia, o locutor enuncia,

sobretudo, sob a perspectiva múltipla do “nós”. Na parte dedicada a essa apresentação, como,

por exemplo, no excerto abaixo destacado, observa-se um predomínio da ocorrência do “nós-

inclusivo” (“eu” + “tu-equipe de governo”).

(13) Muito tentamos nos últimos quatro anos, mas fatores históricos, dificuldades políticas e prioridades inadiáveis fizeram com que nosso esforço não fosse inteiramente premiado. Hoje a situação é bem melhor, pois construímos os alicerces e temos um projeto claro de País a ser realizado. Precisamos de firmeza e ousadia para mudar as regras necessárias e avançar. Não podemos desperdiçar energias, talentos, esperanças.

Verifica-se também a manifestação do “nós-inclusivo” na combinação “eu” + “tu-

nação brasileira”, conforme exemplificado nos seguintes excertos, porém com incidência bem

mais tímida do que a observada no pronunciamento de 2003.

(14) O Brasil ainda possui sérias travas ao seu crescimento e fragilidades nos seus instrumentos de gestão. Mas nosso País é diferente, para melhor: na estabilidade monetária; na robustez fiscal; na qualidade da sua dívida; no acesso a novos mercados e a novas tecnologias; e na redução da vulnerabilidade externa. O trabalhador brasileiro ainda não ganha o que realmente merece, mas temos hoje um dos mais altos salários mínimos das últimas décadas, e os trabalhadores obtiveram ganhos reais em 90% das negociações salariais nestes últimos quatro anos.

(15) Trata-se de superar os grandes déficits educacionais que nos afligem e, ao mesmo tempo, dar passos acelerados para transformar nosso País em uma sociedade de conhecimento, que nos permita uma inserção competitiva e soberana no mundo.

(16) Temos no Brasil um desafio pela frente. Desafio para as forças que se identificam com este governo e para aquelas que se situam na oposição. Temos de refletir sobre nossas instituições e nossas práticas políticas. Temos de construir consensos que não eliminem nossas diferenças, nem apaguem os conflitos próprios das sociedades democráticas. Precisamos de um sistema político capaz de dar conta da rica diversidade de nossa vida social. Nossas instituições têm de ser mais permeáveis à voz das ruas. Precisamos fortalecer um espaço público capaz de gerar novos direitos e produzir uma cidadania ativa.

Faz-se oportuno chamar a atenção para o fato de que, se, no pronunciamento de posse

proferido em 2003, o locutor enuncia, de modo expressivo, a partir da perspectiva do “nós”

(“eu” + “tu-sociedade brasileira”), o mesmo não se constata em 2007, quando se verifica

incidência significativa do “nós”, mas a partir da perspectiva do “eu” + “tu-equipe de

governo”. Quanto a esse aspecto, faz-se também oportuno elucidar que, em 2007, observa-se

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191 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

uma redução da polifonia no lugar do “tu” em relação a 2003, a qual se poderia dizer que

traria um teor mais técnico e menos popular/eleitoral ao pronunciamento ora em estudo. Isso

parece revelar a emergência prioritária, em 2007, do chefe de Estado, do detentor do poder,

em detrimento do companheiro, do homem do povo, emergência esta primaz em 2003, o que

acaba por produzir um distanciamento do locutor em relação a um segmento expressivo que

compõe a instância da interlocução: o povo brasileiro. Esse distanciamento assume

proporções ainda mais expressivas se se considerar que, em 2007, a origem social do locutor é

também evocada. Sendo assim, postas em relação essas duas realidades, a do homem do povo

e a do detentor do poder, tendo em vista que a primeira se manifesta associada ao tempo

passado, enquanto a segunda, ao tempo presente, produz-se a amplificação de tais efeitos de

distanciamento. A construção da imagem de “Lula-homem público”, de “Lula-presidente da

República” se dá, portanto, de forma espetacularizada, fazendo com que esta seja, no

pronunciamento em estudo, o espetáculo político construído na relação “eu” / “tu”, tendo em

vista, mais uma vez, que o que se destaca é o ineditismo da ascensão e permanência no poder

de um homem do povo.

Neste pronunciamento, vale ainda destacar a manifestação do “nós-inclusivo” (“eu” +

“tu-classe política”), conforme apresentado no excerto abaixo.

(17) A reforma política deve ser prioritária no Brasil. Convido todos os senhores para nos sentarmos à mesa e iniciarmos o seu debate e urgente encaminhamento, ao lado de outras reformas importantes, como a tributária, que precisamos concluir. Apesar dos avanços científicos e tecnológicos de nosso mundo, ainda não foi inventada nenhuma ferramenta mais importante do que a política para a solução dos problemas dos povos. O caminho da política exige paciência, concessões mútuas, compreensão do outro. Exige que sejamos capazes de levar ao extremo a prática da escuta. Pois só assim é possível sintonizar e harmonizar interesses. Mas exige opções, alinhamentos. Neste dia inaugural de meu novo mandato, não peço a ninguém que abandone suas convicções. Não desejo que a oposição deixe de cumprir o papel que dela esperam os que por ela livremente optaram. Quero pedir-lhes, apenas, que olhemos mais para o que nos une do que para o que nos separa. Que concentremos o debate nos grandes desafios colocados para o nosso País e para o mundo. Que estejamos à altura do que necessita e deseja o nosso povo. Só assim poderemos estar todos a serviço deste País que tanto amamos.

Vê-se que o locutor enuncia, a partir da perspectiva do “eu-presidente da República”,

convidando a classe política (“Convido todos os senhores...”; “Quero pedir-lhes...”), na qual

ele se inclui (“... que olhemos mais...”; “Só assim poderemos...”), a se unir em busca da

realização de um único ideal. Essa manifestação do “nós-inclusivo” (“eu” + “tu-classe

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192 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

política”) reafirma a emergência prioritária, no pronunciamento de posse de 2007, do chefe de

Estado, do detentor do poder e, assim, confere ênfase ao amadurecimento do locutor como

agente da mudança prometida no proferimento de posse de 2003, o qual constitui o referente

“espetáculo político” construído na relação “eu” / “tu”.

Nos dois excertos que se seguem, observam-se as duas únicas manifestações do “nós-

inclusivo” mais amplo, no pronunciamento de posse de 2007, considerando-se que, nestes, o

locutor institui uma instância de interlocução de grande dimensão, congregando todos aqueles

que a compõem.

(18) Apesar dos avanços científicos e tecnológicos de nosso mundo, ainda não foi inventada nenhuma ferramenta mais importante do que a política para a solução dos problemas dos povos.

(19) Muito obrigado. Boa Sorte. E Feliz Ano Novo para todo o povo brasileiro, para todos nós.

Vale ainda observar que, a partir da enunciação fundadora (En0), institui-se outra

enunciação e outro enunciador. Neste trecho, por exemplo, o tema “corrupção”, alvo de grave

crise política instalada no primeiro mandato, é trazido à baila juntamente com o tema “crime

organizado”, mas sob a perspectiva de outro enunciador. Verifica-se, em “Nunca se combateu

tanto a corrupção e o crime organizado”, que, por intermédio do emprego do verbo

“combater”, na voz passiva, E0 instaura outra enunciação e outro enunciador, aos quais é

atribuído o valor de verdade acerca do que é enunciado.

(20) O Brasil ainda precisa avançar em padrões éticos e em práticas políticas. Mas hoje é muito melhor na eficiência dos seus mecanismos de controle e na fiscalização sobre seus governantes. Nunca se combateu tanto a corrupção e o crime organizado. Muita coisa melhorou na garantia dos direitos humanos, na defesa do meio ambiente, na ampliação da cidadania e na valorização das minorias.

Em (20), trecho destacado do pronunciamento de posse proferido pelo locutor em

200358

A partir deste estudo, constata-se que, neste pronunciamento, o tempo lingüístico sofre

atualizações, referenciando, prioritariamente, o passado não mais remoto, mas relativamente

, observa-se que a apresentação do tema “corrupção”, diferentemente do que ocorre no

pronunciamento de 2007, é assumida por E0.

58 “O combate à corrupção e a defesa da ética no trato da coisa pública serão objetivos centrais e permanentes do meu Governo. É preciso enfrentar com determinação e derrotar a verdadeira cultura da impunidade que prevalece em certos setores da vida pública. Não permitiremos que a corrupção, a sonegação e o desperdício continuem privando a população de recursos que são seus e que tanto poderiam ajudar na sua dura luta pela sobrevivência.”

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193 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

recente, ou seja, o passado referente aos quatro anos de gestão do primeiro mandato

presidencial de Lula. O presente não só se refere ao momento da enunciação, ou seja, à

segunda tomada de posse de Lula à presidência da República, como também ao momento em

que se conclui o primeiro mandato. Já o futuro é referenciado, assim como no

pronunciamento de 2003, a fim de que se projetem os próximos quatro anos nos quais se

cumprirão o segundo mandato do governo Lula. Considerando-se que este pronunciamento

não só registra a recondução de Lula ao poder, mas também constitui instrumento por meio do

qual se confere ênfase ao amadurecimento conquistado pelo agente responsável pelas

mudanças historicamente prometidas, a instância política enuncia, prioritariamente, a partir da

perspectiva do “eu-indivíduo”, do “eu-presidente da República” e do “nós-inclusivo” (“eu +

tu-equipe de governo”). Assim como no pronunciamento de 2003, no pronunciamento de

2007, não se observa a manifestação do “nós-exclusivo”. O “eu-indivíduo”, por sua vez,

diferentemente do que se constata no pronunciamento de 2003, não se revela marcado pela

duplicidade, uma vez que apenas revela o locutor em sua particularidade, ao passo que o “eu-

presidente da República” emerge como o condutor, consciente do lugar que ocupa, da

instância “nós-inclusivo” (“eu” + “tu-equipe de governo”), de modo a esta se sobrepor.

Observa-se, assim, a partir do estudo das categorias de tempo e pessoa que o objeto discursivo

“espetáculo político” construído a partir deste pronunciamento é, mais uma vez, o locutor

político.

4.3.2 Ducrot: indicadores para referência – posse 2007

Neste pronunciamento de posse, igualmente ao de 2003, os indicadores para referência

não só representam imprescindíveis recursos para referir, por exemplo, o tempo e o espaço,

como também para apresentar a temática central do texto, a qual constitui, assim como em

2003, a mudança. Faz-se oportuno, entretanto, salientar que, se, em 2003, a temática central se

apresenta não só, mas de forma enfática, a partir da repetitiva ocorrência do vocábulo

“mudança”, o qual abre o pronunciamento, o mesmo não se verifica no proferimento de 2007,

quando tal apresentação se faz por intermédio do emprego de outros recursos, dentre os quais

se destacam os demonstrativos, os dêiticos e os determinantes.

No seguinte excerto, por exemplo, que abre o pronunciamento, o locutor, logo após, a

um só tempo, instituir-se como enunciador e instaurar os seus enunciatários, institui sua

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194 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

própria referência, situando-se no tempo e no espaço discursivos, a partir dos indicadores para

referência, contidos nas seguintes expressões: “quatro anos atrás”, “nesta Casa”, “hoje” e

“esta Casa”.

(1) Quatro anos atrás, nesta Casa, em um primeiro de janeiro, vivi a experiência mais importante de minha vida, a de assumir a Presidência do meu País. Não era apenas a realização de um sonho individual. O que então ocorreu foi o resultado de um poderoso movimento histórico do qual eu me sentia, e ainda hoje me sinto, parte e humilde instrumento. Pela primeira vez, um homem nascido na pobreza, que teve que derrotar o risco crônico da morte na infância e vencer, depois, a desesperança na idade adulta, chegava, pela disputa democrática, ao mais alto posto da República. Pela primeira vez, a longa jornada de um retirante, que começara, como a de milhões de nordestinos, em cima de um pau-de-arara, terminava, como expressão de um projeto coletivo, na rampa do Planalto. Hoje estou de volta a esta Casa, no mesmo primeiro de janeiro e quase na mesma hora.

A partir dessa indicação do tempo e do espaço discursivos, instaura-se uma

contraposição entre a primeira posse da presidência da República, experimentada pelo locutor

em 2003, e a recondução deste ao poder em 2007. O estabelecimento de tal contraposição

parece criar condições favoráveis à construção do referente “mudança”, por intermédio da

qual se instaura, por sua vez, o processo de construção do referente “espetáculo político”. A

partir dessa contraposição, busca-se promover um paralelo não só entre as condições sócio-

políticas e econômicas em que o locutor assume a presidência da República em 2003 e as

condições em que este é reconduzido ao poder, como também um paralelo entre o locutor em

2003 e este em 2007. Ou seja, entre o locutor no início de seu primeiro mandato e o locutor no

término deste/início do segundo. No que diz respeito ao paralelo entre as condições sócio-

políticas e econômicas observadas nos dois períodos, busca-se apresentar o primeiro mandato

presidencial de Lula como um período de grandes realizações e, portanto, de grandes avanços.

Já no que concerne à comparação do locutor nesses dois períodos distintos, busca-se, a partir

desta, valorizar seu crescimento e amadurecimento, sobretudo, políticos, a fim de dotá-lo de

experiência e conhecimento necessários a uma segunda gestão bem sucedida, e, antes disso, a

fim de se justificar a conveniência de o locutor ser reconduzido ao poder. Sendo assim, o

referente “mudança” constrói-se, no pronunciamento em estudo, a partir de dupla perspectiva:

a mudança do contexto sócio-político e econômico e a mudança experimentada pelo agente

dessa mudança, o qual, considerando-se o lugar que ocupa nesse contexto de mudança, acaba

por constituir o grande espetáculo a ser construído pelos parceiros enunciativos, nessa

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195 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

situação específica de comunicação. Os demonstrativos, os dêiticos e os determinantes,

constituem, portanto, no pronunciamento ora em estudo, imprescindíveis indicadores para a

construção da referência temporal e espacial, a partir da qual se apresenta e se define a

temática central: a mudança.

As descrições definidas, por sua vez, ora indicam o tempo e o espaço discursivos, ora

apontam para objetos a partir de cuja construção se opera a construção do referente

“mudança” e, por conseguinte, do referente “espetáculo político”. Faz-se oportuno destacar

que, nesses dois casos, o emprego das descrições definidas atende a uma única e última

finalidade: a construção do objeto discursivo “espetáculo político”.

No que diz respeito à indicação do tempo e do espaço discursivos, observa-se, por

exemplo, que, em (1), empregam-se duas descrições definidas – “a experiência mais

importante de minha vida” e “a [experiência]” de assumir a Presidência do meu País”59

59 “Quatro anos atrás, nesta Casa, em um primeiro de janeiro, vivi a experiência mais importante de minha vida, a de assumir a Presidência do meu País.”

– que

remetem à primeira vez em que o locutor assume a presidência da República, mais

precisamente à Cerimônia de Posse, evento em que Lula assume, em 2003, oficialmente, a

presidência. Observa-se que, enquanto a segunda descrição definida explica e especifica o

significado atribuído à primeira, uma vez que exerce a função sintática de aposto explicativo

desta, a primeira qualifica a segunda, o que parece ser imediatamente interpretado pelo

interlocutor, graças ao seu conhecimento prévio acerca da trajetória política de Lula,

acrescido ao fato de as descrições em questão terem sido empregadas muito próximas uma da

outra. Ainda em (1), nos dois parágrafos subseqüentes ao qual essas duas descrições definidas

se apresentam, empregam-se, respectivamente, outras duas - “a realização de um sonho

individual” e “o resultado de um poderoso movimento histórico” - as quais parecem contribuir

para a amplificação não só do grau, como também da amplitude da importância que se atribui,

no início desse excerto, à primeira vez em que Lula conquista o poder. Nota-se que as três

primeiras descrições definidas empregadas referem-se à esfera do individual, ao passo que a

última redimensiona a experiência individual para o campo do coletivo, o que possibilita que

se interprete a ascensão de Lula ao poder em 2003 como uma conquista não individual, mas,

acima de tudo, coletiva e, portanto, decorrente da vontade e do esforço coletivos, ou seja,

como algo de grandes proporções. Verifica-se, assim, que, a partir do emprego dessas quatro

descrições definidas, ao ser recuperado o momento em que o locutor toma posse da

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196 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

presidência da República pela primeira vez, momento este que é naturalmente contraposto

àquele em que o locutor é reconduzido ao poder, amplifica-se a valorização que se busca

atribuir ao locutor e, conseqüentemente, ao momento em que se registra a sua segunda tomada

de posse da presidência da República.

A amplificação dessa valorização pode ser notada também no terceiro e quarto

parágrafos de (1), nos quais se apresenta, por duas vezes, logo após se conferir à vitória de

Lula em 2002, uma dimensão, acima de tudo, coletiva, a expressão “pela primeira vez”, a qual

sugere o ineditismo do processo que resultou em “um poderoso movimento histórico”. Em

seguida ao primeiro emprego dessa expressão, são descritos o início e o curso de vida da

maioria dos brasileiros, em contraste com o fim do percurso alcançado por um único destes: o

locutor. No outro segmento em que se encontra o segundo emprego dessa expressão, são

apresentados, da mesma forma, o início e o curso de vida de milhões de nordestinos, em

oposição ao fim da trajetória atingido por único deles: também o locutor. Em ambos os

enunciados, confirma-se, assim, o ineditismo do processo que resultou em tal movimento.

Expressões indefinidas tais como “um homem”, “um retirante”, “milhões de nordestinos”,

postas em relação com expressões definidas tais como “a pobreza”, “o risco crônico da

morte”, “a desesperança na vida adulta”, “o mais alto posto da República”, “a longa jornada

de um retirante”, conduzem à interpretação da singularidade que caracteriza o movimento de

mudança enfocado e aquele que lhe deu impulso. Se se observar, ainda, que a expressão “pela

primeira vez” não contém palavra alguma que restringe essa ocorrência no espaço, como o

teria se tivesse sido empregada, por exemplo, a expressão “pela primeira vez no Brasil”, o

ineditismo assume um caráter ainda mais singular e, portanto, espetacular. Ou seja, tal

expressão parece contribuir para que se interprete a mudança social experimentada pelo

locutor como a primeira ocorrência de tal feito na história da humanidade, principalmente se

posta em relação com a expressão indefinida “um poderoso movimento histórico”. Parece-nos

possível poder dizer que as expressões, respectivamente, definida e indefinida, “[pel]a disputa

democrática” e “um projeto coletivo” favorecem que o elemento propulsor do “poderoso

movimento histórico” possivelmente seja interpretado como sendo fruto de uma escolha

social, ou seja, como o eleito, o escolhido a propulsionar tal movimento. Verifica-se, assim,

que, a partir do emprego, em (1), dessas descrições definidas e indefinidas, parece se

pretender que o interlocutor recupere, na linha do tempo, a trajetória de vida do locutor,

interpretando-a como uma trajetória de luta, dificuldades, derrotas, mas, sobretudo, de

esperança e de inédito sucesso, da qual é subtraído o período de quatro anos correspondente

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197 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

ao primeiro mandato de Lula como presidente da República. Constroem-se, assim, sobretudo,

nos domínios avaliativos da grandeza, da glória e do fantástico, os referentes “presidente-

herói”, “modelo público de realidade” e “espetáculo político”.

Não só no início do pronunciamento, mas um pouco mais à frente, recupera-se, mais

uma vez, o passado remoto do locutor. Apresentado como um predestinado que sabe seguir as

pistas que lhes são colocadas sobre o caminho a ser trilhado, o locutor aponta, como seu ponto

de referência, a sua origem na pobreza, no seguinte excerto, a partir da descrição definida “o

[compromisso] de jamais esquecer de onde vim”, abaixo destacada.

(2) Meus Senhores e minhas Senhoras, Um dos compromissos mais profundos que tenho comigo mesmo é o de jamais esquecer de onde vim. Ele me permite saber para onde seguir. Hoje, posso olhar nos olhos de cada um dos brasileiros e brasileiras e dizer que mantive, mantenho e manterei meu compromisso de cuidar, primeiro, dos que mais precisam.

Os elementos dêiticos espaciais “de onde” e “para onde”, por sua vez, referem-se,

respectivamente, a ponto de partida, origem, e ponto de chegada, ou, melhor dizendo, a

direção a ser tomada para se alcançar o fim predestinado. Observa-se que tais expressões

dêitico-espaciais apontam, sobretudo, para um lugar social, e não meramente físico, o que

acaba por qualificar os referentes construídos a partir dessas expressões, contribuindo, assim,

para o estabelecimento da contraposição entre passado e presente e, portanto, para a

construção do referente “mudança”. Mas vale chamar a atenção para o fato de que o passado

evocado revela-se anterior à posse de 2003, instaurando uma contraposição entre três

momentos distintos da vida do locutor: a sua origem social (passado remoto), a sua ascensão

ao poder em 2003 (passado próximo) e a sua recondução ao poder em 2007 (presente). O

momento presente, “hoje”, apresenta o locutor como alguém que pertencera, no passado

remoto, ao grupo “dos que mais precisam” e que, graças à experiência pessoal acumulada

como partícipe desse grupo, aliada à experiência política até então conquistada, emerge como

alguém que, como pessoa alguma, sabe o que deve ser feito para minorar o sofrimento dos

mais necessitados. Mas se faz oportuno destacar que, embora a origem social do locutor seja

recuperada no pronunciamento de 2007, constata-se que esta apenas é trazida do passado

remoto, a fim de que seja despertada na memória do interlocutor, ativando-lhe conhecimentos

previamente construídos, e não como uma manifestação da presença ativa de tal origem no

presente do locutor. Constata-se, desse modo, que, se, no pronunciamento de 2003, a origem

e a ascensão sociais do locutor são exploradas intensamente, manifestando-se como um

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198 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

passado não remoto, mas ainda bastante ativo no presente, o mesmo não se verifica no

pronunciamento de 2007, em que se busca enfatizar e explorar o amadurecimento político do

locutor, conquistado, principalmente, ao longo dos quatro anos de cumprimento do primeiro

mandato. Em decorrência disso, a origem e a ascensão sociais do locutor manifestam-se como

lembranças apenas evocadas de um passado remoto, há muito concluído, as quais, entretanto,

a instância política se esforça para dotar de vigor e atualidade.

Em (3) e (4), por exemplo, trechos que compõem a parte do pronunciamento de posse

de 2007, reservada à apresentação do que se pretende implementar no segundo mandato,

busca-se conferir destaque ao amadurecimento político conquistado pelo locutor. Nesses

trechos, são empregados recursos lingüísticos, a partir dos quais se engendra a construção do

objeto discursivo “política”.

(3) Meus Senhores e minhas Senhoras, Apesar dos avanços científicos e tecnológicos de nosso mundo, ainda não foi inventada nenhuma ferramenta mais importante do que a política para a solução dos problemas dos povos. Nunca o mundo viveu, como vive hoje, um período de tão grande descrédito na política. Mas, paradoxalmente, nunca a política foi tão imprescindível.

(4) O caminho da política exige paciência, concessões mútuas, compreensão do outro. Exige que sejamos capazes de levar ao extremo a prática da escuta. Pois só assim é possível sintonizar e harmonizar interesses. Mas exige opções, alinhamentos. Neste dia inaugural de meu novo mandato, não peço a ninguém que abandone suas convicções. Não desejo que a oposição deixe de cumprir o papel que dela esperam os que por ela livremente optaram. Quero pedir-lhes, apenas, que olhemos mais para o que nos une do que para o que nos separa. Que concentremos o debate nos grandes desafios colocados para o nosso País e para o mundo. Que estejamos à altura do que necessita e deseja o nosso povo. Só assim poderemos estar todos a serviço deste País que tanto amamos. Eu, de minha parte, governarei para todos, sem olhar para cor, credo, opção ideológica ou partidária. Mais que nunca, sou um homem de uma só causa. E esta causa se chama Brasil.

Observa-se, assim, que, em (4), a descrição definida “a política” indica um objeto a

partir de cuja construção se engendra a construção do referente “mudança” e, por conseguinte,

do referente “espetáculo político”, tendo como alvo o amadurecimento político experimentado

pelo locutor. Nesse trecho, tal descrição definida remete a uma prática que se traduz como a

arte do diálogo, em contraposição a (3), trecho em que se reconhece que o objeto política é

representado de forma negativa pelo senso comum, como a arte da barganha, como a arte “do

toma lá dá cá”. Verifica-se, em (3), que o locutor assume ter consciência do descrédito na

política experimentado pelo interlocutor, tanto que se preocupa em apresentá-lo como um

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199 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

problema global, e não só brasileiro. E, ainda, preocupa-se em amplificar o valor positivo que

a esta busca conferir, como forma de buscar suplantar a valoração negativa que reconhece que

o interlocutor lhe atribui, caracterizando-a, em (4), como a arte do diálogo. Tomando a

política como arte e, portanto, como capacidade natural ou desenvolvida de colocar em prática

os recursos necessários para que se obtenha determinado resultado, o locutor se apresenta

como alguém que não só possui tal capacidade, como também a habilidade de congregar

forças políticas distintas em prol da prática do diálogo. Sendo assim, o locutor se apresenta

não só como um político maduro e consciente das dificuldades e possibilidades inerentes à

política, como, principalmente, uma exceção nesse meio, pois se coloca em condição superior

aos demais que compõem a classe política, uma vez que, ao descrever a política como a

prática da escuta, ativa-lhe o sentido contrário. Ou seja, contrapõe o ideal ao que, de fato,

ocorre, no âmbito da política, apresentando-se como o elemento capaz de promover a

passagem do ideal para a prática. Verifica-se, assim, que o locutor se coloca acima das

disputas mundanas tão comuns no âmbito da política do qual ele participa, conclamando todos

à união em prol de um bem comum, em prol da causa por ele abraçada: o Brasil, o povo

brasileiro.

Mas é interessante que se observe que (4) foi apresentado logo após este trecho,

(5) O povo fez uma escolha consciente. Mais do que um homem, escolheu uma proposta, optou por um lado. Não faltaram os que, do alto de seus preconceitos elitistas, tentaram desqualificar a opção popular como fruto da sedução que poderia exercer sobre ela o que chamavam de “distribuição de migalhas”. Os que assim pensam não conhecem e não entendem este País. Desconhecem o que é um povo sem feitores, capaz de expressar-se livremente. O que distribuímos, e mais do que isso socializamos, foi cidadania.

Contrapondo um a outro esses dois trechos, observa-se que o vocábulo “opções”,

empregado em (4), parece apontar para a expressão (in)definida “uma escolha consciente” e

para a expressão definida “a opção popular”, empregadas em (5). No primeiro caso, devido ao

fato de o vocábulo “consciente” qualificar o núcleo da expressão, a dimensão indefinida perde

seu teor, considerando-se que a dimensão discursiva reorienta a dimensão gramatical do

artigo. Pode-se assim dizer que a expressão “uma escolha consciente” é provavelmente

interpretada como a opção popular, registrada nas urnas, em outubro de 2006, de manter Lula

no poder por mais quatro anos. Observa-se que, enquanto em (5) a descrição (in)definida

“uma escolha consciente” refere-se à relação entre políticos e eleitores, em (4), o vocábulo

“opções”, embora não constitua uma descrição definida, remete às relações que se

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200 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

estabelecem, internamente, entre políticos. A expressão indefinida “um lado”, empregada em

(5), sugere, ainda, que a política é compartimentada, segmentada. E, ainda, embora não se

possa, neste pronunciamento, atribuir um referente às expressões indefinidas “os que, do alto

de seus preconceitos elitistas, tentaram desqualificar a opção popular...” e “os que assim

pensam...”, parece-nos possível, a partir do estabelecimento de relações lógicas entre alguns

elementos lingüísticos empregados no texto, a inferência de que parte da classe política

compõe o grupo dos preconceituosos ao qual o locutor se refere.

Sugere-se, desse modo, que a política é o campo não só do conflito, como também do

ressentimento, da animosidade, o que corrobora para que a construção do referente “política”

se processe, principalmente, a partir de qualificações negativas. Mas tais elementos

lingüísticos favorecem não só que o referente “política” se construa dotado de caráter

pejorativo, como também o referente “classe política”, na qual o locutor se revela incluído e

perfeitamente ajustado, considerando-se que este manifesta animosidade em relação aos seus

oponentes políticos, embora, em (4), busque se colocar acima de todo e qualquer

ressentimento em relação àqueles que constituem seus adversários políticos. A descrição

definida, contida, por exemplo, na expressão dêitico-espacial “do alto de seus preconceitos

elitistas”, a qual aponta para um lugar social, parece remeter não a um campo de opções e

alinhamentos, mas, sim, de discriminação. Por extensão, o referente “homem público” se

constrói como aquele que não só institui um ambiente caracterizado pelo conflito, pelo

ressentimento, pela animosidade e pela discriminação, como também o alimenta. Entretanto,

tendo em vista que (5) aparece disposto no texto antes de (4), nota-se o cuidado da instância

de locução de promover a construção da imagem do locutor como político consciente, maduro

e conciliador, distinto, pois, de seus pares; ou seja, de apresentá-lo como uma positiva

exceção no universo da política.

Sendo assim, buscando-se demarcar o espaço ocupado por Lula no universo

segmentado da política, a construção do objeto discursivo “política” se engendra, como

vimos, não só a partir de recursos lingüísticos empregados na parte do pronunciamento em

que se busca afirmar como bem sucedido o primeiro mandato de Lula, mas também na parte

em que se projeta o segundo mandato. Pode-se assim dizer que tal construção perpassa todo o

texto contribuindo sobremaneira para a construção de outros objetos discursivos, tais como

“homem público”, “modelo público de realidade” e “espetáculo político”. A partir, portanto,

não só da construção do objeto discursivo “política”, mas também de outros, os pares tempo e

espaço, mudança e inalterabilidade, diferente e igual, melhor e pior, construídos a partir da

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201 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

ativação de distintos recursos lingüísticos, instituem o paralelo que se busca estabelecer entre

o primeiro mandato do governo Lula e o momento que marca o término deste e o início do

segundo, a fim de que se projete o cumprimento deste. A partir do emprego de tais elementos

lingüísticos, busca-se fazer com que o referente “primeiro mandato do governo Lula” seja

interpretado como bem sucedido e o referente “momento em que este se conclui e o segundo

se inicia”, como um tempo de regozijo, como o tempo de celebração do sucesso alcançado.

O trecho destacado a seguir conclui a parte do pronunciamento em que se estabelece

esse paralelo e introduz a parte na qual se projetam os próximos quatro anos, a partir dos

elementos dêitico-temporais “quatro anos atrás”, “hoje” e “nestes próximos quatro anos”. Tais

elementos referem-se, respectivamente, a “tempo passado” (1º mandato), “tempo presente”

(Cerimônia de Posse) e “tempo futuro” (2º mandato), os quais são, por sua vez,

respectivamente interpretados como o tempo do cumprimento da mudança prometida, da

celebração das conquistas realizadas e da apresentação dos projetos para o futuro.

(6) Quatro anos atrás eu disse que o verbo mudar iria reger o nosso governo. E o Brasil mudou. Hoje, digo que os verbos acelerar, crescer e incluir vão reger o Brasil nestes próximos quatro anos. Os efeitos das mudanças têm que ser sentidos rápida e amplamente. Vamos destravar o Brasil para crescer e incluir de forma mais acelerada.

A descrição definida “os verbos acelerar, crescer e incluir” apresenta, pois, a tônica

conferida à mudança sócio-política e econômica prometida para o segundo mandato pela

instância política. Constrói-se, assim, nesse trecho, a tônica do segundo mandato – acelerar,

crescer e incluir – como uma extensão da tônica do primeiro mandato: mudar. Constata-se,

desse modo, que, de fato, as descrições definidas exercem, no pronunciamento em estudo,

dupla função, pois ora indicam o tempo e o espaço discursivos, ora apontam para objetos a

partir de cuja edificação se processa a construção do referente “espetáculo político”. Embora,

em alguns trechos, se dê especial atenção a uma ou a outra função, vale ressaltar que essas

duas funções se realizam, não raro, de modo concomitante, conforme se pode observar em

outros trechos do pronunciamento em questão.

No trecho que se segue, apresentado imediatamente após a definição da tônica do

segundo mandato - “destravar o Brasil para crescer e incluir de forma mais acelerada” -, o

Brasil é definido, como se pode verificar, a partir de uma metáfora.

(7) Minhas Senhoras e meus Senhores,

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202 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

O Brasil não pode continuar como uma fera presa numa rede de aço invisível, debatendo-se, exaurindo-se, sem enxergar a teia que o aprisiona.

A partir do emprego das expressões indefinidas “uma fera presa” e “uma rede de aço

invisível” e da descrição definida “a teia”, representa-se, respectivamente, o objeto “Brasil” e

a condição em que este se encontra, segundo a ótica da instância política, no momento em que

se inicia o novo mandato presidencial do locutor. Observa-se que a descrição definida “a teia”

recupera e define a descrição indefinida “uma rede de aço invisível”, descrevendo a condição

de aprisionamento e imobilismo em que se encontra o Brasil. Condição esta que ninguém,

nem mesmo o objeto aprisionado, consegue enxergar (“invisível”, “exaurindo-se sem

enxergar”), com exceção do locutor, o qual se manifesta, portanto, mais uma vez, como ente

dotado de atributos, isto é, de poderes especiais. O locutor revela-se, assim, dotado não só de

poderes que lhe permitem enxergar o que ninguém consegue, mas também para “desatar nós”,

ou melhor, para romper, com habilidade e segurança, a teia que aprisiona a fera, o que propõe

realizar em seu segundo mandato. E ainda como aquele que, dotado de sensibilidade superior,

é capaz de ouvir não só os anseios de todos os segmentos sociais, como também a voz interior

de sua consciência e ter disposição, força e ímpeto para realizar, em quatro anos, o que se diz

ser quase impossível, conforme se verifica em (8).

(8) É uma responsabilidade enorme tornar-se o presidente com o índice de aprovação mais elevado ao final de seu mandato. Tenho plena consciência do que isso significa. Sei que, a partir de hoje, cabe-me corrigir o que deve ser corrigido e avançar com maior determinação no que está dando certo, para consolidar as conquistas populares. O desafio é grande, porém maior é a minha disposição de vencê-lo. Ouço as vozes das cidades, das ruas e dos campos e escuto, muito perto, a voz da minha consciência. Ela me diz que não fui reeleito para ouvir a velha e conformista ladainha segundo a qual tudo é muito difícil, quase impossível, que só pode ser conquistado numa lentidão secular.

Nesse trecho, as expressões definidas “as vozes das cidades, das ruas e dos campos” e

“a voz da minha consciência” traduzem a disposição especial da qual o locutor se mostra

dotado para o cumprimento de seu segundo mandato. Quanto à descrição definida “a velha e

conformista ladainha”, pode-se dizer que esta parece representar não só, mas principalmente,

o objeto “classe política adversária a Lula” e que, por isso, pode ser interpretada como uma

crítica aos governantes anteriores, ou seja, àqueles que o locutor diz ser politicamente

superior. Também em outros trechos essa construção assim se engendra, como, por exemplo,

em (9),

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203 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

(9) Um país cresce quando é capaz de absorver conhecimentos. Mas se torna forte, de verdade, quando é capaz de produzir conhecimento. Para isso é fundamental valorizar todos os níveis de nosso sistema educacional, sem exceção, fortalecer a pesquisa pura e aplicada, consolidar a incorporação e o desenvolvimento de novas tecnologias. Temos aqui um gigantesco desafio. O que outros países fizeram ainda nos séculos dezenove ou vinte, nós teremos de realizar nos próximos anos.

trecho em que a missão assumida pelo locutor é apresentada, por meio da descrição indefinida

“um gigantesco desafio”, como algo dotado de imensuráveis e desmedidas dificuldade e

dimensão. Ou seja, como algo dotado de tamanhos perigos e dificuldades que, para que estes

sejam enfrentados e superados com sucesso, exige que seja assumido por alguém provido de

qualidades especiais e, portanto, predestinado para tal. Vê-se que, enquanto em (8), centra-se

a atenção na construção do referente “Brasil” sem que se explore a dimensão de tempo, em

(9), busca-se implicitamente dar ênfase ao agente da mudança, a partir de uma exploração

dessa dimensão, o que também pode ser observado no trecho “Se alguns quiseram ver na

minha primeira eleição apenas um parêntese histórico, a reeleição mostrou que um governo

que cumpre os seus compromissos obtém a confiança do povo”.

Nesse trecho, a descrição indefinida “um parêntese histórico” revela o quanto o

locutor considera ter sido subestimado por certos segmentos sociais (“alguns”), os quais, em

outros trechos deste pronunciamento e do proferido na Cerimônia de Posse em 2003, são

referidos pela descrição definida “as elites”. Faz-se oportuno chamar a atenção para o fato de

que, nesse trecho, não só se faz remissão direta ao pleito eleitoral de 2002, quando o locutor

conquistou, pela primeira vez, a presidência da República, como também remissão indireta a

toda sua trajetória como homem público. Ou seja, a seu passado remoto, período em que

enfrentou resistência do segmento social, por ele sempre denominado de “as elites”.

Considerando-se que, em todo o pronunciamento, o locutor se constrói como alguém dotado

de sensibilidade, habilidade e capacidade de agir ímpares, o que o aponta como o mais

adequado a assumir a missão de fazer com que o Brasil alcance a felicidade social plena, tal

trecho também exemplifica como se engendra a construção do referente “presidente-herói”,

ou, melhor dizendo, “presidente-messias”. Isso se se considerar que aqueles a que comumente

se denomina de predestinados a realizar uma grande missão são, conforme revela a história,

inicialmente incompreendidos por muitos que não conseguem dimensionar o tamanho e a

grandiosidade da missão abraçada.

A partir do estudo dos indicadores para referência selecionados nesta subseção, pode-

se verificar que o objeto discursivo que se constrói no pronunciamento em questão é o próprio

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204 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

locutor, o qual se manifesta como fruto de duas mudanças marcantes. A primeira delas, a

social, é apenas evocada neste pronunciamento, enquanto a segunda, a política, manifesta-se

de modo expressivo. Por meio da exploração desta última, busca-se dotar o locutor de

atributos, tais como amadurecimento e consciência do que, de fato, representa a prática

política. Faz-se oportuno ressaltar que o locutor emerge, no texto em estudo, não só como

fruto de uma mudança social e política, mas, sobretudo, como agente singular da mudança

sócio-política e econômica pela qual o País anseia. Vale notar, entretanto, que, embora se

busque conferir ênfase ao papel de agente transformador assumido pelo locutor, as duas

mudanças, a social e a política, por ele experienciadas, manifestam-se como responsáveis pela

construção do agente singular.

4.3.3 Foucault: formação discursiva – posse 2007

O pronunciamento que registra a recondução oficial de Lula à presidência da

República apresenta, a um só tempo, forte teor de justificação e de promessa, tendo em vista

que a cerimônia de posse em que se realiza tal recondução representa um delimitador entre

um mandato que se encerra e outro que se inicia, sob o comando da mesma instância política.

Sendo assim, manifestam-se, no pronunciamento em análise, dois grandes grupos de

formações discursivas: de um lado, as de caráter político-eleitoral, que emergem a partir das

promessas feitas, e, de outro, as de cunho político-presidencial, as quais se revelam a partir da

prestação de contas acerca do que foi ou não realizado no primeiro mandato presidencial.

Primeiramente, a partir de verbos empregados no pretérito e no presente, apresenta-se a

justificação, para, em seguida, a partir de verbos empregados, preferencialmente, no futuro, a

promessa, conforme se observa, respectivamente, nos dois trechos abaixo destacados.

(1) O trabalhador brasileiro ainda não ganha o que realmente merece, mas temos hoje um dos mais altos salários mínimos das últimas décadas, e os trabalhadores obtiveram ganhos reais em 90% das negociações salariais nestes últimos quatro anos. Criamos mais de 100 mil empregos por mês com carteira assinada, sem falar das ocupações informais e daquelas geradas pela agricultura familiar, totalizando mais de 7 milhões de novos postos de trabalho. O Brasil ainda precisa avançar em padrões éticos e em práticas políticas. Mas hoje é muito melhor na eficiência dos seus mecanismos de controle e na fiscalização sobre seus governantes. Nunca se combateu tanto a corrupção e o crime organizado. Muita coisa melhorou na garantia dos direitos humanos, na defesa do meio ambiente, na ampliação da cidadania e na valorização das minorias.

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205 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

(2) Para atingir estes objetivos, estaremos lançando, já neste primeiro mês de governo, um conjunto de medidas, englobadas no Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC. Nosso esforço não se esgota nas medidas que anunciaremos em janeiro. Ao contrário, elas serão apenas o começo. Serão desdobradas e complementadas ao longo de todo o mandato, incorporando, inclusive, reformas mais amplas que seguramente estarão na pauta desta Casa. Vamos realinhar prioridades; otimizar recursos; aumentar fontes de financiamento; expandir projetos de infra-estrutura; aperfeiçoar o marco jurídico; e ampliar o diálogo sistemático com as instituições de controle e fiscalização para garantir a transparência dos projetos e agilizar sua execução.

No pronunciamento em estudo, igualmente no pronunciamento de posse de 2003, a

temática central é a mudança, mas, considerando-se que esta não constitui, em 2007, a

substituição do velho pelo novo, e, sim, a impressão de um ritmo mais acelerado à mudança

instituída no primeiro mandato, observa-se que não se manifestam, de forma expressiva, em

2007, como em 2003, formações discursivas marcadas pela crítica aliada à promessa. O lugar

ocupado, em 2003, pela crítica expressiva cede espaço, em 2007, à justificação, o que faz com

que se manifestem, de modo privilegiado, no pronunciamento em análise, formações

discursivas de caráter tradicional-conservador, uma vez que a estratégia de justificação

apresentada pela instância política, neste pronunciamento, reproduz a costumeiramente

adotada por toda e qualquer instância política, quando detentora do poder. Verifica-se,

portanto, neste pronunciamento, a adoção de postura política tradicionalmente adotada por

detentores do poder das mais distintas orientações político-ideológicas, a qual se traduz, em

síntese, em ausência de consistência argumentativa, ao se defrontarem com situações em que

a justificação se faz uma exigência, como pode ser observado em (3).

(3) O Brasil ainda precisa avançar em padrões éticos e em práticas políticas. Mas hoje é muito melhor na eficiência dos seus mecanismos de controle e na fiscalização sobre seus governantes. Nunca se combateu tanto a corrupção e o crime organizado. Muita coisa melhorou na garantia dos direitos humanos, na defesa do meio ambiente, na ampliação da cidadania e na valorização das minorias. O Brasil é uma nação mais respeitada, com inserção criativa e soberana no mundo.

Observa-se, nesse trecho, que a instância política apresenta, de certa forma, uma

resposta às críticas e denúncias a seu governo no que concerne ao desrespeito à ética e à

ocorrência de práticas políticas escusas, as quais deflagraram, no primeiro mandato da gestão

Lula, por exemplo, a CPI do Mensalão. A partir da adoção da defesa da ética, manifestam-se

formações discursivas de cunho tradicional-conservador, tendo em vista que a ética tem se

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206 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

apresentado, tradicionalmente, com bandeira das mais distintas forças políticas, o que tem se

intensificado atualmente, período em se tem experimentado intensa crise de valores éticos no

âmbito da política.

Pode-se, entretanto, constatar que tal resposta se apresenta a partir de uma justificativa

de caráter impreciso, geral e, portanto, vago e sem consistência argumentativa, sob uma única

alegação, em todo o pronunciamento, de que “nunca se combateu tanto a corrupção e o crime

organizado”. Intenta-se provar e, portanto, justificar, igualmente, com imprecisão, vaguidão e

falta de consistência argumentativa, a situação do Brasil no mundo ao término do primeiro

mandato do governo Lula. Ou seja, revela-se uma preocupação da instância política, em

contraposição ao que ainda está por fazer, em justificar que, ao longo dos últimos quatro anos,

muito foi feito, sem, entretanto, especificar, indicar, com exatidão e comprovação, o que foi

realizado no primeiro mandato. Verifica-se, quanto a esse aspecto, que a caracterização da

inserção do Brasil no mundo - “criativa e soberana” - por si só, não esclarece, com

objetividade, clareza, precisão e consistência argumentativa, a situação do Brasil, ao término

do primeiro mandato da gestão Lula, em relação às demais nações do globo. Observa-se,

ainda, que, nem mesmo em outros trechos do pronunciamento em estudo, tal caracterização é,

de fato, elucidada. Entendemos, portanto, que, em (3), manifestam-se formações discursivas

de caráter tradicional-conservador, tendo em vista que, há muito, o senso comum tem

cunhado o discurso político como sendo um discurso vazio, desvinculado ou distante das

ações às quais se refere, por apresentar promessas e/ou justificações desprovidas de

fundamentação argumentativa. Mais que isso tal trecho exemplifica postura habitualmente

adotada, de uma maneira geral, pelos gestores políticos no Brasil, em relação à coisa pública e

àqueles que estes representam, a qual se traduz em não prestar, de fato, contas à sociedade

acerca daquilo que gerenciam. Embora esta constitua uma prática generalizada no âmbito da

política, e não algo identificado especialmente no pronunciamento em estudo, parece-nos ser

pertinente conferir-lhe destaque, considerando que, da instância política em questão, sempre

foi esperada a adoção de postura diferenciada em relação à coisa pública e à sociedade. Vale

lembrar que essa expectativa se construiu a partir de promessas e posturas assumidas pelo

locutor ao longo de sua trajetória como homem público, quando este sinalizou, de maneira

enfática, que, uma vez no poder, promoveria a mudança da ordem há muito estabelecida no

modo de “fazer política” no Brasil.

No seguinte trecho,

(4) E o mundo, vasto mundo, como está quatro anos depois?

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Melhor em certos aspectos, mas pior, infelizmente, em tantos outros. Foram quatro anos sem graves crises econômicas, mas com graves conflitos políticos e militares internacionais. Ao mesmo tempo em que o crescimento da economia mundial permitiu um certo desafogo aos países emergentes, a relação entre nações ricas e pobres não melhorou. A solução dos grandes problemas mundiais, como as persistentes desigualdades econômicas e financeiras entre as nações; o protecionismo comercial dos grandes; a fome e a inclusão dos deserdados; a preservação do meio ambiente; o desarmamento; e o combate adequado ao terrorismo e à criminalidade internacional, não evoluiu. Os organismos internacionais, especialmente a ONU, não se atualizaram em relação aos novos tempos que vive a humanidade.

o locutor, após contrapor o Brasil há quatro anos ao Brasil quatro anos mais tarde, ou seja, o

Brasil no início e no término de seu primeiro mandato, a fim de evidenciar avanços

resultantes de sua gestão política, estabelece outra contraposição: o mundo há quatro anos ao

mundo quatro anos mais tarde. Para tal, o locutor adota, entretanto, estratégia distinta, pois,

ao invés de conferir ênfase aos avanços alcançados ao longo desse período, destaca os

avanços não alcançados. Dessa forma, ao se estabelecer uma relação entre o Brasil e o mundo,

os avanços resultantes do primeiro mandato do governo Lula têm sua valoração amplificada,

o que constitui estratégia largamente utilizada no âmbito da política. Observa-se, por

exemplo, que, indiretamente, estabelece-se uma comparação entre o Brasil e “o mundo, vasto

mundo”, a partir da qual o Brasil se destaca, positivamente, uma vez que é posto em relação

com um universo infinitamente de maior dimensão que a sua. Deve-se ainda considerar,

quanto a esse aspecto, que tal universo de grande dimensão é composto de inúmeros universos

menores como o Brasil. Realça-se, assim, a posição do Brasil na relação estabelecida, uma

vez que, implicitamente, confere-se destaque não só à grande dimensão do mundo como um

todo, mas também às inúmeras partes que compõem esse todo, dentre as quais uma se destaca.

A adoção de tal estratégia denuncia, por sua vez, a adoção de uma postura tradicionalmente

assumida no meio político no que diz respeito, principalmente, ao embate entre grupos de

força de orientação político-ideológica distinta, a qual se traduz, grosso modo, na valorização

de um grupo a partir da desvalorização de outro. Ou seja, a valorização não se dá,

preferencialmente, por meio da apresentação de ações positivas realizadas, por exemplo, por

A, mas, primordialmente, a partir da apresentação, por A e a partir da perspectiva de A,

daquilo que não foi realizado ou das ações negativas realizadas por B, C ou D, acompanhada,

por sua vez, da apresentação de juízos de valor. Verifica-se, desse modo, que se manifestam,

no pronunciamento em análise, formações discursivas tradicional-conservadoras, que acabam

por denunciar o antagonismo, o conflito e a animosidade tradicionalmente próprios das

relações políticas. Embora também esta constitua uma estratégia e uma prática adotadas, de

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208 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

forma generalizada, no universo da política, e não algo manifesto, de modo exclusivo, no

pronunciamento em estudo, parece-nos relevante conferir-lhe destaque, levando em

consideração as mesmas ponderações tecidas no final do parágrafo a este anterior.

No que concerne ao estabelecimento das relações políticas, faz-se ainda oportuno

observar os dois seguintes excertos.

(5) Apesar dos avanços científicos e tecnológicos de nosso mundo, ainda não foi inventada nenhuma ferramenta mais importante do que a política para a solução dos problemas dos povos. Nunca o mundo viveu, como vive hoje, um período de tão grande descrédito na política. Mas, paradoxalmente, nunca a política foi tão imprescindível. Temos no Brasil um desafio pela frente. Desafio para as forças que se identificam com este governo e para aquelas que se situam na oposição. Temos de refletir sobre nossas instituições e nossas práticas políticas.

(6) Não faltaram os que, do alto de seus preconceitos elitistas, tentaram desqualificar a opção popular como fruto da sedução que poderia exercer sobre ela o que chamavam de “distribuição de migalhas”. Os que assim pensam não conhecem e não entendem este País. [...] O caminho da política exige paciência, concessões mútuas, compreensão do outro. Exige que sejamos capazes de levar ao extremo a prática da escuta. Pois só assim é possível sintonizar e harmonizar interesses. Mas exige opções, alinhamentos. Neste dia inaugural de meu novo mandato, não peço a ninguém que abandone suas convicções. Não desejo que a oposição deixe de cumprir o papel que dela esperam os que por ela livremente optaram. Quero pedir-lhes, apenas, que olhemos mais para o que nos une do que para o que nos separa. Que concentremos o debate nos grandes desafios colocados para o nosso País e para o mundo. Que estejamos à altura do que necessita e deseja o nosso povo. Só assim poderemos estar todos a serviço deste País que tanto amamos.

Constata-se que, em (5), a instância política revela-se dotada de maturidade,

discernimento e espírito conciliador ao reconhecer o descrédito experimentado hoje pela

política; ao defender, entretanto, a imprescindibilidade desta no mundo contemporâneo e

propor uma reflexão acerca do “fazer política” no Brasil. Já em (6), primeiramente, em tom de

desabafo, apresenta-se tomado por ressentimento no tocante àqueles que o discriminaram, o

desqualificaram no âmbito da política, denunciando, assim, o antagonismo e a animosidade

que regulam as relações políticas. Entretanto, em seguida, o locutor defende a política como a

“prática da escuta”, convocando as diferentes forças políticas a adotarem o Brasil como única

causa.

Observa-se, desse modo, que, em (5) e (6), manifestam-se formações discursivas de

cunho tradicional-conservador, considerando-se, mais uma vez, a tradicional recorrência da

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209 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

defesa da ética, a qual é adotada, por sua vez, em defesa às críticas feitas ao primeiro mandato

do locutor, no que diz respeito a esse aspecto. Por meio do emprego dessa estratégia

lingüístico-discursiva, parece que se pretende fazer com que o interlocutor reconstrua a sua

concepção de política, atribuindo-lhe uma valoração positiva, ou seja, que substitua uma

valoração negativa por outra positiva. Nesses dois trechos, busca-se, portanto, construir o

referente “política”, a partir de relações lógicas estabelecidas entre representações positivas e

negativas acerca do exercício da política, fazendo com que se construam novas representações

acerca do objeto política, nas quais o locutor se destaque positivamente, como um elemento

ímpar entre os demais que participam, como atores, desse universo. Constata-se, mais uma

vez, que a contraposição entre o negativo e o positivo se faz, a fim de que se destaque o que

se apresenta dotado de características positivas e lhe seja, portanto, amplificada a valoração

positiva. Sendo assim, busca-se fazer com que o locutor emirja como um ator político dotado

de características superiores aos demais. Da mesma forma como observado em (4), tal

valorização se dá não a partir da apresentação de ações positivas realizadas pelo locutor, mas,

acima de tudo, a partir da denúncia da postura negativa adotada comumente, no âmbito da

política, pelos demais atores políticos.

Considerando-se tal aspecto, verifica-se que, em (5) e (6), manifestam-se também

formações discursivas de caráter tradicional-conservador, uma vez que tal estratégia adotada

traduz uma postura há muito habitualmente identificada no campo da política. Vê-se, assim,

que, ao buscar se apresentar como exceção positiva no meio viciado da política, o locutor

acaba por se mostrar, paradoxalmente, ajustado ao meio, tendo em vista que revela: (i) admitir

possuir adversários políticos; (ii) alimentar animosidade contra tais opositores; (iii) adotar as

mesmas estratégias e a mesma postura que qualifica como negativas e denuncia serem

adotadas, no âmbito da política, de uma maneira geral, pelos atores políticos. Vê-se, assim,

que, também em (5) e (6), busca-se amplificar a valoração que se pretende atribuir ao locutor

por intermédio da desqualificação do outro, o que acaba por denunciar a adoção de postura

tradicionalmente assumida no âmbito das relações políticas. A adoção dessa estratégia, por

meio da qual se evidencia a adoção de postura equivalente, manifesta-se, mais uma vez, o

discurso político cunhado pelo senso comum como um discurso vazio, desconectado ou

distante das ações às quais diz respeito, a partir do que se revela a emergência de formações

discursivas tradicional-conservadoras.

Não só em tais trechos, mas no que diz respeito à totalidade do pronunciamento em

estudo, pode-se dizer que neste se expressam, de forma recorrente e predominante, formações

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210 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

discursivas de caráter tradicional-conservador. Em alguns trechos, manifestam-se, entretanto,

formações discursivas de caráter progressista, quase sempre em resposta a formações

discursivas de cunho tradicional-conservador, conforme se observa, em (7), parte introdutória

do pronunciamento.

(7) Quatro anos atrás, nesta Casa, em um primeiro de janeiro, vivi a experiência mais importante de minha vida, a de assumir a Presidência do meu País. Não era apenas a realização de um sonho individual. O que então ocorreu foi o resultado de um poderoso movimento histórico do qual eu me sentia, e ainda hoje me sinto, parte e humilde instrumento. Pela primeira vez, um homem nascido na pobreza, que teve que derrotar o risco crônico da morte na infância e vencer, depois, a desesperança na idade adulta, chegava, pela disputa democrática, ao mais alto posto da República. Pela primeira vez, a longa jornada de um retirante, que começara, como a de milhões de nordestinos, em cima de um pau-de-arara, terminava, como expressão de um projeto coletivo, na rampa do Planalto.

Nesse excerto, o locutor faz remissão à sua origem na pobreza, denunciando a rigidez

de papéis sociais observada em nossa sociedade, se se considerar, conforme ele atesta, que

nunca, até a sua ascensão ao poder em 2003, um homem de sua origem social havia

conquistado a presidência da República. Vê-se, assim, que, em (7), manifestam-se formações

discursivas de cunho tradicional-conservador, as quais são refutadas a partir da manifestação

de formações discursivas de caráter progressista. Sendo assim, denuncia-se e critica-se a

ocorrência, em nossa sociedade, de postura retrógrada e cristalizada, rebatendo-a. Postura

segundo a qual às classes sociais menos favorecidas são, na maioria das vezes, de forma

escamoteada, reservados determinados lugares sociais e vetados outros.

Após essa remissão ao passado, contrapõe-se a este o presente, momento em que o

locutor é reconduzido oficialmente ao poder, estabelecendo-se, a partir de então, outra

contraposição que atravessa todo o pronunciamento - o igual e o diferente – a qual é

apresentada por intermédio do seguinte trecho: “Tudo é muito parecido, mas tudo é

profundamente diferente”. A partir desse segmento textual, explorando-se, por sua vez, a

contraposição entre o passado e o presente/futuro, explicita-se o “tudo”, o qual, conforme

pode ser observado, ao longo do pronunciamento, refere-se ao locutor e ao cenário sócio-

político e econômico interno e externo. Parece-nos possível poder dizer que a exploração da

mudança, a partir do par igual/diferente, acaba por registrar, em todo o pronunciamento em

estudo, a emergência predominante de formações discursivas de cunho tradicional-

conservador.

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211 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Recorrendo a Perelman (2000: 118-121), observamos que, enquanto a mudança

representa algo natural e inevitável, que não pode, portanto, ser contido, a inércia constitui

uma exigência social, o que parece apresentar explicações para o duplo e conflitante impulso

do ser humano em relação, a um só tempo, à mudança e à conservação. Ou seja, quanto ao

desejo de conhecer o novo e, ao mesmo tempo, à necessidade de manter-se fiel à tradição.

Considerando-se ainda que, segundo essa perspectiva, a conservação constitui uma exigência

social, toda mudança precisa ser justificada, a fim de que se busque alcançar sua plena

aceitação. A exploração do par inércia/mudança se apresenta como estratégia argumentativa

por excelência quando se faz necessário inovar, sem prejuízo da essência. Sendo assim, é

largamente empregada no universo da publicidade quando, por exemplo, grosso modo, um

produto tradicionalmente bem aceito pelo consumidor tem sua embalagem alterada, sob a

clássica alegação de que a nova embalagem é mais moderna, funcional e bonita.

No pronunciamento em estudo, no que concerne à construção do referente “homem

público” e, por conseguinte, do referente “espetáculo político”, observa-se que há uma

preocupação em justificar que, embora o locutor tenha mudado, tornando-se um político

maduro, ainda mantém sua essência de homem do povo, de liderança política popular bem

sucedida. Ou seja, nesse texto, manifesta-se a preocupação de justificar que os valores

defendidos pelo locutor, em seu passado bem sucedido como homem público, ainda o são ao

término de seu primeiro mandato, mas agregados a outros valores conquistados a partir da

experiência política. Sendo assim, a instância política adota, no pronunciamento em análise, a

partir da exploração do par igual/diferente, tal estratégia argumentativa, por meio da qual

revela, atenta e cautelosamente, buscar assegurar a receptividade do interlocutor em relação

ao seu segundo mandato presidencial e, desse modo, criar condições favoráveis ao novo

exercício de governo. Parece-nos, portanto, possível poder dizer que a utilização dessa

estratégia argumentativa evidencia a adoção de postura extremamente cuidadosa e criteriosa

do locutor em relação a um segmento específico da instância de interlocução, a sociedade

brasileira, o que acaba por denunciar certo desconforto da instância política em relação à

instância cidadã.

No seguinte excerto, por exemplo,

(8) É igual e diferente o Brasil; é igual e diferente o mundo; e, eu, sou também igual e diferente. Sou igual naquilo que mais prezo: no profundo compromisso com o povo e com meu País. Sou diferente na consciência madura do que posso e do que não posso, no pleno conhecimento dos limites. Sou igual no ímpeto e na coragem de fazer. Sou diferente na experiência acumulada na difícil arte de governar.

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212 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

o locutor justifica a sua inércia e a sua mudança pessoais, contrapondo-as a dois universos - o

Brasil e o mundo - de dimensões superiores a seu universo particular, a fim de justificar que

mudar, em alguns aspectos e em outros não, é algo natural. É interessante observar que isso se

processa a partir da manifestação de formações discursivas tradicional-conservadoras, se se

considerar que são contrapostos valores concernentes a duas etapas distintas da vida

consensualmente de grande prestígio social, quando associados uns aos outros. Ou seja, a

justificação da inércia e da mudança pessoais se processa a partir de algo admitido e

defendido pelo senso comum em nossa sociedade: o desejável é que valores próprios da

juventude se manifestem atrelados a e orientados por valores próprios da maturidade, uma vez

que, dessa forma, os valores pertencentes a cada um desses dois grupos terão suas

características positivas não só asseguradas, como também potencializadas. Sendo assim, de

um lado, apresenta-se a manutenção do ímpeto e da coragem, próprios da juventude; de outro,

a aquisição da maturidade a partir da experiência e da consciência de que limites existem e

devem ser respeitados. Tradicionalmente, o senso comum tem prestigiado esses valores como

providencialmente complementares, sob a alegação de que, por exemplo, o ímpeto

desvinculado da consciência de limites pode se transformar em um valor perigoso. Procura-se,

assim, associar, de forma complementar, valores de alto prestígio social próprios da juventude

a outros próprios da maturidade, fazendo com que a instância da locução seja percebida nem

como conservadora, nem como impetuosa e inconseqüente, mas, sim, como equilibrada,

sensata e vigorosa.

O emprego dessa estratégia argumentativa, no pronunciamento em análise, acaba,

entretanto, por denunciar a desconfiança que tradicionalmente permeia, no âmbito da política,

a relação que se estabelece entre a instância política e a cidadã, no que diz respeito,

principalmente, ao julgamento negativo que esta comumente constrói acerca daquela. Isso

parece encontrar explicações no fato de a instância da locução se esmerar no cuidado em

justificar a sua inércia e a sua mudança pessoais. Tradicionalmente, a instância política, de

modo geral, procura driblar essa desconfiança por meio do discurso, o qual, ao invés, pois, de

refletir as ações e posturas por essa instância adotadas, dissimula-as. Faz-se oportuno ressaltar

que, na situação de comunicação em estudo, a criteriosa cautela da instância política em

driblar a provável desconfiança da instância cidadã se manifesta no pronunciamento que,

oficialmente, inaugura o segundo mandato do locutor à presidência da República. Vale notar,

quanto a esse aspecto, que a recondução ao poder deveria naturalmente representar que maior

parte da sociedade conhece e aprova a gestão daquele que é reconduzido e, por isso, o

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213 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

reconduz, o que deveria sinalizar, por sua vez, no momento específico da posse, o

estabelecimento entre essas duas instâncias de uma relação cunhada pela confiança, e não,

conforme se observa, a partir da estratégia argumentativa adotada, pela desconfiança.

Parece-nos, portanto, possível poder dizer que o emprego de tal estratégia

argumentativa traduz, no pronunciamento em análise, a adoção de postura política clássica e,

portanto, tradicional-conservadora, a qual denuncia a relação tradicional e habitualmente

estabelecida entre a instância política e a cidadã. Relação esta tradicionalmente marcada pela

desconfiança, que acaba por colocar em funcionamento um círculo vicioso movido pela

adoção de determinadas ações e pela dissimulação destas no discurso. Faz-se ainda oportuno

registrar que essa estratégia argumentativa é a estratégia mestra que orienta toda a construção

do raciocínio argumentativo do texto em análise, e não uma estratégia pontual, empregada, de

forma localizada, em determinada parte do referido texto. Necessário se faz ainda destacar

que, embora esta reflita uma postura comumente empregada pelos atores políticos, o locutor,

no decorrer de sua trajetória política até a ascensão à presidência da República em 2003,

como dito anteriormente, não só prometia, uma vez eleito, mudar a ordem até então

estabelecida no que diz respeito ao “fazer política” no Brasil, como também agia de modo a

promover tal mudança. Em síntese, parece-nos possível poder dizer que o emprego dessa

estratégia argumentativa, que se processa a partir da exploração do par inércia/mudança,

traduz grande preocupação do locutor de fazer a instância da interlocução acreditar que ele, ao

longo de seu primeiro mandato, não se tornou um político como os demais. Tal preocupação

parece, entretanto, trair-se a partir do emprego de recursos lingüístico-discursivo-

argumentativos que (des)velam a adoção de postura política tradicional que se traduz, grosso

modo, em um descompasso entre aquilo que, no campo do discurso, promete-se, prega-se e

diz-se fazer e aquilo que se faz, de fato, manifestando, assim, a emergência de formações

discursivas tradicional-conservadoras.

No pronunciamento de recondução de Lula ao poder em 2007, a partir da

predominante manifestação de formações discursivas de cunho tradicional-conservador,

destaca-se, conforme exposto nesta seção, forte teor de justificação acompanhado de forte teor

de promessa. Mas se observa que a justificação apresenta-se, em linhas gerais, de forma

inconsistente, do ponto de vista argumentativo, e, paradoxalmente, centrada na defesa

meticulosa de que Lula, em sua essência, não mudou. Considerando-se, entretanto, que a

mudança, assim como se verifica no pronunciamento de posse de 2003, constitui a temática

central do pronunciamento ora em estudo, defende-se, sobretudo, nesse aspecto, a inércia na

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214 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

mudança. Ou seja, defende-se, acima de tudo, que o locutor conserva-se fiel ao seu

compromisso histórico de promover a mudança sócio-política e econômica, algo

exaustivamente prometido ao longo de toda sua trajetória como homem público. E que, para

imprimir um ritmo mais acelerado à mudança iniciada em seu primeiro mandato, conta, ao ser

reconduzido à presidência da República, com o concurso de outros valores que foram

agregados a valores historicamente por ele conquistados, sem que estes perdessem sua

essência, mas, sim, tivessem potencializado o seu teor positivo.

4.3.4 Mainguenau: interdiscurso – posse 2007

No pronunciamento que registra a recondução oficial de Lula ao poder em janeiro de

2007, verifica-se, a partir da emergência predominante de formações discursivas de cunho

tradicional-conservador, a constituição de uma rede interdiscursiva em que o discurso

político-eleitoral e o político-presidencial se destacam e se manifestam, a um só tempo,

separados e unidos. Elementos oriundos do discurso político-eleitoral manifestam-se a partir

de promessas apresentadas pela instância política no que diz respeito à realização, no mandato

que se inicia, de ações de caráter sócio-político e econômico. Já os elementos provindos do

discurso político-presidencial têm, em linhas gerais, sua manifestação registrada na

justificação do que foi ou não realizado pelo locutor em seu primeiro mandato.

Quanto a elementos advindos do discurso político-ideológico de esquerda, vale

observar que, se, no pronunciamento de 2003, tais elementos se manifestam de forma tímida,

pontual e, ainda, fortemente atravessados por elementos de orientação político-ideológica

distinta, no proferimento de 2007, tais elementos cedem, por completo, espaço a elementos de

orientação político-ideológico de cunho social e popular. Verifica-se, em (1), por exemplo,

(1) Meus Senhores e minhas Senhoras, Durante a campanha afirmei que meu segundo governo será o governo do desenvolvimento, com distribuição de renda e educação de qualidade. Disse que, para termos um crescimento acelerado, duradouro e justo, devemos articular cada vez melhor a política macroeconômica com uma política social capaz de distribuir renda, gerar emprego e inclusão. Dessa forma, nossa política social, que nunca foi compensatória, e sim criadora de direitos, será cada vez mais estrutural. Será peça-chave do próprio desenvolvimento estratégico do País. O Bolsa Família, principal instrumento do Fome Zero, saudado pelas comunidades pobres e criticado por alguns setores privilegiados, teve duplo efeito. Por um lado, retirou da miséria milhões de homens e mulheres.

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215 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Por outro, contribuiu para dinamizar a economia de forma mais equânime. Por isso, obteve reconhecimento internacional, e já inspira programas semelhantes em vários países do mundo. Nosso governo nunca foi, nem é “populista”. Este governo foi, é e será popular.

que o locutor se preocupa em se mostrar fiel a compromissos políticos por ele historicamente

assumidos, pautando-se na defesa da distribuição de renda, geração de empregos, inclusão, de

um crescimento justo, enfim, de uma “política social criadora de direitos” e estrutural. Essa

preocupação se traduz em uma resposta a “alguns setores privilegiados da sociedade” que,

segundo o locutor, acusam o seu governo de populismo. Constata-se, desse modo, que são

suscitados elementos provindos de segmentos sociais críticos e contrários à gestão Lula que se

entrecruzam com elementos oriundos do passado histórico do locutor como líder sindical e

político. Faz-se, também, oportuno observar que, nesse trecho, encontram-se ainda elementos

provindos da mesma instância política em dois momentos distintos: antes e depois da

ascensão do locutor ao poder em 2003. Tais elementos se entrecruzam, revelando a adoção de

posturas e ações contraditórias por parte da instância da locução. Pode-se constatar, em (1),

por exemplo, que o locutor, ao se defender das críticas sofridas por opositores à sua gestão,

afirma que a política social adotada em seu governo não é compensatória, no entanto,

apresenta como exemplo de política criadora de direitos o programa Bolsa Família, o qual tem

sido freqüentemente acusado de assistencialista e, portanto, compensatório. Vale lembrar

ainda que o próprio locutor, antes de ascender ao poder, tecia, publicamente, acusações

semelhantes a programas de natureza similar à do Bolsa Família, desenvolvidos na gestão de

seus opositores políticos.

Em (2), os elementos de origem político-ideológica social e popular cedem lugar à

emergência de elementos pré-construídos de orientação político-ideológica capitalista.

(2) Sei que o crescimento, para ser rápido, sustentável e duradouro, tem de ser com responsabilidade fiscal. Disso não abriremos mão, em hipótese alguma. Mas é preciso combinar essa responsabilidade com mudanças de postura e ousadia na criação de novas oportunidades para o País. É necessário, igualmente, que este crescimento esteja inserido em uma visão estratégica de desenvolvimento que nosso País há muito tempo havia perdido. É preciso uma combinação ampla e equilibrada do investimento público e do investimento privado. Para lograr este equilíbrio, temos de desobstruir os gargalos e de romper as amarras que travam cada um destes setores. Isso significa ampliar e agilizar o investimento público, desonerar e incentivar o investimento privado. Sei que o investimento público não pode, sozinho, garantir o crescimento. Porém, ele é decisivo para estimular e mesmo ordenar o investimento privado.

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216 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Estas duas colunas, articuladas, são capazes de dar grande impulso a qualquer projeto de crescimento.

Verifica-se, nesse excerto, que, mais uma vez, o locutor se preocupa em responder a

críticas recebidas em seu primeiro mandato sob a alegação, nesse caso, de que, “em hipótese

alguma”, o seu governo, nos próximos quatro anos, abrirá mão da responsabilidade fiscal. Isso

parece representar que o locutor, a fim de tranqüilizar os segmentos mais privilegiados da

sociedade, busca assegurar que os contratos vigentes serão, sem dúvida, respeitados.

Constata-se, assim, que, inicialmente, ao rebater críticas, o locutor, implicitamente, preocupa-

se em enfatizar que se mantém fiel aos ideais político-ideológicos que nortearam a sua

construção mais recente como homem público, e não sua construção político-histórica. Isto se

se considerar que, ao defender, por exemplo, o respeito irrestrito aos contratos, o locutor

revela estar abrindo mão de ideais revolucionários que orientaram grande parte de sua

trajetória política.

Imediatamente em seguida, a partir do emprego do operador argumentativo “mas”, o

locutor descreve, por enumeração, a forma como essa responsabilidade será exercida: com

mudança de postura e ousadia. Ou seja, a partir do que o locutor denomina “visão estratégica

de desenvolvimento”, que parece se traduzir, ao longo da descrição apresentada, em colocar o

investimento público a serviço do investimento privado. Quanto a esse aspecto, faz-se

oportuno salientar que, conforme apresentado, o investimento público só ocorre se conjugado

ao investimento privado, ao passo que este ocorre independentemente daquele. Ou seja,

defende-se, nesse trecho, que o investimento público existe para viabilizar o investimento

privado. Faz-se também oportuno esclarecer que o movimento sindical, no qual o locutor

atuou de forma significativa em grande parte de sua trajetória como homem público, é

fundamentado no conflito capital-trabalho, o qual é negado nesse trecho, uma vez que o

locutor defende como possível o equilíbrio entre capital e trabalho, (re)definindo-o. A partir

dessas observações, parece-nos possível poder dizer que as idéias apresentadas no segmento

anterior ao que se introduz por intermédio do “mas” se subordinam às idéias neste

apresentadas, denunciando a manifestação marcante de elementos provindos de grupos de

orientação político-ideológica capitalista.

Em (2), assim como em outros trechos do pronunciamento em análise, constata-se que

elementos próprios do discurso político-presidencial se apresentam na justificação que se

traduz, em síntese, em buscar provar que o locutor, além de ter se tornado um político maduro

e, portanto, com consciência política ampla, mantém-se fiel a compromissos políticos

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217 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

historicamente por ele assumidos. Nota-se, assim, que há uma preocupação em estear a

justificação apresentada, de forma privilegiada, em valores construídos e defendidos pelo

locutor em seu passado político-sindical. Parece-nos possível, entretanto, poder dizer que os

elementos pré-construídos de orientação político-ideológicos sociais e populares que provêm

do passado do locutor só são suscitados em resposta a elementos pré-construídos por

segmentos sociais adversos à gestão Lula, como forma de defesa, como escudo de proteção.

Isso acaba instalando, no pronunciamento em estudo, a contradição, uma vez que os

elementos pré-construídos de orientação político-ideológicos sociais e populares suscitados

co-ocorrem com elementos de orientação político-ideológico capitalista a estes se

subordinando.

Evidencia-se, desse modo, que o locutor, embora busque edificar sua credibilidade,

como presidente da República, sobretudo, em seu passado de homem do povo, de líder

sindical e de partido de esquerda, acaba negando esse passado, contradizendo-o. Vê-se, pois,

que os elementos pré-construídos de orientação político-ideológicos sociais e populares são

evocados somente em resposta a elementos de outra natureza, como forma de afirmação dos

ideais político-ideológicos defendidos e praticados pelo locutor em sua trajetória como

homem público até ascender, em 2003, à presidência da República. A adoção dessa estratégia

parece, acima de tudo, denunciar a necessidade do locutor, a fim de assegurar a

governabilidade em seu segundo mandato, de escamotear a adoção privilegiada de ideais e de

posturas de natureza e orientação político-ideológica distintas dos adotados antes de sua

ascensão ao poder em 2003. Em decorrência disso, os elementos de orientação político-

ideológico-sociais e populares que se manifestam no texto em análise se revelam

completamente ajustados e subordinados a elementos de orientação distinta, colocando-se, na

verdade, a serviço da aceitação destes por parte da instância da interlocução. Ou, melhor

dizendo, da aceitação, pela instância cidadã, da postura e dos novos valores adotados pelo

locutor no exercício do poder.

Constata-se, assim, que, nesse pronunciamento, a instauração do discurso se constitui

de quatro redes interdiscursivas simétricas: (i) a político-eleitoral; (ii) a político-presidencial;

(iii) a político-ideológico-social e popular; (iv) a político ideológico-capitalista. Na

composição das redes de formulações, as redes interdiscursivas simétricas constituem o eixo

“vertical”, referente aos pré-construídos, o qual é posto em interseção com o eixo

“horizontal”, responsável por constituir a linearidade do discurso. Na constituição do eixo

“vertical”, no que concerne a pré-construídos oriundos do discurso político-eleitoral,

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218 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

evidencia-se a promessa da impressão de um ritmo acelerado à mudança sócio-política e

econômica operada no primeiro mandato presidencial do locutor. No que diz respeito a pré-

construídos provindos do discurso político-presidencial, verifica-se a justificação do que foi

ou não realizado na primeira gestão presidencial de Lula. Tais elementos se revelam

vinculados, de modo complementar, aos elementos que têm origem no discurso político-

eleitoral, uma vez que estes emergem em função dos elementos provindos do discurso

político-presidencial. Quanto aos elementos que têm origem no discurso político-ideológico-

social e popular e os provindos do discurso político-ideológico-capitalista, embora, em um

primeiro momento, denunciem o conflito entre forças distintas, acabam por (re)velar a relação

“parasitária” estabelecida, no pronunciamento em análise, entre esses dois grupos de pré-

construídos. Grosso modo, os elementos oriundos do discurso político-ideológico-social e

popular parecem funcionar, no pronunciamento em estudo, como “hospedeiros” dos

elementos próprios do discurso político-ideológico-capitalista, uma vez que estes parecem se

nutrir daqueles, a fim de que possam se camuflar e de que não seja identificada, pela instância

de interlocução, a sua autêntica essência.

Essa múltipla emergência de pré-construídos se processa, primordialmente, a partir da

exploração do par igual/diferente, estudada na seção anterior, a qual, a um só tempo, oculta e

revela tais relações estabelecidas entre os elementos pré-construídos que são suscitados no

pronunciamento em estudo.

4.3.5 Berrendonner: gênero discursivo – posse 2007

Assim como na subseção anterior, na qual estudamos o gênero discursivo a partir do

qual o locutor enuncia ao tomar posse da presidência da República pela primeira vez, nesta

subseção, dedicar-nos-emos a explorar os aspectos sócio-comunicativos e funcionais que

orientam a emergência do gênero em estudo no momento em que o locutor é formalmente

reconduzido ao poder em 2007. Buscaremos, assim, apreender, a partir da utilização de quais

recursos lingüístico-discursivos a instância da locução se apropria do gênero em estudo para

interagir com a instância da interlocução em uma situação de comunicação específica,

marcada pela formalidade. Recorrendo, mais uma vez, ao Modelo Interlocutório Triádico,

proposto por Berrendonner, procuraremos, portanto, salientar como, ao se apropriar do gênero

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219 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

pronunciamento oficial de posse da presidência da República, o locutor busca atender às

exigências da situação comunicativa na qual tal gênero se manifesta.

Igualmente como ocorre na cerimônia de posse de 2003, o gênero pronunciamento

oficial de posse da presidência da República constitui, em 2007, um recurso representacional,

pois, também, na recondução oficial de Lula ao poder, busca-se construir-lhe uma nova

representação social. Quanto a esse aspecto, faz-se necessário primeiramente observar que a

mudança se apresenta como o fio condutor também no pronunciamento de 2007, atrelada,

primordialmente, à contraposição entre o antes, no que concerne aos quatro anos da primeira

gestão de Lula; o agora, referente ao momento da posse que coroa o término do primeiro

mandato e o início do segundo; o depois, no que diz respeito ao novo mandato que ora se

inicia. Se, na cerimônia oficial de posse de 2003, a mudança explorada consistia na

substituição do modelo sócio-político e econômico vigente até então, em 2007, a mudança diz

respeito, conforme visto anteriormente, não só à implementação de um ritmo mais acelerado à

mudança de modelo impressa no primeiro mandato, mas, principalmente, à mudança pessoal

experimentada pelo locutor ao longo desse período. Faz-se oportuno relembrar que, no pleito

eleitoral de 2003, explorou-se a habilidade de negociador de Lula como líder sindical e como

líder de um partido de esquerda, buscando-se estabelecer um paralelo entre essa habilidade,

desenvolvida nas esferas sindical e político-partidária, e habilidades requeridas de um

presidente da República no estabelecimento de relações com as mais diferentes instâncias que

natural e necessariamente interagem com o poder.

Vê-se, assim, que, enquanto, a partir do pronunciamento de 2003, buscava-se

construir, para o locutor, uma representação social de dirigente maior da nação, em

substituição à de líder sindical e de líder de um partido de esquerda, no pronunciamento de

2007, pretende-se construir-lhe uma representação social de político maduro, experiente e,

acima de tudo, plenamente consciente do que representa deter o poder, o que tem por

finalidade fazer com que o locutor seja percebido como dotado de características essenciais e

especiais para continuar gerindo a nação. Constata-se, entretanto, que se busca manter viva a

origem do locutor, provavelmente a fim de que ele seja percebido como provido de

características ainda mais singulares se comparado a seus pares. Busca-se, assim, preservar

aquilo que, no passado, constituía o seu diferencial em relação aos demais atores políticos, a

fim de que ele não seja concebido como um político como qualquer outro. Essa preocupação

se evidencia, por exemplo, a partir do estabelecimento da contraposição entre o igual e o

diferente que orienta a organização global do texto. Embora no pronunciamento de 2007 o

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220 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

locutor se empenhe em rebater críticas de seus opositores, rotulando-os de “preconceituosos”

e “elitistas”, pode-se dizer que neste se manifesta uma preocupação de que o discurso da

mudança não se fundamente, de modo expressivo, conforme se verifica no pronunciamento de

2003, na díade amigo-inimigo. Isso parece encontrar explicações no fato de que, se, em 2003,

a proposta de mudança de modelo sócio-político e econômico sugeria a derrota de forças

políticas que até então detinham o poder, em 2007, a justificação da mudança, promovida no

primeiro mandato, associada à proposta de impressão de um ritmo mais acelerado à mudança

implementada, sugere a gestão de um agente amadurecido e consciente de seu papel político.

E, portanto, de um agente político conciliador e acima das divergências e adversidades

próprias do meio político, ou seja, de um político capaz de superar adversidades e

antagonismos que se manifestam de forma marcante no âmbito da política.

Observa-se, assim, que a instância da locução, em interação com a instância da

interlocução, busca interferir no “modelo público de realidade” vigente, fazendo com que este

não mais comporte, da mesma forma como observado em 2003, a díade amigo-inimigo, no

que diz respeito ao estabelecimento de relações entre forças políticas distintas e antagônicas.

Isto porque se faz premente, no momento em que o locutor é reconduzido ao poder, não mais

justificar a necessidade de mudança de modelo sócio-político e econômico e de governante

para promover tal mudança, mas, ao contrário disto, configura-se a exigência de manutenção

destes. As especificidades da nova situação comunicativa que se estabelece entre os dois

universos individuais previstos no modelo interlocutório de Berrendonner determinam,

portanto, que estes interajam de modo distinto com o universo coletivo previsto em tal modelo

- o “modelo público de realidade” - buscando alterá-lo. Essa busca de interferência no

“modelo público de realidade” até então vigente se processa, por sua vez, a partir do

acionamento de outros distintos sistemas de representações. Representações estas sobre as

quais também se busca exercer interferência, tais como, por exemplo, a representação de

“homem público ideal”, a qual acaba constituindo, por sua vez, a representação que se busca

construir para o locutor como político reconduzido à presidência da República. A nova

representação que se busca construir para o locutor, por meio da qual se busca exercer

interferência no “modelo público de realidade” vigente, a fim de alterá-lo, estrutura-se,

conforme visto anteriormente, a partir da exploração do valor maturidade, o qual comporta,

por sua vez, outros valores, tais como a conciliação. A exploração desse conjunto de valores

apresenta-se como estratégia imprescindível para que a instância da locução interaja com a

instância da interlocução, buscando influenciá-la favoravelmente à interferência que aquela

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221 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

almeja exercer sobre o “modelo público de realidade”, visando atender às suas necessidades

políticas do momento.

Verifica-se, desse modo, que, em 2007, não se configura a preocupação/necessidade

de que o “modelo público de realidade” comporte o confronto de forças políticas distintas e

antagônicas. Sendo assim, embora a díade amigo-inimigo se manifeste, ela não mais constitui

o elemento central que, a um só tempo, justifica e alimenta a mudança, temática central nos

dois pronunciamentos, pois a mudança explorada, no pronunciamento em estudo, diz respeito,

prioritariamente, ao universo particular do locutor como gestor político, o que implica,

naturalmente, que se saliente a maturidade para lidar com conflitos. Pode-se assim dizer que a

instância da produção busca monitorar a construção de uma nova representação social para o

locutor e, por conseguinte, uma nova representação social de homem público, de instância

cidadã e de “modelo público de realidade”, de modo a atender a finalidades específicas em

uma situação social que constitui a recondução ao poder. Observa-se, por exemplo, que, se,

no pronunciamento de 2003, manifesta-se a necessidade de conter o ímpeto social pela

mudança imediata de modelo sócio-político e econômico, no pronunciamento de 2007, a

cautela cede lugar ao dinamismo, à ousadia, pois já não se propõe a mudança de modelo, mas,

sim, a impressão de um ritmo mais acelerado à mudança promovida no primeiro mandato, o

que se busca atrelar à necessidade de experiência e maturidade políticas.

A construção de novas representações sociais que se busca instituir, em 2003, a partir

do pronunciamento oficial de posse, acaba, conforme visto na subseção anterior, (re)velando

um movimento aparente em defesa da alteração do modelo sócio-político e econômico até

então vigente no país e um movimento simulado em defesa da manutenção deste, do que

decorre um significativo apagamento do ideário da esquerda política historicamente defendido

pelo locutor. Já, em 2007, o pronunciamento de posse representa o coroamento desse

apagamento, ou, melhor dizendo, da anulação desse ideário. Pode-se assim dizer que, se, em

2003, no pronunciamento oficial de posse, observa-se a emergência do discurso da esquerda

política brasileira, em 2007, verifica-se a completa extinção deste, o que sugere o

estabelecimento de uma nova relação entre os três universos distintos previstos no Modelo

Interlocutório de Berredonner - o locutor, o interlocutor e o “modelo público de realidade” - o

que sugere, por sua vez, a instituição de uma nova representação social para cada um destes.

No pronunciamento de 2003, promove-se o início da construção social de presidente da

República, para o locutor, engendrado, conforme visto anteriormente, a partir da instituição de

uma nova relação entre a instância da locução e a da interlocução. Tal relação se instaura, por

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222 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

sua vez, a partir do estabelecimento de um cauteloso movimento de aproximação e

distanciamento do locutor em relação às classes mais populares e um movimento igualmente

cauteloso de aproximação deste em relação às classes mais privilegiadas. No pronunciamento

de 2007, constata-se que, embora a instância da locução procure manter viva a sua origem,

enfraquecem-se os laços de proximidade estabelecidos outrora entre o locutor e as classes

menos favorecidas, o que não converte, entretanto, para um fortalecimento da relação

estabelecida, ao longo dos quatro anos do primeiro mandato, com as classes mais favorecidas.

O que se observa é que o locutor se encontra na incômoda posição de não pertencimento,

pois, ao mesmo tempo em que parece, a partir dos valores que defende, distanciar-se de sua

base de apoio político, não consegue, de modo satisfatório, aproximar-se das classes mais

favorecidas, uma vez que a sua origem social e política mantém-se viva, mesmo que apenas

no mundo do discurso. Quanto a esse aspecto, faz-se oportuno chamar a atenção para o fato

de que a origem social e política do locutor revela lhe trazer, a um só tempo, benefícios e

malefícios.

Considerando-se que o pronunciamento de 2007, diferentemente do de 2003, registra a

recondução do locutor ao poder, e não a tomada de posse do poder por parte deste, a relação

social estabelecida, por intermédio de tal pronunciamento, entre a instância da locução e a da

interlocução se altera, uma vez que passa a ser mediada, de forma distinta, pelo poder. Se, a

partir do pronunciamento de 2003, o locutor iniciou para si a construção de uma nova

representação social sob grandes e distintas expectativas, diferentemente do que ocorreu em

situação análoga com seus antecessores, a partir do pronunciamento de 2007, o mesmo não se

observa, considerando-se que, ao longo dos quatro anos do exercício de seu primeiro

mandato, o locutor tornou conhecida a sua forma de gerir o País. Se a expectativa verificada

em 2003 explica e, até mesmo, justifica a escolha da mudança de modelo sócio-político e

econômico como temática central do pronunciamento, a ausência dessa expectativa parece

justificar a escolha da mudança pessoal do locutor como fio condutor do pronunciamento de

2007. Isso parece encontrar explicações no fato de que, enquanto, em 2003, a expectativa

social era de qual mudança seria instituída, pois a mudança era algo considerado certo, em

2007, a expectativa social era de continuísmo. Ou seja, em 2007, observa-se, por parte de

parcela significativa da sociedade brasileira, a expectativa de que, no segundo mandato de

Lula, mantenham-se as linhas mestras que orientaram o modelo sócio-político e econômico

adotado até a ascensão do locutor ao poder em 2003, o que representa que, em 2007, verifica-

se expectativa social de que, nos próximos quatro anos, não se cumpram as significativas

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223 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

mudanças sócio-políticas e econômicas amplamente prometidas pelo locutor ao longo de sua

trajetória política.

Vale ainda destacar que, se, em 2003, havia grande desejo de mudança por grande

parte da sociedade brasileira, havia, por outro lado, por parte de determinados segmentos

sociais, receio da mudança que se processaria com a ascensão de Lula ao poder. Mesmo

assim, a manutenção do modelo sócio-político e econômico há muito praticado no País não

era considerada positiva nem mesmo por muitos desses segmentos, os quais, no passado,

apoiaram aqueles que, uma vez no poder, defendiam e aplicavam tal modelo. Segmentos estes

que, embora temessem a mudança que se esperava que ocorresse com a tomada do poder por

Lula, compunham-se, em parte, por sua vez, por segmentos que ansiavam alguma mudança.

Tendo em vista que a mudança amplamente alardeada pela candidatura Lula, no pleito

eleitoral de 2002, foi considerada frustrada, ao final do primeiro mandato do governo Lula,

por parte significativa da sociedade brasileira, pode-se dizer que o locutor, mesmo tendo sido

reconduzido ao poder em 2007, registrou, ao final de seu primeiro mandato, considerável

perda de credibilidade social. Ressalta-se, quanto a esse aspecto, que a confiabilidade e a

credibilidade sociais necessárias à recondução de Lula ao poder partiram das classes mais

populares da sociedade. Mas se faz oportuno esclarecer que tal perda de credibilidade parece

encontrar explicações não só no não cumprimento de mudança expressiva de modelo sócio-

político e econômico, mas, principalmente, no envolvimento do governo Lula e do PT em

escândalos que colocaram em xeque uma das principais bandeiras levantadas historicamente

por Lula e pelo PT: a ética. Quanto a esse aspecto, faz-se, ainda, imprescindível destacar que,

ao final do primeiro mandato do governo Lula, frustrou-se, talvez, a maior expectativa social

em relação a tal governo: a moralização da política.

Parece-nos possível poder dizer que a insatisfação social referente à distância

verificada entre a mudança prometida e a mudança realizada no primeiro mandato do governo

Lula mais a decepção social concernente ao âmbito da ética balizaram a construção que se

busca, na campanha eleitoral e na cerimônia de posse, promover da nova representação social

de Lula. Nesse cenário de, a um só tempo, recondução ao poder e perda de credibilidade,

parece se apresentar a necessidade da construção, a partir do pronunciamento em estudo, da

representação de político experiente e maduro. Político dotado, portanto, de características

essenciais ao enfrentamento da crise política de valores éticos, deflagrada durante o primeiro

mandato de Lula, e à impressão de ritmo mais acelerado à mudança neste iniciada. Embora se

busque, na construção dessa nova representação social para o locutor, associar maturidade

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224 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

política, por exemplo, a ousadia e a coragem, parece-nos possível poder dizer que a

serenidade e a sobriedade próprias da maturidade acabam, nesse contexto, por suplantar,

negativamente, a coragem, a determinação e o dinamismo que se pretende que a nova

representação também compreenda. Isso parece encontrar explicações no fato de a situação

comunicativa na qual o pronunciamento em análise se manifesta acabar naturalmente por

provocar a contraposição entre a representação social de Lula historicamente construída à que

se busca construir no momento de sua recondução oficial ao poder. Como fruto dessa

contraposição, parece se construir, implicitamente, para o locutor, a representação social de

político não mais distinto dos demais, considerando-se que os elementos a partir dos quais se

busca construir-lhe nova representação social acabam por entrar em choque com a

representação social que lhe foi construída no passado remoto. Promove-se, assim, o

apagamento daquilo que historicamente distinguia o locutor dos demais atores políticos e, por

conseguinte, o apagamento daquilo que diferenciava o “modelo público de realidade” vigente

até a ascensão de Lula ao poder em 2002 do modelo idealizado por Lula ao longo de sua

trajetória como homem público e por ele proposto ao ascender ao poder pela primeira vez.

Pode-se assim dizer que, a partir das estratégias lingüístico-discursivas empregadas no

pronunciamento em análise, busca-se explicitamente construir, para o locutor, a representação

social de político maduro e consciente do que constitui o “fazer política”, em sua essência. Na

construção dessa representação, os dois universos individuais previstos no Modelo

Interlocutório proposto por Berrendonner interagem, sob a iniciativa/condução estratégica de

um desses universos - a instância da locução - com o universo coletivo previsto nesse modelo

- o “modelo público de realidade” - no intuito de alterá-lo, uma vez que se busca transformar,

por exemplo, o cenário de corrupção e ausência de ética na esfera política em um cenário de

responsabilidade e comprometimento com o bem público. Isso porque, no pronunciamento em

estudo, o locutor defende a política como o único instrumento viável ao estabelecimento do

bem comum. Implicitamente, entretanto, o “modelo público de realidade”, que parece se

buscar alterar, teima em se manter, fazendo com que não só o exercício da política emirja

como algo dotado de caráter essencialmente negativo, como também aqueles que a colocam

em prática, uma vez que o locutor (re)vela assumir a mesma postura adotada habitualmente

por seus pares diante, por exemplo, do “modelo público de realidade”, o qual comporta o

modelo de “fazer política”, e da instância cidadã. A partir do estabelecimento de uma

interação entre esses três universos distintos, busca-se, portanto, promover a construção de

uma realidade pública, a qual, conforme se pode observar, revela-se dotada de grande

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225 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

complexidade, considerando-se que tal construção se processa por intermédio da interferência

de inúmeros fatores de ordem individual e social.

4.3.6 Reboul e Mondada: a construção referencial do espetáculo – posse 2007

No pronunciamento político-presidencial que registra a recondução oficial de Lula ao

poder em 2007, o referente “espetáculo político” se constrói, assim como no pronunciamento

que conduz Lula ao poder pela primeira vez ao poder, em 2003, primordialmente, nos

domínios avaliativos opostos, mas complementares, da grandeza e do trágico. Além desses

dois domínios avaliativos, também os domínios do factual e do contrafactual, também opostos

e complementares, constituem domínios nos quais se engendra a construção do objeto

“espetáculo político”. Tal construção se processa a partir da instituição de uma relação de

contraposição ou de disjunção entre “igual” e “diferente”, isto é, entre ontem e hoje/amanhã,

ou, melhor dizendo, entre a cerimônia que oficializa a ascensão de Lula ao poder em 2003, o

cumprimento de seu primeiro mandato presidencial, a sua recondução ao poder em 2007 e o

cumprimento de seu segundo mandato presidencial.

O fato, entretanto, de, em 2007, o par esperança/medo ter sido substituído pelo par

igual/diferente, faz com que, em 2007, a construção do referente “espetáculo político” se

processe de modo distinto do que ocorre em 2003. A exploração, a um só tempo, contrastiva e

complementar que se observa, em 2003, dos domínios avaliativos da grandeza e do trágico

não se dá, em 2007, de modo tão intenso e expressivo, considerando-se que se explora a

contraposição entre o início e o término do primeiro mandato de Lula, a fim de se registrar a

mudança engendrada nos quatro anos da primeira gestão do governo Lula, e não a

substituição de um modelo descrito pela instância da locução como nefasto, por outro,

descrito pela mesma instância, como progressista. Em 2003, fazia-se necessário apresentar o

modelo sócio-político e econômico vigente até aquela época no país como algo funesto,

visando conferir, ao modelo proposto por Lula, dimensões altamente positivas, objetivando,

por sua vez, tornar socialmente desejável a sua adoção e, conseqüentemente, ter amplificada a

adesão social à implantação de tal modelo. Observa-se, assim, que se, em 2003, a díade

amigo-inimigo é intensamente explorada, em 2007, isso já não se constata, o que resulta, por

sua vez, em uma exploração menos intensa do domínio do trágico, o qual é apenas explorado

a partir de referências a esferas exteriores ao domínio de ação do locutor, como, por exemplo,

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226 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

ao que diz respeito a ações adotadas por países desenvolvidos. O domínio avaliativo do

contrafactual é acionado, por sua vez, a partir das promessas feitas de impressão de um ritmo

mais acelerado e dinâmico à mudança, uma vez que esta constitui uma projeção do futuro, a

qual o interlocutor é convidado a instaurar no plano do imaginário, ou seja, do contrafactual.

Já o domínio do factual é ativado a partir das justificações apresentadas pela instância da

locução acerca das realizações e não realizações referentes ao primeiro mandato do governo

Lula.

O estabelecimento da relação de contraposição igual/diferente opera-se, em 2007, a

partir da emergência de elementos previamente construídos no momento em que o locutor

assume formalmente o poder pela primeira vez e, nessa ocasião, não só reitera pública e

formalmente o compromisso historicamente por ele assumido de mudar o modelo sócio-

político e econômico até então vigente no país, como também recupera a sua origem sócio-

política. Mas se faz oportuno esclarecer que, em 2007, coloca-se em foco, em primeiro plano,

o primeiro mandato de Lula, ou seja, o que se conquistou ao longo dos quatro anos da gestão

Lula e, em segundo plano, ou seja, em plano de fundo, o passado sócio-político do locutor,

diferentemente do que se verifica no pronunciamento de 2003, no qual a origem sócio-política

do locutor assume maior relevância, uma vez que o grande espetáculo que se busca construir é

a ascensão de um genuíno homem do povo ao poder. Nestes dois momentos, 2003 e 2007, o

que se procura colocar em destaque e que constitui, portanto, o espetáculo que se busca

construir é a mudança, acima de tudo, experimentada pelo locutor: em 2003, a mudança social

do locutor, enquanto, em 2007, a mudança política que se processa com o locutor ao longo

dos quatro anos de exercício de seu primeiro mandato. Enquanto, em 2003, a construção do

referente “espetáculo político” se engendra, a partir da instituição da contraposição “medo” e

“esperança”, no pronunciamento de 2007, essa construção se opera a partir da instituição da

contraposição entre “igual” e “diferente”, a qual se estabelece e se desenvolve a partir do

trecho “Tudo é muito parecido, mas tudo é profundamente diferente.”

A exploração do par igual/diferente que se processa no pronunciamento de 2007

recupera, no interdiscurso, de modo direto e explícito, não só o momento em que o locutor

assume formalmente o poder em 2003, como também os quatro anos referentes ao

cumprimento de seu primeiro mandato e a conclusão deste. Já, de modo indireto e implícito,

são recuperados, segundo a perspectiva da instância da produção, modelos de gestão

anteriores à era do governo Lula, tendo em vista que, ao se explorar o par igual/diferente,

coloca-se em evidência, por associação às ações desenvolvidas no primeiro mandato do

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227 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

locutor, o modelo de gestão adotado pelos antecessores de Lula. Sendo assim, a exploração do

par igual/diferente estabelece duas contraposições distintas, mas complementares: de um lado,

contrapõe-se a era do governo Lula à era, apresentada como indistinta, de governos anteriores

ao governo Lula e, de outro, contrapõe-se o início da primeira fase da era do governo Lula ao

término desta e início da segunda fase dessa era. A divisão da história política do país em

duas grandes eras, ao mesmo tempo em que parece submeter ao apagamento os vários atores

políticos responsáveis pela construção da primeira era, confere realce ao único ator político

apresentado como agente da segunda era. O emprego dessa estratégia lingüístico-discursiva

acaba por conferir grande dimensão à recondução de Lula ao poder, o que parece produzir o

efeito de amplificação da excepcionalidade do momento e, por conseguinte, o efeito de

amplificação da dimensão do espetáculo que se busca construir.

O par igual/diferente e os elementos a partir deste apresentados parecem disparar a

ativação de RMs pertencentes a domínios avaliativos da grandeza, do trágico, do factual e do

contrafactual nos quais a exploração de tal par é interpretada na construção do referente

“espetáculo político”. Faz-se oportuno chamar a atenção para o fato de que, se, por um lado, a

ativação do domínio do trágico parece ser provocada somente a fim de que se amplifiquem os

efeitos de sentido incitados a partir da ativação do domínio da grandeza, por outro, a ativação

do domínio do contrafactual parece só ser estimulada, a partir da referência do que se propõe

desenvolver no segundo mandato do governo Lula, tendo em vista a potencialização dos

efeitos de sentido do acionamento do domínio do factual. Nesses domínios são avaliados

domínios referenciais que dizem respeito aos temas abordados, como, por exemplo, educação,

saúde, emprego e política, aos quais se busca, a partir do emprego dessas estratégias de

potencialização de efeitos de sentido, conferir o cunho do espetacular. A amplificação

simultânea dos efeitos de sentido da ativação dos domínios da grandeza e do factual parecem

acabar por conferir uma maior dimensão tanto ao momento em que Lula é reconduzido ao

poder quanto àquilo que se apresenta como pertencente ao plano do já realizado, o que parece

fazer com que aquilo que se situa no plano da promessa seja apreendido como algo que

certamente se realizará. Parece-nos possível poder, portanto, dizer que a construção do

referente “espetáculo político”, a partir do acionamento privilegiado dos domínios da

grandeza e do factual, com o concurso da ativação dos domínios do trágico e do contrafactual,

ao mesmo tempo em que parece dilatar a dimensão de excepcionalidade que se busca atribuir

à recondução de Lula ao poder parece conferir às promessas referentes ao exercício de seu

segundo mandato a dimensão de concretude e certeza. Observa-se, desse modo, que se busca

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228 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

conferir uma dimensão amplificada ao espetáculo político que se constrói a partir do

pronunciamento em análise. Ou seja, parece-nos que se busca promover a espetacularização

do espetáculo. Objetiva-se, assim, a partir da amplificação do cunho positivo do espetacular,

provocar a recepção favorável do interlocutor ao segundo mandato do governo Lula.

Igualmente em 2003, o referente “espetáculo político” se constrói, no pronunciamento

em análise, a partir da construção do referente “mudança”; objeto este que emerge como

objeto discursivo a ser (re)construído na relação “eu”/”tu”, instituída pela enunciação

primitiva. Essa recorrência da temática mudança parece encontrar explicações no fato de o

movimento de ascensão do locutor ao poder apresentar-se marcado, desde o início e de modo

significativo e expressivo, pela mudança, a qual se pretende, a todo custo, manter viva, ou,

melhor dizendo, a qual se pretende que seja ativada pelo interlocutor, a fim de que seja

amplificada a dimensão do espetáculo que se busca construir. A construção do objeto

discursivo “mudança” se processa, por sua vez, a partir da construção de outros referentes,

tais como “imagem de homem público” e “modelo público de realidade”, conforme se

verifica também em 2003. Ratifica-se, assim, mais uma vez, no momento em que Lula é

reconduzido ao poder, a construção do objeto discursivo “mudança”, a qual é recuperada no

interdiscurso e à qual são acrescidas outras dimensões referenciais, que dizem respeito a

valores próprios da maturidade, aliados a valores próprios da juventude; valores estes

consensualmente admitidos como positivos e, portanto, dotados de prestígio, em nossa

sociedade.

Como a construção do referente “espetáculo político” está centrada, no

pronunciamento em estudo, na figura do locutor, faz-se oportuno observar que o tom

agressivo atribuído a Lula, o qual, a cada campanha eleitoral, apresentava-se mais e mais

atenuado, apaga-se, por completo, em 2007, sendo substituído por um tom de mágoa, no que

diz respeito aos “preconceituosos” e às “elites”, que nunca o apoiaram e, portanto, nunca

acreditaram em sua competência para assumir a gerência do país. Tal mudança de tom parece

contribuir para que o espetáculo que se busca construir assuma uma dimensão mais

amplificada, uma vez que se delineia uma nova representação para o locutor, a partir da qual

ele se manifesta dotado de flexibilidade, espírito conciliador, aptidão para se transformar e se

adaptar a novas situações, para buscar superar conflitos e, portanto, para transformar o meio

em que vive, mesmo sendo incompreendido e não aceito por alguns. Busca-se, assim, dotar o

locutor de uma capacidade de transformação ímpar, elevando-o, dessa forma, acima dos

demais seres humanos e, ainda, repassando a responsabilidade por eventuais insucessos de

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229 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

gestão ao grupo daqueles que não o aceitam e não o compreendem. Ou seja, ao grupo dos,

segundo a avaliação velada do locutor, incapazes de identificar, acompanhar e aceitar

mudanças, algo posto, por este, como inevitável. Se, conforme se pôde observar na subseção

anterior, o referente “mudança” se construiu, no decorrer da trajetória política do locutor, até a

sua ascensão ao poder em 2003, a partir de elementos dotados de características cada vez mais

distintas daqueles a partir dos quais se iniciou o processo de construção desse referente, na

recondução de Lula ao poder em 2007, a construção desse mesmo referente reflete, portanto, a

consolidação desse gradual afastamento do locutor em relação aos períodos mais

significativos de sua construção como homem público: os períodos de liderança sindical e de

liderança de um partido de esquerda. Esse aspecto parece explicar o fato de que, na

construção do referente “espetáculo político”, manifeste-se a ocorrência mais expressiva de

formações discursivas de cunho tradicional-conservador, em detrimento de formações

discursivas de caráter progressista, no pronunciamento em análise em relação ao

pronunciamento de posse de 2003. Parece que assim se consolida, em 2007, o fortalecimento

desse caráter tradicional-conservador.

Verifica-se, desse modo, também no pronunciamento em análise, que as formações

discursivas são constituídas de RMs, algumas das quais com o status de pré-construído, como

se pode observar, por exemplo, na recorrente emergência de elementos provindos dos

discursos político-capitalista e político-popular, os quais encontram sua origem em formações

discursivas de cunho tradicional-conservador. Vale aqui salientar que, se, em 2003, a

construção do referente “espetáculo político” se processa marcada pela emergência de

elementos pré-construídos de natureza distinta, ou seja, de cunho tanto tradicional-

conservador quanto progressista, o mesmo não se observa em 2007, quando o conflito entre

elementos de natureza distinta não mais ocorre, graças à quase absoluta manifestação de

formações discursivas de caráter tradicional-conservador. Mas, mesmo assim, constata-se, no

pronunciamento em análise, a preocupação da exploração do novo e do inédito, os quais, a

partir de um contraponto com o pronunciamento de posse de 2003, são redimensionados em

2007. Na recondução de Lula ao poder, o novo e o inédito se manifestam intimamente ligados

ao singular amadurecimento político que se busca atribuir ao locutor, a fim de que se

valorizem as conquistas por ele alcançadas em seu primeiro mandato, no que diz respeito à

mudança do modelo sócio-político e econômico e, por conseguinte, confira-se credibilidade às

justificações e às promessas apresentadas no pronunciamento que registra a sua segunda

tomada de posse do poder. Constata-se, dessa forma, que, também no pronunciamento de

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230 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

2007, a (re)construção do objeto discursivo “mudança” se mostra fortemente influenciada por

aspectos de cunho tradicional-conservador, fazendo com que, em tal (re)construção, os

domínios referenciais acionados sejam avaliados em domínios marcados por um caráter

tradicional-conservador, como o do trágico e o da grandeza. Nota-se, assim, que a construção

do referente “política”, por exemplo, processa-se, concomitantemente, nos domínios

avaliativos do trágico e da grandeza, a partir dos quais, ao mesmo tempo em que a esfera da

política se apresenta como propícia a problemas, se se considerar a séria crise política e ética

deflagrada no primeiro mandato do governo Lula, a qual é implicitamente referida no

pronunciamento em estudo, é utilizada para enaltecer o locutor. Isto tendo em vista que este se

apresenta como o político maduro, conciliador e, portanto, a um só tempo, atuando no

universo da política, como partícipe deste, mas acima dos problemas que desse universo

emana. No pronunciamento de 2007, o locutor tem, de tal forma, construída a sua

superioridade, a partir da construção do objeto “política”, que se mostra com capacidade

inigualável de reconhecer a necessidade desta na vida social, o que confere não só à sua

construção como homem público, como também à construção do “modelo público de

realidade”, no que diz respeito à esfera da política, uma dimensão altamente espetacularizada.

O gênero discursivo “pronunciamento político-presidencial de posse”, a partir do qual

o locutor enuncia em primeiro de janeiro de 2007 no Congresso Nacional, contribui, de modo

decisivo, para a construção do objeto discursivo “espetáculo político”, grosso modo, pelas

mesmas razões segundo as quais se constrói, no pronunciamento de 2003, o referente

“espetáculo político”. Vale notar, entretanto, alguns aspectos em que essa construção se

processa de modo distinto, no pronunciamento de 2007. Um desses aspectos diz respeito à

pompa e à suntuosidade próprias do evento no qual se manifesta o gênero em questão, as

quais, em 2003, contrastam com a natureza sócio-política do locutor, produzindo uma história

de contos de fadas e contribuindo, assim, para que o espetáculo que se produz assuma

contornos ainda mais espetaculares. O mesmo já não se observa em 2007, uma vez que a

natureza sócio-política do locutor parece ter sofrido, ao longo de seu primeiro mandato

presidencial, um expressivo apagamento, o qual parece se concluir nesse pronunciamento,

embora a instância política se preocupe em recuperá-lo e mantê-lo vivo na construção do

“espetáculo político” que ora se processa.

Tal apagamento parece contribuir, de modo significativo, para que o evento perca

muito de seu caráter espetacular, o qual é mantido, embora em proporção inferior à observada

em 2003, graças à sua ocorrência extraordinária. Faz-se oportuno observar que, se o gênero

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231 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

em questão, representa, conforme visto na seção anterior, o endereço para RMs elaboradas

pelo interlocutor sobre o referente a ser construído, inevitavelmente o interlocutor, a partir do

estabelecimento de relações lógicas, ativa domínios referenciais nos quais estão arquivados

elementos sobre a ascensão do locutor ao poder em 2003. Os elementos resultantes dessa

ativação são naturalmente postos em relação com o que acontece no momento da recondução

de Lula ao poder; momento este que apresenta elementos responsáveis por tal acionamento.

Esse estabelecimento de relação parece contribuir, de forma expressiva, para que o momento

da recondução oficial do locutor ao poder perca grande parte do encanto e, portanto, de seu

caráter espetacular. Pode-se assim dizer que, embora, em 2007, o evento conserve o caráter do

extraordinário, perde, em dimensão, o cunho do espetacular. Observa-se, assim, também a

partir desse fato, que o pronunciamento em estudo denuncia o total arrefecimento daquilo que

diferenciava o locutor dos demais detentores do poder, o que corrobora para que tal

pronunciamento se confunda, por completo, com pronunciamentos enunciados outrora por

locutores de orientação política completamente diversa da e, até mesmo, antagônica à

orientação política adotada pelo locutor, de modo expressivo, até sua ascensão ao poder em

2003. A consciência desse arrefecimento parece fazer com que, dentre outras razões, observe-

se, por parte do locutor, uma preocupação em justificar as ações adotadas no primeiro

mandato e se apresentar como mais preparado para assumir os desafios que se configuram no

final de seu primeiro mandato. Vê-se, assim, que, mesmo numa situação de recondução ao

poder, em que, em tese, a primeira gestão teve aprovação social, a assimetria entre a instância

política e a cidadã se mantém. Embora o locutor detenha a aprovação popular para continuar

gerindo o bem público, a composição do pronunciamento revela que essa aprovação não é

irrestrita nem geral, que, embora ele detenha o poder supremo para continuar gerindo a nação

por mais quatro anos, o apoio social é que conferirá credibilidade ao que foi legitimado nas

urnas.

Se, em 2003, o espetáculo não constitui a mudança prometida, mas sim aquele que se

apresenta como o agente da mudança, em 2007, aquele que, em 2003, assume a função de

agente, constitui, também, o espetáculo que se constrói, mas, acima de tudo, como objeto da

mudança, e não mais, em primeiro plano, como agente propulsor, o que parece, em parte,

encontrar explicações no fato de se tratar de uma recondução ao poder. Essa mudança de

situação parece explicar essa mudança de lugar, de agente para objeto de mudança, se se

considerar que, em 2003, havia a promessa de instauração de mudança do modelo sócio-

político e econômico vigente até então. Já, em 2007, a mudança já havia sido, em tese,

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232 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

instaurada, embora não completada, o que parece justificar a ênfase no amadurecimento

político do locutor e, portanto, em sua mudança pessoal, para imprimir um ritmo mais

acelerado à mudança. Em 2007, o papel de agente assume, pois, o segundo plano, na

hierarquia de importância, considerando-se que se revela prioritário valorizar a competência

adquirida pelo locutor, ao longo do primeiro mandato, para imprimir um ritmo mais acelerado

à mudança prometida, a fim de que se justifique a sua recondução ao poder. Observa-se,

assim, que, diferentemente de 2003, não se verifica, em 2007, a preocupação de que o locutor

passe a ser aceito como representante mandatário maior da nação, uma vez que este está

sendo reconduzido ao poder. O que se observa é a preocupação de que ele seja concebido

como mais experiente e maduro no que diz respeito ao exercício do poder. Ou seja, de que ele

seja, no exercício do segundo mandato, percebido como capaz de aliar a experiência de

governo à experiência anteriormente adquirida em decorrência de sua origem sócio-política.

Busca-se, desse modo, a partir do emprego dessa estratégia lingüístico-discursiva,

fazer com que o referente “espetáculo político” que se constrói em 2007 não perca a dimensão

espetacular conquistada, em 2003, em situação análoga de posse do poder. Parece-nos

possível, entretanto, poder dizer que, se contraposta à ascensão do locutor ao poder em 2003,

a sua recondução, em 2007, experimentou uma perda, digamos, de glamour. Isso parece

encontrar explicações no fato de, em parte, o evento, em 2007, já não mais estar imbuído do

cunho da novidade e, em parte, porque o cumprimento da promessa feita, antes de o locutor

ascender ao poder em 2003, parece não ter atendido, em linhas gerais, às expectativas sociais.

A estratégia empregada, em 2007, visando a recuperar a dimensão do espetacular, a qual diz

respeito à valorização do amadurecimento político do locutor, parece-nos, porém, poder ser

apreendida de duas formas. Se, por um lado, tal amadurecimento pode ser apreendido como

algo que dota o locutor de maior competência para governar, por outro lado, parece criar a

possibilidade de que ele seja vinculado à figura do que pejorativa e vulgarmente se denomina,

no que diz respeito aos trâmites da política, de “raposa velha”. Tanto na primeira hipótese

quanto na segunda, ao se buscar valorizar a experiência política do locutor, parece-nos que

este acaba por perder o que constituía o seu trunfo em relação aos seus opositores políticos,

uma vez que o locutor acaba por se igualar àqueles que fazem carreira na política e eram por

ele acusados de responsáveis pela situação que ele prometeu/promete mudar. Entendemos que

isso acaba por contribuir para que a dimensão do espetáculo que se busca construir em 2007

seja significativamente reduzida.

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233 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

No processo de construção do referente “espetáculo político” que se estabelece, em

2007, a partir do pronunciamento de posse, em que se busca resguardar as dimensões do

espetacular alcançadas na construção do mesmo objeto em 2003, o locutor enuncia, assim

como em 2003, a partir de distintos lugares discursivos, por intermédio do emprego, dentre

outros, de distintos indicadores de pessoa. Neste momento, faz-se oportuno estabelecer um

paralelo entre 2003 e 2007, recuperando o exposto nas duas subseções que compõem a seção

“Benveniste: categoria de pessoa e de tempo”, a fim de que se observem as especificidades

que orientam, no que diz respeito a esse aspecto, essas duas situações distintas. Em 2003,

verifica-se a manifestação marcante tanto do eu-candidato quanto do eu-mítico, o que já não

se observa em 2007, considerando-se que tanto uma quanto outra manifestação experimentam

certo arrefecimento. No que tange à manifestação do “eu-candidato”, observa-se que esta cede

a força e a intensidade das quais se revela dotada em 2003 à manifestação do “eu-presidente”,

evidenciando, assim, a intimidade experimentada pelo locutor com o poder, no momento de

sua recondução à presidência da República. Já no que se refere à manifestação do “eu-

mítico”, embora este se manifeste revelando a preocupação de se conferir ênfase ao caráter de

excepcionalidade que se busca atribuir ao locutor, nota-se que, em relação a 2003, tal

manifestação caracteriza-se por certa opacidade, decorrente da manifestação mais expressiva

do “eu-presidente”. Também o “eu-indivíduo” apresenta-se de forma distinta nos dois

pronunciamentos, pois, enquanto em 2003, este é marcado pela duplicidade, revelando não só

o ser social que compartilha com seus iguais os mesmos anseios, como também o ser em sua

particularidade, em sua intimidade, em 2007, o eu-indivíduo apenas revela o locutor em sua

particularidade. Faz-se oportuno ainda observar que se, em 2003, o povo é referido também

como agente da mudança, em 2007, ele passa a ocupar o lugar de beneficiário da mudança e,

portanto, de objeto da mudança. Tais diferenças identificadas entre os dois pronunciamentos

acabam por denunciar o quanto o pronunciamento de recondução de Lula à presidência da

República apresenta-se mais centrado na figura do locutor, o que parece conferir maior

destaque à manifestação do “eu-presidente”.

Os lugares discursivos a partir dos quais o locutor enuncia constituem um dos aspectos

por meio dos quais se apreende a construção do “espetáculo político” engendrada nos dois

pronunciamentos. A observação dos lugares discursivos a partir dos quais o locutor enuncia

contribui para a percepção de que, se, em 2003, a mudança de condição social assume, em

detrimento da mudança do modelo sócio-político e econômico, o cunho do espetáculo que se

busca construir, em 2007, o amadurecimento político assume esse caráter. Tanto em 2003

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234 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

quanto em 2007, o locutor se manifesta, de um lado, como produto da mudança, e, por outro,

como agente desta, uma vez que, ao mesmo tempo em que experimenta uma mudança

pessoal, apresenta-se como competente para assumir a tarefa de promover uma mudança a ele

exterior: a mudança de modelo sócio-político e econômico. Mas quanto a esse aspecto, faz-se

oportuno chamar a atenção para o fato de que, se, em 2003, a idéia de mudança, como algo

inovador e progressista, parece se revelar natural e automaticamente vinculada ao locutor, em

2007, esse vinculo parece se desfazer por completo. Entretanto, no pronunciamento de 2007,

parece se observar a preocupação em se recuperar a ligação entre Lula e a idéia de mudança

apreendida, no passado, como algo natural. Busca-se, assim, apresentar a mudança, idealizada

historicamente pelo locutor, como extremamente necessária e o agente desta como o único

capaz de lhe dar continuidade, o que determina que o grande espetáculo que se busca

construir acabe sendo, mais uma vez, o locutor. Mas parece que o rompimento dessa natural

vinculação observada, no passado, entre a figura do locutor e a idéia de transformação acaba

por fazer com que o “espetáculo político” que se busca construir se esvazie,

significativamente, do cunho do extraordinário. Parece contribuir, de modo expressivo, para

tal esvaziamento, o fato de se buscar explorar a mudança a partir do ângulo do

amadurecimento político do locutor, o que acaba, a um só tempo, por distanciá-lo de seu

passado e aproximá-lo dos detentores tradicionais do poder.

Em 2007, a construção do referente “espetáculo político” se engendra em um cenário

distinto de 2003, segundo o qual a ordem já não mais constitui o imobilismo e o continuísmo

de um modelo sócio-político e econômico considerado desgastado, mas sim o processo de

mudança desse modelo, o qual se apresenta como tendo início há quatro anos. A construção

desse objeto discursivo, assim como se observa em 2003, engendra-se a partir da construção

do referente “mudança”, mas não a partir da recuperação, no interdiscurso, do par

“esperança/medo”, e, sim, da exploração do par “igual/diferente”. Nesse novo cenário, o

continuísmo político emerge, portanto, como a ordem, a qual, entretanto, manifesta-se como

uma necessidade para se completar a mudança em processo. Marcado pela exploração do

contraste, o referente “espetáculo político” se constrói em domínios caracterizados também

pelo contraste: o da grandeza em contraposição ao do trágico, o do factual em contraposição

ao do contrafactual. Observa-se, assim, que, em 2007, a mudança se apresenta sob o prisma, a

um só tempo, do ordinário e do extraordinário, pois passa a ser algo, explorado sob a

perspectiva do espetacular, não somente idealizado, mas também em processo de realização.

Mas se verifica que, em 2007, diferentemente do que ocorre em 2003, as formações

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235 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

discursivas em emergência não contrastam entre si, pois manifestam possuir um cunho

predominantemente tradicional-conservador, o que revela o lugar então ocupado pelo locutor:

de detentor clássico do poder, ou seja, de igual a todos os seus antecessores e, até mesmo, de

todos os seus opositores. Essa (re)construção do referente “espetáculo político” determina, por

sua vez, a (re)construção dos referentes “homem público” e “modelo público de realidade”

também sob o cunho do espetacular.

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236 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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237 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao chegar a este momento em que, obrigatoriamente, devem-se apresentar as últimas e

gerais reflexões acerca do que se escolheu investigar, o pesquisador - acredito que todos - é

convidado a revisitar cada etapa do trabalho desenvolvido: cada escolha, cada descoberta,

cada mudança de olhar, cada mudança de rumo, cada decisão, cada conclusão de etapa, cada

(re)início, cada retomada... Ou seja, é convidado a revisitar todo o caminho que foi

percorrido e que culminou no momento em que, solitariamente, encontra-se diante da folha

em branco, daquela que deve acolher as últimas considerações a respeito do que foi

apreendido durante o longo processo em que se dedicou a perscrutar o seu objeto de estudo.

Encontro-me agora neste momento em que tento desvirginar a folha em branco e

romper, enfim, a difícil tarefa de iniciar um texto. Ou, melhor dizendo, a dupla difícil tarefa

de, a um só tempo, iniciar a redação de um novo texto e finalizar outro maior no qual este se

insere. Buscando atender a essa dupla tarefa, revisito a introdução deste trabalho, texto no

qual se apresenta uma síntese de tudo o que propúnhamos desenvolver e me detenho nos

objetivos, nas metas que se visavam alcançar com o desenvolvimento do presente estudo. E

me indago: os objetivos definidos foram alcançados? Em que o caminho que escolhemos

trilhar contribuiu para que estes fossem ou não alcançados? Perguntas foram respondidas?

Outras não encontraram respostas? E quantas outras foram geradas ao longo do processo em

que se buscaram alcançar os objetivos propostos? Que outros caminhos esta busca acabou por

indicar?

O primeiro elemento inevitavelmente a ser recuperado a fim de que se busque refletir

acerca do que se alcançou ao final deste trabalho é o objetivo que se definiu como central -

analisar como se engendra a interpretação/construção do referente “espetáculo político”, em

dois momentos distintos: a tomada de posse da presidência da República por Luiz Inácio Lula

da Silva em 2003 e em 2007 – o qual se ergue a partir de três questões pilares: a

referência/referenciação, o discurso político e o referente “espetáculo político”. O estudo da

referência conduz naturalmente a inúmeros e distintos caminhos, como, por exemplo, o

lógico-filosófico, o semântico, o pragmático, o lingüístico e o discursivo. Muitos desses

inúmeros caminhos se interpenetram e, assim, se completam. Escolhemos seguir o da Análise

do Discurso, por entendermos que este possibilita apreender tal fenômeno a partir de uma

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238 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

múltipla perspectiva capaz de congregar intimamente três desses caminhos: não só o

pragmático e o discursivo, como também o lingüístico. Dessa forma, buscamos contemplar o

processo que envolve o ato de referir e adentramos, assim, o território da referenciação.

Entendemos que conseguimos adentrar tal território quando decidimos conceber e tratar o

discurso como um sistema, buscando apreendê-lo, portanto, em sua totalidade, o que

possibilitou, por sua vez, que focássemos o sistema político em contato e diálogo com outros

sistemas. Isso se configurou possível a partir, por exemplo, da discussão acerca da trajetória

política de Lula e do PT, a qual contribuiu para orientar a perspectiva segundo a qual se

realizou a terceira parte do trabalho, dedicada à descrição e à análise dos corpora por nós

selecionados. Conceber e tratar o discurso como sistema também contribuiu para o estudo

realizado sobre a construção/interpretação do referente “espetáculo político”, como constructo

cultural, a partir do qual se busca interferir, de modo privilegiado, no “modelo público de

realidade”, a fim de alterá-lo ou de ratificá-lo e buscar, por sua vez, fabricar, na esfera do

extraordinário, o ordinário, o habitual.

Buscando, pois, apreender o ato de referir como processo e o discurso como sistema,

lançamos o olhar sobre o objeto discursivo “espetáculo político”, a fim de compreender como

se processa a interpretação/construção de tal referente no momento em que Lula assume

formalmente a presidência da República em janeiro de 2003 e no momento em que ele, em

janeiro de 2007, é reconduzido formalmente ao poder. O ponto de vista adotado em relação ao

ato de referir e ao discurso possibilitou-nos observar as mudanças contextuais e a mudança de

perspectiva experimentada pelo locutor em cada um desses dois momentos e no segundo

momento contraposto ao primeiro. Constatamos, desse modo, que, no que diz respeito à

construção de objetos discursivos, embora nem todos os detalhes referenciais sejam definidos

na interação, considerando-se que muitos deles são anteriormente pressupostos para, em

seguida, serem determinados em termos interlocutivos, tais objetos constituem representações

sensíveis a mudanças de natureza social e cultural. Nesse sentido, as representações sociais

constituem, invariavelmente, a representação de um objeto, o que as dota do poder de

(re)construir, incessantemente, o que nomeamos “realidade”, a partir de um processo

lingüístico-discursivo de interpretação/construção de objetos discursivos. Por meio desse

processo, o qual se engendra a partir da interação entre sujeitos sócio-enunciativos, busca-se

promover a passagem do não existente para o existente, do ausente para o presente, da

idealização para a realização. Compreende-se, assim, segundo essa perspectiva, que o locutor

político, ao promover, em 2003 e em 2007, a interpretação/construção do referente

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239 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

“espetáculo político”, ao mesmo tempo, similares e distintas, apresenta-se como a instância

responsável por assumir as estratégias lingüístico-discursivas selecionadas e empregadas pela

instância da produção, a fim de, a partir desse processo, interferir na construção de

representações sociais e, por conseguinte, no “modelo público de realidade”, visando a

alcançar propósitos políticos específicos.

A fim de apreender como esse processo de construção referencial se engendra,

elegemos três objetivos específicos. Visando a alcançar o primeiro deles - mostrar que o

processo de interpretação/construção de objetos discursivos se realiza lingüística e

discursivamente a partir da co-ocorrência de diferentes categorias – recorremos tanto a

estudos lingüísticos, como também discursivos desenvolvidos por diferentes estudiosos. Em

nossas descrições e análises, procuramos mostrar, a partir do estudo de cinco categorias, que,

no processo referencial, a dimensão discursiva ocorre, de fato, intimamente atrelada à

lingüística. Mostramos que, a partir das categorias de tempo e de pessoa, apresentadas por

Benveniste, as quais são dotadas de um caráter lingüístico-enunciativo, o locutor enuncia

adotando a perspectiva que se lhe mostrar mais adequada ao estabelecimento de cada

interação comunicativa estabelecida com o interlocutor, instituindo-se como “eu” e

instaurando o “tu”, em um tempo e em um espaço discursivos próprios. Constatamos que essa

instauração dos parceiros enunciativos apresenta-se como primeira e indispensável condição

para referir, uma vez que, a partir dessa instauração, tais parceiros se colocam, de forma ativa

e constante, um em relação ao outro, ao tempo/espaço e ao mundo em que se encontram

situados (o “ele” benvenistiano). Esse colocar-se diante de si, do outro e do mundo,

indispensável ao ato de referir, processa-se, por sua vez, conforme apresentado em nosso

estudo, por meio da utilização de determinadas categorias lingüísticas, as quais Ducrot

nomeia de “indicadores para a referência”. Observamos, na terceira parte deste trabalho, que

tais indicadores, como, por exemplo, as descrições definidas e os demonstrativos, constituem

as condições que a língua apresenta para se referir a objetos, possibilitando, assim, que se

promova, a partir da instituição da relação “eu” e “tu”, a passagem do sentido ao referente.

Verificamos, a partir, por exemplo, da identificação da emergência de formações

discursivas, que essas condições lingüísticas, indispensáveis à referência a objetos,

completam-se, em situação da língua em uso, em uma dimensão sócio-discursiva.

Constatamos que uma formação discursiva impõe certo modo de conceber objetos sociais, o

que se (re)vela, lingüisticamente, a partir, dentre outros, por exemplo, do emprego de

categorias de pessoa e de descrições definidas. A identificação do modo, por exemplo, como a

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240 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

instância enunciativa primitiva (En0) constrói a sua referência instituindo a relação “eu”/“tu”

em seu tempo (T0) e em seu espaço (L0) discursivos próprios constitui um elemento a partir

do qual se busca apreender a maneira pela qual os sujeitos sociais se submetem a estas ou

àquelas formações discursivas. Isso acaba por evidenciar, conforme vimos, na terceira parte

deste trabalho, a liberdade que esses sujeitos experimentam de enunciar do lugar de certas

formações discursivas que, supostamente, não são as suas, a fim de que sejam alcançadas

determinadas finalidades comunicacionais e institucionais em detrimento de outras.

Verificamos, assim, a partir das escolhas lingüísticas feitas pela instância da produção, que, de

fato, as formações discursivas constituem realidades heterogêneas que se nutrem de elementos

que se produzem em outras formações discursivas, constituindo, desse modo, um pré-

construído, um discurso transverso. Por meio deste estudo, nos foi possível observar, portanto,

que não só a instauração do enunciador, ao construir a sua referência, como também a

instauração de todo e qualquer processo referencial se opera sob o controle do interdiscurso.

No que tange à categoria gênero discursivo, observamos que a instância da produção,

buscando atender ao modelo socioculturalmente construído do gênero pronunciamento

político oficial de posse, seleciona os recursos lingüísticos a serem empregados, orientada

pelas finalidades sócio-comunicativas e funcionais que se apresentam em cada um dos dois

momentos colocados em foco neste estudo: a posse da presidência da República por parte de

Lula em 2003 e sua recondução ao poder em 2007. Considerando-se que privilegiamos o

estudo desse gênero como recurso representacional, por intermédio do qual se dá início à

construção de uma nova representação social para o locutor em cada um desses dois

momentos, pode-se dizer que tal categoria representa um recurso de mediação social entre os

três universos previstos no Modelo Interlocutório Triádico de Berrendonner, a partir do qual

se constroem representações sociais, o que se realiza, por sua vez, a partir de um processo

referencial. Constatamos, portanto, que a representação social de Lula, como presidente da

República, formou-se em 2003 e (trans)formou-se em 2007, quando este foi reconduzido ao

poder, por meio do discurso e da linguagem, a partir da mediação estabelecida entre esses três

universos. Verificamos, desse modo, a partir do estudo realizado do gênero em questão, que

as representações sociais constituem um espaço comum em que esses três universos se

encontram, ou, melhor dizendo, os dois universos individuais se encontram, a fim de que,

juntos, interajam com o universo coletivo, visando mantê-lo ou alterá-lo. Observamos, assim,

que, nesse processo de construção referencial, dois universos individuais interagem entre si,

ultrapassando a dimensão do individual para adentrar a dimensão do coletivo, que com esta se

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241 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

relaciona. Tendo em vista que as formações discursivas, como constructos coletivos

disponíveis no interdiscurso, têm origem nas mediações sociais e, portanto, no espaço comum

em que esses três universos se encontram, pode-se dizer que as representações sociais,

construídas a partir do gênero em questão, engendram-se também por meio destas duas

categorias: as formações discursivas e o interdiscurso. Por intermédio da observação do

caráter das formações discursivas (tradicional e conservador) que se manifestam nos dois

pronunciamentos estudados, constatamos que o gênero em questão revela a dupla essência das

representações sociais: mudança e inércia. Em nosso estudo acerca da participação da

categoria gênero discursivo na construção do referente “espetáculo político”, contemplamos,

portanto, o discurso como objeto de uma abordagem sócio-histórica, a partir da qual o

enunciado emerge como um acontecimento discursivo, e não apenas como um produto

lingüístico. Constatamos, assim, por sua vez, que, de fato, “os discursos são práticas que

formam sistematicamente os objetos de que falam”, conforme afirma Foucault (1972: 64).

O estudo do gênero pronunciamento político oficial de posse, como recurso

representacional por meio do qual se inicia, em dois momentos distintos, a construção de uma

nova representação social para o locutor contribuiu, sobremaneira, para que se alcançasse o

segundo objetivo específico deste estudo: identificar os principais referentes a partir de cuja

interpretação/construção se processa a interpretação/construção do referente “espetáculo

político”. A aplicação, em nossos estudos, do Modelo Interlocutório Triádico de Berrendonner

possibilitou-nos identificar, de forma privilegiada, os dois principais referentes, a partir de

cuja interpretação/construção se engendra a interpretação/construção do objeto discursivo em

questão: o referente “homem público” e o referente “modelo público de realidade”.

Observamos que o locutor, na construção de sua representação social como homem público e,

mais particularmente, como presidente da República, interage com a instância cidadã, a fim

de manter e/ou alterar o que comumente se denomina “realidade”, buscando acionar, para tal,

domínios avaliativos como o da grandeza, do trágico, do factual e do contrafactual.

Identificamos que, em decorrência de tais acionamentos, a construção dos referentes “homem

público” e “modelo público de realidade” engendra-se, não raro, na esfera do espetacular, o

que significa que esses referentes se edificam, de forma privilegiada, a partir da construção do

referente “espetáculo político”, o qual, por sua vez, edifica-se, sobretudo, a partir destes.

Constatamos, portanto, em nosso estudo, que, ao mesmo tempo em que o referente

“espetáculo político” se constrói a partir da construção de outros referentes, tais como

“homem público” e “modelo público de realidade”, estes, por sua vez, edificam-se, a partir da

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construção de outros, dentre os quais se destaca, de modo distinto, o referente “espetáculo

político”. Verificamos, assim, que o processo de construção desses referentes se realiza a

partir do estabelecimento de intricadas relações simbiônticas, o que parece encontrar

explicações no fato de, conforme afirma Rubim (2002), instaurar-se, na produção do

espetáculo, temporariamente, normas distintas daquelas que regem o mundo ordinário, a fim

de que, a partir da ruptura dos limites entre o factual e o contrafactual, adentre-se o mundo da

contrafactualidade, no qual o extraordinário se torna possível. E, ainda, no fato de, nos

movimentos que compõem o posicionamento e a luta políticos a partir dos quais se promove a

luta pela construção das representações sociais e pela hegemonia concernente à

interpretação/construção do que denominamos “realidade”, a construção do extraordinário

contribuir para viabilizar a instauração e a vigência do ordinário.

O terceiro objetivo específico deste estudo - observar a produção do espetáculo

político como um fato discursivo dotado, a um só tempo, de transparência e opacidade – foi

atingido a partir do momento em que os demais objetivos foram alcançados. Na política

concernente à esfera do Estado, a instância política é dotada do direito ao dizer, do qual

advém o poder de selecionar o que deve ser mostrado à instância cidadã e o que deve ser desta

ocultado. Isso faz com que se institua um jogo entre verdade e verossimilhança que, a um só

tempo, desnuda-se e encobre-se no e pelo discurso. A construção do espetáculo político

constitui o espaço discursivo, por excelência, em que esse jogo se instaura, uma vez que, a

partir de tal construção, a instância política encontra os recursos de que necessita tanto para

evidenciar e amplificar o que intenciona tornar público, quanto ocultar o que deseja manter na

esfera restrita do privado. O movimento de espetacularização, ao promover, discursivamente,

na esfera do extraordinário, a valorização e a amplificação de certos elementos, promove, em

contrapartida, automaticamente, a escamoteação, o apagamento de outros. No presente estudo,

observamos que esse movimento de amplificação e apagamento, que se processa

discursivamente no âmbito do extraordinário, tem por finalidade provocar uma interferência

no âmbito do ordinário, no sentido de buscar manter ou alterar o que nesse âmbito ocorre.

Inferimos, portanto, a partir da adoção dessa perspectiva, que, assim como o extraordinário se

constrói a partir de elementos oriundos do ordinário, este se alimenta, por sua vez, daquele.

Observamos, por exemplo, que a adoção da mudança, como fio condutor, em cada um

dos dois pronunciamentos estudados, embora a partir de perspectivas distintas, mas sempre

atrelada, no seu aspecto positivo, ao locutor, colocou em evidência o seu oposto, a inércia. A

partir da exploração do par mudança/inércia, buscou-se, conforme vimos, lançar luzes sobre

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certos elementos que se mostravam favoráveis à situação do momento, o que fez com que

outros, desfavoráveis à mesma situação, fossem automaticamente apagados, a fim de que se

assegurasse a governabilidade durante o exercício dos dois mandatos presidenciais em

questão. Ou seja, por intermédio da construção do objeto discursivo espetáculo, buscou-se

assegurar condições adequadas à ocorrência de determinadas ações ordinárias. Observamos,

por exemplo, quanto a esse aspecto, que, no proferimento de 2003, explorou-se,

primordialmente, a mudança do modelo sócio-político e econômico vigente até então no país,

atrelada à mudança social do locutor, a fim de que, a partir dessa exploração, fossem

amplificadas a competência do locutor em gerir o país e a incompetência de seus antecessores,

à qual se vinculou a idéia de inércia. Já no pronunciamento de 2007, focou-se,

essencialmente, a exploração da mudança política sofrida pelo locutor durante o cumprimento

de seu primeiro mandato na presidência da República, enquanto a inércia perdeu o cunho do

negativo observado no pronunciamento de 2003. Isso porque esta passou a ser vinculada à

figura do locutor e a ações por este realizadas em seu primeiro mandato presidencial, tal como

a adoção de um novo modelo sócio-político e econômico; modelo este cujo aperfeiçoamento é

defendido no pronunciamento de 2007, e não a sua substituição por outro modelo, como em

2003. Ao observar a produção do espetáculo político como um fato discursivo, constatamos

que tais transparência e opacidade das quais este se apresenta dotado só se (re)velam no

discurso, espaço em que se exploram a volatilidade de objetos discursivos, tais como “homem

público” e “modelo público de realidade”, de acordo com a finalidade que se pretende

alcançar.

A partir do desenvolvimento do presente estudo, adentramos, pois, o vasto e complexo

universo do discurso, território em que se estabelecem relações, tais como entre transparência

e opacidade, amplificação e apagamento... entre distintos pontos de vista, a partir das quais

objetos discursivos se constroem e se reconstroem em um movimento incessante.

Constatamos, assim, que a construção de objetos discursivos se engendra a partir do

estabelecimento de relações que, ao mesmo tempo, resultam e advém do estabelecimento, por

sua vez, de um jogo de espelhos do qual participam os três universos previstos por

Berrendonner. O estabelecimento desse complexo jogo de espelhos coloca em cena a co-

ocorrência de distintos pontos de vista, por intermédio dos quais os objetos discursivos têm

sua interpretação/construção constantemente atualizada, a partir de um olhar em direção ao

“eu”, ao “tu”, ao “ele” e ao espaço em que estes se colocam em cena, o que nos leva a

reconhecer que, conforme defende Maquiavel (2002:10), “... para conhecer bem a natureza do

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povo, é necessário ser príncipe, para conhecer a natureza do príncipe, é necessário pertencer

ao povo”.

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REFERÊNCIAS

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252 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

ANEXOS

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253 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

7 ANEXOS

7.1 Anexo I – Pronunciamento de posse - 2003

Discurso do Presidente da República

Presidência da República Secretaria de Imprensa e Divulgação

Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na sessão solene de

posse, no Congresso Nacional

Brasília – DF, 01 de janeiro de 2003

Excelentíssimo senhores chefes de Estado e de Governo; visitantes e chefes das

missões especiais estrangeiras; Excelentíssimo senhor presidente do Congresso Nacional,

Senador Ramez Tebet;

Excelentíssimo senhor vice-presidente da República, José Alencar; Excelentíssimo

senhor presidente da Câmara dos Deputados, deputado Efraim Morais; Excelentíssimo senhor

presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio Mendes de Faria Mello;

Sras. e Srs. ministros e ministras de Estado; Sras. e Srs. parlamentares, senhoras e senhores

presentes a este ato de posse,

"Mudança": esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira

nas eleições de outubro. A esperança, finalmente, venceu o medo e a sociedade brasileira

decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos.

Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produziu

estagnação, desemprego e fome; diante do fracasso de uma cultura do individualismo, do

egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das comunidades,

diante das ameaças à soberania nacional, da precariedade avassaladora da segurança pública,

do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens; diante do impasse econômico,

social e moral do país, a sociedade brasileira escolheu mudar e começou, ela mesma, a

promover a mudança necessária.

Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu Presidente da República: para mudar.

Este foi o sentido de cada voto dado a mim e ao meu bravo companheiro José Alencar. E

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254 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes de nós,

para reafirmar os meus compromissos mais profundos e essenciais, para reiterar a todo

cidadão e cidadã do meu país o significado de cada palavra dita na campanha, para imprimir à

mudança um caráter de intensidade prática, para dizer que chegou a hora de transformar o

Brasil naquela Nação com a qual a gente sempre sonhou: uma Nação soberana, digna,

consciente da própria importância no cenário internacional e, ao mesmo tempo, capaz de

abrigar, acolher e tratar com justiça todos os seus filhos.

Vamos mudar, sim. Mudar com coragem e cuidado, humildade e ousadia, mudar tendo

consciência de que a mudança é um processo gradativo e continuado, não um simples ato de

vontade, não um arroubo voluntarista. Mudança por meio do diálogo e da negociação, sem

atropelos ou precipitações, para que o resultado seja consistente e duradouro.

O Brasil é um país imenso, um continente de alta complexidade humana, ecológica e

social, com quase 175 milhões de habitantes. Não podemos deixá-lo seguir à deriva, ao sabor

dos ventos, carente de um verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional e de um

planejamento, de fato, estratégico. Se queremos transformá-lo, a fim de vivermos em uma

Nação em que todos possam andar de cabeça erguida, teremos de exercer quotidianamente

duas virtudes: a paciência e a perseverança.

Teremos que manter sob controle as nossas muitas e legítimas ansiedades sociais, para

que elas possam ser atendidas no ritmo adequado e no momento justo; teremos que pisar na

estrada com os olhos abertos e caminhar com os passos pensados, precisos e sólidos, pelo

simples motivo de que ninguém pode colher os frutos antes de plantar as árvores.

Mas começaremos a mudar já, pois como diz a sabedoria popular, uma longa

caminhada começa pelos primeiros passos.

Este é um país extraordinário. Da Amazônia ao Rio Grande do Sul, em meio a

populações praieiras, sertanejas e ribeirinhas, o que vejo em todo lugar é um povo maduro,

calejado e otimista. Um povo que não deixa nunca de ser novo e jovem, um povo que sabe o

que é sofrer, mas sabe também o que é alegria, que confia em si mesmo, em suas próprias

forças. Creio num futuro grandioso para o Brasil, porque a nossa alegria é maior do que a

nossa dor, a nossa força é maior do que a nossa miséria, a nossa esperança é maior do que o

nosso medo.

O povo brasileiro, tanto em sua história mais antiga, quanto na mais recente, tem dado

provas incontestáveis de sua grandeza e generosidade; provas de sua capacidade de mobilizar

a energia nacional em grandes momentos cívicos; e eu desejo, antes de qualquer outra coisa,

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255 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

convocar o meu povo, justamente para um grande mutirão cívico, para um mutirão nacional

contra a fome.

Num país que conta com tantas terras férteis e com tanta gente que quer trabalhar, não

deveria haver razão alguma para se falar em fome. No entanto, milhões de brasileiros, no

campo e na cidade, nas zonas rurais mais desamparadas e nas periferias urbanas, estão, neste

momento, sem ter o que comer. Sobrevivem milagrosamente abaixo da linha da pobreza,

quando não morrem de miséria, mendigando um pedaço de pão.

Essa é uma história antiga. O Brasil conheceu a riqueza dos engenhos e das plantações

de cana-de-açúcar nos primeiros tempos coloniais, mas não venceu a fome; proclamou a

independência nacional e aboliu a escravidão, mas não venceu a fome; conheceu a riqueza das

jazidas de ouro, em Minas Gerais, e da produção de café, no Vale do Paraíba, mas não venceu

a fome; industrializou-se e forjou um notável e diversificado parque produtivo, mas não

venceu a fome. Isso não pode continuar assim.

Enquanto houver um irmão brasileiro ou uma irmã brasileira passando fome, teremos

motivo de sobra para nos cobrirmos de vergonha.

Por isso, defini entre as prioridades de meu Governo um programa de segurança

alimentar que leva o nome de Fome Zero. Como disse em meu primeiro pronunciamento após

a eleição, se, ao final do meu mandato, todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar

café da manhã, almoçar e jantar, terei cumprido a missão da minha vida.

É por isso que hoje conclamo: vamos acabar com a fome em nosso país.

Transformemos o fim da fome em uma grande causa nacional, como foram no passado a

criação da Petrobrás e a memorável luta pela redemocratização do país. Essa é uma causa que

pode e deve ser de todos, sem distinção de classe, partido, ideologia. Em face do clamor dos

que padecem o flagelo da fome, deve prevalecer o imperativo ético de somar forças,

capacidades e instrumentos para defender o que é mais sagrado: a dignidade humana.

Para isso, será também imprescindível fazer uma reforma agrária pacífica, organizada

e planejada.

Vamos garantir acesso à terra para quem quer trabalhar, não apenas por uma questão

de justiça social, mas para que os campos do Brasil produzam mais e tragam mais alimentos

para a mesa de todos nós, tragam trigo, soja, farinha, frutos, o nosso feijão com arroz.

Para que o homem do campo recupere sua dignidade sabendo que, ao se levantar com

o nascer do sol, cada movimento de sua enxada ou do seu trator irá contribuir para o bem-

estar dos brasileiros do campo e da cidade, vamos incrementar também a agricultura familiar,

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256 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

o cooperativismo, as formas de economia solidária. Elas são perfeitamente compatíveis com o

nosso vigoroso apoio à pecuária e à agricultura empresarial, à agroindústria e ao agronegócio;

são, na verdade, complementares tanto na dimensão econômica quanto social. Temos de nos

orgulhar de todos esses bens que produzimos e comercializamos.

A reforma agrária será feita em terras ociosas, nos milhões de hectares hoje

disponíveis para a chegada de famílias e de sementes, que brotarão viçosas, com linhas de

crédito e assistência técnica e científica. Faremos isso sem afetar de modo algum as terras que

produzem, porque as terras produtivas se justificam por si mesmas e serão estimuladas a

produzir sempre mais, a exemplo da gigantesca montanha de grãos que colhemos a cada ano.

Hoje, tantas áreas do país estão devidamente ocupadas, as plantações espalham-se a

perder de vista, há locais em que alcançamos produtividade maior do que a da Austrália e a

dos Estados Unidos. Temos que cuidar bem, muito bem, deste imenso patrimônio produtivo

brasileiro. Por outro lado, é absolutamente necessário que o país volte a crescer, gerando

empregos e distribuindo renda.

Quero reafirmar aqui o meu compromisso com a produção, com os brasileiros e

brasileiras, que querem trabalhar e viver dignamente do fruto do seu trabalho. Disse e repito:

criar empregos será a minha obsessão. Vamos dar ênfase especial ao projeto Primeiro

Emprego, voltado para criar oportunidades aos jovens, que hoje encontram tremenda

dificuldade em se inserir no mercado de trabalho. Nesse sentido, trabalharemos para superar

nossas vulnerabilidades atuais e criar condições macroeconômicas favoráveis à retomada do

crescimento sustentado, para a qual a estabilidade e a gestão responsável das finanças

públicas são valores essenciais.

Para avançar nessa direção, além de travar combate implacável à inflação,

precisaremos exportar mais, agregando valor aos nossos produtos e atuando, com energia e

criatividade, nos solos internacionais do comércio globalizado.Da mesma forma, é necessário

incrementar, e muito, o mercado interno, fortalecendo as pequenas e microempresas. É

necessário também investir em capacitação tecnológica e infra-estrutura voltada para o

escoamento da produção.

Para repor o Brasil no caminho do crescimento, que gere os postos de trabalho tão

necessários, carecemos de um autêntico pacto social pelas mudanças e de uma aliança que

entrelace objetivamente o trabalho e o capital produtivo, geradores da riqueza fundamental da

Nação, de modo a que o Brasil supere a estagnação atual e volte a navegar no mar aberto do

desenvolvimento econômico e social. O pacto social será, igualmente, decisivo para viabilizar

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257 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

as reformas que a sociedade brasileira reclama e que eu me comprometi a fazer: a reforma da

Previdência, a reforma tributária, a reforma política e da legislação trabalhista, além da

própria reforma agrária. Esse conjunto de reformas vai impulsionar um novo ciclo do

desenvolvimento nacional. Instrumento fundamental desse pacto pela mudança será o

Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social que pretendo instalar já a partir

de janeiro, reunindo empresários, trabalhadores e lideranças dos diferentes segmentos da

sociedade civil.

Estamos em um momento particularmente propício para isso. Um momento raro da

vida de um povo. Um momento em que o Presidente da República tem consigo, ao seu lado, a

vontade nacional. O empresariado, os partidos políticos, as Forças Armadas e os trabalhadores

estão unidos. Os homens, as mulheres, os mais velhos, os mais jovens, estão irmanados em

um mesmo propósito de contribuir para que o país cumpra o seu destino histórico de

prosperidade e justiça.

Além do apoio da imensa maioria das organizações e dos movimentos sociais,

contamos também com a adesão entusiasmada de milhões de brasileiros e brasileiras que

querem participar dessa cruzada pela retomada pelo crescimento contra a fome, o desemprego

e a desigualdade social. Trata-se de uma poderosa energia solidária que a nossa campanha

despertou e que não podemos e não vamos desperdiçar. Uma energia ético-política

extraordinária que nos empenharemos para que encontre canais de expressão em nosso

Governo.

Por tudo isso, acredito no pacto social. Com esse mesmo espírito constituí o meu

ministério com alguns dos melhores líderes de cada segmento econômico e social brasileiro.

Trabalharemos em equipe, sem personalismo, pelo bem do Brasil e vamos adotar um novo

estilo de Governo, com absoluta transparência e permanente estímulo à participação popular.

O combate à corrupção e a defesa da ética no trato da coisa pública serão objetivos

centrais e permanentes do meu Governo. É preciso enfrentar com determinação e derrotar a

verdadeira cultura da impunidade que prevalece em certos setores da vida pública.

Não permitiremos que a corrupção, a sonegação e o desperdício continuem privando a

população de recursos que são seus e que tanto poderiam ajudar na sua dura luta pela

sobrevivência.

Ser honesto é mais do que apenas não roubar e não deixar roubar. É também aplicar

com eficiência e transparência, sem desperdícios, os recursos públicos focados em resultados

sociais concretos. Estou convencido de que temos, dessa forma, uma chance única de superar

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258 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

os principais entraves ao desenvolvimento sustentado do país. E acreditem, acreditem mesmo,

não pretendo desperdiçar essa oportunidade conquistada com a luta de muitos milhões de

brasileiros e brasileiras.

Sob a minha liderança, o Poder Executivo manterá uma relação construtiva e fraterna

com os outros Poderes da República, respeitando exemplarmente a sua independência e o

exercício de suas altas funções constitucionais.

Eu, que tive a honra de ser parlamentar desta Casa, espero contar com a contribuição

do Congresso Nacional no debate criterioso e na viabilização das reformas estruturais que o

país demanda de todos nós.

Em meu Governo, o Brasil vai estar no centro de todas as atenções. O Brasil precisa

fazer, em todos os domínios, um mergulho para dentro de si mesmo, de forma a criar forças

que lhe permitam ampliar o seu horizonte. Fazer esse mergulho não significa fechar as portas

e janelas ao mundo. O Brasil pode e deve ter um projeto de desenvolvimento que seja ao

mesmo tempo nacional e universalista. Significa, simplesmente, adquirir confiança em nós

mesmos, na capacidade de fixar objetivos de curto, médio e longo prazos e de buscar realizá-

los. O ponto principal do modelo para o qual queremos caminhar é a ampliação da poupança

interna e da nossa capacidade própria de investimento, assim como o Brasil necessita

valorizar o seu capital humano investindo em conhecimento e tecnologia.

Sobretudo vamos produzir. A riqueza que conta é aquela gerada por nossas próprias

mãos, produzida por nossas máquinas, pela nossa inteligência e pelo nosso suor.

O Brasil é grande. Apesar de todas as crueldades e discriminações, especialmente

contra as comunidades indígenas e negras, e de todas as desigualdades e dores que não

devemos esquecer jamais, o povo brasileiro realizou uma obra de resistência e construção

nacional admirável. Construiu, ao longo dos séculos, uma Nação plural, diversificada,

contraditória até, mas que se entende de uma ponta a outra do território. Dos encantados da

Amazônia aos orixás da Bahia; do frevo pernambucano às escolas de samba do Rio de

Janeiro; dos tambores do Maranhão ao barroco mineiro; da arquitetura de Brasília à música

sertaneja. Estendendo o arco de sua multiplicidade nas culturas de São Paulo, do Paraná, de

Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e da região Centro-Oeste. Esta é uma Nação que fala a

mesma língua, partilha os mesmos valores fundamentais, se sente que é brasileira. Onde a

mestiçagem e o sincretismo se impuseram, dando uma contribuição original ao mundo. Onde

judeus e árabes conversam sem medo. Onde toda migração é bem-vinda, porque sabemos que,

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259 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

em pouco tempo, pela nossa própria capacidade de assimilação e de bem-querer, cada

migrante se transforma em mais um brasileiro.

Esta Nação, que se criou sob o céu tropical, tem que dizer a que veio: internamente,

fazendo justiça à luta pela sobrevivência em que seus filhos se acham engajados;

externamente, afirmando a sua presença soberana e criativa no mundo.

Nossa política externa refletirá também os anseios de mudança que se expressaram nas

ruas. No meu Governo, a ação diplomática do Brasil estará orientada por uma perspectiva

humanista e será, antes de tudo, um instrumento do desenvolvimento nacional. Por meio do

comércio exterior, da capacitação de tecnologias avançadas, e da busca de investimentos

produtivos, o relacionamento externo do Brasil deverá contribuir para a melhoria das

condições de vida da mulher e do homem brasileiros, elevando os níveis de renda e gerando

empregos dignos.

As negociações comerciais são hoje de importância vital. Em relação à Alca, nos

entendimentos entre o Mercosul e a União Européia, na Organização Mundial do Comércio, o

Brasil combaterá o protecionismo, lutará pela eliminação e tratará de obter regras mais justas

e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento. Buscaremos eliminar os

escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam os nossos

produtores, privando-os de suas vantagens comparativas. Com igual empenho, esforçar-nos-

emos para remover os injustificáveis obstáculos às exportações de produtos industriais.

Essencial em todos esses foros é preservar os espaços de flexibilidade para nossas políticas de

desenvolvimento nos campos social e regional, de meio ambiente, agrícola, industrial e

tecnológico. Não perderemos de vista que o ser humano é o destinatário último do resultado

das negociações. De pouco valerá participarmos de esforço tão amplo e em tantas frentes se

daí não decorrerem benefícios diretos para o nosso povo. Estaremos atentos também para que

essas negociações, que hoje em dia vão muito além de meras reduções tarifárias e englobam

um amplo espectro normativo, não criem restrições inaceitáveis ao direito soberano do povo

brasileiro de decidir sobre seu modelo de desenvolvimento.

A grande prioridade da política externa durante o meu Governo será a construção de

uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais

democráticos e de justiça social. Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do

Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes

estreitas e egoístas do significado da integração.

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260 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo

um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que

precisam ser urgentemente reparados e reforçados.

Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do

processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo

intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos. Apoiaremos os arranjos

institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e

da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem, hoje, situações difíceis.

Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar

soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas

normas constitucionais de cada país.O mesmo empenho de cooperação concreta e de diálogos

substantivos teremos com todos os países da América Latina.

Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base

no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a

cooperação com a União Européia e os seus Estados-membros, bem como com outros

importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão. Aprofundaremos as relações com

grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outras.

Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa

disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades.

Visamos não só a explorar os benefícios potenciais de um maior intercâmbio

econômico e de uma presença maior do Brasil no mercado internacional, mas também a

estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea.

A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é

tão importante para o futuro da Humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da

democracia no interior de cada estado.

Vamos valorizar as organizações multilaterais, em especial as Nações Unidas, a quem

cabe a primazia na preservação da paz e da segurança internacionais.

As resoluções do Conselho de Segurança devem ser fielmente cumpridas. Crises

internacionais como a do Oriente Médio devem ser resolvidas por meios pacíficos e pela

negociação. Defenderemos um Conselho de Segurança reformado, representativo da realidade

contemporânea com países desenvolvidos e em desenvolvimento das várias regiões do mundo

entre os seus membros permanentes.

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261 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Enfrentaremos os desafios da hora atual, como o terrorismo e o crime organizado,

valendo-nos da cooperação internacional e com base nos princípios do multilateralismo e do

Direito Internacional.

Apoiaremos os esforços para tornar a ONU e suas agências instrumentos ágeis e

eficazes da promoção do desenvolvimento social e econômico, do combate à pobreza, às

desigualdades e a todas as formas de discriminação, da defesa dos direitos humanos e da

preservação do meio ambiente.

Sim, temos uma mensagem a dar ao mundo: temos de colocar nosso projeto nacional

democraticamente em diálogo aberto como as demais nações do planeta, porque nós somos o

novo, somos a novidade de uma civilização que se desenhou sem temor, porque se desenhou

no corpo, na alma e no coração do povo, muitas vezes, à revelia das elites, das instituições e

até mesmo do Estado.

É verdade que a deterioração dos laços sociais no Brasil nas últimas duas décadas,

decorrente de políticas econômicas que não favoreceram o crescimento trouxe uma nuvem

ameaçadora ao padrão tolerante da cultura nacional. Crimes hediondos, massacres e

linchamentos crisparam o país e fizeram do cotidiano, sobretudo nas grandes cidades, uma

experiência próxima da guerra de todos contra todos.

Por isso, inicio este mandato com a firme decisão de colocar o governo federal em

parceria com os estados, a serviço de uma política de segurança pública muito mais vigorosa e

eficiente. Uma política que, combinada com ações de saúde, educação, entre outras, seja

capaz de prevenir a violência, reprimir a criminalidade e restabelecer a segurança dos

cidadãos e cidadãs. Se conseguirmos voltar a andar em paz em nossas ruas e praças, daremos

um extraordinário impulso ao projeto nacional de construir, neste rincão da América, um

bastião mundial da tolerância, do pluralismo democrático e do convívio respeitoso com as

diferenças.

O Brasil pode dar muito a si mesmo e ao mundo. Por isso devemos exigir muito de nós

mesmos. Devemos exigir até mais do que pensamos, porque ainda não nos expressamos por

inteiro na nossa História, porque ainda não cumprimos a grande missão planetária que nos

espera. O Brasil, nesta nova empreitada histórica, social, cultural e econômica, terá de contar,

sobretudo, consigo mesmo; terá de pensar com a sua cabeça; andar com as suas próprias

pernas; ouvir o que diz o seu coração. E todos vamos ter de aprender a amar com intensidade

ainda maior o nosso país, amar a nossa Bandeira, amar a nossa luta, amar o nosso povo.

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262 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Cada um de nós, brasileiros, sabe que o que fizemos até hoje não foi pouco, mas sabe

também que podemos fazer muito mais. Quando olho a minha própria vida de retirante

nordestino, de menino que vendia amendoim e laranja no cais de Santos, que se tornou

torneiro mecânico e líder sindical, que um dia fundou o Partido dos Trabalhadores e acreditou

no que estava fazendo, que agora assume o posto de Supremo Mandatário da Nação, vejo e

sei, com toda a clareza e com toda a convicção, que nós podemos muito mais.

E, para isso, basta acreditar em nós mesmos, em nossa força, em nossa capacidade de

criar e em nossa disposição para fazer.

Estamos começando hoje um novo capítulo na História do Brasil, não como Nação

submissa, abrindo mão de sua soberania, não como Nação injusta, assistindo passivamente ao

sofrimento dos mais pobres, mas como Nação altiva, nobre, afirmando-se corajosamente no

mundo como Nação de todos, sem distinção de classe, etnia, sexo e crença.

Este é um país que pode dar, e vai dar, um verdadeiro salto de qualidade. Este é o país

do novo milênio, pela sua potência agrícola, pela sua estrutura urbana e industrial, por sua

fantástica biodiversidade, por sua riqueza cultural, por seu amor à natureza, pela sua

criatividade, por sua competência intelectual e científica, por seu calor humano, pelo seu amor

ao novo e à invenção, mas sobretudo pelos dons e poderes do seu povo.

O que nós estamos vivendo hoje, neste momento, meus companheiros e minhas

companheiras, meus irmãos e minhas irmãs de todo o Brasil, pode ser resumido em poucas

palavras: hoje é o dia do reencontro do Brasil consigo mesmo.

Agradeço a Deus por chegar até aonde cheguei. Sou agora o servidor público número

um do meu país.

Peço a Deus sabedoria para governar, discernimento para julgar, serenidade para

administrar, coragem para decidir e um coração do tamanho do Brasil para me sentir unido a

cada cidadão e cidadã deste país no dia-a-dia dos próximos quatro anos.

Viva o povo brasileiro!

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263 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

7.2 Anexo II – Pronunciamento de posse - 2007

Discurso do Presidente da República

Presidência da República Secretaria de Imprensa e Divulgação

Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na sessão solene de

posse, no Congresso Nacional

Brasília – DF, 01 de janeiro de 2007

Excelentíssimo senador Renan Calheiros, presidente do Congresso Nacional,

Excelentíssimo deputado Aldo Rebelo, presidente da Câmara dos Deputados,

Excelentíssimo senhor José Alencar, vice-presidente da República,

Excelentíssimo ministro Gilmar Ferreira Mendes, presidente em exercício do Supremo

Tribunal Federal,

Excelentíssimo senhor Antônio Fernando, procurador-geral da República,

Minha companheira Marisa,

Senhora Marisa Campos Gomes da Silva,

Senhoras e senhores chefes de Missões Diplomáticas,

Governadores aqui presentes,

Senadores e senadoras,

Deputados e deputadas,

Ministros do Supremo Tribunal Federal,

Meus amigos, minhas amigas,

Minhas queridas brasileiras e meus queridos brasileiros,

Quatro anos atrás, nesta Casa, em um primeiro de janeiro, vivi a experiência mais

importante de minha vida, a de assumir a Presidência do meu País.

Não era apenas a realização de um sonho individual.

O que então ocorreu foi o resultado de um poderoso movimento histórico do qual eu

me sentia, e ainda hoje me sinto, parte e humilde instrumento.

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264 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Pela primeira vez, um homem nascido na pobreza, que teve que derrotar o risco

crônico da morte na infância e vencer, depois, a desesperança na idade adulta, chegava, pela

disputa democrática, ao mais alto posto da República.

Pela primeira vez, a longa jornada de um retirante, que começara, como a de milhões

de nordestinos, em cima de um pau-de-arara, terminava, como expressão de um projeto

coletivo, na rampa do Planalto.

Hoje estou de volta a esta Casa, no mesmo primeiro de janeiro e quase na mesma hora.

Tenho ao meu lado, como em 2003, o amigo e companheiro José Alencar, cuja

colaboração inteligente e leal tornou menos árduas as tarefas destes quatro anos.

E assim o será no Governo que se inicia.

Tudo é muito parecido, mas tudo é profundamente diferente.

É igual e diferente o Brasil; é igual e diferente o mundo; e, eu, sou também igual e

diferente. Sou igual naquilo que mais prezo: no profundo compromisso com o povo e com

meu País. Sou diferente na consciência madura do que posso e do que não posso, no pleno

conhecimento dos limites. Sou igual no ímpeto e na coragem de fazer. Sou diferente na

experiência acumulada na difícil arte de governar.

Sou igual quando volto a conjugar, nas suas formas mais afirmativas, o verbo mudar,

como fiz aqui quatro anos atrás. Mas sou diferente, pois, sem renegar a paciência e a

persistência que aqui também preguei, quero hoje pedir, com toda ênfase, pressa, ousadia,

coragem e criatividade para abrir novos caminhos.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Quatro anos depois, o Brasil é igual na sua energia produtiva e criadora.

Mas é diferente, para melhor, na força da sua economia, na consistência de suas

instituições e no seu equilíbrio social.

Em que momento de nossa história tivemos uma conjugação tão favorável e

auspiciosa: de inflação baixa; crescimento das exportações; expansão do mercado interno,

com aumento do consumo popular e do crédito; e ampliação do emprego e da renda dos

trabalhadores?

O Brasil ainda é igual, infelizmente, na permanência de injustiças contra as camadas

mais pobres. Porém é diferente, para melhor, na erradicação da fome, na diminuição da

desigualdade e do desemprego.

É melhor na distribuição de renda, no acesso à educação, à saúde e à moradia. Muito

já fizemos nessas áreas, mas precisamos fazer muito mais.

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265 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

O Brasil ainda possui sérias travas ao seu crescimento e fragilidades nos seus

instrumentos de gestão. Mas nosso País é diferente, para melhor: na estabilidade monetária;

na robustez fiscal; na qualidade da sua dívida; no acesso a novos mercados e a novas

tecnologias; e na redução da vulnerabilidade externa.

O trabalhador brasileiro ainda não ganha o que realmente merece, mas temos hoje um

dos mais altos salários mínimos das últimas décadas, e os trabalhadores obtiveram ganhos

reais em 90% das negociações salariais nestes últimos quatro anos.

Criamos mais de 100 mil empregos por mês com carteira assinada, sem falar das

ocupações informais e daquelas geradas pela agricultura familiar, totalizando mais de 7

milhões de novos postos de trabalho.

O Brasil ainda precisa avançar em padrões éticos e em práticas políticas. Mas hoje é

muito melhor na eficiência dos seus mecanismos de controle e na fiscalização sobre seus

governantes. Nunca se combateu tanto a corrupção e o crime organizado. Muita coisa

melhorou na garantia dos direitos humanos, na defesa do meio ambiente, na ampliação da

cidadania e na valorização das minorias.

O Brasil é uma nação mais respeitada, com inserção criativa e soberana no mundo.

E o mundo, vasto mundo, como está quatro anos depois?

Melhor em certos aspectos, mas pior, infelizmente, em tantos outros.

Foram quatro anos sem graves crises econômicas, mas com graves conflitos políticos e

militares internacionais.

Ao mesmo tempo em que o crescimento da economia mundial permitiu um certo

desafogo aos países emergentes, a relação entre nações ricas e pobres não melhorou. A

solução dos grandes problemas mundiais, como as persistentes desigualdades econômicas e

financeiras entre as nações; o protecionismo comercial dos grandes; a fome e a inclusão dos

deserdados; a preservação do meio ambiente; o desarmamento; e o combate adequado ao

terrorismo e à criminalidade internacional, não evoluiu.

Os organismos internacionais, especialmente a ONU, não se atualizaram em relação

aos novos tempos que vive a humanidade.

Meus Senhores e minhas Senhoras,

Um dos compromissos mais profundos que tenho comigo mesmo é o de jamais

esquecer de onde vim.

Ele me permite saber para onde seguir.

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266 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Hoje, posso olhar nos olhos de cada um dos brasileiros e brasileiras e dizer que

mantive, mantenho e manterei meu compromisso de cuidar, primeiro, dos que mais precisam.

Governar para todos é meu caminho, mas defender os interesses dos mais pobres é o

que nos guia nesta caminhada.

Se alguns quiseram ver na minha primeira eleição apenas um parênteses histórico, a

reeleição mostrou que um governo que cumpre os seus compromissos obtém a confiança do

povo.

Em outubro, nossa população afirmou de modo inequívoco que não precisa nem

admite tutela de nenhuma espécie para fazer a sua escolha.

Ela foi livre e soberana, como deve ser a força do povo.

É uma responsabilidade enorme tornar-se o presidente com o índice de aprovação mais

elevado ao final de seu mandato.

Tenho plena consciência do que isso significa.

Sei que, a partir de hoje, cabe-me corrigir o que deve ser corrigido e avançar com

maior determinação no que está dando certo, para consolidar as conquistas populares.

O desafio é grande, porém maior é a minha disposição de vencê-lo.

Ouço as vozes das cidades, das ruas e dos campos e escuto, muito perto, a voz da

minha consciência.

Ela me diz que não fui reeleito para ouvir a velha e conformista ladainha segundo a

qual tudo é muito difícil, quase impossível, que só pode ser conquistado numa lentidão

secular.

Quatro anos atrás eu disse que o verbo mudar iria reger o nosso governo.

E o Brasil mudou.

Hoje, digo que os verbos acelerar, crescer e incluir vão reger o Brasil nestes próximos

quatro anos.

Os efeitos das mudanças têm que ser sentidos rápida e amplamente.

Vamos destravar o Brasil para crescer e incluir de forma mais acelerada.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

O Brasil não pode continuar como uma fera presa numa rede de aço invisível,

debatendo-se, exaurindo-se, sem enxergar a teia que o aprisiona.

É preciso desatar alguns nós decisivos para que o País possa usar a força que tem e

avançar com toda velocidade.

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267 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Muito tentamos nos últimos quatro anos, mas fatores históricos, dificuldades políticas

e prioridades inadiáveis fizeram com que nosso esforço não fosse inteiramente premiado.

Hoje a situação é bem melhor, pois construímos os alicerces e temos um projeto claro

de País a ser realizado.

Precisamos de firmeza e ousadia para mudar as regras necessárias e avançar.

Não podemos desperdiçar energias, talentos, esperanças.

Sei que o crescimento, para ser rápido, sustentável e duradouro, tem de ser com

responsabilidade fiscal.

Disso não abriremos mão, em hipótese alguma.

Mas é preciso combinar essa responsabilidade com mudanças de postura e ousadia na

criação de novas oportunidades para o País.

É necessário, igualmente, que este crescimento esteja inserido em uma visão

estratégica de desenvolvimento que nosso País há muito tempo havia perdido.

É preciso uma combinação ampla e equilibrada do investimento público e do

investimento privado.

Para lograr este equilíbrio, temos de desobstruir os gargalos e de romper as amarras

que travam cada um destes setores.

Isso significa ampliar e agilizar o investimento público, desonerar e incentivar o

investimento privado.

Sei que o investimento público não pode, sozinho, garantir o crescimento.

Porém, ele é decisivo para estimular e mesmo ordenar o investimento privado.

Estas duas colunas, articuladas, são capazes de dar grande impulso a qualquer projeto

de crescimento.

Para atingir estes objetivos, estaremos lançando, já neste primeiro mês de governo, um

conjunto de medidas, englobadas no Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC.

Nosso esforço não se esgota nas medidas que anunciaremos em janeiro.

Ao contrário, elas serão apenas o começo.

Serão desdobradas e complementadas ao longo de todo o mandato, incorporando,

inclusive, reformas mais amplas que seguramente estarão na pauta desta Casa.

Vamos realinhar prioridades; otimizar recursos; aumentar fontes de financiamento;

expandir projetos de infra-estrutura; aperfeiçoar o marco jurídico; e ampliar o diálogo

sistemático com as instituições de controle e fiscalização para garantir a transparência dos

projetos e agilizar sua execução.

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268 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

O fornecimento de energia nos próximos dez anos está garantido pelos projetos em

andamento e pelos novos e ambiciosos projetos que serão licitados em 2007.

Continuaremos dando prioridade ao setor de Bioenergia, no qual o Brasil ocupa a

vanguarda mundial, como decorrência dos esforços de nosso governo.

O Programa Luz Para Todos, que já propiciou energia elétrica para cinco milhões de

pessoas, tem como objetivo chegar até o fim de 2008 a todos os brasileiros sem acesso à

eletricidade.

Vamos estabelecer, com o BNDES, a Agência Brasileira de Desenvolvimento

Industrial, a Embrapa, o Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio, e o Ministério

da Ciência e Tecnologia, um amplo programa de incentivo à produtividade das empresas

brasileiras, facilitando a importação de equipamentos; melhorando a qualidade dos tributos;

favorecendo o acesso à tecnologia da informação, apoiando a inovação; e estimulando a

integração empresa-universidade.

E vamos consolidar, em harmonia com esta Casa e com os estados, a legislação

unificada do ICMS, simplificando as normas, reduzindo alíquotas, com previsão de implantar

um único imposto de valor agregado a ser distribuído automaticamente para União, estados e

municípios.

Este conjunto de iniciativas significa o reforço das linhas mestras da política

macroeconômica, com a redução da taxa real de juros.

Tenho claro que nenhum país consegue firmar uma política sólida de crescimento se o

custo do capital, ou seja, o juro, for mais alto do que a taxa média de retorno dos negócios.

Da mesma forma que é necessária uma expansão planejada do crédito.

Nossa meta é criar condições para que sua expansão, até 2010, chegue a 50% do PIB,

especialmente para o investimento, a infra-estrutura, a agricultura, a habitação e o consumo.

Outro ponto vital é a implantação de vigorosas medidas de desburocratização,

sobretudo as que facilitem o comércio exterior, a abertura e fechamento de empresas, além de

levar adiante o aperfeiçoamento das legislações sanitária e ambiental.

Meus Senhores e minhas Senhoras,

Durante a campanha afirmei que meu segundo governo será o governo do

desenvolvimento, com distribuição de renda e educação de qualidade.

Disse que, para termos um crescimento acelerado, duradouro e justo, devemos

articular cada vez melhor a política macroeconômica com uma política social capaz de

distribuir renda, gerar emprego e inclusão.

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269 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Dessa forma, nossa política social, que nunca foi compensatória, e sim criadora de

direitos, será cada vez mais estrutural.

Será peça-chave do próprio desenvolvimento estratégico do País.

O Bolsa Família, principal instrumento do Fome Zero, saudado pelas comunidades

pobres e criticado por alguns setores privilegiados, teve duplo efeito.

Por um lado, retirou da miséria milhões de homens e mulheres.

Por outro, contribuiu para dinamizar a economia de forma mais equânime.

Por isso, obteve reconhecimento internacional, e já inspira programas semelhantes em

vários países do mundo.

Nosso governo nunca foi, nem é “populista”. Este governo foi, é e será popular.

Temos de criar alternativas de trabalho e produção para os beneficiários dos nossos

programas de transferência de renda.

E aí, ocuparão lugar importante: a educação, a formação de mão-de-obra, a expansão

do microcrédito e do crédito consignado, o fortalecimento da agricultura familiar, o avanço da

reforma agrária pacífica e produtiva, a economia solidária, o cooperativismo, o

desenvolvimento de tecnologias simples e a expansão da arte e da cultura popular.

Para isso, as políticas setoriais de governo devem ser fortemente integradas.

É preciso continuar expandindo o consumo de bens essenciais da população de baixa

renda; fomentar o empreendedorismo das classes médias; dar continuidade à recuperação do

salário mínimo; ampliar o crescimento de empregos formais e da massa salarial; e aprofundar

a política nacional para micro, pequena e média empresas, nos moldes da Lei Geral aprovada

por este Congresso, que estabelece tratamento diferenciado em matéria de crédito, acesso à

tecnologia e às exportações.

É preciso garantir o crescimento de todos, diminuindo desigualdades entre as pessoas

e as regiões.

Para diminuir a desigualdade entre as pessoas a alavanca básica é a educação; para

diminuir a desigualdade entre as regiões o principal instrumento são os grandes programas de

desenvolvimento, especialmente os de infra-estrutura.

Estes grandes programas e projetos de desenvolvimento regional já estão definidos e

envolvem setores estratégicos como energia, transporte, inovação tecnológica, insumos

básicos e construção civil.

Na área de energia, eles privilegiam o petróleo, gás, etanol, biocombustíveis e

eletricidade.

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Na área de inovação tecnológica: os softwares, fármacos, bens de capital,

semicondutores e TV Digital.

Na área dos transportes, englobam indistintamente os setores automotivo, ferroviário,

naval e aéreo.

Na construção civil, os setores de infra-estrutura, habitação e saneamento básico.

Na área dos insumos, a siderurgia, papel e celulose, petroquímica e mineração.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Reitero que a educação de qualidade será prioridade de meu governo.

Mais do que a qualificação para o mundo do trabalho, a educação é um instrumento de

libertação, que o acesso à cultura propicia.

Ela dá conteúdo à cidadania formal de homens e mulheres.

Um país cresce quando é capaz de absorver conhecimentos.

Mas se torna forte, de verdade, quando é capaz de produzir conhecimento.

Para isso é fundamental valorizar todos os níveis de nosso sistema educacional, sem

exceção, fortalecer a pesquisa pura e aplicada, consolidar a incorporação e o desenvolvimento

de novas tecnologias.

Temos aqui um gigantesco desafio.

O que outros países fizeram ainda nos séculos dezenove ou vinte, nós teremos de

realizar nos próximos anos.

Trata-se de superar os grandes déficits educacionais que nos afligem e, ao mesmo

tempo, dar passos acelerados para transformar nosso País em uma sociedade de

conhecimento, que nos permita uma inserção competitiva e soberana no mundo.

O Brasil quer, num só movimento, resolver as pendências do passado e ser

contemporâneo do futuro.

Graças ao esforço de todos nós, com a decisiva participação do Congresso Nacional, o

Brasil conta com um instrumento fundamental para melhorar a educação básica, que é o

Fundeb.

Com ele, poderemos aumentar dez vezes o investimento nas áreas mais carentes do

ensino, e 60% destes recursos serão aplicados na melhoria de salários e na formação do

professor.

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Para que o Brasil tenha uma educação verdadeiramente de qualidade, serão

necessários professores bem remunerados, com sólida formação profissional, condições

adequadas de trabalho e permanente atualização.

Os educadores poderão, dessa forma, melhorar o seu desempenho e os resultados da

sua atividade pedagógica.

A Universidade Aberta é decisiva no aperfeiçoamento dos docentes, pois permite que

os professores se reciclem sem sair de suas cidades.

Nesta luta pela qualidade, vamos também ampliar a renovação tecnológica do ensino,

informatizando todas as escolas públicas.

E eu quero repetir, informatizando todas as escolas públicas deste País.

Quero reafirmar, neste dia tão importante, que o meu sonho é ajudar a transformar o

Brasil no país mais democrático do mundo no acesso à universidade.

Para isso contribuirão as novas universidades e extensões universitárias e as escolas

técnicas em todas as cidades-pólo do País.

Para isso contribuirá também a expansão das bolsas do ProUni.

O Brasil assistirá dentro de dez ou quinze anos o surgimento de uma nova geração de

intelectuais, cientistas, técnicos e artistas originários das camadas pobres da população.

Este foi sempre o nosso propósito: democratizar não só a renda, mas também o

conhecimento e o poder.

Outras áreas vitais para a população, e objeto de permanente demanda, são as da saúde

e da segurança pública.

Como fizemos no nosso primeiro mandato, vamos continuar modernizando os dois

setores para que a população brasileira, em especial a mais pobre, tenha uma melhor

qualidade de vida.

Sinto que em matéria de segurança pública, um verdadeiro flagelo nacional, crescem

as condições para uma efetiva cooperação entre a União e os estados da Federação, sem a qual

será muito difícil resolver este crucial problema brasileiro.

Meus Senhores e minhas Senhoras,

Apesar dos avanços científicos e tecnológicos de nosso mundo, ainda não foi

inventada nenhuma ferramenta mais importante do que a política para a solução dos

problemas dos povos.

Nunca o mundo viveu, como vive hoje, um período de tão grande descrédito na

política. Mas, paradoxalmente, nunca a política foi tão imprescindível.

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Temos no Brasil um desafio pela frente.

Desafio para as forças que se identificam com este governo e para aquelas que se

situam na oposição.

Temos de refletir sobre nossas instituições e nossas práticas políticas.

Temos de construir consensos que não eliminem nossas diferenças, nem apaguem os

conflitos próprios das sociedades democráticas.

Precisamos de um sistema político capaz de dar conta da rica diversidade de nossa

vida social.

Nossas instituições têm de ser mais permeáveis à voz das ruas.

Precisamos fortalecer um espaço público capaz de gerar novos direitos e produzir uma

cidadania ativa.

As formas de democracia participativa não são opostas às da democracia

representativa.

Elas se complementam.

Meu governo, atento às manifestações das ruas e, em especial, aos movimentos

sociais, construiu grande parte de suas políticas públicas e importantes decisões

governamentais, consultando a opinião da sociedade organizada em Conferências Nacionais,

Conselhos e Foros.

Continuaremos nesse rumo.

Reafirmamos, finalmente, nossos compromissos éticos em uma perspectiva

republicana.

Nada mais ético do que a promoção do bem-comum e da justiça.

A reforma política deve ser prioritária no Brasil.

Convido todos os senhores para nos sentarmos à mesa e iniciarmos o seu debate e

urgente encaminhamento, ao lado de outras reformas importantes, como a tributária, que

precisamos concluir.

O fortalecimento de nosso sistema democrático dará nova qualidade à presença do

Brasil na cena mundial.

Nossa política externa, motivo de orgulho pelos excelentes resultados que trouxe para

a nação, foi marcada por uma clara opção pelo multilateralismo, necessário para lograr um

mundo de paz e de solidariedade.

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Essa opção nos permitiu manter excelentes relações políticas, econômicas e

comerciais com as grandes potências mundiais e, ao mesmo tempo, priorizar os laços com o

Sul do mundo.

Estamos mais próximos da África, um dos berços da civilização brasileira.

Fizemos do entorno sul-americano o centro de nossa política externa.

O Brasil associa seu destino econômico, político e social ao do continente, ao

Mercosul e à Comunidade Sul-Americana de Nações.

Senhoras e Senhores,

É tempo do nascimento de um novo humanismo, fundado nos valores universais da

democracia, da tolerância e da solidariedade.

O Brasil tem muito o que contribuir neste debate.

Colocamos o respeito aos Direitos Humanos no centro de nossas preocupações.

Ampliamos políticas públicas nesta direção e criamos instituições de Estado fortes e

capazes de garantir que este País combaterá de maneira decidida e permanente todas as

formas de discriminação de gênero, raça, orientação sexual e faixa etária.

Por isso cresce a participação das mulheres na vida econômica, social e política do

nosso País. Cada vez mais, os negros ocupam o lugar que lhes é devido em um Brasil

democrático. Assim como os povos indígenas, que reconquistam e consolidam a sua

dignidade histórica.

A despeito dos avanços que nossas políticas públicas propiciaram, especialmente na

esfera educacional, ainda há muito que fazer pelos jovens, importante segmento de nossa

sociedade, a quem caberá, certamente, conduzir este País nas próximas décadas.

Em um mundo que busca caminhos para o convívio, espaços para o diálogo, para a

coabitação do múltiplo e do diverso, o Brasil tem o que oferecer.

Nosso País pode ser uma voz e um exemplo autêntico e poderoso para o mundo na

questão da diversidade.

Pode ajudar a mostrar que neste Planeta desigual, é possível avançar no sentido do

entendimento, quando os interesses dos diferentes e, sobretudo, dos excluídos passam a

integrar efetivamente a agenda nacional.

Senhoras e Senhores,

Fui reconduzido à Presidência da República pela vontade majoritária do povo

brasileiro.

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A realização do segundo turno deu mais nitidez à escolha, contrapondo projetos de

país com contornos bem definidos e diferenciados.

O povo fez uma escolha consciente.

Mais do que um homem, escolheu uma proposta, optou por um lado.

Não faltaram os que, do alto de seus preconceitos elitistas, tentaram desqualificar a

opção popular como fruto da sedução que poderia exercer sobre ela o que chamavam de

“distribuição de migalhas”.

Os que assim pensam não conhecem e não entendem este País.

Desconhecem o que é um povo sem feitores, capaz de expressar-se livremente.

O que distribuímos, e mais do que isso socializamos, foi cidadania.

Este povo constitui a verdadeira opinião pública do País que alguns pretenderam

monopolizar.

Finalmente, quem tentou desqualificar a opção popular não foi capaz de valorar algo

fundamental.

A vontade de mudança, que esteve reprimida por décadas, séculos, expressou-se

pacificamente, democraticamente e esta manifestação contribuiu de modo notável para o

fortalecimento das instituições.

O caminho da política exige paciência, concessões mútuas, compreensão do outro.

Exige que sejamos capazes de levar ao extremo a prática da escuta.

Pois só assim é possível sintonizar e harmonizar interesses.

Mas exige opções, alinhamentos.

Neste dia inaugural de meu novo mandato, não peço a ninguém que abandone suas

convicções. Não desejo que a oposição deixe de cumprir o papel que dela esperam os que por

ela livremente optaram.

Quero pedir-lhes, apenas, que olhemos mais para o que nos une do que para o que nos

separa. Que concentremos o debate nos grandes desafios colocados para o nosso País e para o

mundo. Que estejamos à altura do que necessita e deseja o nosso povo.

Só assim poderemos estar todos a serviço deste País que tanto amamos.

Eu, de minha parte, governarei para todos, sem olhar para cor, credo, opção ideológica

ou partidária.

Mais que nunca, sou um homem de uma só causa. E esta causa se chama Brasil.

Minhas Senhoras, meus Senhores,

Reconheço que Deus tem sido generoso comigo.

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275 A Construção/Interpretação do Referente “Espetáculo Político”

Mais do que mereço.

Eu pedi forças... e Deus me deu dificuldades para fazer-me forte.

Eu pedi sabedoria... e Deus me deu problemas para resolver.

Eu pedi prosperidade... e Deus me deu cérebro e músculos para trabalhar.

Eu pedi coragem... e Deus me deu perigos para superar.

Eu pedi amor... e Deus me deu pessoas com dificuldades para ajudar.

Eu pedi dádivas... e Deus me deu oportunidades.

Eu não recebi nada do que pedi, mas eu recebi tudo que precisava.

Muito obrigado. Boa Sorte. E Feliz Ano Novo para todo o povo brasileiro, para todos

nós.