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ALCOBACA-Construcao_da_Paisagem_Hidraulica

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    Cadernos de Estudos Leirienses 4 * Maio 2015

    DEST

    AQUEA construo da paisagem hidrulica

    no antigo couto cisterciense de Alcobaa

    Antnio Valrio Maduro*Jos Manuel de Mascarenhas**

    Virgolino Ferreira Jorge***

    * Investigador do CEDTUR - ISMAI e do CETRAD - UTAD. E-mail: [email protected]** Investigador no CIDEHUS - UE e na Ctedra UNESCO em Patrimnio Imaterial e Saber-FazerTradicional, Universidade de vora. E-mail: [email protected]*** Professor aposentado da Universidade de vora. E-mail: [email protected] autores no seguem as regras do novo Acordo Ortogrfico.

    Nota histrico-artstica acerca do Mosteiro

    A abadia cisterciense de Alcobaa, soberbo conjunto cuja edificao sedesenvolveu entre os sculos XII e XVIII, foi fundada pelo rei D. AfonsoHenriques, em Abril de 1153. Para o efeito, o monarca doou-lhe um vastodomnio adjacente, que se estendia at costa atlntica.

    Dada a situao da zona s incurses muulmanas, as obras de cons-truo s comearam em 1178. O funesto ataque, ocorrido entre 1191 e 1195,provavelmente, forou os monges a modificarem os seus planos e a adiarema transferncia para a nova abadia at Agosto de 1223. A igreja, merc dassuas largas dimenses, foi sagrada s no ano de 1252. A anlise da suaplanta medieval mostra que se trata de uma cpia quase fiel, em posioinvertida, da igreja de Claraval II (1154-1174). Esta variao deveu-se scaractersticas oridrogrficas do stio alcobacense.

    O actual prospecto exterior da abadia, profundamente modificado na suaordem inicial, o resultado dos trabalhos de ampliao e de benfeitorias execu-tados entre os sculos XVI e XVIII. Refira-se o incio da expanso do mosteiropara nascente (sculo XVI), a reforma integral do alado poente, com a transfor-mao da ala dos conversos (sculos XVI e XVII) e do frontispcio da igreja

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    (concludo em 1725), e a construo dos apartamentos dos abades gerais daCongregao de Alcobaa, a sudoeste (segunda metade do sculo XVIII), Fig. 1.

    Os inumerveis privilgios reais, aumentados com as doaes piedosase as aces de colonizao e de arroteamento empreendidas pelos monges,contriburam para a prosperidade e o prestgio de Alcobaa, tornada cabeada Ordem em Portugal, no ano de 1567, e incentivaram a rpida expansocisterciense pelo pas, que alcanou trinta e quatro mosteiros e duas ordensmilitares. Mas, gradualmente, as abominaes dos homens e as calamida-des do tempo contriburam para obscurecer este apogeu dourado, provocan-do a sua decadncia moral e econmica. Entre as vicissitudes principais des-sas pginas dramticas, invocam-se a instituio da Comenda, durante asegunda metade do sculo XV e meados do sculo XVII, com a exploraoabusiva dos bens da Ordem, a runa causada pelo terramoto de 1755 e pelasgrandes inundaes de 1772 e, finalmente, a devastao cometida pelos in-vasores franceses, em 1811, que mergulharam a abadia numa crise financei-ra terrvel e irreversvel. Aps a interdio das ordens religiosas em Portugal,ocorrida em 1834, o mosteiro foi secularizado e transformado em priso, de-pois em caserna e noutros servios administrativos (COCHERIL, 1989).

    Fig. 1 Alcobaa. Vista de sudoeste da abadia cisterciense. Autor: V. F. Jorge.

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    O admirvel estado de preservao da igreja deve-se ao facto de ela tersido convertida em matriz do aglomerado urbano circundante.

    Os trabalhos de consolidao e restauro, realizados durante o segundoquartel do sculo passado, fizeram regressar a abadia sua unidade e sim-plicidade medievais (MARTINHO, 2014). Este magnificente complexo mo-nstico constitui, na sua densidade histrica e no quadro da arquitectura reli-giosa medieval portuguesa, uma experincia tcnica e esttica inigualvel ede excepo, merc do significado formal e da articulao orgnica do seuespao interno, despojado e pleno de geometria e de racionalidade.

    por isso que consideramos a emblemtica Abadia de Alcobaa umdos mais distintos e majestosos triunfos da arquitectura dos Cistercienses,em toda a Europa crist. A sua incluso na Lista do Patrimnio Cultural daHumanidade, pela UNESCO, data de 14 de Dezembro de 1989.

    Contexto geofsico do antigo couto monstico

    A escolha de uma zo-na florestada e solitria,para a instalao da aba-dia, na confluncia dosrios Alcoa e Baa, corres-pondeu s trs exignciasfundamentais da topogra-fia cisterciense medieva,que harmonizam o ruralcom o espiritual: isolamen-to, gua e pedra (Fig. 2).

    Em termos de geo-grafia fsica antiga, o do-mnio monstico alcoba-cense pode caracterizar-se do seguinte modo: cos-ta rochosa, com arribas;faixa dunar litoral estreita; grande mobilidade de areias apenas moderadapelas matas que ocupavam os solos mais pobres e arenosos; e linha de cos-ta recortada por dois grandes golfos, totalmente assoreados na actualidade,

    Fig. 2 Alcobaa. Anlise topogrfica e microclimticado stio da abadia cisterciense. Autor: V. F. Jorge.

    A construo da paisagem hidrulica no antigo couto cisterciense de Alcobaa

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    quer pela dinmica natural quer pela aco humana. Eram as designadaslagoas da Pederneira, mais a norte, e de Alfeizero, da qual ainda resta aconcha de So Martinho (Fig. 3). Uma rea paralela costa constituda porcolinas, geralmente de relevo suave, delimitadas por vales apertados, poronde correm linhas de gua, muitas de regime sazonal. Uma terceira zona,constituda por um vale tifnico e pedregoso, termina no sop do macio

    Fig. 3 Alcobaa. Limites do antigo couto cisterciense. Tracejado: limites em 1153; Trao-ponto:limites em 1358; Ponteado: limites de 1368 a 1374; Manchas ponteadas: reas correspondentes s

    antigas lagoas de Pederneira (a norte) e de Alfeizero (a sul). Autor: J. M. de Mascarenhas.

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    calcrio da serra dos Candeeiros. Trata-se de uma orla frtil onde a culturada oliveira veio substituir a mata de outrora.

    Na segunda metade do sculo XII, a regio era um bosque dominadopor carvalhos (Quercus faginea), sobreiros (Quercus suber) e/ou azinheiras(Quercus rotundifolia), no interior do qual se tinham aberto clareiras trabalha-das por colonos ou exploradas por granjas. O castanheiro estaria tambmpresente em zonas de colina, bem como o carrasco (Quercus coccifera) quedeveria predominar nas manchas de charneca. Nas terras pantanosas, resul-tantes do recuo do mar, predominava o bunho (Scirpus lacustris, spp. lacustris),a tabuga (Typha latifolia e Typha angustifolia) e o canio (Phragmites australis).Estes terrenos encontravam-se permanentemente encharcados, conse-quncia de uma drenagem difcil e de uma rede densa de linhas de gua deregime torrencial, que necessitavam de regulao hdrica constante. Ao lon-go do perodo setecentista, ainda existiam muitos pauis e lagos residuais nazona anteriormente ocupada pelas lagoas de Pederneira e de Alfeizero.

    O abastecimento de gua abadia medieval

    No estado actual das nossas pesquisas, os conhecimentos que dispo-mos acerca do antigo sistema hidrulico do mosteiro alcobacense, desde acaptao de gua potvel at descarga final dos efluentes domsticos epluviais, so os abaixo consignados.

    Captao de guas

    A abadia era abastecida com gua subterrnea corrente, explorada numaqufero localizado na Chiqueda de Cima, a 3,500 km a sudeste de Alcobaa,em vale amplo e muito frtil. Conhecemos o stio exacto da nascente, que semantm ainda em farta actividade, perto da Capela de Nossa Senhora doCarmo. Uma pequena construo ptrea, semi-enterrada e em precrio esta-do, protege o bero de impurezas e de um eventual aluimento de terras. Asua planta obedece a um desenho rectangular (3,20 x 2,60 m). As paredestm a espessura de 0,60 m e apresentam um p-direito baixo (1,20 m). Oacesso ao interior faz-se atravs de uma abertura (1,20 x 0,90 m) rasgada nofrontispcio da obra. O telhado, de duas vertentes, composto por grandeslajes de calcrio aparelhadas. A gua doce, que outrora corria para o mostei-

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    ro, brota um pouco abaixo da cotaactual do terreno. Desde o ano de1935, esta nascente, incremen-tada com outros mananciais a-quferos prximos, utilizada parao fornecimento pblico de gua cidade de Alcobaa (Fig. 4).

    No sabemos se, de incio,houve outra fonte de aprovisiona-mento hdrico ao mosteiro. Nema tradio nem as pessoas maisidosas da zona confirmam notcias ou referncias a este propsito. Julgamosque a primitiva disponibilizao de gua lmpida a esta comunidade religiosade vida estvel tenha sido atravs de um poo ou nascente localizados nacerca abacial, os quais foram utilizados at que a realizao de obras hidru-licas mais complexas se tornaram indispensveis, em data que no certifica-mos pela sua morfologia generativa.

    Para as outras actividades e necessidades comunitrias de gua demenor qualidade, mas que exigiam um potencial hdrico maior irrigao,accionamento de forjas e de moinhos, saneamento das latrinas, etc. abriu-

    Fig. 4 Alcobaa. Captao de gua potvelna Chiqueda de Cima. Autor: V. F. Jorge.

    Fig. 5 Alcobaa. Obras de ordenamento hidrulico da abadia cisterciense. Autor: V. F. Jorge.

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    -se uma vala derivada do rioAlcoa, cuja "gua levada"corre ao ar livre, ao longo dasua margem esquerda, e bor-deja o casario monstico aoriente. Em razo do desn-vel topogrfico verificado, atomada de gua faz-se a1,500 km a montante da aba-dia. A fim de represar a guafluvial e criar condies paraque esta possa ser desviada,mediante uma comporta pararegulao ou interrupo do caudal, geralmente baixo no Vero e abundanteno Inverno, os monges construram um aude naquele rio, que funciona ain-da em ptimas condies hidrulicas (Figs. 5-6).

    Aduo de gua potvel

    O sistema adutor de gua potvel ao mosteiro tem um comprimento totalde 3,280 km. A gua era conduzida numa caleira de perfil uniforme, por acogravitacional. O percurso do aqueduto segue as linhas de nvel favorveis escorrncia, excepto nos pontos onde o declive do terreno obrigou a ngulosou a curvas. O exame da canalizao, ainda intacta em vrias partes dotrajecto, mas desprezada e muito vulnervel sua perda iminente, permitetecer concluses preliminares. Os sectores melhor conservados localizam-se entre os pontos 1 e 4 do traado (Fig. 7). A reconstituio dos troosdestrudos por construes, deslizamentos ou arroteamentos de terras noapresenta grandes dificuldades, porquanto subsistem alguns vestgios evi-dentes ou reconhecveis. Assim, e no sentido do escoamento, a topografia doaqueduto apresenta as caractersticas principais seguintes:

    desde a nascente at ao ponto 1, a conduo da gua era subterr-nea. A caleira repousa directamente no solo, estando a sua estabilidade ga-rantida pelo peso dos prprios blocos rochosos. O trecho em falta foi destrudodurante a construo da Central Fruteira de Alcobaa, na dcada de 1970;

    entre os pontos 1 e 2, o transporte da gua corria superfcie. A

    Fig. 6 Alcobaa. Aude para captao de gua comum,no rio Alcoa, para a abadia cisterciense.

    Autor: V. F. Jorge.

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    caleira assenta sobre um muro de alvenaria, com altura varivel. A arcada,que se localizava prxima do ponto 1, foi demolida em meados da primeiradcada de 2000, pelas obras de construo do actual hipermercado PingoDoce de Alcobaa, permitia a passagem de pessoas e de canais de irrigaoabastecidos pela levada (Fig. 8). A construo de uma fbrica, no perodo de1970-1980, e o alargamento da Rua da Levadinha, no Bairro do Lameiro(Alcobaa), arruinaram o vizinho troo da conduta adutora elevada sobre ummuro, da qual sobram aindaindcios abundantes. A ca-leira formada por blocosrectangulares de calcrio,com medidas padronizadas(c x l x h = 1,12 x 0,36 x 0,24m) e uma cavidade longitudi-nal em forma de U, com 0,16m de largura. A unio dassuas extremidades assegu-rada por um encaixe machoe fmea. A cobertura faz-se

    Fig. 8 Alcobaa. Abadia cisterciense. Troo areoadutor de gua potvel (destrudo em meados

    da 1 dcada de 2000). Autor: V. F. Jorge.

    Fig. 7 Alcobaa. Abadia cisterciense. Traado adutor de gua potvel. Autor: V. F. Jorge.

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    por lajes aparelhadas com o mesmo tipode material. A fim de evitar perdas degua ou a entrada de impurezas, as jun-tas da caleira esto impermeabilizadascom argamassa;

    no trajecto final, entre o ponto2 e a parede sul da igreja, a caleira estinstalada na base de uma galeria. Comos trabalhos de desobstruo e de-saterro da zona meridional do templo,contra a humidade capilar, mutilou-se altima parte do aqueduto. No ponto 2, agaleria mede 1,32 m de altura e 0,72 mde largura, as suas paredes so de al-venaria e a cobertura constituda porlajes planas de calcrio. Entre os pon-tos 3 e 4, o corredor aberto na rochatem uma altura mdia de 1,80 me uma largura mdia de 0,84 m.Como a sobrecarga do terreno eo perigo de ruptura por flexo somais significativos aqui do queno segmento a montante, a trin-cheira est coberta com uma a-bbada de bero formada por ti-jolos dispostos ao cutelo (Fig. 9).O acesso directo galeria, cujasdimenses permitem o trnsitode pessoas para vistorias e lim-pezas peridicas de manutenoou reparaes no canal adutor,faz-se por trs poos de visita(tambm de arejamento e ilumi-nao naturais), com uma loca-lizao equidistante.

    Fig. 9 Alcobaa. Abadia cisterciense.Troo subterrneo adutor de gua potvel.

    Autor: V. F. Jorge.

    Fig. 10 Alcobaa. Abadia cisterciense. Caixa dedecantao da rede adutora de gua potvel.

    Autor: V. F. Jorge.

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    Ao longo da rede de transporte da gua potvel, a uma distncia maisou menos invarivel, h caixas de decantao, de planta quadrada, medin-do 0,54 m de lado e 0,27 m de profundidade. Algumas destas caixas tmum descarregador de fundo. O orifcio destinava-se quer a facilitar a sadade sedimentos quer eventual instalao de uma torneira (Fig. 10).

    A aduo por gravidade terminava quando a conduta alcanava a igreja.A gua caa no reservatrio ou tanque de compensao, embebido na pare-de sul do corpo longitudinal, de onde ela partia em regime forado, atravs deuma tubagem que atravessa inferiormente as naves do templo. Na sua pare-de norte, h a epgrafe hidrulica latina AQUE DUCTVS que assinala estapassagem subterrnea para o lavabo doclaustro (Figs. 11-12). Daqui, a gua erarepartida pelos pontos de consumo nazona residencial.

    A diferena de nvel do sistemaadutor, de montante para jusante, de5,30 m, numa trajectria de 3,280 km,pelo que a sua declividade mdia de1,6 ( h = 1,6 m/km). Em boas condi-es hdricas, o dbito estimado seria de10 litros/minuto, o que significava um con-sumo dirio mximo de cerca de 14,00m ou 14 000 litros (frmula de Manning--Strickler).

    Fig. 11 Alcobaa. Abadia cisterciense. Tanquede compensao inserido na parede sul

    da nave da igreja. Autor: V. F. Jorge.

    Fig. 12 Alcobaa. Abadia cister-ciense. Lpide na parede norte danave da igreja. Autor: V. F. Jorge.

    Fig. 13 Alcobaa. Abadia cisterciense. As-pecto da casa do lavatrio. Autor: V. F. Jorge.

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    Distribuio de gua potvel

    No interior do mosteiro medieval, os circuitos da gua lmpida no estosuficientemente esclarecidos, por falta de estudos arqueolgicos mais siste-

    A construo da paisagem hidrulica no antigo couto cisterciense de Alcobaa

    Fig. 14 Alcobaa. Abadia cisterciense. Rede hidrulica medieval (reconstituio esquemtica).Autor: V. F. Jorge.

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    mticos e aprofundados, mormente nos espaos de dvida, os quais, de novo,aqui solicitamos. O claustro foi muito revolvido com a adaptao oitocentistado complexo monstico a quartel e, posteriormente, pelas obras de restaurodo sculo XX. Por conseguinte, a nossa proposta de reconstituio dos itine-rrios da gua potvel na rea habitacional baseia-se nos poucos testemu-nhos que subsistem in loco e na experincia e nos conhecimentos que dispo-mos acerca de outras redes de gesto hdrica, segundo o programa habitualdos mosteiros cistercienses da Idade Mdia. Assim, a partir do lavabo doclaustro, a gua potvel era conduzida de modo racional para as reas maisnecessitadas da abadia, em particular, a cozinha, a zona dos conversos e aenfermaria (Figs. 13-14).

    Como dissemos j, a distribuio de gua lmpida corrente no espaodomstico fazia-se em regime forado, a partir do reservatrio inserido naparede meridional da igreja. O escoamento sob presso assegurava as con-dies hidrotcnicas entre este tanque, o referido lavabo e os vrios ramais.Actualmente, a casa do lavatrio alimentada pela rede pblica de abasteci-mento de gua cidade de Alcobaa.

    Evacuao das guas usadas e pluviais

    As dificuldades de anlise e interpretao do sistema excretor decorremdas informaes lacunares acerca da rede interna de circulao da gua po-tvel na abadia. Sem provas irrefragveis, julgamos que o esgoto dos resdu-os domicilirios e pluviais aflua para um colector externo que contornava oedifcio monstico a norte e atravessava inferiormente as latrinas, aumentan-do o seu volume e fluxo de descarga. Este canal, desviado da levada e prova-velmente regulado por uma comporta, desaguava no rio Baa. As suas medi-das, que ns ignoramos, deveriam garantir a passagem livre e sem obstru-es dos efluentes. A existncia desta conduta de escoamento indiscutvel,dada a localizao tradicional das sentinas dos monges e dos conversos naextremidade dos seus dormitrios, localizados, respectivamente, nas alas anascente e a poente do espao claustral. Ela confirma-se pelo recorte daentrada nas antigas latrinas, perceptvel na face interna da parede norte dodormitrio medieval dos monges, e pelo reforo exterior desse paredo nasua zona inferior, o que o protegia do desgaste gerado pelo caudal das guasmortas, e ainda pelo declive natural do terreno, de este para oeste (Fig. 15). Ahiptese, segundo a qual as latrinas destinadas a uma comunidade superior

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    a uma centena de monges noestarem munidas com um auto-clismo, insustentvel...

    Este trabalho preliminar,acerca do antigo abastecimentode gua abadia alcobacense,no tem a pretenso de oferecerconcluses definitivas, emboratenha sido elaborado com o m-ximo rigor. Com efeito, ele foimuito dificultado e condicionadopela inexistncia de fontes docu-mentais e de dados arqueolgi-cos, sobretudo, quanto s primi-tivas estruturas hidrulicas inter-nas do mosteiro. O saber hidrotc-nico adquirido, misturado com anossa experincia de campo,permitiu tecer breves considera-es e sustentar alguns juzos ehipteses, abertos para aplica-o ou questionamento futuros que os validem ou corrijam, por demonstra-o factual segura e tangvel. Tal circunstncia reclama o prosseguimentomais aturado das nossas pesquisas acerca da verdade hidrulica, objectivandoa merecida visibilidade, reconhecimento e salvaguarda exemplar deste bemcomum (JORGE, 1996).

    Os antigos moinhos hidrulicos do Mosteiro de Alcobaa

    O Alcoa, rebaptizado de Abadia, quando as suas guas casam com as doBaa, o rio de maior prstimo, onde se localiza o grosso dos engenhos demoagem do mosteiro donatrio. As suas guas servem o conjunto da Quinta deChiqueda, com o seu moinho de 4 pedras e lagar de azeite de 6 varas, o moinhode 3 pedras da Quinta das freiras de Cs (Chiqueda), os moinhos do Mosteiro eda Praa que mobilizam 11 pedras, o conjunto da Fervena, com dois moinhose uma azenha (9 pedras). Basta referir que estas unidades moageiras se encar-

    Fig. 15 Alcobaa. Abadia cisterciense. Aspecto daface interna da parede norte do dormitrio medieval

    dos monges. Notar o recorte da antiga entradanas latrinas. Autor: V. F. Jorge.

    A construo da paisagem hidrulica no antigo couto cisterciense de Alcobaa

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    regam da moenda de mais de 50% do cereal arrecadado nas tulhas dos celei-ros da Ordem. Para alm dos moinhos de rodzio e azenhas, neste curso degua tm assento os lagares de azeite de maior grandeza (basta referir que olagar de azeite da Fervena dispunha de dois engenhos hidrulicos que assis-tiam dez prensas de vara), o engenho de serrao alojado na cerca do mosteiro(o nico com motor hidrulico no territrio dos coutos), forjas e pises, entreoutras fbricas afectas ao complexo monstico cisterciense.

    Para dar razo moagem do gro contava-se, para alm da energia dasguas, com a fora dos ventos. Mas este ltimo motor era imprevisvel, difcilde domar, j para no falar das calmarias que faziam perder nimo ao vela-me. A laborao dos engenhos tocados a vento estava ainda comprometidapelo sopro do suo, que constrangia a actividade durante o perodo matinal.Na prtica, a sua actividade restringia-se aos meses de Julho a Outubro.Todos estes embaraos relegavam os moinhos de vento para uma funosubsidiria dos moinhos hidrulicos, amparando as artes da moagem quan-do a fora do estio, associada rega das novidades e ao trabalho de outrasindstrias, inibia o labor de algumas pedras.

    As unidades de moagem hidrulica do mosteiro, exploradas directamenteou aforadas a terceiros, diferenciam-se pelo local de assentamento, pela di-menso da estrutura edificada e pelo nmero de engenhos correntes emoentes, revolucionando, em mdia, entre trs a quatro casais de ms alveirasou trigueiras e segundeiras (para os cereais menos nobres, como o centeio eo milho e at, por vezes, a cevada). Estas casas de moinhos esto instaladasnos cursos de maior merecimento, aproveitando as quedas de gua paraelevar o dbito energtico.

    Por vezes, as levadas e valas dos moinhos funcionam solidariamente,conduzindo as guas a outros engenhos e, graas a oportunas derivaescapilares, assistem revoluo do milho (sculos XVII-XVIII) e dos arrozais(sculo XIX) nas terras de campo da Cela, Valado e Alfeizero. A difuso domaiz e a sua alta taxa de produtividade (por cada alqueire lanado terraobtinham-se trinta e dois) altera os hbitos alimentares da populao campo-nesa, que passa a prescindir dos trigos com fraco grau de peneirao para ofabrico do po (as classes de estatuto social elevado consumiam exclusiva-mente po de trigo alvo e bebiam vinhos brancos e vermelhos que correspon-diam aos actuais palhetes; em contramo, as classes populares comiam poescuro e bebiam vinhos de feitoria de cor carregada, ou seja, produtos menosagradveis ao paladar, mas mais calricos e, por isso, ajustados ao quotidia-

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    no de trabalho). Esta transformao faz-se notar ainda em alteraes na es-trutura de foros e rendas e num acrscimo das ms segundeiras nos enge-nhos de moagem.

    O leito do rio beneficiado por presas e audes, quer com a funo deaprovisionar as guas, salvando oportunamente os engenhos da agrura estival,quer como forma de preveno e guarda contra cheias, depsitos que servemhabitualmente de viveiros de peixes e de criao de aves que aproveitam oalimpalho do moinho resultante dos trabalhos de peneirao (estes restos tam-

    Denominao/Localizao

    N de pedras

    Pedras alveiras

    Pedras segundeiras

    Moinho do Mosteiro (Rua 16 de

    Outubro, antiga Rua da Levada Alcobaa)

    3

    ---

    ---

    Moinho da Praa (Rua Alexandre

    Herculano, antigas Ruas da Praa e

    de Santo Antnio)

    4

    8 (ampliao)

    2

    2

    Moinho de Chiqueda de Cima Prazeres de Aljubarrota

    4

    ---

    ---

    (Chiqueda de Baixo Prazeres de Aljubarrota)

    3

    ---

    ---

    Moinho de Baixo

    (Fervena Maiorga)

    3

    ---

    ---

    Moinho do Meio

    (Fervena Maiorga)

    3

    4

    (ampliao)

    2

    2

    Moinho de Cima

    (Fervena Maiorga)

    2

    1

    1

    Moinho de guas Belas de Baixo (Valado dos Frades)

    3

    ---

    ---

    Moinho de guas Belas de Cima 3 --- --- Moinho do Engenho

    (guas Belas)

    3

    ---

    ---

    Moinho/Azenha na Cela Velha 3 --- ---

    Moinho da Carreira

    (Pvoa de Cs)

    4

    ---

    ---

    Moinho da Mata

    (Casal da Areia)

    5

    ---

    ---

    Moinho da Castanheira ? ? ?

    Moinho da Mata da Torre ? ? ?

    Quadro 1 Moinhos de Rodzio/Azenhas do Mosteiro1

    1 Nas ltimas dcadas da administrao monstica, os moinhos conheceram algumas reformas como aumento do nmero de engenhos.

    A construo da paisagem hidrulica no antigo couto cisterciense de Alcobaa

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    bm eram utilizados em culturas para verde como penso para o gado).Os moinhos do mosteiro so construes slidas de pedra crua, eventual-

    mente rebocada, e com cobertura de telha, que ocupam estrategicamente osespaos privilegiados nos cursos de gua. Em situao diametralmente opostatemos as precrias instalaes de propriedade popular, edificadas com madei-ra nas margens do leito das ribeiras, cujo fluxo condiciona a laborao a umperodo que no excede trs a quatro meses por ano (GIL, 1965, 167), enge-nhos que o mosteiro sujeitava ao doloso pagamento do foro das guas.

    Para ficar pronto a laborar, o moinho tinha de estar munido com umcorpo de alfaias prprias. As escrituras notariais relativas aos moinhos degua referem apenas pices (em nmero de trs ou quatro) e uma alavancade ferro para levantar e assentar as ms, mas omitem as gadanhas, enxadase ps de valar com que se cuida das levadas. A documentao mais profu-sa quando se pronuncia sobre os moinhos de vento em que, para alm dospices e alavancas, refere serras de mo, enxs, martelos, escopros e goivas(MADURO, 2011, 260). Para alm deste instrumental, as escrituras falamdas medidas, de um sem nmero de alfaias para limpar o gro, como joeiras,bandejas, cirandas e peneiras, dos foles de pele de cabra de meio-alqueireou de alqueire para carreto do gro e farinha, das tulhas e arcas de arrecada-o do cereal.

    O cereal dado a moer, aps a picadura das pedras, pertencia casa,porquanto as pedras mal ajustadas podiam queimar a farinha. Idntica obri-gao conhecia a moenda da azeitona, em virtude das seiras ressequidasembeberem muito azeite e transmitirem-lhe um acentuado sabor a rano.

    Foros e rendas dos engenhos de moagem esto intimamente relaciona-dos com o estado das instalaes, o nmero de pedras, a natureza do cursode gua e a bondade da localizao, e a incluso de logradouros, o que impli-ca lavoura e pagamento do dzimo das novidades, como testemunha o con-trato de um moinho do mosteiro na vila da Cela, entre outros factores. Opagamento dos foros compreende, para alm da entrega de cereais (pomeado, terado ou quartado, conforme a representao de cereais de primei-ra e segunda), leguminosas secas, vivos (galinhas, galos capes, carneiros eporcos) e alguns gneros, como cera e azeite. O cereal que deve ser trans-portado para os celeiros da Ordem deve vir limpo e ser da terra e no detulha, ou seja, deve ser cereal da presente colheita. A prestao podia sernica, coincidindo com o perodo das colheitas e debulhas em datas defini-das pelo costume e calendrio santoral, mas tambm era comum partir o foro

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    ( semana, ao ms, de dois em dois meses e em quartis) controlando, as-sim, mais eficazmente, eventuais incumprimentos (MADURO, 2011, 268-271).

    A reparao, limpeza e abertura das valas, levadas e agueiros de foicee machado, o desassoreamento e retirada da vegetao das presas e au-des, o tirar a pedra do leito dos rios e ribeiras e recuperar as margens cons-tituam obrigaes dos rendeiros consignadas na letra dos contratos. J asobras maiores no edificado ou os danos causados por acidentes naturais,como rombos nos audes e destruio do aparelho motriz, tinham capital dosenhorio e trabalho do rendeiro. Mas os rendeiros tambm eram convocadospara outros afazeres nas casas de moinhos e currais onde se abrigava ogado, como o reboco e caiao de paredes, reparao de vigamentos e te-lhados, colocao de pedras nos engenhos, substituio e reparo dos rodzi-os, colocao de cubos de tronco e seteiras (MADURO, 2011, 273-275).Chegava-se at a incumbir o rendeiro de guardar pinhais, a fim de evitar fur-tos de lenha, e a vigiar os lagares de azeite.

    Os perodos destinados s valagens podiam implicar a reduo do foro.O mesmo sucedia quando as regas do milho e das hortas, que ocorriam deMaio a Setembro, paralisavam algumas pedras dos moinhos. Outra condioprevista para a diminuio da prestao sucedia durante o perodo dalagaragem do azeite, com especial destaque para os meses de Novembro eDezembro. Por esta ltima causa, o mosteiro abdica de 80 alqueires de trigono foro do moinho de Chiqueda e da azenha de Fervena. Os monges exclu-am outros casos que pudessem ser reclamados para abater os foros, comoo efeito das secas ou das inundaes no vingar das searas. Consideravam,todavia, o incumprimento do foro, caso se verificasse o arrombamento daslevadas e audes, situao extensvel inundao dos moinhos e pejamentoou travamento da roda pela aco da corrente. A fim de evitar qualquer apro-veitamento indevido, pedia-se a imediata participao do acontecimento e aentrega da segurelha como prova da imobilizao das pedras.

    No termo dos acordos, como se observa nas condies contratuais domoinho das freiras de Cs, o rendeiro era obrigado a entregar o moinho comos engenhos correntes e moentes, deixando as pedras capazes de moer ogro por um perodo de seis meses (caso a durabilidade das pedras fossemaior, o rendeiro era ressarcido) e os utenslios de ferro (picadeiras, pices ealavancas) como os receberam. No moinho de baixo da Fervena exige-seao moleiro que d conta das trs relas e aguilhes de bronze, materiais quesubstituram o seixo aparelhado (MADURO, 2011, 275-279).

    A construo da paisagem hidrulica no antigo couto cisterciense de Alcobaa

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    Com o decreto de extino das ordens religiosas, em 30 de Maio de1834, os bens destes institutos foram a hasta pblica, a fim de financiarem osistema jurdico-poltico do Liberalismo nascente. Os novos actores concen-

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    tram estrategicamente os meios de transformao dos frutos da terra, casodo brasileiro Bernardo Pereira de Sousa, que adquire os moinhos e lagaresde azeite de Chiqueda e da Fervena, ou de Francisco Pereira da Trindade,que detm o domnio til dos moinhos do Mosteiro e da Praa (MADURO,2011, 252-253). Esta gerao de proprietrios tem agora de trabalhar com aliberdade das guas e a profuso de engenhos de moagem. De acordo como relatrio agrcola de 1839, sabe-se que a comarca possua 40 moinhos degua e 17 de vento, os quais se encarregavam de moer 3000 moios de cere-al. Mas, a estatstica de 1862 confirma a democratizao da actividade demoagem, registando 159 moinhos de gua e 85 de vento. Esta concorrnciapopular fora a algumas reformas nas casas de moinhos do extinto mosteirode Alcobaa, com obras nos audes e a multiplicao dos engenhos de rod-zio ou, quando a localizao se afigura propcia, substituio integral domoinho de gua por uma azenha. Estas so as ltimas reformas no mbitoda tecnologia tradicional de moagem, dado que, a partir do ltimo quartel dosculo XIX, assentamentos como o moinho das Freiras e o conjunto deFervena foram demolidos para a se instalar, em 1875, a Companhia deFiao e Tecidos de Alcobaa. Outras casas de moinhos foram tambm trans-formadas em moagens industriais.

    Sistemas de reteno da gua no antigo territrio abacial

    A gua escoa-se frequentemente por cavidades na rocha os algares ,cuja origem poder ser atribuda ao desabamento de abbadas de cavernassubterrneas. A obstruo de alguns destes algares permitiu a formao depequenas lagoas, de grande utilidade para a populao local (NATIVIDADE,1922). A ttulo de exemplo, referem-se a Lagoa Ereira e o Barreiro da Quintada Granja, prximos de Turquel, a Lagoa Ruiva, em Ataja de Cima, a Lagoada Cova, em Ataja de Baixo, e o Barreiro de Moleanos, actualmente con-vertidas em reas agrcolas, na maioria dos casos.

    Todavia, nas pias ou cisternas desta rea que o agricultor conserva agua durante o Vero. Duas importantes pias podem ver-se ainda hoje emterras da Quinta de Vale de Ventos, antiga granja monstica de Alcobaa: aschamadas Pia da Serra e Pia do Olival (ou das Obras). A primeira situa-se naencosta oeste da serra dos Candeeiros, tem planta rectangular, com cercade 15,00 x 9,00 m e uma altura mxima aproximada de 3,00 m. Est construdacom blocos calcrios e coberta por uma abbada de bero. Um dos aspectos

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    mais curiosos desta cobertura refere-se ao sistema de recolha de gua. Nasparedes menores do edifcio abre-se uma janela pela qual se podia extrairgua da cisterna, por um balde. No exterior, prximo da janela oeste, existeuma pia escavada num bloco calcrio, para dar de beber ao gado. Adossadoquela face do edifcio, existe um muro que envolve os restantes trs ladosdeste, definindo um ptio. Na superfcie rochosa que constitui o cho desteptio, h regos escavados que permitem a conduo da gua pluvial parao interior da cisterna (Fig. 16)2. Esta cisterna destinou-se, sobretudo, aoabeberamento do gado serrano, no sendo de excluir tambm a irrigaodos pomares de limas e de laranjeiras doces que existiram na encosta daserra.

    A Pia do Olival localiza-se no sop da serra, a cerca de 800 m a oeste da Piada Serra. Trata-se de um grandioso tanque, em alvenaria, com planta rectangu-lar, dividido em dois compartimentos comunicantes, medindo exteriormente 56,00x 29,00 m e com a altura mxima da gua de 3,50 m. O muro voltado a oesteapoia-se em cinco contrafortes, tendo os das extremidades uma espessuramaior do que os restantes (3,70 m e 0,80 m, respectivamente) Figs. 17-18.

    2 semelhana de muitos aiguiers da Provena (Frana) e de outras estruturas congneres da orlamediterrnica.

    Fig. 16 Alcobaa. Quinta de Vale de Ventos. Pia da Serra. Autor: J. M. de Mascarenhas.

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    Todos eles apresentam uma altura e uma profundidade aproximadamenteidnticas de 2,50 m e 1,60 m, respectivamente. Pouco se nota do sistema deaduo de gua, alm do troo extremo do canal, visvel a meio do murovoltado a norte. Quanto ao sistema de evacuao, identificou-se um orifciode descarga de fundo no paramento oeste, donde parte um canal, visvelapenas num trajecto aproximado de 20,00 m. Embora no disponhamos dedados seguros quanto utilidade da Pia do Olival, o prprio topnimo revelauma funo hidro-agrcola, provavelmente para irrigao do extenso olivalque cobria o sop da serra, alm de outras culturas, como hortas e pomares(SOUZA, 1929)3. Estas pias tero sido obra dos monges alcobacenses (SOU-ZA, 1929), sabendo-se mesmo que a Pia do Olival foi mandada construir, noterceiro quartel do seculo XVIII, pelo geral Luiz Pereira (RIBEIRO, 1908, 154).

    A construo da paisagem hidrulica no antigo couto cisterciense de Alcobaa

    Fig. 17 Alcobaa. Quinta de Vale de Ventos. Vista do interior da Pia do Olival.Autor: J. M. de Mascarenhas.

    Fig. 18 Alcobaa. Quinta de Vale de Ventos. Aspecto dos contrafortes da Pia do Olival.Autor: J. M. de Mascarenhas.

    3 A plantao de grandes olivais, iniciada j no sculo XVII, ocorreu no abaciado de Fr. Manuel deMendona (NATIVIDADE, 1944, 49).

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    Sistemas de saneamento e valorizao agrcola dos pauis

    O conhecimento dos principais trabalhos de saneamento hidrulico, exe-cutados nos coutos da Abadia de Alcobaa entre as datas de fundao (1153)e de secularizao (1834), apoiou-se, sobretudo, na anlise documental,aerofotogrfica e cartogrfica e em averiguaes no terreno, no decurso de umestudo realizado h mais de vinte anos (MASCARENHAS et al., 1994)4.

    So escassas as referncias monsticas a trabalhos de regulao hdrica,durante a poca medieval. A maioria das obras efectuadas no foi registadae apenas dispomos de notcias documentais avulsas ou insertas em contra-tos de finais da Idade Mdia, entre os enfiteutas e o mosteiro. Todavia, com oestabelecimento da Ordem de Cister em Alcobaa, que levou ao incrementode actividades agrcolas e explorao de madeiras e de outros recursosnaturais, provocando um aumento da eroso dos solos, deu-se uma signifi-cativa mudana do ambiente sedimentar, a partir do sculo XII (HENRIQUES,2013, 436).

    Se considerarmos a plancie aluvial do antigo mar da Pederneira cons-tituda por trs alvolos que comunicam entre si por estrangulamentos rocho-sos5, provvel que, em finais do sculo XIII, a maioria dos terrenos do alv-olo Valado dos Frades Maiorga j se encontrasse saneada, em resultadodas obras de drenagem, dessalinizao e enxugo das reas pantanosas(HENRIQUES, 2013). O primeiro documento conhecido, relativo a trabalhoshidrulicos, data de 1187, quando o abade D. Martinho I comprou a MemPeres uma propriedade junto ao rio de Salir, a fim de desviar o rio que correna fronteira dos nossos coutos. Para os sculos XIV e XV, h referncias avrios documentos acerca das abertas feitas por operrios especializados os aberteiros , a cargo da Abadia de Alcobaa, por serem dispendiosas,sobretudo, quando eram condutas principais dirigidas directamente para osrios (GONALVES, 1989). As testadas, ou canais secundrios, eram da res-ponsabilidade dos foreiros que as deviam construir ou manter em bom esta-do. Por vezes, cabia tambm aos colonos a tarefa da construo de audes,alguns deles obras durveis de pedra e cal, para regulao do caudal dos

    4 Excluem-se desta anlise as intervenes feitas noutras terras sob a administrao abacial, situa-das fora da regio de Alcobaa, bem como as obras de abastecimento de gua ao complexo mons-tico medievo, j descritas acima.5 So o alvolo litoral, o alvolo intermdio Ponte das Barcas Valado dos Frades e o alvolo orientalValado dos Frades Maiorga. Cf. HENRIQUES, 2013.

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    ribeiros e irrigao de terrenos. Estes trabalhos, assim como a limpeza dosrios, resultaram em contratos com vrios povoadores, como os de Maiorga,Torre das Colmeias (junto a Fervena) e na Granja do Jardim. Conhecem-seainda obras hidrulicas de saneamento, com fins de valorizao agrcola,realizados durante o sculo XIV, nas zonas de So Martinho, Aljubarrota,Maiorga e Alfeizero, e, ao longo do sculo XV, nas regies de Cs e deAlfeizero (GONALVES, 1989). Relativamente aos sculos XVI e XVII, nodispomos de notcias sobre grandes empreendimentos hdricos, mas apenasrelativos manuteno de abertas e testadas, o que se explica pelo facto deo mosteiro ter perdido muito da explorao directa do seu domnio, e, ainda,pela instituio da Comenda. A partir do sculo XVIII, j aparecem vriasnotcias acerca de obras hidrotcnicas. Com efeito, em 1700, assina-se ocontrato entre o mosteiro e o povo de Maiorga para a abertura do Rio Novo.Ficavam assim reunidas diversas guas numa corrente nica, o que permitiavalar com vantagem uma maior rea de brejos (M. NATIVIDADE,1960, 107).Segundo este autor, deve-se aco do marqus de Pombal, o estudo dosaneamento dos campos de Alfeizero e Valado, com a derivao urgentedos rios, construo das portas de mar, a forma, enfim, de transformar osgrandes pauis e campos de cultura (M. NATIVIDADE, 1960, 54)6. Durante oreinado de D. Jos, e a pedido do Mosteiro de Alcobaa, foi mandado execu-tar ao engenheiro Bento de Moura Portugal um mapa da regio em anlise.Este tcnico recomendou a abertura de uma vala no paul da Cela, que con-fluiria no Alcoa, bem como a construo de portas de mar, junto Ponte daBarca (NATIVIDADE, 1960), projecto que no se concretizou devido mortedo rei e queda do marqus de Pombal. Mas a urgncia de obras hidrulicasnos campos de Valado/Maiorga, de So Martinho/Alfeizero e da Mata era talque a autoridade rgia nomeou uma comisso tcnica, dirigida pelos engenhei-ros Isidoro Paulo Pereira e Joaquim de Oliveira, para o levantamento topogrfi-co destes campos, onde se descriminassem as obras efectuadas e a executar.Estes tcnicos elaboraram um relatrio, datado de Junho de 1759, que prope,entre outras medidas, a construo da Vala Nova, com uma porta de mar, e deuma ponte na Barquinha. Prope-se, ademais, que a Vala Nova desague no rioAlcoa, abaixo do ponto de confluncia da Vala Velha (NATIVIDADE, 1960).Certamente, a referida Vala Velha corresponde ao actual rio da Areia (Fig. 19),

    A construo da paisagem hidrulica no antigo couto cisterciense de Alcobaa

    6 Os trabalhos de canalizao do rio Alcoa, nos campos de Maiorga e de Valado, aparecem j men-cionados nas Memrias Paroquiais de 1758.

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    pelo que se tratou de uma obra de grande envergadura7.Como resultado de um reconhecimento aerofotogrfico e cartogrfico,

    efectuado em meados da dcada de 19908, na rea costeira dos antigos coutosde Alcobaa, foram identificadas importantes obras de ordenamento hidruli-co, em particular nos campos de Valado dos Frades, Alfeizero, Tornada eSalir de Matos, assim resumidamente caracterizados:

    Campo de Valado dos Frades/Maiorga (Fig. 20)

    A jusante de Fervena, o rio Alcoa apresenta-se canalizado, tendo sidoprovavelmente implantado no limite sul da rea aluviar. O rio da Areia apa-renta ter sido completamente desviado do seu curso inicial (a partir de Casalda Areia), constituindo um canal que, perto do Valado dos Frades, segue ameia encosta (Fig. 19)9. O objectivo desta obra seria criar uma vala receptora

    Fig. 19 Alcobaa. Rio da Areia ou Vala Velha. Autor: J. M. de Mascarenhas.

    7 Este rio j consta nas referidas Memrias Paroquiais. O termo valado, do topnimo Valado dosFrades, est j indicado nos documentos supracitados e refere-se, certamente, quele canal.8 Reconhecimento atravs da observao estereoscpica de fotografias areas verticais pancromticas(escala aprox. 1:15 000) do voo FAP51, de Maio de 1989. De igual modo, se lanou mo, para certasreas mais restritas (Valado, Alfeizero e Salir de Matos), de fotografias areas verticais infravermelhasfalsa cor (escala aprox. 1:15 000) de voo ACEL 1990. Este trabalho foi acompanhado pelas anli-ses da Carta Militar de Portugal (escala 1:25 000), da Carta Geolgica de Portugal (escala 1:50 000)e por visitas ao terreno para apoio interpretao.9 Inicialmente, teria seguido o mesmo percurso do rio do Meio.

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    de parte da bacia do rio do Meio, que conflusse neste apenas prximo domar, a cerca de 1,700 km. Deste modo, controlava-se melhor os caudais e,por conseguinte, o encharcamento dos campos nesta rea. O rio do Meio,cujo percurso neste campo segue entre os dos rios da Areia e Alcoa, apre-senta-se tambm canalizado. Segundo cremos, inicialmente, este rio desa-guava no Alcoa, prximo de Fervena, e no prximo do mar, como hoje acon-tece (Fig. 20). O rio das guas Belas (ou Levadinha) e a Vala Nova apresen-tam-se tambm canalizados, com vista ao enxugo dos terrenos (Fig. 21).

    A construo da paisagem hidrulica no antigo couto cisterciense de Alcobaa

    Fig. 20 Alcobaa. Principais trabalhos de saneamento e canalizao de cursos de gua nos camposde Valado dos Frades, Maiorga e Cela. Trao-dois pontos: provvel percurso inicial dos cursos degua; Ponteado: obras de canalizao provavelmente anteriores a 1834; Trao-ponto: obras de

    canalizao realizadas entre 1935 e 1939; / Porta de mar. Autor: J. M. de Mascarenhas.

    Fig. 21 Alcobaa. Campos da Pederneira (alvolo intermdio), notando-se a Vala Nova,a Levadinha e uma porta de mar. Autor: J. M. de Mascarenhas.

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    Campo da Cela

    Um grande canal de cintura recolhe as guas da bacia envolvente, an-tes de as lanar no rio Alcoa, prximo da foz. No seu interior podem observar-se canais com uma disposio aproximadamente radial (Fig. 20). O rio deFamalico, que conflui no referido canal de cintura, apresenta o seu troosuperior regularizado.

    Campo de Alfeizero

    Na extensa rea aluvionar, aproximadamente definida pelo tringulo S.Martinho Alfeizero Tornada (Fig. 22), reconhecem-se obras hidrulicasde grande vulto (Fig. 23). Os rios de Alfeizero e da Tornada apresentam umpercurso artificial e canalizado, a jusante das suas povoaes. O rio daPalhagueira, cujo percurso inicial se devia confundir com o do rio da Tornada,aparenta ter sido desviado deste, a fim de seccionar a sua bacia hidrogrfica.O troo inferior deste rio, denominado Vala do Paul, vai desembocar na ValaReal. Instalaram-se complexos de valas, a oeste da Tornada (subsidirias dorio da Palhagueira) e a norte de Cho da Parada (subsidirias da Vala Real).Um canal, afluente do rio de Alfeizero10, atravessa actualmente parte dapovoao de S. Martinho do Porto. Outro canal, subsidirio do rio da Torna-da, foi instalado na baixa aluvionar, entre Salir de Matos e Barrantes.

    O percurso inicial de certos rios, em particular o dos rios de Alfeizero eda Tornada, pode deduzir-se a partir da foto-interpretao e da compreensotopogrfica da zona (Fig. 23)11.

    Fig. 22 Alcobaa. Vista dos campos de Alfeizero. Autor: J. M. de Mascarenhas.

    10 Na Carta Geolgica de Portugal tem o topnimo de Vala Real dos Medros e ter sido instaladoaquando da construo das linhas do caminho-de-ferro do Oeste.11 Veja-se o levantamento, escala 1:2 000, executado no mbito de um estudo de Geomorfologia.Cf. HENRIQUES, 1996.

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    Alm dos supracitados canais, observam-se muitos outros, de importn-cia menor, relacionados com a drenagem dos campos ou para fins hidro--agrcolas (Fig. 22).

    Identificao de obras de ordenamento hidrulico posteriores a 1834

    Partiu-se da hiptese de que vrios dos trabalhos observados na foto-grafia area e nas cartas topogrficas foram efectuados em pocas relativa-mente recentes, pelo que se realizou uma pesquisa documental com vista sua identificao. Assim, encontraram-se referncias especialmente a obrasna foz do Alcoa, em 1814 e nos perodos de 1822-26 e de 1833-38, para re-gularizao da sua barra, condio imprescindvel para a recuperao dos

    campos interiores enchar-cados (LOUREIRO, 1904)12.Tais trabalhos no produziramresultados significativos, por-quanto, num ante-projecto de1863, relativo ao melhoramen-to dos campos de Valado, Mai-orga, Famalico e Campinho,h a notcia de que os rios eabertas daquela zona se en-contravam entulhados. Maisse indica que as antigas por-tas de gua haviam desapa-recido, e entravam livrementenas terras as guas das ma-rs (LOUREIRO, 1904, 267). provvel que estas antigasportas de mar sejam asconstrudas no sculo XVIII,dado no se ter conhecimen-to de outras. A construo denovas portas foi consideradanum projecto de 1865, o qual,

    12 A barra fechava-se permanentemente, pelo que, em geral, era necessrio abri-la trs vezes por ano.

    A construo da paisagem hidrulica no antigo couto cisterciense de Alcobaa

    Fig. 23 Alcobaa. Principais trabalhos desaneamento e canalizao de cursos de gua nos

    campos de S. Martinho, Alfeizero e Tornada.Trao-dois pontos: provvel percurso inicial dos

    cursos de gua; Ponteado: obras de canalizao,talvez anteriores a 1834.

    Autor: J. M. de Mascarenhas.

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    todavia, no teve prossecuo. Em 1896, alguns proprietrios dos camposde Alcobaa dirigiram um requerimento ao Governo, a fim de solicitarem adesobstruo e fixao do rio Alcoa, junto foz (LOUREIRO, 1904). Nummapa de Licnio Valena, elaborado em 1927 (VALENA 1928 e 1929), iden-tificam-se duas portas de mar, prximo da Ponte da Barca (Fig. 24). Serque a sua construo resulta da citada petio de 1896?

    Na opinio de Adolfo Loureiro, os referidos campos ficaram ao abando-no, muito principalmente, depois da extino das ordens religiosas, deixan-do de se observar os antigos regimentos para a conservao dos canais dedrenagem (LOUREIRO, 1904, 265). No primeiro quartel do sculo XX, vriostcnicos debruaram-se acerca destes problemas de hidrulica agrcola. Entreoutros, citam-se Raul Mendona, Ferreira da Silva (CASIMIRO, 1940) e LicnioValena, apresentando este um estudo sobre os campos de Valado, Cela,Pederneira e Famalico (VALENA, 1928 e 1929), onde tratou dos proble-mas do seu enxugo, dessalgamento e irrigao13. Na carta elaborada por estetcnico observa-se que a rea ocupada pelos pauis atingia uma superfcie supe-rior a 400 ha (cerca de um tero da rea), no alvolo intermdio Ponte dasBarcas Valado dos Frades (Fig. 24). Segundo o referido autor (VALENA,1928 e 1929), nos pauis de Valado, predominava uma flora lenhosa subar-bustiva e arbustiva, essencialmente constituda por amieiros, enquanto na Celapredominava uma flora herbcea, com dominncia de bunho, tabuga e cani-o. No referente s prticas culturais, no campo de Valado dominavam asculturas de regadio14 e no campo da Cela, as culturas de sequeiro15. Apoiadoem informao local, ele cita o uso de tcnicas populares de regadio, como ocubo, tubo constitudo por duas peas justapostas, obtidas a partir de umtroo de pinheiro escavado no interior. Tais cubos atravessavam as motasdos canais, de modo a possibilitar o escoamento da gua para as levadas derega. Seria este o sistema lombardo de irrigao referido por WilliamBeckford, em 1793 (BECKFORD, 1989, 137)? Das diversas propostas avan-adas por Valena, de notar a instalao de um canal de cintura para o paulda Cela, a fim de recolher as guas da sua bacia hidrogrfica. Em 1932,

    13 No mbito deste trabalho, a Diviso de Agrimensura do Ministrio da Agricultura utilizou, pelaprimeira vez em Portugal (1927), o mtodo da fotogrametria area para o levantamento topogrficodos referidos campos.14 Culturas hortenses, a norte da Levadinha, e culturas arvenses e pratenses, tambm associadas ahortenses, entre a Levadinha e o Alcoa.15 Trigo e vinha, em condies muito precrias, a norte do rio de Famalico, e milho, a sul daquele rio.

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    Fig. 24 Alcobaa. Sector da Carta dos terrenos alagados das freguesias de Cela, Valado,Pederneira e Famalico. Autor: L. Valena.

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    realizou-se um novo estudo para este paul16, cujas obras decorreram entre1935 e 1939, com aproveitamento til para a agricultura de mais de metadeda rea inicialmente inundada (NEVES, 1974, 762). Procedeu-se, entre ou-tras aces, regularizao dos rios Alcoa (alteamento das suas motas) e deFamalico, com a supresso de parte deste, e instalao de dois colectoresde encosta, um a norte e outro a sul, posteriormente ligados, passando aconstituir um canal de cintura (Fig. 20). De destacar ainda a implantao deum colector geral de enxugo, com incio na parte central do campo de Cela,num local denominado Roseta, aonde passaram a confluir quatro valas (COS-TA, 1960). Nas terras marginais do rio do Meio foram tambm abertas valasde enxugo (CASIMIRO, 1940). Esta obra de valorizao teve uma segundafase, planeada em 1960 (COSTA, 1960), cujo objectivo era a melhoria dascondies de enxugo e a construo das redes de rega primria e secund-ria, sendo este o seu estado actual genrico.

    Consideraes finais

    Neste breve estudo colectivo e interdisciplinar, pretendemos sublinhar aimportncia do patrimnio hidrulico de iniciativa cisterciense, no seu antigocouto de Alcobaa. Analismos os mltiplos usos e necessidades da gua,mormente, para fins domsticos (dessedentar, cozinhar, higiene pessoal, la-vagens, etc.), industriais e tcnicos (moinhos, engenhos, manufacturas, etc.)e agrcolas (saneamento, irrigao, etc.).

    O ordenamento hidrulico deste territrio agrrio abacial obrigou cons-truo de estruturas de apoio presena, explorao e gesto hdricas, asquais exigiram conhecimentos e competncias especializados imprescind-veis. Dentre os principais trabalhos empreendidos por aqueles monges econversos, nomeiem-se aqui, sobretudo: a escavao de poos freticos; aabertura de valas e canais; a audagem; a construo de aquedutos, diques,portas de mar, pontes, mquinas, engenhos e moinhos; a transferncia e aregularizao de cursos fluviais; o desassoreamento de lagoas; e o enxugode terrenos.

    16 Segundo CASIMIRO, 1940, o estudo foi elaborado por Sir M. Macdonald & Partners, de Londres, apedido da Junta Autnoma das Obras de Hidrulica Agrcola.

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    Estas histricas obras utilitrias de desenho e transformao do meioambiente silvestre constituram o impulso da modernidade hidrotcnica dosCistercienses, com reflexos na morfologia e nos valores culturais paisagis-tas, ainda hoje manifestos na agricultura contempornea e na vitalidadeeconmica daquela regio estremenha.

    Como construtores e artfices de paisagens e de estruturas hidruli-cas, os diligentes monges alcobacenses testemunham-nos o prstimo mate-rial e o significado religioso que eles concederam ao labora do mandatobeneditino. Nesta palavra-chave da Regra assentou a sua lgica vivencialem economia autrcica desejada e completa.

    Saibamos garantir a salvaguarda e a valorizao, atempadas e per-durveis, destas memrias hidrulicas ancestrais ainda remanescentes, to-davia, desfiguradas e em decadncia silenciosa. Pelo seu interesse e rique-za de pluralidade dimensional, este ameaado acervo de iniciativa e heranacisterciense impe cuidados, apreo e respeito histrico que o resgatem doesquecimento.

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