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A construção da consciência das personagens no Realismo Mágico: polifonia e
discurso-indireto livre no caso do Memorial do Convento
Jacob dos Santos BIZIAK1
Magda Karolyna da Rosa VALGOI2
Resumo
Na obra Memorial do Convento, de José Saramago, observamos a presença de
personagens com um alto grau de densidade psicológica, assim como um narrador que
tem uma construção discursiva incomum. Além disso, o autor escreve o romance
lançando mão de uma característica estética ficcional denominada Realismo Mágico. A
partir da observação da presença dessas peculiaridades, buscamos entender a
representação ficcional e discursiva da realidade no Realismo Mágico, e como ocorre a
construção da autoconsciência das personagens por meio do discurso indireto livre do
narrador “saramágico” na obra Memorial do Convento.
Palavras-chave: Realismo Mágico. José Saramago. Discurso-indireto livre. Memorial
do Convento. Ficção contemporânea.
Abstract
In the novel Memorial do Convento, by José Saramago, it was possible to observe the
presence of characters with a high level of psychological density, as well as a narrator
who has an uncommon discursive construction. Besides that, the author writes the novel
using a fictional aesthetic characteristic called Magic Realism. From the observation of
the presence of the peculiarities in the novel, we seek to understand the fictional and
discursive representation of reality in Magic Realism, and how the construction of the
characters’ self-consciousness occurs through the free indirect speech of the narrator
“Saramagic” in the book Memorial do Convento.
1Pesquisador membro do E-L@DIS: Laboratório Discursivo (FFCLRP/USP), em que coordena o grupo
de estudos “Gêneros sexuais e discurso”; coordenador e pesquisador do G.E.Di (Grupo de Estudos do
Discurso, do IFPR, campus Palmas). Docente Dedicação Exclusiva do Instituto Federal do Paraná, IFPR,
Campus Palmas, Colegiado de Letras, Palmas, Paraná, Brasil. – [email protected]. 2 Graduada em Letras Português-Inglês pelo Instituto Federal do Paraná. Reside na cidade de São
Domingos, Santa Catarina, cep:89835000. [email protected]
Keywords: Magic Realism; José Saramago; free indirect speech; Memorial do
Convento; contemporaneous fiction.
Introdução
O romance Memorial do Convento (1982), de José Saramago, projetou o autor
internacionalmente e faz parte do grande acervo de obras da Literatura Portuguesa
Contemporânea. Nessa obra, contam-se duas histórias, concomitantemente: a não oficial
da construção do convento de Mafra, e a de Blimunda e Baltasar, duas personagens
ímpares do romance:
Dos nomes dessa geração, um não há de faltar, que é o da figura de
José Saramago. Sua narrativa densa, complexa e engenhosa, marcada
pela capacidade única de acompanhamento do fôlego da oralidade,
recria, até certo ponto, a forma do romance moderno: seja por dotá-lo
de uma capacidade ora interventiva ora reflexiva, como se a arte fosse
parte de um projeto engagée; seja por introduzir temas caros ao
pensamento humano, como os da história, da religião, da organização
social, da política, da existência humana (OLIVEIRA NETO, 2011,
p.15).
Na narrativa de Memorial do Convento, o autor articula história e ficção para
narrativizar a construção do Convento de Mafra e a construção da passarola, utilizando
um recurso estilístico conhecido como metaficção historiográfica. Hutcheon (1991,
p.22) versa sobre o conceito:
A maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a
narrativa - seja na literatura, na história ou na teoria - que tem
constituído o principal foco de atenção. A metaficção historiográflca
incorpora todos esses três domínios, ou seja, sua autoconsciência
teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção
historiográfica) passa a ser a base para o seu repensar e sua
reelaboração das formas e dos conteúdos do passado.
O romance abre portas para diferentes vieses de estudos, já que é uma narrativa
que conta com diversos traços estilísticos, desde a metaficção historiográfica até ao
Realismo Mágico, ambos conduzidos por um narrador que faz uso do discurso indireto
livre para conduzir a diegese e construir a consciência das personagens.
O plagiário “copia”, o impostor “faz como”, o artesão “dá forma”, mas
só o artista “cria”. Saramago pertence a esta última corporação e
talvez por isso defendia tão veementemente a verdade dos seus
narradores. Na sua letra reconhecemos as miragens representacionais
da República que oprimiram os homens, mas também vemos alegorias
ou metaficções que se tornaram “ficções alternativas” que se
sobrepõem às “ficções hegemônicas” (OLIVEIRA, 2011, p.151).
Neste sentido, buscamos pesquisar como o narrador textualiza a autoconsciência
dessas personagens, conduzindo a narrativa através de um estilo de linguagem
incomum, por meio, por exemplo, da ausência ou transgressão da pontuação. Além
disso, nessa perspectiva, o narrador saramaguiano é um tanto quanto incomum, o que
contribui com que suas obras tenham traços estilísticos únicos. Assim, este romance
utiliza-se de características estéticas específicas, como o Realismo Mágico e um
narrador cujo discurso manifesta-se através de múltiplas vozes por meio de uma relação
axiológica isonômica entre elas. É a partir dessa narração que pretendemos estudar a
consciência das personagens, como aponta Lopes (2007, p.35): “No caso de José
Saramago, o narrador se manifesta sob múltiplas vozes, e de sua relação de
conhecimento com a personagem, o romance extrai a sua maior riqueza.”
Neste artigo, buscamos entender como ocorre a construção da autoconsciência
das personagens desse romance através do discurso indireto livre do narrador e a relação
entre a ficção contemporânea e o Realismo Mágico. Para tanto, apresentamos
concepções teóricas norteadoras que referem-se à Literatura Contemporânea, à
Literatura Realista Mágica bem como ao Discurso Indireto Livre na perspectiva da
Análise Dialógica do Discurso3 – linha teórica adotada para entender como o narrador
constrói a consciência das personagens principais da obra. Por meio da discussão desses
pressupostos teóricos, foi possível refletir acerca da estética do romance.
Memorial e o Realismo Mágico
A obra possui elementos que fogem da representação cartesiana do mundo real
e personagens com habilidades peculiares. Entendemos que as representações
3 No grande campo definido como “Análise do Discurso”, certas denominações são problemáticas, uma
vez que demonstram não somente filiações teóricas, mas, acima de tudo, escolhas e posicionamentos
políticos na proposição de gestos de leituras. Com isso, por sintagmas como “Análise Dialógica do
Discurso”, estamos nos referindo ao proposto ao Bakhtin (e seu círculo) como estratégias de se pensar o
funcionamento da língua. Ou seja, neste artigo, não há opção pelo trabalho, por exemplo, pela Análise do
Discurso Pêcheuxtiana.
sobrenaturais que temos em Memorial do Convento tornam esta uma obra Realista
Mágica. Além disso, o discurso do narrador e das personagens permearam as análises
para a constatação da presença do Realismo Mágico na obra, sendo uma das
características desse recurso literário a naturalização do insólito. Podemos tomar, como
exemplo, a apresentação da personagem peculiar Blimunda por sua mãe:
E esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova,
que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era
fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito
demoníaco [...] condenada a ser açoitada em público e a oito anos de
degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e
mais de quem comigo vai nesta procissão, não ouvi que se falasse da
minha filha, é seu nome Blimunda, onde estará, onde estás Blimunda,
se não foste presa depois de mim, aqui hás de vir saber da tua mãe, e
eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que só para, que só
para te ver quero agora os olhos, a boca me amordaçaram, não os
olhos, os olhos que não te viram [...] Blimunda, olha só, olha com
esses teus olhos que tudo são capazes de ver [...] (SARAMAGO,
2013, p.55).
Blimunda é apresentada como uma personagem peculiar tanto por sua mãe
quanto pelo padre Bartolomeu "Só te direi que se trata de um grande mistério, voar é
uma simples coisa comparando com Blimunda” (ibidem, 2013, p.67). Ambas as
personagens referem-se à Blimunda como uma personagem incomum, de maneira que a
mãe chama a atenção do leitor para os olhos da personagem; e o padre, ao não explicitar
do que ela é capaz, deixa um miasma de suspense sobre Blimunda.
Por meio das vozes das personagens Blimunda Sete-Luas, Baltasar Sete-Sóis,
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão e do narrador, identificaremos vários traços do
Realismo Mágico na obra. Através, também, dos olhos de Blimunda é que teremos uma
das representações do Realismo Mágico na obra, pois, em jejum, os olhos dessa
personagem podem ver por dentro das pessoas e das coisas, como ela mesma conta a
Baltasar:
Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te
olhei por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem
soubeste o que estas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia
por dentro. Baltasar não teve tempo de responder, ainda procurava o
sentido para as palavras, e outras já se ouviam no quarto, incríveis, Eu
posso olhar por dentro da pessoas. [...] Que poder é esse teu, Vejo o
que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra,
vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das
roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando
muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o
não tivesse, Porquê, Porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-
se (Ibidem, 2013, p. 80-81).
Nesta passagem, Blimunda conta a Baltasar o seu mistério, e, através dele,
descobre-se que ela não é uma personagem que faz a representação cartesiana da
realidade. Blimunda é uma personagem incomum, com poder de enxergar, em jejum,
por dentro das demais personagens, o que permite a junção do natural com o
sobrenatural.
Na narrativa, Baltasar, quando descobre sobre o “poder” de Blimunda, trata do
assunto com naturalidade sem demonstrar estranhamento: “compreendia que o poder de
Blimunda tinha mais de condenação que de prémio” (Ibidem, 2013, p. 82). A própria
personagem Blimunda trata o poder que possui com naturalidade: “O meu dom não é
heresia, nem feitiçaria, os meus olhos são naturais [...] Eu só vejo o que está no mundo,
não vejo o que está fora dela, céu ou inferno, não digo rezas não faço passes de mãos, só
vejo.” (Ibidem, 2013, p. 81). Distintamente, os olhos das demais personagens
representam a realidade cartesianamente desempenhando sua função habitual, enquanto
isso não acontece com a Blimunda:
Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo do jejum para
se lhe aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando
enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não de
olhar,4 que esse pouco é os que fazem os que, olhos tendo, são outra
qualidade de cegos (Ibidem, 2013, p.83).
Através das análises das citações acima, podemos perceber a presença de
elementos insólitos nas características da personagem Blimunda. Ela transporta um dom
que a separa do seu mundo e das demais personagens, o fato de ela possuir esse dom e
de este ser tratado com naturalidade são o que torna a narrativa Realista Mágica. Dessa
forma, por meio da personagem Blimunda, temos dois elementos que caracterizam o
Realismo Mágico: a presença de uma personagem exótica e a inexistência de conflito
entre o natural e o sobrenatural. Como aponta Lopes (2007, p.56):
A representação literária, como vemos, anula a discriminação entre o
natural e o sobrenatural. Por meio do diálogo das personagens
observamos que tudo se iguala. A realidade mágica existe, não há o
que decifrar. Blimunda aprendeu as coisas sobre a vida e a morte,
4 Essa distinção entre os signos ver/reparar serão retomadas depois pela personagem de Raimundo Silva
em História do cerco de Lisboa – “Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da vista,
cada qual com a sua intensidade própria” (OLIVEIRA NETO, 2011, p.111).
sobre o pecado e o amor “na barriga da mãe”, onde permaneceu de
“olhos abertos”.
Os olhos de Blimunda são fundamentais na narrativa, pois é através deles que a
narrativa acontece, por meio deles é que a passarola irá voar, e é através dos olhos dessa
personagem que o autor nos mostra que é necessário ver a história, e não apenas olhá-la.
Encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. Vinha
do sul, dos lados de Pegões [...] Não comia há quase vinte a quatro
horas. Trazia algum alimento no alforje, mas, de cada vez que ia leva-
lo à boca, parecia que sobre a sua mão outra mão se pousava, e uma
voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado. [...] Meteu-se pela
Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na Igreja de Nossa Senhora
da Oliveira, em direção ao Rossio, repetia um itinerário de há vinte
oito anos. [...] Havia multidão em S. Domingos [...] Naquele extremo
arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba
enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma
nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse,
Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu
para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda” (Ibidem, 2013, p.
404 – 405).
Blimunda, mais uma vez, mostra a sua excentricidade através de seu dom, ao
jejuar por quase vinte e quatro horas para cumprir o que prometeu a Baltasar, recolher a
sua vontade. O Realismo Mágico está presente nesta citação pela sobrenaturalização dos
fatos e pelo tempo cíclico evidente no desfecho da narrativa. Não por acaso, a
representação do Realismo Mágico através da personagem apresenta um forte vínculo
político e ideológico.
Saramago e o Realismo Mágico
Saramago usa o Realismo Mágico para valorizá-lo, para dialogar com a
América-Latina. No momento em que ele utiliza esse procedimento estético para
(re)contar uma história que aconteceu na Europa, faz isso para causar um efeito de
sentido na obra, pois os seus discursos, em um primeiro momento, não remetem à
Europa, e, sim, a um continente visto pelo “Velho Mundo” como “inferior”. Saramago,
então, bebe nas inspirações latinas do Realismo Mágico, afim de valorizá-lo, criando,
assim, uma nova relação com o mundo subalternizado, com a história e com a ideologia.
O autor, ao utilizar o Realismo Mágico, estilo artístico de um mundo que não é
com quem o eixo cultural canônico quer dialogar, torna o estético também político. Ele
dialoga com o Realismo Mágico para valorizar essas outras vozes criativas, olha pra
história não pra valorizar aquilo que é consagrado, mas aquilo que é silenciado. Ao
valorizar essa estética do chamado “terceiro mundo”, Memorial dialoga muito mais com
uma cultura latino-americana do que com a europeia, trazendo atualizações discursivas e
dialógicas que não são eurocêntricas, embora a história de Memorial aconteça na
Europa.
O Realismo Mágico reflete a postura de Saramago com relação a suas práticas
discursivas sobre a verdade e a realidade, que é de questionar, de desconstruir, relendo a
tradição. Essa relação entre história consagrada e ficção, na obra Memorial do
Convento, faz parte do fenômeno contemporâneo chamado de metaficção
historiográfica, termo cunhado por Hutcheon (1991). Os romances na metaficção
historiográfica tratam o passado não como nostalgia, mas como uma reelaboração
crítica, sendo auto reflexivos e abordando, ironicamente, as questões das realidades
políticas e históricas, questionando de maneira crítica a história contada pela cultura
dominante.
O efeito de sentido que está sendo construído na obra é de uma nova relação
com o mundo subalterno. Saramago, ao unir a metaficção com o Realismo Mágico, trata
da alteridade do mundo subalterno, pois a relação do enunciador com as personagens
reconhece a alteridade no romance. Portanto, Saramago, ao usar um estilo artístico
típico e consagrado primeiramente no mundo subalterno (como vemos na obra de
Gabriel Garcia Marquez), utiliza-o para contar a história do romance e trazer uma nova
relação de alteridade com mundo subalterno.
O narrador saramágico5
O discurso indireto livre é muito utilizado pelo narrador de Memorial do
Convento, no romance não há indicações como travessão ou passagem da primeira para
a terceira pessoa, quando se trocam as vozes do narrador para o personagem ou vice e
versa. Através de uma espécie de reprodução do ritmo oral de narrar, a fala do narrador
5 Antonietti Lopes (2007, p.36) utiliza o termo “saramágico” em sua dissertação de mestrado, na qual
aponta “Palavra derivada de Saramágico, termo empregado por Orjan Abrahansson em um artigo da
Camões: Revista de Letras e Culturas Lusófonas (out./dez., 1998, n.3, p.20).” O termo "mágico" é
referido ao narrador de Saramago para ressaltar os efeitos que ele consegue operar na narrativa: confundir
pontos de vista, ironias, a capacidade de trazer pontos de vista esquecidos.
e das personagens é separada apenas por uma letra inicial maiúscula e, por vezes, com
vírgula.
A narrativa conta, ainda, com a presença de longos diálogos de várias
personagens e comentários do narrador em relação a estes: “A luz cinzenta do quarto
amanheceu de azul para aqueles lados, assim pensaria Baltasar se tivesse aprendido
destas coisas” (SARAMAGO, 2013, p.80, grifo nosso); “Podes falar com el-rei,
espantou-se Baltasar, e acrescentou, Pode falar a el-rei e conhecia a mãe de Blimunda,
que foi condenada pela Inquisição, que padre é este padre, palavras estas últimas que
Sete-Sóis não terá dito em voz alta, só inquieto as pensou” (ibidem, p. 63, grifo nosso);
“apesar de tão próxima a madrugada, parece escura noite. Outro se enganaria, mas não
Baltasar, que sempre acorda a mesma hora, muito antes de nascer o sol, hábito inquieto
do soldado[...]” (ibidem, p.79, grifo nosso). Pelas citações anteriores, percebemos que
esse narrador assume pensamentos e palavras, que, em um primeiro momento, são
atribuídos as personagens.
O leitor deve estar sempre atento à leitura para conseguir identificar quem está
falando; caso contrário poderá se perder e não conseguir identificar de quem é a fala, e,
mesmo estando, atento, muitas vezes, ficará na dúvida de quem estará falando, como no
exemplo a seguir: “Foi Blimunda quem veio abrir a porta. Estava escurecendo a tarde,
mas ela reconheceu o vulto do padre que desmontava, quatro anos não é tanto tempo
assim, beijou-lhe a mão, não andassem por ali vizinhos curiosos e seria diferente a
saudação” (Ibidem, 2013, p. 131, grifo nosso). Mais do que um traço estilístico, o
discurso indireto livre do narrador parece estabelecer uma relação de igualdade com as
demais vozes do romance. Através deste recurso discursivo, percebe-se que o narrador
não se diferencia dessas vozes, pois ele mistura-se a elas a ponto de confundir a sua voz
com as demais.
Há momentos em que a voz do narrador cede lugar à voz das personagens sem
conceder a eles a palavra de modo explícito. Como no exemplo abaixo, o narrador
aparece pouco, dando espaço para o diálogo entre as personagens Baltasar (sublinhado)
e Blimunda (negrito), que acontece por meio do discurso indireto-livre:
Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também inquieto,
Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas,
Eu posso, Não acredito, Primeiro, quiseste saber, não descansavas
enquanto não soubesses, agora já sabes e dizes que não acreditas,
antes assim, mas daqui para o futuro não me tires o pão, Só
acredito se fores capaz de dizer o que está dentro de mim agora, Não
vejo se não estiver em jejum, além disso fiz promessa de que a ti
nunca veria por dentro, Torno a dizer que estás a mangar comigo, E
eu torno a dizer que é verdade, Como hei de ter a certeza, Amanhã
não comerei quando acordar, sairemos depois de casa e eu vou te
dizer o que vir, mas para ti nunca olharei, nem te porás na minha
frente, queres assim [...] ( SARAMAGO, 2013, p. 81, grifo nosso).
Como dito anteriormente, o narrador do romance Memorial do Convento conta
duas histórias, a do passado histórico da construção do convento de Mafra e a de
Baltasar, Blimunda e do Padre Bartolomeu, os quais constroem a passarola. Na
primeira, retrata-se a relação das personagens D João V e sua esposa a Rainha Maria
Ana, e ainda são narrados muitos acontecimentos religiosos, tais como os autos de fé, as
procissões, a relação entre a Igreja e o Rei.
O narrador critica os costumes religiosos, como veremos na passagem abaixo,
em que se refere à quaresma, período de quarenta dias, quando os católicos e algumas
outras comunidades cristãs se dedicam à penitência em preparação para a comemoração
da ressureição de Cristo. A crítica feita pelo narrador é a prática do jejum, este
representa sinal de arrependimento e é recomendado pela Igreja como instrumento de
santificação da alma, de controle do corpo e equilíbrio emocional, sendo uma forma de
penitência oferecida a Deus pelos pecados cometidos pelo homem; mas, através do que
o narrador conta, percebe-se que há muito mais de hipocrisia nessa prática do que
penitência:
No geral do ano há quem morra por muito ter comido durante a vida
toda [...] Mas não falta, por isso mesmo falecendo mais facilmente,
quem morra por ter comido pouco durante toda a vida, ou que dela
resistiu a um triste passadio de sardinha e arroz, mais alface que deu a
alcunha aos moradores, e carne quando faz anos sua majestade. [...]
Mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo
para um lado e de escasso para o outro [...] Porém, a quaresma, como
o sol, quando nasce, é para todos. Correu o entrudo essas ruas, quem
pôde empanturrou-se de galinha e de carneiro [...] bebeu-se vinho até
o arroto e ao vómito. [...] Agora é tempo de pagar os cometidos
excessos, mortificar a alma, para que o corpo finja arrepender-se, ele
rebelde, ele insurreto, este corpo parco e porco da pocilga que é
Lisboa (SARAMAGO, 2013, p. 27-28).
O narrador, ao se encarregar de criticar as crenças religiosas e narrar a
construção do convento, dialoga com e recupera vozes de personagens marginalizadas:
Em relação à construção do convento, ao narrar a história sob uma
perspectiva diversa da história tida como oficial, o narrador, de certa
forma, desloca o poder para as mãos dos homens comuns, que, mesmo
obrigados a erigir uma obra com a qual não têm envolvimento algum,
são os que detêm o poder de transformação do real. Ao elemento
popular é dado um espaço que a história suprimiu. Contam histórias
de suas vidas, histórias de fome e miséria. É dada voz a cada um deles
(LOPES, 2007, p. 45).
Vejamos uma dessas histórias na citação abaixo, na qual o narrador dá voz a
uma personagem que trabalhada na construção do convento para que este conte sua
história, por meio da qual podemos perceber o tratamento que os “homens comuns”
recebem:
O meu nome é Julião Mau-Tempo, sou natural do Alentejo e vim
trabalhar para Mafra por causa das grandes fomes de que padece a
minha província, nem sei como resta gente viva, se não fosse termo-
nos acostumado a comer de erves e bolota, estou que já teria morrido
tudo, é um dó de alma ver uma terra tão grande, só pode saber aquém
alguma vez por lá passou, e não é mais que charneca, poucas são as
terras fabricadas e semeadas, o resto mato e solidão, e é um pais de
guerras, com os espanhóis entrando e saindo em caça sua., agora está
a paz em sossego, quem adivinhará por quanto tempo, mas os reis e os
fidalgos, quando não é dia de nos fazerem correr e morrer a nós,
fazem correr e morrer a caça, por isso ai do pobre que for apanhado
com um coelho na saca, ainda que o tivesse achado já morto de
doença ou velhice, o menos que lhe pudesse suceder é levar uma dúzia
de vergastadas pelas costas, para aprender que quando Deus fez os
coelhos foi para o divertimento e panela dos senhores, só valiam a
pena as vergastadas se pudéssemos ficar com a caça, eu se vim para
Mafra, foi porque o vigário da minha freguesia apregoava nas igrejas
que quem viesse passava a ser criado de el-rei, não bem criado, mas
como se o fosse, e que os criados de el-rei, isto dizia ele, não sofrem
provações de boca e andam com as carnes tapadas, ainda melhor que
no paraíso [...] afinal saiu-me tudo mentira, do paraíso não falo, que
não sou desse tempo, mas de Mafra sim, se não consigo morrer de
fome é porque gasto tudo quanto ganho (SARAMAGO, 2013, p.261-
262).
As várias vozes sociais presentes no romance textualizam-se devido à posição do
narrador, que, algumas vezes, narra os acontecimentos de forma irônica e, em outras, dá
voz às personagens, criando, assim, a multiplicidade de posicionamentos presentes no
romance. Lopes (2011) considera que a melhor forma de explicar essa prática é por
meio do conceito bakhtiniano de polifonia, que, segundo Bezerra (2008, apud Brait,
2014, p. 193-196):
No enfoque polifônico, a autoconsciência da personagem é o traço
dominante na construção da sua imagem, e isso pressupõe uma
posição radicalmente nova do autor em relação a personagem. [...] O
que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do
grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas esse
regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou
recria mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no
homem um “outro eu para si” infinito e inacabável. [...] A polifonia se
define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do
romance, de multiplicidade de vozes e consciências independentes e
imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências equipolentes todas
representantes de um determinado universo e marcadas pela
peculiaridade desse universo. Procedimento típico do romance
polifônico “o autor não fala pela personagem, não a reduz a seu
objeto, mas, do distanciamento típico dessa modalidade romanesca,
deixa que ela fale.
Portanto, o narrador de Memorial do Convento dá voz às personagens, mas não
as tornando submissas a ele, mas as apresentando de forma equipotente; por isso,
podemos considerar que o narrador se apresenta como polifônico, devido à forma como
atualiza o procedimento discursivo dialógico, sem utilizar o travessão para separar a fala
das personagens da sua. Percebemos, então, a polifonia, de maneira que as múltiplas
vozes têm o mesmo valor que o narrador. Como vimos nas citações da obra, este deixa
essas vozes apresentarem-se com autonomia, cada personagem exprimindo sua própria
posição, participando, assim, não só da temática narrada, mas do processo de construção
e reelaboração das histórias.
Ficcionaliza-se o passado, e o leitor é trazido para o presente, uma vez que a
enunciação possui marcas do contemporâneo, estabelecendo uma alternância entre
maneiras de se construir histórias: a oficial (representada pela família real e pela
construção do convento de Mafra) e a ficcional (representada pelas personagens
Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete Luas e a construção do objeto voador: a passarola).
Através dessas representações, o narrador apresentou diversos pontos de vista,
criticando e ironizando os discursos das tradições religiosas e, com o reforço estético do
Realismo Mágico, problematizou a relação entre história e a ficção.
As personagens e a construção da autoconsciência
Entendemos que autoconsciência no texto acontece por meio do reconhecimento
da alteridade; ou seja, a autoconsciência só existe no texto por conta da relação
explicitada com o outro: “No outro manifestam-se ambos os princípios da atitude
axiológica em sua peculiaridade: a atitude para comigo mesmo e a atitude para com o
outro.” (BAKHTIN, 2011, p. 52):
Verificamos a diferença axiológica profunda, essencial e de princípio
entre o eu e o outro, diferença essa que tem caráter de acontecimento:
fora dessa diferenciação não é possível nenhum ato axiologicamente
ponderável. O eu e o outro são as categorias axiológicas basilares, que
pela primeira vez tornaram possível qualquer juízo de valor efetivo, e
um momento desse juízo, ou melhor, a diretriz axiológica da
consciência não ocorre no ato da verdadeira acepção do termo mas em
casa vivenciamento e até na sensação mais simples (Ibidem, p. 173-
174).
Levando em consideração os apontamentos de Bakhtin, percebe-se que entender
a relação entre o eu e o outro é fundamental para que possamos entender a construção
de uma ideia sobre a consciência. No romance Memorial do Convento, de Saramago,
essa relação entre o eu e o outro textualiza-se, principalmente, através do discurso
indireto livre, por meio do qual as vozes do narrador e das personagens misturam-se a
ponto de o leitor perder a noção de quem está falando, fazendo presente a ideia de que
“eu sou o outro”. Pelo fato de os discursos entrecruzaram-se, parece que o narrador cria
com esse outro – personagem – uma relação de igualdade. A autoconsciência é
atravessada pelo outro, valorizando o antes tido como subalternidade.
Bakhtin considera que a personagem deve ser capaz de “revelar-se
dialogicamente, a elucidar, captar aspectos de si mesma nas consciências alheias e
construir escapatórias, protelando e, com isso, expondo sua última palavra no processo
da mais tensa interação com as outras consciências” (BAKHTIN, 1981, p. 61). A
respeito desse estilo dialógico e a relação deste com a consciência, Zoppi (2005, p.111)
traz algumas explicações baseada nos estudos de Bakhtin:
Relações dialógicas que, segundo Bakhtin, definem o acontecimento
da linguagem são as relações de sentido que se estabelecem entre os
enunciados produzidos na interação verbal. Nesse sentido, o conceito
de dialogismo sustenta-se na noção de vozes que se enfrentam em um
mesmo enunciado, e que representam elementos históricos, sociais e
linguísticos, que atravessam a enunciação. Assim, as vozes são sempre
vozes sociais que manifestam as consciências valorativas, que reagem,
a, isto é, que compreendem ativamente os enunciados. Sendo que,
para Bakhtin a consciência individual “só pode surgir e se afirmar
como realidade através da encarnação material em signos” (...) e, dado
que os signos só aprecem em indivíduos socialmente organizados, o
conceito de consciência individual só pode ser entendido como um
“fato sócio ideológico a lógica da consciência é a lógica da
comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social”
(...).
Através da relação dialógica que as personagens têm umas com as outras e com
o narrador, entra-se em contato com o que Bakhtin chama de um todo essencial do
romance que atuaria na relação dialógica entre as personagens que enunciam um jogo de
vozes no qual acontece a interação entre as consciências. Bakhtin trata desse
procedimento discursivo utilizando como exemplo as personagens das obras de
Dostoievski:
Dostoievski nunca deixa nada que tenha a mínima importância fora
dos limites da consciência de suas personagens centrais (isto é
daqueles heróis que participam em pé de igualdade dos grandes
diálogos dos seus romances); ele coloca em contato dialógico com o
todo essencial do texto que faz parte dos seus romances. Cada
“verdade” alheia, representada em algum romance, é infalivelmente
introduzida no campo de visão dialógico de todas as outras
personagens centrais do romance (BAKHTIN, 1981, p. 83).
Ainda segundo Bakhtin (ibidem, p. 52), “a personagem interessa a Dostoievski
como ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma [...] não importa o que
sua personagem é no mundo mas, acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e
o que ela é para si mesma”. Dessa forma, por meio da voz e dos diálogos que a
personagem trava, no discurso, é que a sua autoconsciência é construída. Ou seja, a
personagem autoconsciente deixa de ser rígida e determinada pelo narrador quando ela
tem voz no romance, passando, através do seu discurso, a participar da construção de si
e do narrador. Bakhtin aponta que, por meio do campo de visão da personagem, desde a
realidade dela até os costumes que a rodeiam, há o seu processo da autoconsciência. Ou
seja, todas as manifestações de enunciação são valorizadas em sua situação de
ocorrência, de forma que não há voz superior a nenhuma outra. Cada sujeito que
enuncia é situado e contribui para a construção global de sentido da obra.
A personagem se torna relativamente livre e independente, pois tudo
aquilo que no plano do autor a tornara definida, por assim dizer
sentenciada, aquilo que a qualificara de uma por todas como imagem
acabada da realidade, tudo isso passa agora a funcionar não como
forma que conclui a personagem, mas como material de sua
autoconsciência (BAKHTIN, 1981, p. 58).
A personagem, quando enuncia, está construindo a sua autoconsciência. Isso só
é possível em um romance polifônico, no qual as vozes, por mais que sejam regidas pelo
autor-criador, manifestam-se com autonomia:
Entretanto, não se podem contemplar, analisar e definir as
consciências alheias como objetos, como coisas: comunicar-se com
elas só é possível dialogicamente. Pensar nelas implica conversar com
elas, pois do contrário elas voltariam imediatamente para nós o seu
aspecto objetificado: elas calam, fecham-se e imobilizam-se nas
imagens objetificadas e acabadas (ibidem, p. 77).
O mundo da personagem é visto pelo ponto de vista desta, ou, como diz
Bakhtin, através do seu campo de visão. Veremos a seguir um trecho de Memorial do
Convento, no qual a personagem Blimunda está dialogando com outras duas
personagens da obra, o padre Bartolomeu e o músico Escarlate, o qual não entende
como o objeto voador que Blimunda, Bartolomeu e o padre estão construindo poderá
sair voando, se está em um local fechado:
Mas, havendo esta ave de voar, como sairá, se não cabe na porta.
Baltasar e o padre Bartolomeu Lourenço olharam-se perplexos, e
depois para fora. Blimunda está ali, com um cesto cheio de cerejas, e
respondia, Há um tempo para construir e um tempo para destruir,
umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão a
baixo, e todas as paredes, se for preciso. Esta é que é Blimunda, disse
o padre[...] (SARAMAGO, 2013, p. 186).
Só conseguimos perceber a autoconsciência da personagem Blimunda, porque as
personagens têm voz no romance. A comunicação dialógica presente na obra em
consonância com a polifônica acontece através do discurso indireto livre, o qual permite
que estas construam as suas autoconsciências, uma vez que as vozes aparecem no
romance através dessa prática discursiva. Tal posição permite que as personagens sejam
autoconscientes, pois, por meio dessa estilística, é que o sujeito tem voz. Na passagem
acima, foi Blimunda quem respondeu ao questionamento levantado pelo músico: através
de sua concepção acerca do assunto, percebe-se que o narrador dá voz à personagem
para que, através dela, responda ao músico. “A lógica da autoconsciência admite apenas
certos métodos artísticos de revelação. Revelar e representar o herói só é possível
interrogando-o e provocando-o, mas sem fazer dele uma imagem predeterminante e
conclusiva” (BAKHTIN, 1981, p. 74).
Vejamos, na citação a seguir, um diálogo entre as personagens Baltasar e Blimunda,
através do qual elas constroem suas consciências por meio de suas reflexões, trazendo
questionamentos, através dos quais Blimunda faz as suas considerações acerca da
religião:
[...] e Blimunda disse, Esperava ver Cristo crucificado, ou ressurreto
em glória, e vi uma nuvem fechada, Não penses mais no que viste,
Penso, como não hei de pensar, se o que está dentro da hóstia é o que
está dentro do homem, que é a religião, afinal, falta-nos aqui o Padre
Bartolomeu Loureço, talvez ele soubesse explicar-nos este mistério,
Talvez não soubesse, talvez nem tudo possa ser explicado [...]
(SARAMAGO, 2013, p.141).
Como já discutimos anteriormente, Bakhtin considera que uma personagem para
ser autoconsciente não pode ser fechada, nem manipulada pelo narrador. Em Memorial,
podemos perceber que as personagens são autoconscientes, pois são elas que constroem
suas acepções acerca do mundo e delas mesmas em situação de igualdade com relação
ao narrador. Por exemplo, podemos perceber que a personagem soldado maneta Baltasar
Sete-Sóis constrói sua autoconsciência, por exemplo, quando indagado pela personagem
Blimunda. Ele passa a refletir acerca de suas crenças, através dessa reflexão é que
Baltasar busca uma resposta para a pergunta, e esta emana da consciência da
personagem:
[...] e tu, Baltasar, qual é a tua opinião, Desde que comecei a construir
a máquina de voar, deixei de pensar nessas coisas, talvez Deus seja
um, talvez seja três, pode bem ser que seja quatro, a diferença não se
nota, se calhar Deus é o único soldado vivo de um exército de cem
mil, por isso é ao mesmo tempo soldado, capitão e general, e também
maneta, como me foi explicado, e isso, sim, passei a acreditar [...]
(SARAMAGO, 2013, p. 190-191).
Percebemos como a autoconsciência das personagens principais – Blimunda
Sete-Luas, Baltasar Sete-Sóis – autoelucidam-se, mas somente pelo diálogo com a
alteridade. Na passagem acima, a personagem Baltasar dá a sua opinião sobre Deus e a
Santíssima Trindade, revelando que não pensa com frequência nesses assuntos
religiosos. Isso constitui-se a partir das experiências vivenciadas pela personagem que já
foi soldado e lutou na guerra. “A representação do sujeito como efeito de determinações
históricas e ideológicas que o constituem enquanto eu da enunciação” (ZOPPI, 2005,
p.116). A aparente realidade e os costumes que rodeiam a personagem inserem-se no
seu processo de autoconsciência, quando ela usa de suas experiências para falar sobre o
que lhe foi questionado. Por exemplo, em suas considerações sobre o assunto, a
personagem usa a palavra “talvez” para expressar sua opinião; sendo assim, a opinião
dela não é acabada. Esta é uma característica das personagens autoconscientes, de forma
que Baltasar expressa sua concepção sobre o assunto que lhe foi questionado, mas de
maneira inconclusa. “A sua autoconsciência vive de sua inconclusibilidade, de seu
caráter não fechado e de sua insolubilidade” (BAKHTIN, 1981, p. 60). Blimunda, por
seu turno, estabelece uma nova relação com os discursos religiosos, com as ideologias
presentes em seu cotidiano:
[...] para que precisamos deles, pergunto eu, Sempre ouvi dizer que os
santos são necessários à nossa salvação, Eles não se salvaram, Quem
te disse tal, É que eu sinto dentro de mim, Que sentes dentro de ti, Que
ninguém se salva, ninguém se perde, É pecado pensar assim, o pecado
não existe, só há morte e vida. A vida está antes da morte, Enganas-te,
Baltasar, a morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem
somos, por isso é que não morremos de vez, E quando vamos para
debaixo da terra, e quando Francisco Marques fica esmagado sob o
carro da pedra, não será isso morte sem recurso, se estamos falando
dele, nasce Francisco Marques, Mas ele não o sabe, Tal como nós não
sabemos bastante quem somos, e, apesar disso, estamos vivos,
Blimunda, onde foi que aprendeste essas coisas, Estive de olhos
abertos na barriga da minha mãe, de lá via tudo (SARAMAGO, 2013,
p. 375).
Blimunda ao questionar a necessidade dos santos e dar a sua opinião sobre a
finalidade desses, problematiza e desmistifica a serventia dos santos bem como a crença
em pecados. A personagem constrói a sua autoconsciência através da relação que
estabelece com a religião e suas crenças: a opinião da personagem sobre os santos, a
salvação, os pecados a vida e a morte acontecem através dessa relação que a
personagem trava com a religião. Ela desmistifica crenças religiosas como o pecado,
utilizado para coagir as pessoas através da ideia de salvação. Ao expor sua opinião,
Blimunda luta contra os dogmas religiosos inseridos em sua realidade, como, por
exemplo, que os santos são a salvação e que falar sobre determinados assuntos na
contramão do que a religião expõe é pecado, ela supera essas definições acabadas: “o
homem não é uma magnitude final e definida, que possa servir de base a construção e
qualquer cálculo, o homem é livre, e por isso pode violar quaisquer leis que lhe sejam
impostas” ( BAKHTIN, 1982, p. 67). E Blimunda faz isso, violando acepções religiosas
impostas pelo Santo Oficio.
A personagem Blimunda tem semelhanças com o herói de Dostoiévski:
“sempre procura destruir a base das palavras dos outros sobre si, que o torna acabado e
aparentemente morto” (ibidem, p.67). Através desse diálogo, Blimunda “reponde por si
mesma e se revela livremente” (ibidem, p.67), quando diz que via de dentro da barriga
de sua mãe. Em contrapartida, a partir da autoconsciência da personagem, que parece
tudo conhecer, questionando e estabelecendo uma nova relação com a religião, temos a
consciência da personagem Baltasar: “Sempre ouvi dizer que os santos são necessários
à nossa salvação”, sua consciência é baseada nas suas experiências pessoais. Quando
ela fala sobre o pecado, percebemos o quanto está inserida nas práticas religiosas que a
rodeiam: a crença que Baltasar tem nos santos, no pecado e na salvação surgem devido
à relação que ele estabelece com a religião, que é de acreditar nas verdades
estabelecidas por essa, diferentemente de Blimunda, que conhece e questiona. Cada
personagem estabelece uma relação diferente com a religião e seus dogmas. Mais uma
vez, percebe-se a autoconsciência das personagens atravessada pela sua relação com o
outro e a profundidade da personalidade de cada personagem diante da sua interação
com a religião.
Considerações finais
Sendo a naturalização do insólito uma das características do Realismo Mágico,
através da análise da obra, percebemos a presença do insólito na elaboração da
personagem principal Blimunda. No romance Memorial do Convento, o Realismo
Mágico é representado através dos poderes da personagem feminina central, que são
narrados com naturalidade por meio do narrador e da voz das personagens Baltasar
Sete-Sóis e Padre Bartolomeu de Gusmão. Articula-se a realidade histórica com a
ficção, de forma que o narrador revela, naturalmente, o dom mágico da personagem
Blimunda sem suscitar dúvidas a respeito dos acontecimentos sobrenaturais que
acontecem na narrativa.
O Realismo Mágico relaciona-se, também, com o romance contemporâneo. Por
meio do conceito de real e o de ficção, entendemos que, tanto no romance
contemporâneo quanto no Realismo Mágico, não há mais apenas a representação
cartesiana do mundo, e, sim, uma nova postura do narrador perante a possibilidade do
real. Assim, já não se utiliza o tradicional conceito de ficção, o qual era entendido como
o contrário de “real” ou uma visão deturpada da “verdade”, e, sim, a ficção comparece
como questionadora do seu papel, revendo sentidos de personagens subalternizadas;
bem como o empreendido pela Realismo Mágico, já que, através dele, conta-se uma
“nova” versão da construção do convento de Mafra.
Considerando que o romance contemporâneo produz textos os quais questionam
a cultura totalizante e universalizante, Memorial do Convento também o faz, através da
nova perspectiva pela qual conta a construção do convento de Mafra e, também, por
meio do narrador, que dá voz às personagens marginalizadas. O foco nas diferenças
força os leitores a examinar seus próprios valores e crenças, à medida que o
questionamento faz pensar que todos os discursos provêm de uma elaboração humana;
portanto, nos fazem refletir sobre a existência de verdades, antes postas como
universais. Assim, encontramos outra característica estilística, a metaficção
historiográfica, recusando a história enquanto pretensão de verdade, através do
entendimento de que esta, bem como a ficção, são discursos; logo, efeitos de sentido.
Com isso, desmistifica-se não só uma história, bem como o conceito de representação
da realidade, a qual não reproduz transparentemente o mundo real.
Quanto à postura do narrador, este utiliza o discurso indireto livre, o qual faz
com que muitas vozes entrelacem-se à sua, em uma relação de igualdade com as demais
vozes do romance, não se diferenciando das outras, tornando o romance polifônico. As
personagens principais do romance que nos propusemos a analisar constroem a sua
autoconsciência justamente por conta dessa postura do narrador, pois este, através do
discurso indireto livre, dá voz aos personagens, mantendo uma relação de igualdade
com elas e não tentando domesticá-las, deixando, assim, que façam suas enunciações. A
partir dessas, podemos perceber a percepção de si das personagens, que ocorre através
da relação que estabelecem com as manifestações de alteridade, reconhecidas como
constitutivas de todas as identidades.
Diante do que propusemos, acreditamos haver realizado reflexões acerca da
construção da autoconsciência das personagens Baltasar e Blimunda e do narrador
“saramágico”. Entendemos que o Realismo Mágico vai além de um procedimento
estético: neste caso, é também político. A aproximação entre a história e ficção
presentes no romance está aliada ao Realismo Mágico, por ambos terem uma
abordagem de representação do real que torna, assim, Memorial do Convento um
romance aliado ao funcionamento discursivo da ficção no quadro mais amplo da
produção artística e estética contemporâneas.
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