a construcao da masculinidade

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A CONSTRUÇÃO DA MASCULINIDADE in Percurso, São Paulo, Vol. 19, p.49-56, 1998. "A proporção em que masculino e feminino se misturam num indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas. (...) e aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia." Freud, "A feminilidade" Introdução O modelo biológico do masculino e do feminino é válido para a definição celular; mas seria ilusório pensar que a identidade sexuada poderia ser definida a partir do biológico, a despeito das esperanças daqueles que nele quisessem encontrar uma solução para os problemas de identidade: isso seria ignorar que o essencial da sexualidade humana reside em sua dimensão inconsciente. Quando tentamos definir em bases "sólidas" os termos masculino e feminino, encontramo- nos numa situação bastante incômoda. De fato, poucas palavras condensam conteúdos tão pesados e tão difíceis de precisar quanto masculino e feminino. Falar, como se faz freqüentemente, em "características femininas", como a graça, ou "masculinas", como a coragem, é ater-se a definições tautológicas, limitadas a um sistema binário que repete indefinidamente, ainda que de formas variadas, as mesmas cópias. Com efeito, as mulheres da idade da pedra possuíam a graça e o recato daquelas que Cervantes descreve em seu Don Quixote? A coragem era um atributo particular aos homens da pré-história, ou um a priori comum a todos e a todas sem o qual não seria possível a sobrevivência individual e coletiva? Provavelmente, foi somente a partir de um momento histórico difícil de precisar que atributos tais como a "graça", a "coragem" e muitos outros foram "sexualizados" sem que exista nenhuma relação natural entre essas categorias e o masculino/feminino. Identidade: estado de crise permanente Ao longo da história tem-se podido constatar, ainda que socialmente limitadas, o que poderíamos chamar de "crises de identidade" relativas ao masculino e ao feminino. Enquanto o final do século XIX foi marcado por uma série de textos que podem ser qualificados como difamatórios para o sexo feminino, no início do século XX observou-se uma crise generalizada da masculinidade, sobretudo em Viena. Por exemplo, quase concomitantemente à publicação dos Três Ensaios de Freud, Otto Weininger publica uma obra bastante interessante e original, Sexo e caráter, numa tentativa de precisar, através dos termos mais simples (chegando ao ponto de utilizar fórmulas matemáticas), as diferenças entre homens e mulheres. A hipótese de um hermafroditismo fundamental, ou seja a noção de bissexualidade, é tão bem exposta por este autor, que alguns pesquisadores da época lhe atribuíram a autoria desta noção. Em uma nota acrescentada aos Três Ensaios em 1924, Freud se apressa a esclarecer o equívoco. O polêmico trabalho de Weininger, extremamente importante do ponto de vista histórico, teve numerosas reedições e influenciou toda uma geração. Ainda que do ponto de vista ideológico comporte várias críticas - sobretudo no que diz respeito às mulheres - algumas das hipóteses ali apresentadas merecem ser consideradas como avançadas para a época,

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Artigo sobre a construção da masculinidade em termos históricos

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Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigos Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigosA CONSTRUO DA MASCULINIDADE in Percurso, So Paulo, Vol. 19, p.49-56, 1998. "A proporo em que masculino e feminino se misturam num indivduo, estsujeitaaflutuaesmuitoamplas.(...)eaquiloqueconstituia masculinidadeouafeminilidadeumacaractersticadesconhecida que foge do alcance da anatomia."Freud, "A feminilidade" Introduo O modelo biolgico do masculino e do feminino vlido para a definio celular; mas seria ilusriopensarqueaidentidadesexuadapoderiaserdefinidaapartirdobiolgico,a despeitodasesperanasdaquelesquenelequisessemencontrarumasoluoparaos problemas de identidade: isso seria ignorar que o essencial da sexualidade humana reside em sua dimenso inconsciente. Quando tentamos definir em bases "slidas" os termos masculino e feminino, encontramo-nosnumasituaobastanteincmoda.Defato,poucaspalavrascondensamcontedos topesadosetodifceisdeprecisarquantomasculinoefeminino.Falar,comosefaz freqentemente,em"caractersticasfemininas",comoagraa,ou"masculinas",comoa coragem,ater-seadefiniestautolgicas,limitadasaumsistemabinrioquerepete indefinidamente,aindaquedeformasvariadas,asmesmascpias.Comefeito,as mulheresdaidadedapedrapossuamagraaeorecatodaquelasqueCervantes descreve em seu Don Quixote?A coragem era um atributo particular aos homens da pr-histria, ou um a priori comum a todoseatodassemoqualnoseriapossvelasobrevivnciaindividualecoletiva? Provavelmente,foisomenteapartirdeummomentohistricodifcildeprecisarque atributos tais como a "graa", a "coragem" e muitos outros foram "sexualizados" sem que exista nenhuma relao natural entre essas categorias e o masculino/feminino.Identidade: estado de crise permanente Aolongodahistriatem-sepodidoconstatar,aindaquesocialmentelimitadas,oque poderamoschamarde"crisesdeidentidade"relativasaomasculinoeaofeminino. EnquantoofinaldosculoXIXfoimarcadoporumasriedetextosquepodemser qualificados como difamatrios para o sexo feminino, no incio do sculo XX observou-se umacrisegeneralizadadamasculinidade,sobretudoemViena.Porexemplo,quase concomitantemente publicao dos Trs Ensaios de Freud, Otto Weininger publica uma obrabastanteinteressanteeoriginal,Sexoecarter,numatentativadeprecisar,atravs dostermosmaissimples(chegandoaopontodeutilizarfrmulasmatemticas),as diferenas entre homens e mulheres. A hiptese de um hermafroditismo fundamental, ou seja a noo de bissexualidade, to bemexpostaporesteautor,quealgunspesquisadoresdapocalheatriburamaautoria desta noo. Em uma nota acrescentada aos Trs Ensaios em 1924, Freud se apressa a esclarecer o equvoco.OpolmicotrabalhodeWeininger,extremamenteimportantedopontodevistahistrico, tevenumerosasreedieseinfluencioutodaumagerao.Aindaquedopontodevista ideolgico comporte vrias crticas - sobretudo no que diz respeito s mulheres - algumas das hipteses ali apresentadas merecem ser consideradas como avanadas para a poca, Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigos Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigospoisconstituemumadasprimeirastentativasdesintetizar,demaneiraglobal,umsaber psico-biolgico sobre o feminino e o masculino. No fundo, o que se apreende da obra de Weininger que o tornar-se mulher muito mais fcil do que a aquisio da virilidade: esta ltima nunca definitivamente adquirida, e deve ser constantemente (re)conquistada, sob pena de ver a feminilidade recuperar o terreno. OutrascrisesdeidentidadejhaviamocorridonossculosXVIIeXVIII.Emborafossem conseqnciadanecessidadedemudarosvaloresdominantesetenhamacontecidoem pases nos quais as mulheres gozavam de maior liberdade, tais crises tiveram o mrito de questionar valores que, na poca, eram considerados como evidncias. De algum tempo para c, tm-se observado algumas posies em relao ao masculino e aofemininoquepodemserqualificadascomoextremistas.ocaso,porexemplo,de algumasteoriassocio-biolgicas,maisconhecidasnospasesdelnguainglesa,e tambm do diferencialismo feminista. As primeiras, partindo do princpio que a essncia do femininoedomasculinobiologicamentedeterminada,explicamtodosos comportamentoshumanosemtermodehereditariedadegentica,conseqnciada necessidade de adaptao.Dessepontodevista,adominaodamulherpelohomemcompreendidacomoefeito naturaldeumaagressividaderesultantedacompetio,entreoshomens,paraaposse dasmulheres.Assegundas-diferencialismofeminista-insistindonasdiferenas corporais,preconizamaseparaodossexos,propondomesmouminconsciente feminino.Dequalquerforma,asduastendnciasvalorizamumsexoemdetrimentodo outro.Uma importante tentativa de dar o justo peso ao complexo processo do "tornar-se homem" foifeitaporStoller.Mesmoquealgunspressupostosdesteautorseoponhamacertas premissasfreudianas,asquesteslevantadasporelenoslevamarefletirsobrea dificuldade de chegar dita "posio masculina".Masculino/Feminino : uma primeira dificuldade O modelo freudiano do masculino e do feminino, lacunar e fechado num sistema simtrico binrio,refleteadificuldadedeFreudparafalardestasnoes.Almdisso,asposies tericasdeFreudrevelamquesuaescutanoeraimuneaseusprprioscomplexos inconscientes, sua prpria organizao identificatria e ao discurso social de sua poca. Assim, ao expressar-se sobre a questo do masculino e do feminino, fala de "conceitos", de"noes"eatmesmode"qualidadepsquicas".Emdeterminadosmomentos,refere-se ao masculino e ao feminino em termos de atividade e passividade; em outros observa que, tratando-se de seres humanos, esta relao insuficiente. Seapsicanliseseutilizaestesconceitos,dizFreud,elanopodeelucidarasua essncia.Ocontedodessasnoesnocomportanenhumadistinopsicolgica.Seja como for, a posio de Freud ao chamar a ateno para a dificuldade de definir masculino efemininorevolucionria,namedidaemquenosesubmeterealidadeanatmica, subordinandoassimasignificaodessasnoesaresultadosdeprocessosbemmais complexosqueasdeterminaesinstintuais.Finalmente,cabelembrarqueasteorias sexuaisinfantisdescritasporFreudsebaseiamessencialmentenomenino,eseguema lgicapnis-castrado;namenina,Freudconfessanoconhecer"osprocessos correspondentes" .Adificuldadedeumparaleloentremasculino/ativoefeminino/passivofoibemcedo percebida por Freud. Um exemplo: no famoso Rascunho K sobre as neuroses de defesa, carinhosamenteapelidadodeUmContodeFadasparaoNatal,Freudfazumaligao diretaentreofemininoepassividade;emNovoscomentriossobreasneuropsicosesde Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigos Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigosdefesa, publicado no mesmo ano em que redigido o Rascunho K, relaciona o masculino atividade, e a neurose obsessiva ao sexo masculino. Embora o peso atribudo s experincias sexuais na etiologia da neurose obsessiva seja o mesmoquenahisteria,Freudobservaquenaprimeira,emvezdepassividade,ocorre umaatividadesexualapartirde"atosdeagressoexecutadoscomprazer".Entretanto, logo adiante no texto as coisas se complicam: Freud diz existir um "substrato de sintomas histricos" ligado uma cena de passividade, a qual anterior ao geradora de prazer. Concluso: por trs da atividade masculina, deparamo-nos com a passividade feminina; e osubstratodesintomashistricosdoobsessivocontmosmesmosconflitos desejo/angstia que Freud elucidou na histrica, o que nos obriga a repensar a pertinncia doparmasculino/ativo,feminino/passivo.Osrituaisobsessivosdeummenino,descritos por Freud numa nota de p de pgina um pouco mais adiante neste mesmo texto, podem entosercompreendidoscomodefesacontraodesejodeserseduzido,logodeser passivo. Damesmaforma,umleituramaisatentadaquestoedipianamostraqueascoisasso muitomaiscomplicadasdoqueparecem.Numprimeiromomento,odesenrolardo complexo de dipo apresenta, no menino e na menina, uma certa simetria, o que sugere a existncia subjacente de uma atrao heterossexual natural e normativa. isto que Freud descreveaoredigiroCasoDora:namaioriadascrianasobserva-seumainclinao precoce da filha em relao ao pai, e do filho em relao me. Contudo,asnotasdepdepginamaistardeacrescentadasaotextorevelamoutra histria:almdaatraodeDoraporseupai,encontramostambmumaidentificaoa esteltimoquesemanifestanoamorhomossexualdeDorapelaSra.K.Aidentificao masculina de Dora mostra que, na pulso, no h nada naturalmente heterossexual. A partir da, Freud se encontra numa posio bastante desconfortvel, ou at contraditria: se por um lado o dipo sugere uma heterossexualidade normal, por outro os fatos clnicos indicam o contrrio. (No por acaso que Freud acrescenta em 1915 uma srie de notas aosTrsEnsaiosnatentativadeprecisarmelhorosentidodostermos"masculino"e "feminino".) Se a atrao heterossexual no tem nada de natural, e ainda menos de inato, no faz sentido pensar em uma masculinidade, ou uma feminilidade, que viriam ao mundo comobeb:feminilidadeemasculinidadesosubjetividadesadquiridas independentemente do sexo anatmico do sujeito.O papel do pai realSemreabrirodebate-absolutamentelegtimo-sobreapertinnciadaposio falocntricadefendidaporFreud,cabelembrarqueparaeleaquestofundamental saber como se opera, na menina, a passagem da fase "masculina" "feminilidade normal" .Embora as teorias de Freud sobre a feminilidade tenham sido objeto de inmeros debates e controvrsias, pouco se diz sobre a masculinidade. Sobre esta questo, observa-se um inquietante silncio, como se o fato de possuir um pnis constitusse em si uma garantia, espciedesalvo-conduto,permitindoapassagem"natural"dafasemasculina masculinidade.Aindaqueomeninodevapassarpelasfasesdodesenvolvimentocom seusdiversospercalos,aquestodo"tornar-semenino"nuncafoiobjetodegrande altercaes. Entretanto, este processo bastante complexo. Nosepodecompreenderaaquisiodamasculinidadesemanalisararelaodofilho com seu pai real, ou seja, com o personagem que permite ao sujeito - menino ou menina - dedizer(ouno)numsegundotempo,queeledefatoteveumpai.Nonosreferimos aqui,evidentemente,aopaicomofuno,aoNome-do-Pai,quecertamenteesteve presente,poisosujeitoseconstituiu;oproblematampoucocompreenderemque Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigos Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigosmedidaarealidadedapresenafsicadopaiimplicanasuapresenasimblica.Se feminino e masculino so as duas vertentes do falo, nos referimos queles que, a partir da inscrio na funo flica, se posicionaram no simblico como homem. A referncia ao pai real central em Freud: a relao pessoal que cada um tem com Deus reflete a "relao com o pai em carne e osso" ; da mesma forma, o prottipo do demnio forjado pelo sujeito se origina na relao com o pai ; o superego sdico de Dostoievski atribudo a um pai na realidade particularmente cruel e violento. Ao pai cumpre tambm a tarefa de substituir a me na proteo da criana pelo resto da infncia contra os perigos de mundo externo como lemos em O Futuro de uma Iluso. Do paiprotetordainfncia-oonipotente"paiheri"profundamenteadmirado,porvezes idolatrado, mas tambm temido - ficar a "nostalgia do pai", sentimento que coincide com a necessidade de proteo ligada ao desamparo humano; e a origem do pai como protetor se encontra no pai da horda primria. Ouseja,opaiqueprotegeacriananoinciodavidareatualizaopaique,naaurorada humanidade,protegiaosmembrosdahordacontraosperigosdomundoexterior.No entanto,apartirdeumdeterminadomomento-aolongodaeraglacial,continuaFreud- quandoasmudanasdomeioambientesuperaraacapacidadeprotetoradopaieeste ltimonocumpriamaisseupapel,opaiprotetorpassouaconfiguraroalvopor excelnciadaangstiadogrupo:foiainteriorizaodomedodorealcomo"angstiado pai" que possibilitou a maturao do desejo de morte contra ele conferindo-lhe, ao mesmo tempo, sua funo simblica. Para Freud, o complexo paterno que culmina com o assassinato do pai - "o crime principal eprimevodahumanidade"-constituiopontoondeseunemontogneseefilognese,a histria de cada um e a Histria da humanidade: a morte do pai que cada criana tem que levar a cabo nada mais que a reatualizao da morte do pai primevo pelas "crianas" da horda primria. Na histria de cada sujeito, o desejo de morte do pai se origina bem antes dasituaoedipiana,nomomentoemqueeleaparecenacenadorealfazendo"do desprazar uma experincia da qual ningum est ao abrigo. "Identificao e masculinidade Arelaodomeninocomopai,comosesabe,marcadapelaambivalncia.No complexodedipoemsuaformamaiscompleta,positivaenegativa,sobagideda bissexualidade constitucional, duas vertentes se opem e se conjugam: de um lado, uma atitude afetuosa para com o pai; de outro, uma hostilidade igualmente intensa em relao aele,quesequereliminarcomorival.Aofinaldocomplexo,estastendncias-que devero ser recalcadas - se agruparo para produzir uma identificao: para aspirar a ser como o pai, necessrio parar de tem-lo. Entretanto,nocasodorecalcamentofalhar,astendnciaspulsionaisafetuosasretornam comomoesintolerveisparaoego,exatamenteporreatualizara"atitudeafetuosa feminina para com o pai", reativando no mesmo movimento, a ameaa de castrao. isto quenosrelataFreudatravsdoscasosdoHomemdoslobos,doHomemdosratos,de Schreber e de Pequeno Hans: boa parte dos problemas psquicos apresentados por estes sujeitos se devia ao retorno de elementos recalcados percebidos pelo ego do sujeito como "femininos".Talvezporestamesmarazo,aparania,assimcomoalgumasformasde perverso,exibemuma"preferncia"pelosexomasculino:aprojeodemoes homossexuaisno-integradaspermiteaosujeitotratarumperigopulsionalinternocomo se fosse externo. A angstia de castrao, "no interesse de preservar sua masculinidade" , levar o menino arecalcarohostilidadedirigidaaopai.Podeacontecerqueodeslocamentoparaum objeto substitutivo constitua a nica possibilidade encontrada para lidar com a hostilidade. oqueacontecenafobia:graasaoobjetofbico,acrianapodedarlivrevazo Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigos Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigoshostilidade nascida da rivalidade com o pai, mas tambm afeio dirigida ao pai, pois o objeto temido tambm procurado. Pode acontecer tambm, quando o pai no se torna o alvo da angstia da criana, que o mundosejapercebidocomoumaameaa.Naorigemdaangstiadealgumaspessoas, que se traduz por um "medo de tudo", um desamparo estrutural, encontra-se uma imagem depaiquenuncafoipercebidacomosendo,porumlado,opaiqueproibe-sabe-sede onde o perigo vem - e, por outro lado, o pai que protege: nestes sujeitos, a "nostalgia do pai" no se constituiu.Outro elemento a considerar na construo da masculinidade o modo como o pai investe ofilho,eodesejodopaiporele.Tornar-sepaicorreroriscodepressentir,talcomo Laios, aquele que vai desejar sua morte; aceitar que seu filho seja seu sucessor, legar-lhe suafuno,pressupequeopaisaibaqueolugarqueeleocupafoiocupado anteriormenteporoutro,equeseufilho,assimcomoele,soocupardemodo transitrio. Ser apenas um elo na cadeia de geraes significa no apenas descobrir-se mortal, mas tambmcompreendersuamortecomoconseqnciadeumaleiuniversal,enocomo umapunioretardadapordesejosedipianosproibidos.Issoquedizerquenarelao pai/filho se reatualizam tambm as ambivalncias que marcaram a relao deste pai com seuprpriopai.Finalmente,arelaocomopaiser,dealgumaforma,oprottipodas relaes do sujeito com outros homens.Umafalhadopaiemsuafunodeobjetoidentificatrio-provavelmentedevidoa conflitosidentificatriosdestepaicomoseuprpriopai,umconflitotransgeneracional- impedequeofilhoexperiencieocomplexodedipoemsuaformacompleta,oqueter conseqnciasnaconstruodesuamasculinidade.Aclnicanosinformadestas vicissitudes.Trata-sedepessoasque,emborasempretenhamtidoumaprtica heterossexual,apresentam,sobasmaisdiversasformas,fantasiashomossexuaisque podemserdefinidascomoego-distnicas:emboraaspulseshomossexuaistenham acesso conscincia, so experimentadas como totalmente insuportveis, e a realizao destas fantasias seria simplesmente inconcebvel.Quasesempreaprocuradeanlisesedeveaomedodesta"homossexualidade"vivida como um sintoma. A anlise revela que em muitos destes casos a homossexualidade em questoamesmadoperodoedipiano,quenopdeser"vivida"comopai.Seestas fantasias-quetraduzemumabuscademasculinidade-sotoinsuportveisparao sujeito, por serem vivenciadas como na relao edipiana, logo proibida, no com a me mas com o pai. (Deixaremos para outra ocasio a discusso mais detalhada deste ponto.)Demaneirageral,algunsfantasmasno-integradosaoegoequepodemserpercebidos como passivos, logo ligados feminilidade, devem ser compreendidos como o retorno da corrente afetuosa em relao ao pai, que reativaria uma vez mais a ameaa de castrao: poristoqueaposiomasculinatofreqentementeameaadaequeafeminina, segundo Freud biologicamente destinada s crianas do sexo feminino, to temida pelos homens. Istosetornaparticularmenteclaronosadolescentes:entreosmeninoscomuma fantasiadequeseumdelestemnarelaohomossexualopapelpassivo,"mulher"; entre as meninas, a homossexual no comparada a um homem. A distino entre duas modalidadesidentificatriasquefreqentementeaparecemsuperpostaspodeajudarna compreensodestadinmica:deumlado,osentimentoqueseestabelecebemcedoe que se traduz por: "eu sou menino" ou "eu sou menina"; de outro lado, o sentimento, bem maiscomplexo,cujadinmicassecompletarnaadolescncia,quesetraduzpor"eu sou masculino" ou "eu sou feminina".Algumas consideraes antropolgicas Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigos Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigosA antropologia rica em observaes e concluses que mostram que o trajeto em direo masculinidadedeveserconstrudo,oquefeitoatravsderituaisprpriosacada cultura,etambmqueoriscodeperderestamasculinidadeestsemprepresente.As observaes de Herdt sobre a "evoluo" dos meninos em direo a masculinidade entre Sambia da Nova Guin vo neste sentido. Duranteosdoisprimeirosanosdevida,meninosemeninasvivemexclusivamentecom suasmes,atqueprogressivamenteopaiaparecenouniversodacriana.Aprimeira etapadolongopercursoiniciticodomenino,queculminarcomaaquisioda masculinidade, comea em torno dos sete anos de idade, atravs de um ato concreto de separao. A certa altura, de maneira radical e abrupta, o menino separado - por vezes literalmente arrancado - da me e, sob a presso de severas sanes, impedido de dirigir-lhe a palavra, de toc-la e at mesmo de olh-la: por este e outros expedientes que os rituais-eistovaleparatodaequalquercultura-realizamaquiloqueospaisno conseguem, ou no podem, fazer.ParaosSambia,omodelomasculinoidentificatrioodoguerreirocapazdematar,ea masculinidade, que nada tem a ver com a possesso do pnis, no natural, muito menos inata:noseacredita,queosindivduosdosexomasculinopossuamosmecanismos endgenosnecessriosparaaproduodeesperma,oqueconstitui,paraosSambia,a basemesmadodesenvolvimentomasculino.Osmeninosdevemento,paratornar-se homens,ingeriresperma.Istofeitoatravsderituaisdefelaoprecisos,rigidamente controlados pelas leis do incesto. Taisrituaisconstituemverdadeirossegredos,edevemimperativamenteserescondidos dasmulheresedascrianas.Osrituaisdeiniciao-aquisiodamasculinidade,quese praticam entre os dez e os quinze anos, so divididos em vrias etapas at que, no incio daidadeadulta,aquelequerecebiaoespermasetorneporsuavezdoador.Quantos meninas, por possurem os orgos capazes de produzir o sangue menstrual, a "aquisio" dafeminilidadetidapelosSambiacomoumprocessocontnuoquecomeano nascimentoesecompletanamaternidade,semqueistocoloquemaioresproblemas. Tudoqueasmeninastmafazerpassaralgunsdiasnumuniversofemininoe,mais tarde, frequentar a famlia de seus futuros sogros. "Adquirir"amasculinidadeimplicaoriscodeperd-la.Paraqueistonoacontea, inmerosrituaisetabus-porexemplo,notocarasexcreesdamulher,respeitaros espaosexclusivamentefemininos,etc.-soobservados.Oscontatoscomasmulheres so a tal ponto temidos (justamente pelo medo de perder a masculinidade) que a simples possibilidade deles provoca verdadeiras crises de pnico.A sociedade Semai, na Malsia central apresenta caractersticas diametralmente opostas. EmboraosestudosdeR.Dentansobreestasociedademerecessemserlongamente mencionados, para nossos propsitos nos ateremos somente a dois aspectos:1-asociedadeSemaicultivaqualidadesno-competitivas,eaagressividade considerada coisa intolervel; 2 - os Semai no fazem nenhuma presso para que os meninos se tornem mais duros que as meninas.Apartirdestesdados,aquestoda"natureza"damasculinidadenomaissecoloca;e saber quem mais viril, o guerreiro Sambia ou o homem Semai, no faz nenhum sentido. Da mesma forma, os recalcamentos que cada um destes sujeitos sero obrigados a fazer devemsercompreendidosapartirdossuportessimblicosdomasculinoedofeminino prprios a cada sociedade. NaGrciaantiga,encontramosrituaisde"aquisio"damasculinidadepelosquaisesta ltima transmitida corpo-a-corpo. Sob a forma de pedagogia, verdade e sexo se uniam a Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigos Paulo Roberto Ceccarelli psiclogo | posicanalista www.pceccarelli.com.br artigosfim de transmitir um "saber precioso": o sexo servia de suporte inicitico ao conhecimento. Entretanto, esta pedagogia s se aplicava aos meninos, que deviam, quando o momento chegava, tornar-se cidados: nada de similar existia para as meninas.Em nossos dias, os "rituais" reservados pelo exrcito aos recrutas nada deixam a desejar aos antigos rituais iniciticos quando dureza e a crueldade da disciplina imposta. Isto particularmente verdadeiro nos Marines americanos, entre os quais, para se ter acesso ao grupodoshomens,dos"verdadeiros",necessriodespojar-sedetodacontaminao feminina.A"filosofia"dosMarinessuficientementeclara:"Parasecriarumgrupode homens, mate a mulher que est neles". Atudoisto,muitosoutrosdadospodemseracrescentados-omodocomodesteoincio davidameninosemeninassotratadosdemaneiradiferenteeasconseqnciasda oriundas - embora no se possam negar as mudanas evidentes que se vm operando na sociedade contempornea no que diz respeito s relaes masculino/feminino. Masculinidade: uma constante construo O trajeto que leva o menino da posio masculina masculinidade -resultado de um longo percursoqueseconstriemumespaopolticoesocial,atravsdediversosrituaise provasdeiniciao-extremamentecomplexo,eofantasmadenoaalcanaruma presenaconstante.Porestarazo,frgileconstantementeameaada:temdese "forar",dealgumaforma,seudesenvolvimento,sobpenadequeelanosemanifeste. Noporacasoquetantostabus,proibieseexpedientessonecessriospara salvaguardar a masculinidade do perigo de contaminao pela feminilidade.Arelaodosujeitocomseuprpriopai,oucomaquelequeassumeestepapel,ser decisivo para o modo como ele ter acesso as representaes simblicas do masculino: a identificao ao pai nos d a chave para a compreenso da masculinidade. no encontro comopai,sejaqualfororegistroemqueesteseencontre-atravsdosavataresdos processosidentificatriosdofilho,dosinvestimentosdopaiemrelaoaofilho,das particularidadesdosistemasocialnoqualosujeitoseencontrainserido-quesedeve procurarcompreenderaaquisiodamasculinidadebemcomosuasdiferenas "qualitativas".A construo da masculinidade um trabalho constante e a presena do pnis - central na formao imaginria do Eu e determinante para o trajeto identificatrio assim como para a construodosideais-noconstituinenhumagarantiatangvelcontraofantasmade castrao. Paulo Roberto Ceccarelli* e-mail: [email protected] * Psiclogo; psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanlise pela Universidade de ParisVII;MembrodaAssociaoUniversitriadePesquisaemPsicopatologiaFundamental; Membroda"SocitdePsychanalyseFreudienne",Paris,Frana;ProfessorAdjuntoIIIno DepartamentodePsicologiadaPUC-MG;ConselheiroEfetivodoXPlenriodoConselhoRegional de Psicologia da Quarta Regio (CRP/O4).