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1 1 1 a a a a JIED JIED JIED JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO MASCULINO NA PÓS- MODERNIDADE EM DISCURSOS JORNALÍSTICOS: A MEMÓRIA COMO FONTE DE PRODUÇÃO IDENTITÁRIA. Daiany BONÁCIO (PG-UEM) Pedro NAVARRO (orientador-UEM) Introdução A construção de novas identidades para o sujeito masculino mobiliza memórias diversas, advindas de diferentes formações discursivas, fornecendo posições–sujeito que os indivíduos são chamados a ocupar. As diferentes práticas discursivas retomam essas diversas memórias para comentá-las, deslocá-las, transformá-las, contrapô-las, sendo nesse campo discursivo heterogêneo e conflitante que o sujeito forma sua(s) identidade(s). Nesse percurso, a mídia e a linguagem jornalística funcionam como lugares de memória (Nora, 1993), como superfícies de emergência (Foucault, 1997) de memória sobre o homem pós-moderno. Por conta desse movimento na História, um arquivo vem sendo retomado e materializado nos enunciados jornalísticos, evidenciando o trabalho da memória na construção do homem atual, servindo de fonte para a produção de identidades. A posição-sujeito masculina tradicional é trazida para esse cenário para auxiliar na constituição de um novo homem, num movimento de distanciamento (total ou parcial). A mídia realiza recortes na História para constituir o presente; nesse percurso, a linguagem jornalística procura produzir identidades coletivas, operando com diversos tempos sociais e memórias coletivas para edificar um novo sujeito masculino. Tendo em vista o exposto, a proposta deste artigo é analisar a articulação do enunciado-arquivo nos enunciados e reportagens que falam do novo homem, buscando verificar que papel a memória está exercendo na construção do sujeito masculino pós-moderno. O homem pós-moderno considerado para análise vem se formando em conseqüência de vários fatores. A crescente conquista feminista iniciada na metade do século XX em nossa sociedade e as investidas do mercado capitalista, buscando ampliar mercados, têm sido elementos que estão produzindo “novas” identidades para o sexo masculino, de modo que identidades consideradas fixas e estáveis como a do homem estão se tornando frágeis, fragmentadas, descentradas. Teóricos culturais como Woodward (2000), Hall (2000; 1997) e Silva (2000) ponderam que a sociedade moderna sofreu um processo de descentralização, sendo que o centro que engendrava as identidades é desconstruído, dando lugar a uma pluralidade de centros, fazendo emergir várias identidades para os sujeitos, muitas vezes conflitantes. Disso resulta um homem em crise de identidade, pois perdeu seus valores sociais tradicionais. A esse respeito, Woodward (2000, p. 16) revela que: “Há uma discussão que sugere que, nas últimas décadas, estão ocorrendo mudanças no campo da identidade – mudanças que chegam ao ponto de produzir uma ‘crise de identidade”. Diante de tais transformações, circula em nossa sociedade imagens, reportagens, propagandas, revistas, dentre outros veículos midiáticos, que procuram mostrar o sujeito masculino e suas novas identidades. Esse sujeito vem sendo discursivizado diferente da forma como o sujeito masculino tradicional era conceituado. Atualmente, ao invés de retratar um homem clássico — machista, corajoso, pai herói, provedor do lar, patriarcalista — determinados discursos que circulam na mídia vêm agindo de modo a descontruir essa representação e propor

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A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO MASCULINO NA PÓS-MODERNIDADE EM DISCURSOS JORNALÍSTICOS: A MEMÓRIA COMO

FONTE DE PRODUÇÃO IDENTITÁRIA.

Daiany BONÁCIO (PG-UEM) Pedro NAVARRO (orientador-UEM)

Introdução

A construção de novas identidades para o sujeito masculino mobiliza memórias diversas, advindas de diferentes formações discursivas, fornecendo posições–sujeito que os indivíduos são chamados a ocupar. As diferentes práticas discursivas retomam essas diversas memórias para comentá-las, deslocá-las, transformá-las, contrapô-las, sendo nesse campo discursivo heterogêneo e conflitante que o sujeito forma sua(s) identidade(s). Nesse percurso, a mídia e a linguagem jornalística funcionam como lugares de memória (Nora, 1993), como superfícies de emergência (Foucault, 1997) de memória sobre o homem pós-moderno. Por conta desse movimento na História, um arquivo vem sendo retomado e materializado nos enunciados jornalísticos, evidenciando o trabalho da memória na construção do homem atual, servindo de fonte para a produção de identidades. A posição-sujeito masculina tradicional é trazida para esse cenário para auxiliar na constituição de um novo homem, num movimento de distanciamento (total ou parcial). A mídia realiza recortes na História para constituir o presente; nesse percurso, a linguagem jornalística procura produzir identidades coletivas, operando com diversos tempos sociais e memórias coletivas para edificar um novo sujeito masculino. Tendo em vista o exposto, a proposta deste artigo é analisar a articulação do enunciado-arquivo nos enunciados e reportagens que falam do novo homem, buscando verificar que papel a memória está exercendo na construção do sujeito masculino pós-moderno.

O homem pós-moderno considerado para análise vem se formando em conseqüência de vários fatores. A crescente conquista feminista iniciada na metade do século XX em nossa sociedade e as investidas do mercado capitalista, buscando ampliar mercados, têm sido elementos que estão produzindo “novas” identidades para o sexo masculino, de modo que identidades consideradas fixas e estáveis como a do homem estão se tornando frágeis, fragmentadas, descentradas. Teóricos culturais como Woodward (2000), Hall (2000; 1997) e Silva (2000) ponderam que a sociedade moderna sofreu um processo de descentralização, sendo que o centro que engendrava as identidades é desconstruído, dando lugar a uma pluralidade de centros, fazendo emergir várias identidades para os sujeitos, muitas vezes conflitantes. Disso resulta um homem em crise de identidade, pois perdeu seus valores sociais tradicionais. A esse respeito, Woodward (2000, p. 16) revela que: “Há uma discussão que sugere que, nas últimas décadas, estão ocorrendo mudanças no campo da identidade – mudanças que chegam ao ponto de produzir uma ‘crise de identidade”. Diante de tais transformações, circula em nossa sociedade imagens, reportagens, propagandas, revistas, dentre outros veículos midiáticos, que procuram mostrar o sujeito masculino e suas novas identidades. Esse sujeito vem sendo discursivizado diferente da forma como o sujeito masculino tradicional era conceituado. Atualmente, ao invés de retratar um homem clássico — machista, corajoso, pai herói, provedor do lar, patriarcalista — determinados discursos que circulam na mídia vêm agindo de modo a descontruir essa representação e propor

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novas identidades para o homem, mostrando-o vaidoso, preocupado com os serviços domésticos, com os filhos, que gosta de cozinhar, de cuidar do corpo e é sensível.

Nesse processo de produção identitária, há a mobilização de discursos heterogêneos, diversos, provenientes de várias formações discursivas e também de várias memórias. Mas como ter acesso a essas memórias? Onde a memória se cristaliza/refugia? Em quais lugares? Nora (1993), a esse respeito, propõe o conceito de lugares de memória. Os lugares de memória são (re)construções históricas baseadas em documentos, fragmentos, imagens, discursos, enfim, lugares onde possamos encontrar a memória de um momento histórico. Seguindo a concepção desse historiador francês, não há memória, o que temos são tentativas de reviver o passado, de ritualizá-lo; um espaço onde possamos edificar lugares que possam instalar as lembranças dos fatos, sem que eles caiam em esquecimento: "Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora" (NORA, 1993, p.12). Desse modo, não há a possibilidade de reconstruir uma história total, assim como também não podemos reconstruir uma memória global. O autor, ao discorrer sobre o assunto, busca uma solução, algo que explique o fato de não termos memória espontânea e verdadeira, pois, para ele, o que há é uma memória que fora reconstituída: "Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais” (idem, p. 13). Em conseqüência disso, podemos concluir que um lugar de memória só é assim concebido se pudermos ritualizá-lo, categorizá-lo.

Nora (1993) destaca que há lugares de memória no sentido material, como os arquivos, museus; no sentido funcional, como os testamentos, um manual de aula e, no sentido simbólico, como as datas comemorativas, um minuto de silêncio. Para que esses lugares existam, é preciso que estejam carregados de uma vontade de memória: “Na falta dessa intenção de memória os lugares de memória serão lugares de história.” (NORA, idem, p. 22). Nora diz isso, pois, é preciso lugares para que as memórias sejam fixadas, e sejam lembradas por uma dada coletividade, ou seja, lugares onde sejam ancoradas as memórias coletivas.

Essa discussão se torna relevante, uma vez que a mídia, sobretudo a linguagem jornalística, não deve ser pensada apenas como veículo de comunicação, que busca trazer informações, mas como um lugar onde, por meio de reportagens e propagandas, a história vai acontecendo com o fato jornalístico. A mídia se assemelha a uma prática histórica (Barbosa, 2004), pois nela vemos a produção de uma história para os homens. O jornalista, ao escrever sobre o novo homem, está produzindo história: a escrita jornalística é uma escrita histórica, um lugar de memória, pois nela temos acesso à história, ao que aconteceu no passado, e ao que está acontecendo no presente. Nesse movimento, vemos o encontro de vários acontecimentos passados, séries independentes, que voltam de forma descontínua para construir o presente. A linguagem jornalística faz ressurgir o passado como uma forma de compreender o presente. Em conseqüência disso, vemos a memória discursiva sendo posta em cena, pois, ao se cruzarem em relações interdiscursivas, os discursos materializam a memória, e os elementos que retomam apontam para fatos passados. Como ensina Foucault (1997), não há enunciados que não suponham outros. Entretanto, quando volta, a memória está sempre recebendo o tratamento da interpretação, isto é, a mídia vai construindo a história pela sua lente (Gregolin, 2000), por seu gesto de interpretação. Desse modo, o passado que

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ressurge nos veículos de comunicação nunca volta da mesma maneira, ele foi deslocado, reinterpretado.

Como já citado, a linguagem jornalística opera de forma a ser uma superfície na qual vemos emergir a memória, funcionado como lugares de memória. Nesse caso, como a memória está inscrita? Como ter acesso a ela? Os enunciados verbais e imagéticos que circulam nas reportagens são os modos de inscrição da memória, de sua materialização, funcionando como operadores da memória social. Além da memória, podemos notar também materializada a História, portanto, para construir sentidos a linguagem jornalística realiza um diálogo entre a História e a memória. Estes não devem ser tomados como sinônimos, pois, conforme revela Nora (1993), são, antes, opostos. Para o historiador francês, “a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. “ (IDEM p. 09). Por outro lado, a História tradicional busca conservar medalhas, museus, monumentos, é conservadora, passiva, funcionando como uma representação do passado, uma tentativa de reconstrução nem sempre fiel e total do que realmente aconteceu, e que “só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas.” (IBIDEM, p. 09).

A articulação enunciado-arquivo nos faz chegar aos efeitos desse diálogo história-memória, pois, a partir dos enunciados, chegamos ao arquivo. A noção de arquivo — desenvolvida por Michel Foucault — se torna muito relevante nessa discussão, pois o arquivo dá condições para que os enunciados possam surgir na linguagem jornalística e produzir sentidos, uma vez que já significaram antes e em outro lugar. O arquivo permite a existência e a modificação dos enunciados, que são produzidos sempre a partir das relações que estabelecem com outros enunciados pertencentes ao arquivo. A esse respeito Pêcheux (1988) pondera que as palavras só fazem sentidos porque já fizeram sentidos antes. Sendo assim, a memória exerce um papel fundamental no diálogo enunciado-arquivo.

Para analisar as transformações na identidade do sujeito masculino, tomaremos a noção de acontecimento discursivo como método teórico-metodológico. Com essa noção, poderemos analisar o acontecimento discursivo “novo homem” e buscar o seu sentido no discurso/acontecimento e não no sentido primeiro e original da palavra, mas como esse novo sujeito está produzindo sentidos hoje. Falamos isso, pois, em diferentes momentos da história, as práticas discursivas engendram sobre determinados objetos de saber um rosto histórico singular. O sintagma “novo homem” não tem hoje o mesmo sentido de outras épocas, nas quais imperava determinada postura tradicional, machista e patriarcal. Atualmente esse sujeito está passando por processos de transformações, tornando-se mais vaidoso, preocupado com o corpo, pai atencioso, que ajuda nos afazeres do lar, que aprecia cozinhar. Sendo assim, práticas discursivas como a medicina, a economia, a saúde, a beleza, a mídia tomam o homem pós-moderno como objeto de saber e nele operam, buscando construir uma nova identidade. Tais práticas mobilizam discursos diversos, constroem diferentes posições para os sujeitos masculinos ocuparem. O que é dito sobre esse novo sujeito masculino não aparece de forma contínua, mas descontínua, sem seguir uma ordem de aparecimento. No entanto, os enunciados não surgem ao acaso, nem isoladamente; eles remetem a uma série maior (ordem) de discursos que constroem tal imagem. É essa condição de produção e circulação que tem conferido ao discurso do novo homem um “efeito de verdade”, por

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meio da retomada de memórias acerca das construções imaginárias que até tempos atrás representavam o homem. Esse efeito de verdade sobre o sujeito masculino faz com que os homens comecem a ocupar as posições sujeitos que lhes são oferecidas pela mídia, pelas reportagens que são veiculadas nela.

A título de ilustração, realizamos uma análise de reportagens que circulam nos veículos midiáticos, procurando evidenciar como os enunciados jornalísticos auxiliam na construção de novas identidades para os sujeitos masculinos, num movimento de recuperação de memórias acerca do homem. Nesse trabalho, notamos que há a atualização de vários temas, tais como: beleza, sentimentos, valores sociais, profissão, o patriarcalismo, o machismo, o movimento feminista.

Na imagem abaixo, a reportagem proposta pela revista Veja, de 22 de agosto de 2001, discorre sobre os sentimentos e angústias do sexo masculino. Ao observarmos essas páginas, podemos perceber que, no enunciado mais evidente da reportagem “Homens também choram” e na imagem de um olho masculino que derrama uma lágrima, há memórias do campo sentimental sendo recuperadas.

Circulou e ainda circula em nossa sociedade o imaginário de que homem não chora, não expressa sentimentos, por ser comandado pela razão. As atitudes sentimentais são atribuídas à mulher, principalmente por causa de sua pouca força física, sua facilidade para chorar, emocionar-se. Em conseqüência disso, as mulheres são consideradas o sexo frágil e sentimentais. Na reportagem em questão, notamos que essa memória é recuperada para propor um deslocamento nessa representação dos sexos, já que temos um homem frágil, que também chora e se comove. O trabalho com o retorno dessa memória transforma os sentidos, pois a reportagem irá falar sobre o fato de o homem não conseguir mais se enquadrar na imagem de super-herói infalível, estando angustiado diante das novas posições que deve ocupar. Uma representação dominante do homem tradicional criou a imagem de que ele é mais racional do que sentimental. No entanto, a

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matéria procura descontruir esse imaginário para mostrar que o homem também tem sentimentos, angústias. Nesse exemplo, a posição tradicional é trazida — homens não choram — para ser deslocada e, com isso, uma nova identidade é proposta.

Deslocamentos como esses também são possíveis de serem vistos em outros campos, como o profissional. Na capa abaixo, da revista Veja, de 25 de fevereiro de 1998, várias memórias auxiliam na desconstrução do tradicional papel masculino e na construção da imagem de uma “nova mulher”. Os homens proviam o lar, cabendo a mulher o cuidado com os filhos e com a casa, ela não tinha a função de trazer dinheiro

para casa, apenas o marido cuidava dessas questões. Além disso, temos o fato de que as mulheres conquistaram muitas coisas após suas lutas nos movimentos feministas e isso abalou a identidade masculina. Esse passado é recuperado para mostrar a mudança ocorrida, pois atualmente as mulheres estão assumindo posições antes ocupadas pelos homens. O homem, por sua vez, deve saber lidar com o fato de a mulher estar crescendo profissionalmente. Fatos como esses exercem um peso significativo tanto na produção quanto na reprodução de identidades frágeis e moventes para o homem, que perde sua posição de patriarca, de provedor do lar. Essa nova forma de ver o homem mostra que sua posição tradicional perde espaço, sendo necessário

um “novo” sujeito, que saiba lidar com o avanço feminino no campo profissional. Além disso, vemos outra história sendo construída paralelamente a do homem: a história da mulher, pois, ao se libertar do pré-construído de rainha do lar, submissa e frágil, a mulher busca provar que também é forte, batalhadora, que consegue exercer as funções que antes eram ocupadas apenas pelos homens. Em conseqüência disso, observamos o trabalho da escrita jornalística construindo lugares de memória, espaços onde temos acesso à história do homem e da mulher.

Além do campo profissional e sentimental, há também enunciados que buscam objetivar um homem relacionado à vaidade, ao cuidado com o corpo. É sabido que a preocupação com a aparência e com a vaidade, até pouco tempo atrás, era algo mais característico da mulher. No entanto, com essa nova posição-sujeito proposta para o homem, ele está se tornando vaidoso e preocupado com a aparência. Esse fato vem sendo retratado por muitas reportagens, que procuram mostrar o que o homem está fazendo em prol de sua vaidade, do cuidado com corpo. A imagem abaixo, retirada de

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uma reportagem veiculada pela revista Veja, de 01 de outubro de 2003, é emblemática dessa questão. Nela é veiculada uma pesquisa que retrata a nova preocupação masculina: o cuidado com a aparência, a preocupação com a pele bem cuidada, com um corpo esbelto. Essa pesquisa retoma e, ao mesmo tempo, desloca memórias e efeitos de sentido que sempre foram identificados com o universo feminino; Essa reportagem retoma elementos discursivos que sempre construíram a imagem de que as mulheres eram mais vaidosas que os homens. Com a emergência do sentido de “novo homem” no contexto da pós-modernidade, esses discursos midiáticos parecem querer nos mostrar que isso deixou de ser exclusivamente feminino, passando a ser também algo que interessa aos homens também. Além do plano lingüístico, o plano imagético também auxilia na construção dos sentidos dessa reportagem, pois o espelho é visto historicamente como símbolo da vaidade, entretanto, sempre foi usado para simbolizar a vaidade feminina. Se retomarmos a noção de lugares de memória (Nora, 1993) podemos dizer que temos um lugar de memória material. Esse objeto emblemático da vaidade feminina está sendo recuperado para falar do homem. Ele auxilia na construção dos sentidos para o homem, evidenciando o trabalho da memória nessa produção identitária. Além disso, o fato de a pesquisa estar sendo mostrada em um espelho tipicamente feminino, evidência que esse símbolo também pode ser usado para significar os homens, já que agora eles também se assumiram vaidosos.

Como podemos perceber, as reportagens trazem diversas formações discursivas, e é nesse campo discursivo heterogêneo e conflitante que o sujeito forma suas identidades (múltiplas), pois vemos diferentes lugares discursivos/posições sujeitos que

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dialogam formando novas identidades para o sujeito masculino. Nesse movimento de sentidos, podemos observar o peso de determinadas práticas discursivas identitárias, como a medicina e a economia, que, estando no verdadeiro de nossa época, articulam-se para construir esse conceito de novo homem. Entretanto, essa história que está sendo construída para o homem masculino não atinge a todos, pois nem todos seguem essa ordem do discurso. É nesse momento que a descontinuidade se manifesta, pois, embora as reportagens materializem esses sentidos de novo homem, há quem resista e também há o que resiste, que não volta. O ressurgimento do passado, da memória não se dá de qualquer forma, pois o passado impõe limites determinados pelo quadro de acontecimentos fornecidos pela memória histórica. Para mais bem compreender essas asserções, buscamos algo que comprove que não é qualquer apropriação histórica que pode ser usada para produzir identidades. O exemplo seguinte é uma propaganda veiculada na mídia pela empresa Casas Bahia em 2007 em comemoração ao dias dos pais. Como é uma imagem em movimento, congelamos algumas cenas que mostram os diferentes tipos de pais que são representados na propaganda.

O texto que acompanha as imagens diz o seguinte:

“Existem muitos tipos de pais. Tem o pai que a vida escolheu pra gente e

tem o pai que escolheu a gente pra vida. Tem o pai que é pai duas vezes, de

uma vez só. Tem o pai que é filho, tem o pai professor, o pai treinador, tem o

pai herói, tem o pai conselheiro e tem até o pai que é uma mãe. E todos

esses tipos de pais têm uma coisa em comum: dedicação total.”

Como podemos ver, a propaganda traz vários tipos de pais, inclusive o pai que é

fruto do homem em sua nova posição de sujeito. Para tanto, é feito um trabalho com o presente e com o passado, pois há pais em sua posição tradicional e pais na posição de novo homem. É possível observar aqui o resgate da memória quando vemos retornar os tipos de pais cristalizados em nossa sociedade: pai treinador, pai herói, pai que é filho, pai 2 vezes de uma só vez. E há os deslocamentos provocados com o trabalho com a história, haja vista que o pai professor, o pai conselheiro (conselhos para a vida), pai que é uma mãe são imagens que, antes, não circulavam em nossa sociedade, porque não

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tinham o efeito de verdade. Entretanto, há também outros tipos de pais em nossa sociedade, mas que não são recuperados, como os pais machistas, que tinham a função de prover o lar e de dar conselhos sexuais, de virilidade para os filhos. Veja que esse tipo de pai não é retomado, haja vista o sentido negativo a ele vinculado. Desse modo, para produzir uma nova identidade para o homem na função de pai, a mídia se baseia no passado e na sua interpretação. Deixar de trazer o pai machista e provedor é uma forma de interpretação do passado, já que esse tipo está sendo descontruído.

Os enunciados verbais e imagéticos mostrados apontam para uma “ordem de discurso”, pois todos eles remetem ao discurso sobre a crise de identidade do homem tradicional e o surgimento do “novo homem”. Os enunciados resgatam uma memória histórica sobre a identidade masculina. Além disso, diferentes práticas discursivas engendram esse novo sujeito masculino, e, para isso, é preciso retornar ao arquivo, trazê-lo, comentá-lo, deslocá-lo para dizer o que é ser homem hoje. Os elementos do arquivo são materializados nos enunciados jornalísticos, o que evidencia o trabalho da memória e de sua discursivização nos textos mostrados. Nesse trabalho de produção discursiva do “novo homem”, a memória opera, não apenas recitando, mas transformando, deslocando identidades, comprovando o que diz Foucault (1997) quando revela que não há enunciados que não suponham outros. O jornalismo vai buscar nos lugares de memória os temas, as explicações para retratar o homem em sua nova posição. Nesse movimento, construir novas identidades necessita de velhas identidades, dos lugares de memória cristalizados em nossa sociedade.

Os efeitos dessas inscrições da memória nesses novos discursos sobre o homem podem nos levar para dois sentidos, pois, se tomarmos como referencial o “verdadeiro de nossa época”, afirmaremos que a série enunciativa constituída (e as memórias que ela convoca) adquire caráter de repetição do discurso e/ou posicionamento discursivo. Mas, por outro lado, se tomarmos como referencial os discursos que defendem a existência e o posicionamento do homem tradicional, afirmaríamos que essa série adquire caráter de deslocamento do mesmo.

Com esses exemplos, pudemos perceber que o presente que a mídia e os enunciados jornalísticos propõem para o sujeito masculino é construído com os recortes realizados da memória, do arquivo, comprovando que a prática discursiva jornalística opera com diversidades de tempos sociais e com diversas memórias coletivas. Ela realiza recortes da memória e da realidade para construir o presente. Desse modo, podemos considerar o jornalista como um porta-voz de uma pluralidade de discursos, como aquele que, por um gesto de autoria, materializa em suas matérias um arquivo/memória (o que é ser homem hoje e ontem). Ao escrever a história do presente, as reportagens engendram uma escrita historiográfica. Nesse movimento, as identidades são construídas na mídia numa relação sempre descontínua entre discurso e história, relação essa nunca acabada, podendo sofrer desconstruções e novas construções. Sendo a memória e a História fontes de busca para constituir esse novo sujeito masculino, a linguagem jornalística, ao retratar o sujeito pós-moderno, vale-se muito desse percurso de voltar a História e a memória, de modo que funciona como lugar de acesso. Sendo assim, compreender memória e identidade é ver como o discurso jornalístico constrói identidades coletivas

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