a construção da consciência das personagens no realismo … · degredo no reino de angola, e...

19
A construção da consciência das personagens no Realismo Mágico: polifonia e discurso-indireto livre no caso do Memorial do Convento Jacob dos Santos BIZIAK 1 Magda Karolyna da Rosa VALGOI 2 Resumo Na obra Memorial do Convento, de José Saramago, observamos a presença de personagens com um alto grau de densidade psicológica, assim como um narrador que tem uma construção discursiva incomum. Além disso, o autor escreve o romance lançando mão de uma característica estética ficcional denominada Realismo Mágico. A partir da observação da presença dessas peculiaridades, buscamos entender a representação ficcional e discursiva da realidade no Realismo Mágico, e como ocorre a construção da autoconsciência das personagens por meio do discurso indireto livre do narrador “saramágico” na obra Memorial do Convento. Palavras-chave: Realismo Mágico. José Saramago. Discurso-indireto livre. Memorial do Convento. Ficção contemporânea. Abstract In the novel Memorial do Convento, by José Saramago, it was possible to observe the presence of characters with a high level of psychological density, as well as a narrator who has an uncommon discursive construction. Besides that, the author writes the novel using a fictional aesthetic characteristic called Magic Realism. From the observation of the presence of the peculiarities in the novel, we seek to understand the fictional and discursive representation of reality in Magic Realism, and how the construction of the characters’ self-consciousness occurs through the free indirect speech of the narrator “Saramagic” in the book Memorial do Convento. 1 Pesquisador membro do E-L@DIS: Laboratório Discursivo (FFCLRP/USP), em que coordena o grupo de estudos “Gêneros sexuais e discurso”; coordenador e pesquisador do G.E.Di (Grupo de Estudos do Discurso, do IFPR, campus Palmas). Docente Dedicação Exclusiva do Instituto Federal do Paraná, IFPR, Campus Palmas, Colegiado de Letras, Palmas, Paraná, Brasil. [email protected]. 2 Graduada em Letras Português-Inglês pelo Instituto Federal do Paraná. Reside na cidade de São Domingos, Santa Catarina, cep:89835000. [email protected]

Upload: vanmien

Post on 02-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

A construção da consciência das personagens no Realismo Mágico: polifonia e

discurso-indireto livre no caso do Memorial do Convento

Jacob dos Santos BIZIAK1

Magda Karolyna da Rosa VALGOI2

Resumo

Na obra Memorial do Convento, de José Saramago, observamos a presença de

personagens com um alto grau de densidade psicológica, assim como um narrador que

tem uma construção discursiva incomum. Além disso, o autor escreve o romance

lançando mão de uma característica estética ficcional denominada Realismo Mágico. A

partir da observação da presença dessas peculiaridades, buscamos entender a

representação ficcional e discursiva da realidade no Realismo Mágico, e como ocorre a

construção da autoconsciência das personagens por meio do discurso indireto livre do

narrador “saramágico” na obra Memorial do Convento.

Palavras-chave: Realismo Mágico. José Saramago. Discurso-indireto livre. Memorial

do Convento. Ficção contemporânea.

Abstract

In the novel Memorial do Convento, by José Saramago, it was possible to observe the

presence of characters with a high level of psychological density, as well as a narrator

who has an uncommon discursive construction. Besides that, the author writes the novel

using a fictional aesthetic characteristic called Magic Realism. From the observation of

the presence of the peculiarities in the novel, we seek to understand the fictional and

discursive representation of reality in Magic Realism, and how the construction of the

characters’ self-consciousness occurs through the free indirect speech of the narrator

“Saramagic” in the book Memorial do Convento.

1Pesquisador membro do E-L@DIS: Laboratório Discursivo (FFCLRP/USP), em que coordena o grupo

de estudos “Gêneros sexuais e discurso”; coordenador e pesquisador do G.E.Di (Grupo de Estudos do

Discurso, do IFPR, campus Palmas). Docente Dedicação Exclusiva do Instituto Federal do Paraná, IFPR,

Campus Palmas, Colegiado de Letras, Palmas, Paraná, Brasil. – [email protected]. 2 Graduada em Letras Português-Inglês pelo Instituto Federal do Paraná. Reside na cidade de São

Domingos, Santa Catarina, cep:89835000. [email protected]

Page 2: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

Keywords: Magic Realism; José Saramago; free indirect speech; Memorial do

Convento; contemporaneous fiction.

Introdução

O romance Memorial do Convento (1982), de José Saramago, projetou o autor

internacionalmente e faz parte do grande acervo de obras da Literatura Portuguesa

Contemporânea. Nessa obra, contam-se duas histórias, concomitantemente: a não oficial

da construção do convento de Mafra, e a de Blimunda e Baltasar, duas personagens

ímpares do romance:

Dos nomes dessa geração, um não há de faltar, que é o da figura de

José Saramago. Sua narrativa densa, complexa e engenhosa, marcada

pela capacidade única de acompanhamento do fôlego da oralidade,

recria, até certo ponto, a forma do romance moderno: seja por dotá-lo

de uma capacidade ora interventiva ora reflexiva, como se a arte fosse

parte de um projeto engagée; seja por introduzir temas caros ao

pensamento humano, como os da história, da religião, da organização

social, da política, da existência humana (OLIVEIRA NETO, 2011,

p.15).

Na narrativa de Memorial do Convento, o autor articula história e ficção para

narrativizar a construção do Convento de Mafra e a construção da passarola, utilizando

um recurso estilístico conhecido como metaficção historiográfica. Hutcheon (1991,

p.22) versa sobre o conceito:

A maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a

narrativa - seja na literatura, na história ou na teoria - que tem

constituído o principal foco de atenção. A metaficção historiográflca

incorpora todos esses três domínios, ou seja, sua autoconsciência

teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção

historiográfica) passa a ser a base para o seu repensar e sua

reelaboração das formas e dos conteúdos do passado.

O romance abre portas para diferentes vieses de estudos, já que é uma narrativa

que conta com diversos traços estilísticos, desde a metaficção historiográfica até ao

Realismo Mágico, ambos conduzidos por um narrador que faz uso do discurso indireto

livre para conduzir a diegese e construir a consciência das personagens.

Page 3: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

O plagiário “copia”, o impostor “faz como”, o artesão “dá forma”, mas

só o artista “cria”. Saramago pertence a esta última corporação e

talvez por isso defendia tão veementemente a verdade dos seus

narradores. Na sua letra reconhecemos as miragens representacionais

da República que oprimiram os homens, mas também vemos alegorias

ou metaficções que se tornaram “ficções alternativas” que se

sobrepõem às “ficções hegemônicas” (OLIVEIRA, 2011, p.151).

Neste sentido, buscamos pesquisar como o narrador textualiza a autoconsciência

dessas personagens, conduzindo a narrativa através de um estilo de linguagem

incomum, por meio, por exemplo, da ausência ou transgressão da pontuação. Além

disso, nessa perspectiva, o narrador saramaguiano é um tanto quanto incomum, o que

contribui com que suas obras tenham traços estilísticos únicos. Assim, este romance

utiliza-se de características estéticas específicas, como o Realismo Mágico e um

narrador cujo discurso manifesta-se através de múltiplas vozes por meio de uma relação

axiológica isonômica entre elas. É a partir dessa narração que pretendemos estudar a

consciência das personagens, como aponta Lopes (2007, p.35): “No caso de José

Saramago, o narrador se manifesta sob múltiplas vozes, e de sua relação de

conhecimento com a personagem, o romance extrai a sua maior riqueza.”

Neste artigo, buscamos entender como ocorre a construção da autoconsciência

das personagens desse romance através do discurso indireto livre do narrador e a relação

entre a ficção contemporânea e o Realismo Mágico. Para tanto, apresentamos

concepções teóricas norteadoras que referem-se à Literatura Contemporânea, à

Literatura Realista Mágica bem como ao Discurso Indireto Livre na perspectiva da

Análise Dialógica do Discurso3 – linha teórica adotada para entender como o narrador

constrói a consciência das personagens principais da obra. Por meio da discussão desses

pressupostos teóricos, foi possível refletir acerca da estética do romance.

Memorial e o Realismo Mágico

A obra possui elementos que fogem da representação cartesiana do mundo real

e personagens com habilidades peculiares. Entendemos que as representações

3 No grande campo definido como “Análise do Discurso”, certas denominações são problemáticas, uma

vez que demonstram não somente filiações teóricas, mas, acima de tudo, escolhas e posicionamentos

políticos na proposição de gestos de leituras. Com isso, por sintagmas como “Análise Dialógica do

Discurso”, estamos nos referindo ao proposto ao Bakhtin (e seu círculo) como estratégias de se pensar o

funcionamento da língua. Ou seja, neste artigo, não há opção pelo trabalho, por exemplo, pela Análise do

Discurso Pêcheuxtiana.

Page 4: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

sobrenaturais que temos em Memorial do Convento tornam esta uma obra Realista

Mágica. Além disso, o discurso do narrador e das personagens permearam as análises

para a constatação da presença do Realismo Mágico na obra, sendo uma das

características desse recurso literário a naturalização do insólito. Podemos tomar, como

exemplo, a apresentação da personagem peculiar Blimunda por sua mãe:

E esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova,

que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era

fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito

demoníaco [...] condenada a ser açoitada em público e a oito anos de

degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e

mais de quem comigo vai nesta procissão, não ouvi que se falasse da

minha filha, é seu nome Blimunda, onde estará, onde estás Blimunda,

se não foste presa depois de mim, aqui hás de vir saber da tua mãe, e

eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que só para, que só

para te ver quero agora os olhos, a boca me amordaçaram, não os

olhos, os olhos que não te viram [...] Blimunda, olha só, olha com

esses teus olhos que tudo são capazes de ver [...] (SARAMAGO,

2013, p.55).

Blimunda é apresentada como uma personagem peculiar tanto por sua mãe

quanto pelo padre Bartolomeu "Só te direi que se trata de um grande mistério, voar é

uma simples coisa comparando com Blimunda” (ibidem, 2013, p.67). Ambas as

personagens referem-se à Blimunda como uma personagem incomum, de maneira que a

mãe chama a atenção do leitor para os olhos da personagem; e o padre, ao não explicitar

do que ela é capaz, deixa um miasma de suspense sobre Blimunda.

Por meio das vozes das personagens Blimunda Sete-Luas, Baltasar Sete-Sóis,

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão e do narrador, identificaremos vários traços do

Realismo Mágico na obra. Através, também, dos olhos de Blimunda é que teremos uma

das representações do Realismo Mágico na obra, pois, em jejum, os olhos dessa

personagem podem ver por dentro das pessoas e das coisas, como ela mesma conta a

Baltasar:

Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te

olhei por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem

soubeste o que estas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia

por dentro. Baltasar não teve tempo de responder, ainda procurava o

sentido para as palavras, e outras já se ouviam no quarto, incríveis, Eu

posso olhar por dentro da pessoas. [...] Que poder é esse teu, Vejo o

que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra,

vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das

roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando

muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o

Page 5: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

não tivesse, Porquê, Porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-

se (Ibidem, 2013, p. 80-81).

Nesta passagem, Blimunda conta a Baltasar o seu mistério, e, através dele,

descobre-se que ela não é uma personagem que faz a representação cartesiana da

realidade. Blimunda é uma personagem incomum, com poder de enxergar, em jejum,

por dentro das demais personagens, o que permite a junção do natural com o

sobrenatural.

Na narrativa, Baltasar, quando descobre sobre o “poder” de Blimunda, trata do

assunto com naturalidade sem demonstrar estranhamento: “compreendia que o poder de

Blimunda tinha mais de condenação que de prémio” (Ibidem, 2013, p. 82). A própria

personagem Blimunda trata o poder que possui com naturalidade: “O meu dom não é

heresia, nem feitiçaria, os meus olhos são naturais [...] Eu só vejo o que está no mundo,

não vejo o que está fora dela, céu ou inferno, não digo rezas não faço passes de mãos, só

vejo.” (Ibidem, 2013, p. 81). Distintamente, os olhos das demais personagens

representam a realidade cartesianamente desempenhando sua função habitual, enquanto

isso não acontece com a Blimunda:

Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo do jejum para

se lhe aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando

enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não de

olhar,4 que esse pouco é os que fazem os que, olhos tendo, são outra

qualidade de cegos (Ibidem, 2013, p.83).

Através das análises das citações acima, podemos perceber a presença de

elementos insólitos nas características da personagem Blimunda. Ela transporta um dom

que a separa do seu mundo e das demais personagens, o fato de ela possuir esse dom e

de este ser tratado com naturalidade são o que torna a narrativa Realista Mágica. Dessa

forma, por meio da personagem Blimunda, temos dois elementos que caracterizam o

Realismo Mágico: a presença de uma personagem exótica e a inexistência de conflito

entre o natural e o sobrenatural. Como aponta Lopes (2007, p.56):

A representação literária, como vemos, anula a discriminação entre o

natural e o sobrenatural. Por meio do diálogo das personagens

observamos que tudo se iguala. A realidade mágica existe, não há o

que decifrar. Blimunda aprendeu as coisas sobre a vida e a morte,

4 Essa distinção entre os signos ver/reparar serão retomadas depois pela personagem de Raimundo Silva

em História do cerco de Lisboa – “Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da vista,

cada qual com a sua intensidade própria” (OLIVEIRA NETO, 2011, p.111).

Page 6: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

sobre o pecado e o amor “na barriga da mãe”, onde permaneceu de

“olhos abertos”.

Os olhos de Blimunda são fundamentais na narrativa, pois é através deles que a

narrativa acontece, por meio deles é que a passarola irá voar, e é através dos olhos dessa

personagem que o autor nos mostra que é necessário ver a história, e não apenas olhá-la.

Encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. Vinha

do sul, dos lados de Pegões [...] Não comia há quase vinte a quatro

horas. Trazia algum alimento no alforje, mas, de cada vez que ia leva-

lo à boca, parecia que sobre a sua mão outra mão se pousava, e uma

voz lhe dizia, Não comas, que o tempo é chegado. [...] Meteu-se pela

Rua Nova dos Ferros, virou para a direita na Igreja de Nossa Senhora

da Oliveira, em direção ao Rossio, repetia um itinerário de há vinte

oito anos. [...] Havia multidão em S. Domingos [...] Naquele extremo

arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba

enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma

nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse,

Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu

para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda” (Ibidem, 2013, p.

404 – 405).

Blimunda, mais uma vez, mostra a sua excentricidade através de seu dom, ao

jejuar por quase vinte e quatro horas para cumprir o que prometeu a Baltasar, recolher a

sua vontade. O Realismo Mágico está presente nesta citação pela sobrenaturalização dos

fatos e pelo tempo cíclico evidente no desfecho da narrativa. Não por acaso, a

representação do Realismo Mágico através da personagem apresenta um forte vínculo

político e ideológico.

Saramago e o Realismo Mágico

Saramago usa o Realismo Mágico para valorizá-lo, para dialogar com a

América-Latina. No momento em que ele utiliza esse procedimento estético para

(re)contar uma história que aconteceu na Europa, faz isso para causar um efeito de

sentido na obra, pois os seus discursos, em um primeiro momento, não remetem à

Europa, e, sim, a um continente visto pelo “Velho Mundo” como “inferior”. Saramago,

então, bebe nas inspirações latinas do Realismo Mágico, afim de valorizá-lo, criando,

assim, uma nova relação com o mundo subalternizado, com a história e com a ideologia.

O autor, ao utilizar o Realismo Mágico, estilo artístico de um mundo que não é

com quem o eixo cultural canônico quer dialogar, torna o estético também político. Ele

Page 7: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

dialoga com o Realismo Mágico para valorizar essas outras vozes criativas, olha pra

história não pra valorizar aquilo que é consagrado, mas aquilo que é silenciado. Ao

valorizar essa estética do chamado “terceiro mundo”, Memorial dialoga muito mais com

uma cultura latino-americana do que com a europeia, trazendo atualizações discursivas e

dialógicas que não são eurocêntricas, embora a história de Memorial aconteça na

Europa.

O Realismo Mágico reflete a postura de Saramago com relação a suas práticas

discursivas sobre a verdade e a realidade, que é de questionar, de desconstruir, relendo a

tradição. Essa relação entre história consagrada e ficção, na obra Memorial do

Convento, faz parte do fenômeno contemporâneo chamado de metaficção

historiográfica, termo cunhado por Hutcheon (1991). Os romances na metaficção

historiográfica tratam o passado não como nostalgia, mas como uma reelaboração

crítica, sendo auto reflexivos e abordando, ironicamente, as questões das realidades

políticas e históricas, questionando de maneira crítica a história contada pela cultura

dominante.

O efeito de sentido que está sendo construído na obra é de uma nova relação

com o mundo subalterno. Saramago, ao unir a metaficção com o Realismo Mágico, trata

da alteridade do mundo subalterno, pois a relação do enunciador com as personagens

reconhece a alteridade no romance. Portanto, Saramago, ao usar um estilo artístico

típico e consagrado primeiramente no mundo subalterno (como vemos na obra de

Gabriel Garcia Marquez), utiliza-o para contar a história do romance e trazer uma nova

relação de alteridade com mundo subalterno.

O narrador saramágico5

O discurso indireto livre é muito utilizado pelo narrador de Memorial do

Convento, no romance não há indicações como travessão ou passagem da primeira para

a terceira pessoa, quando se trocam as vozes do narrador para o personagem ou vice e

versa. Através de uma espécie de reprodução do ritmo oral de narrar, a fala do narrador

5 Antonietti Lopes (2007, p.36) utiliza o termo “saramágico” em sua dissertação de mestrado, na qual

aponta “Palavra derivada de Saramágico, termo empregado por Orjan Abrahansson em um artigo da

Camões: Revista de Letras e Culturas Lusófonas (out./dez., 1998, n.3, p.20).” O termo "mágico" é

referido ao narrador de Saramago para ressaltar os efeitos que ele consegue operar na narrativa: confundir

pontos de vista, ironias, a capacidade de trazer pontos de vista esquecidos.

Page 8: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

e das personagens é separada apenas por uma letra inicial maiúscula e, por vezes, com

vírgula.

A narrativa conta, ainda, com a presença de longos diálogos de várias

personagens e comentários do narrador em relação a estes: “A luz cinzenta do quarto

amanheceu de azul para aqueles lados, assim pensaria Baltasar se tivesse aprendido

destas coisas” (SARAMAGO, 2013, p.80, grifo nosso); “Podes falar com el-rei,

espantou-se Baltasar, e acrescentou, Pode falar a el-rei e conhecia a mãe de Blimunda,

que foi condenada pela Inquisição, que padre é este padre, palavras estas últimas que

Sete-Sóis não terá dito em voz alta, só inquieto as pensou” (ibidem, p. 63, grifo nosso);

“apesar de tão próxima a madrugada, parece escura noite. Outro se enganaria, mas não

Baltasar, que sempre acorda a mesma hora, muito antes de nascer o sol, hábito inquieto

do soldado[...]” (ibidem, p.79, grifo nosso). Pelas citações anteriores, percebemos que

esse narrador assume pensamentos e palavras, que, em um primeiro momento, são

atribuídos as personagens.

O leitor deve estar sempre atento à leitura para conseguir identificar quem está

falando; caso contrário poderá se perder e não conseguir identificar de quem é a fala, e,

mesmo estando, atento, muitas vezes, ficará na dúvida de quem estará falando, como no

exemplo a seguir: “Foi Blimunda quem veio abrir a porta. Estava escurecendo a tarde,

mas ela reconheceu o vulto do padre que desmontava, quatro anos não é tanto tempo

assim, beijou-lhe a mão, não andassem por ali vizinhos curiosos e seria diferente a

saudação” (Ibidem, 2013, p. 131, grifo nosso). Mais do que um traço estilístico, o

discurso indireto livre do narrador parece estabelecer uma relação de igualdade com as

demais vozes do romance. Através deste recurso discursivo, percebe-se que o narrador

não se diferencia dessas vozes, pois ele mistura-se a elas a ponto de confundir a sua voz

com as demais.

Há momentos em que a voz do narrador cede lugar à voz das personagens sem

conceder a eles a palavra de modo explícito. Como no exemplo abaixo, o narrador

aparece pouco, dando espaço para o diálogo entre as personagens Baltasar (sublinhado)

e Blimunda (negrito), que acontece por meio do discurso indireto-livre:

Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também inquieto,

Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas,

Eu posso, Não acredito, Primeiro, quiseste saber, não descansavas

enquanto não soubesses, agora já sabes e dizes que não acreditas,

antes assim, mas daqui para o futuro não me tires o pão, Só

Page 9: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

acredito se fores capaz de dizer o que está dentro de mim agora, Não

vejo se não estiver em jejum, além disso fiz promessa de que a ti

nunca veria por dentro, Torno a dizer que estás a mangar comigo, E

eu torno a dizer que é verdade, Como hei de ter a certeza, Amanhã

não comerei quando acordar, sairemos depois de casa e eu vou te

dizer o que vir, mas para ti nunca olharei, nem te porás na minha

frente, queres assim [...] ( SARAMAGO, 2013, p. 81, grifo nosso).

Como dito anteriormente, o narrador do romance Memorial do Convento conta

duas histórias, a do passado histórico da construção do convento de Mafra e a de

Baltasar, Blimunda e do Padre Bartolomeu, os quais constroem a passarola. Na

primeira, retrata-se a relação das personagens D João V e sua esposa a Rainha Maria

Ana, e ainda são narrados muitos acontecimentos religiosos, tais como os autos de fé, as

procissões, a relação entre a Igreja e o Rei.

O narrador critica os costumes religiosos, como veremos na passagem abaixo,

em que se refere à quaresma, período de quarenta dias, quando os católicos e algumas

outras comunidades cristãs se dedicam à penitência em preparação para a comemoração

da ressureição de Cristo. A crítica feita pelo narrador é a prática do jejum, este

representa sinal de arrependimento e é recomendado pela Igreja como instrumento de

santificação da alma, de controle do corpo e equilíbrio emocional, sendo uma forma de

penitência oferecida a Deus pelos pecados cometidos pelo homem; mas, através do que

o narrador conta, percebe-se que há muito mais de hipocrisia nessa prática do que

penitência:

No geral do ano há quem morra por muito ter comido durante a vida

toda [...] Mas não falta, por isso mesmo falecendo mais facilmente,

quem morra por ter comido pouco durante toda a vida, ou que dela

resistiu a um triste passadio de sardinha e arroz, mais alface que deu a

alcunha aos moradores, e carne quando faz anos sua majestade. [...]

Mas esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo

para um lado e de escasso para o outro [...] Porém, a quaresma, como

o sol, quando nasce, é para todos. Correu o entrudo essas ruas, quem

pôde empanturrou-se de galinha e de carneiro [...] bebeu-se vinho até

o arroto e ao vómito. [...] Agora é tempo de pagar os cometidos

excessos, mortificar a alma, para que o corpo finja arrepender-se, ele

rebelde, ele insurreto, este corpo parco e porco da pocilga que é

Lisboa (SARAMAGO, 2013, p. 27-28).

O narrador, ao se encarregar de criticar as crenças religiosas e narrar a

construção do convento, dialoga com e recupera vozes de personagens marginalizadas:

Page 10: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

Em relação à construção do convento, ao narrar a história sob uma

perspectiva diversa da história tida como oficial, o narrador, de certa

forma, desloca o poder para as mãos dos homens comuns, que, mesmo

obrigados a erigir uma obra com a qual não têm envolvimento algum,

são os que detêm o poder de transformação do real. Ao elemento

popular é dado um espaço que a história suprimiu. Contam histórias

de suas vidas, histórias de fome e miséria. É dada voz a cada um deles

(LOPES, 2007, p. 45).

Vejamos uma dessas histórias na citação abaixo, na qual o narrador dá voz a

uma personagem que trabalhada na construção do convento para que este conte sua

história, por meio da qual podemos perceber o tratamento que os “homens comuns”

recebem:

O meu nome é Julião Mau-Tempo, sou natural do Alentejo e vim

trabalhar para Mafra por causa das grandes fomes de que padece a

minha província, nem sei como resta gente viva, se não fosse termo-

nos acostumado a comer de erves e bolota, estou que já teria morrido

tudo, é um dó de alma ver uma terra tão grande, só pode saber aquém

alguma vez por lá passou, e não é mais que charneca, poucas são as

terras fabricadas e semeadas, o resto mato e solidão, e é um pais de

guerras, com os espanhóis entrando e saindo em caça sua., agora está

a paz em sossego, quem adivinhará por quanto tempo, mas os reis e os

fidalgos, quando não é dia de nos fazerem correr e morrer a nós,

fazem correr e morrer a caça, por isso ai do pobre que for apanhado

com um coelho na saca, ainda que o tivesse achado já morto de

doença ou velhice, o menos que lhe pudesse suceder é levar uma dúzia

de vergastadas pelas costas, para aprender que quando Deus fez os

coelhos foi para o divertimento e panela dos senhores, só valiam a

pena as vergastadas se pudéssemos ficar com a caça, eu se vim para

Mafra, foi porque o vigário da minha freguesia apregoava nas igrejas

que quem viesse passava a ser criado de el-rei, não bem criado, mas

como se o fosse, e que os criados de el-rei, isto dizia ele, não sofrem

provações de boca e andam com as carnes tapadas, ainda melhor que

no paraíso [...] afinal saiu-me tudo mentira, do paraíso não falo, que

não sou desse tempo, mas de Mafra sim, se não consigo morrer de

fome é porque gasto tudo quanto ganho (SARAMAGO, 2013, p.261-

262).

As várias vozes sociais presentes no romance textualizam-se devido à posição do

narrador, que, algumas vezes, narra os acontecimentos de forma irônica e, em outras, dá

voz às personagens, criando, assim, a multiplicidade de posicionamentos presentes no

romance. Lopes (2011) considera que a melhor forma de explicar essa prática é por

meio do conceito bakhtiniano de polifonia, que, segundo Bezerra (2008, apud Brait,

2014, p. 193-196):

Page 11: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

No enfoque polifônico, a autoconsciência da personagem é o traço

dominante na construção da sua imagem, e isso pressupõe uma

posição radicalmente nova do autor em relação a personagem. [...] O

que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do

grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas esse

regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou

recria mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no

homem um “outro eu para si” infinito e inacabável. [...] A polifonia se

define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do

romance, de multiplicidade de vozes e consciências independentes e

imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências equipolentes todas

representantes de um determinado universo e marcadas pela

peculiaridade desse universo. Procedimento típico do romance

polifônico “o autor não fala pela personagem, não a reduz a seu

objeto, mas, do distanciamento típico dessa modalidade romanesca,

deixa que ela fale.

Portanto, o narrador de Memorial do Convento dá voz às personagens, mas não

as tornando submissas a ele, mas as apresentando de forma equipotente; por isso,

podemos considerar que o narrador se apresenta como polifônico, devido à forma como

atualiza o procedimento discursivo dialógico, sem utilizar o travessão para separar a fala

das personagens da sua. Percebemos, então, a polifonia, de maneira que as múltiplas

vozes têm o mesmo valor que o narrador. Como vimos nas citações da obra, este deixa

essas vozes apresentarem-se com autonomia, cada personagem exprimindo sua própria

posição, participando, assim, não só da temática narrada, mas do processo de construção

e reelaboração das histórias.

Ficcionaliza-se o passado, e o leitor é trazido para o presente, uma vez que a

enunciação possui marcas do contemporâneo, estabelecendo uma alternância entre

maneiras de se construir histórias: a oficial (representada pela família real e pela

construção do convento de Mafra) e a ficcional (representada pelas personagens

Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete Luas e a construção do objeto voador: a passarola).

Através dessas representações, o narrador apresentou diversos pontos de vista,

criticando e ironizando os discursos das tradições religiosas e, com o reforço estético do

Realismo Mágico, problematizou a relação entre história e a ficção.

As personagens e a construção da autoconsciência

Entendemos que autoconsciência no texto acontece por meio do reconhecimento

da alteridade; ou seja, a autoconsciência só existe no texto por conta da relação

explicitada com o outro: “No outro manifestam-se ambos os princípios da atitude

Page 12: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

axiológica em sua peculiaridade: a atitude para comigo mesmo e a atitude para com o

outro.” (BAKHTIN, 2011, p. 52):

Verificamos a diferença axiológica profunda, essencial e de princípio

entre o eu e o outro, diferença essa que tem caráter de acontecimento:

fora dessa diferenciação não é possível nenhum ato axiologicamente

ponderável. O eu e o outro são as categorias axiológicas basilares, que

pela primeira vez tornaram possível qualquer juízo de valor efetivo, e

um momento desse juízo, ou melhor, a diretriz axiológica da

consciência não ocorre no ato da verdadeira acepção do termo mas em

casa vivenciamento e até na sensação mais simples (Ibidem, p. 173-

174).

Levando em consideração os apontamentos de Bakhtin, percebe-se que entender

a relação entre o eu e o outro é fundamental para que possamos entender a construção

de uma ideia sobre a consciência. No romance Memorial do Convento, de Saramago,

essa relação entre o eu e o outro textualiza-se, principalmente, através do discurso

indireto livre, por meio do qual as vozes do narrador e das personagens misturam-se a

ponto de o leitor perder a noção de quem está falando, fazendo presente a ideia de que

“eu sou o outro”. Pelo fato de os discursos entrecruzaram-se, parece que o narrador cria

com esse outro – personagem – uma relação de igualdade. A autoconsciência é

atravessada pelo outro, valorizando o antes tido como subalternidade.

Bakhtin considera que a personagem deve ser capaz de “revelar-se

dialogicamente, a elucidar, captar aspectos de si mesma nas consciências alheias e

construir escapatórias, protelando e, com isso, expondo sua última palavra no processo

da mais tensa interação com as outras consciências” (BAKHTIN, 1981, p. 61). A

respeito desse estilo dialógico e a relação deste com a consciência, Zoppi (2005, p.111)

traz algumas explicações baseada nos estudos de Bakhtin:

Relações dialógicas que, segundo Bakhtin, definem o acontecimento

da linguagem são as relações de sentido que se estabelecem entre os

enunciados produzidos na interação verbal. Nesse sentido, o conceito

de dialogismo sustenta-se na noção de vozes que se enfrentam em um

mesmo enunciado, e que representam elementos históricos, sociais e

linguísticos, que atravessam a enunciação. Assim, as vozes são sempre

vozes sociais que manifestam as consciências valorativas, que reagem,

a, isto é, que compreendem ativamente os enunciados. Sendo que,

para Bakhtin a consciência individual “só pode surgir e se afirmar

como realidade através da encarnação material em signos” (...) e, dado

que os signos só aprecem em indivíduos socialmente organizados, o

conceito de consciência individual só pode ser entendido como um

“fato sócio ideológico a lógica da consciência é a lógica da

Page 13: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social”

(...).

Através da relação dialógica que as personagens têm umas com as outras e com

o narrador, entra-se em contato com o que Bakhtin chama de um todo essencial do

romance que atuaria na relação dialógica entre as personagens que enunciam um jogo de

vozes no qual acontece a interação entre as consciências. Bakhtin trata desse

procedimento discursivo utilizando como exemplo as personagens das obras de

Dostoievski:

Dostoievski nunca deixa nada que tenha a mínima importância fora

dos limites da consciência de suas personagens centrais (isto é

daqueles heróis que participam em pé de igualdade dos grandes

diálogos dos seus romances); ele coloca em contato dialógico com o

todo essencial do texto que faz parte dos seus romances. Cada

“verdade” alheia, representada em algum romance, é infalivelmente

introduzida no campo de visão dialógico de todas as outras

personagens centrais do romance (BAKHTIN, 1981, p. 83).

Ainda segundo Bakhtin (ibidem, p. 52), “a personagem interessa a Dostoievski

como ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma [...] não importa o que

sua personagem é no mundo mas, acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e

o que ela é para si mesma”. Dessa forma, por meio da voz e dos diálogos que a

personagem trava, no discurso, é que a sua autoconsciência é construída. Ou seja, a

personagem autoconsciente deixa de ser rígida e determinada pelo narrador quando ela

tem voz no romance, passando, através do seu discurso, a participar da construção de si

e do narrador. Bakhtin aponta que, por meio do campo de visão da personagem, desde a

realidade dela até os costumes que a rodeiam, há o seu processo da autoconsciência. Ou

seja, todas as manifestações de enunciação são valorizadas em sua situação de

ocorrência, de forma que não há voz superior a nenhuma outra. Cada sujeito que

enuncia é situado e contribui para a construção global de sentido da obra.

A personagem se torna relativamente livre e independente, pois tudo

aquilo que no plano do autor a tornara definida, por assim dizer

sentenciada, aquilo que a qualificara de uma por todas como imagem

acabada da realidade, tudo isso passa agora a funcionar não como

forma que conclui a personagem, mas como material de sua

autoconsciência (BAKHTIN, 1981, p. 58).

Page 14: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

A personagem, quando enuncia, está construindo a sua autoconsciência. Isso só

é possível em um romance polifônico, no qual as vozes, por mais que sejam regidas pelo

autor-criador, manifestam-se com autonomia:

Entretanto, não se podem contemplar, analisar e definir as

consciências alheias como objetos, como coisas: comunicar-se com

elas só é possível dialogicamente. Pensar nelas implica conversar com

elas, pois do contrário elas voltariam imediatamente para nós o seu

aspecto objetificado: elas calam, fecham-se e imobilizam-se nas

imagens objetificadas e acabadas (ibidem, p. 77).

O mundo da personagem é visto pelo ponto de vista desta, ou, como diz

Bakhtin, através do seu campo de visão. Veremos a seguir um trecho de Memorial do

Convento, no qual a personagem Blimunda está dialogando com outras duas

personagens da obra, o padre Bartolomeu e o músico Escarlate, o qual não entende

como o objeto voador que Blimunda, Bartolomeu e o padre estão construindo poderá

sair voando, se está em um local fechado:

Mas, havendo esta ave de voar, como sairá, se não cabe na porta.

Baltasar e o padre Bartolomeu Lourenço olharam-se perplexos, e

depois para fora. Blimunda está ali, com um cesto cheio de cerejas, e

respondia, Há um tempo para construir e um tempo para destruir,

umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão a

baixo, e todas as paredes, se for preciso. Esta é que é Blimunda, disse

o padre[...] (SARAMAGO, 2013, p. 186).

Só conseguimos perceber a autoconsciência da personagem Blimunda, porque as

personagens têm voz no romance. A comunicação dialógica presente na obra em

consonância com a polifônica acontece através do discurso indireto livre, o qual permite

que estas construam as suas autoconsciências, uma vez que as vozes aparecem no

romance através dessa prática discursiva. Tal posição permite que as personagens sejam

autoconscientes, pois, por meio dessa estilística, é que o sujeito tem voz. Na passagem

acima, foi Blimunda quem respondeu ao questionamento levantado pelo músico: através

de sua concepção acerca do assunto, percebe-se que o narrador dá voz à personagem

para que, através dela, responda ao músico. “A lógica da autoconsciência admite apenas

certos métodos artísticos de revelação. Revelar e representar o herói só é possível

interrogando-o e provocando-o, mas sem fazer dele uma imagem predeterminante e

conclusiva” (BAKHTIN, 1981, p. 74).

Page 15: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

Vejamos, na citação a seguir, um diálogo entre as personagens Baltasar e Blimunda,

através do qual elas constroem suas consciências por meio de suas reflexões, trazendo

questionamentos, através dos quais Blimunda faz as suas considerações acerca da

religião:

[...] e Blimunda disse, Esperava ver Cristo crucificado, ou ressurreto

em glória, e vi uma nuvem fechada, Não penses mais no que viste,

Penso, como não hei de pensar, se o que está dentro da hóstia é o que

está dentro do homem, que é a religião, afinal, falta-nos aqui o Padre

Bartolomeu Loureço, talvez ele soubesse explicar-nos este mistério,

Talvez não soubesse, talvez nem tudo possa ser explicado [...]

(SARAMAGO, 2013, p.141).

Como já discutimos anteriormente, Bakhtin considera que uma personagem para

ser autoconsciente não pode ser fechada, nem manipulada pelo narrador. Em Memorial,

podemos perceber que as personagens são autoconscientes, pois são elas que constroem

suas acepções acerca do mundo e delas mesmas em situação de igualdade com relação

ao narrador. Por exemplo, podemos perceber que a personagem soldado maneta Baltasar

Sete-Sóis constrói sua autoconsciência, por exemplo, quando indagado pela personagem

Blimunda. Ele passa a refletir acerca de suas crenças, através dessa reflexão é que

Baltasar busca uma resposta para a pergunta, e esta emana da consciência da

personagem:

[...] e tu, Baltasar, qual é a tua opinião, Desde que comecei a construir

a máquina de voar, deixei de pensar nessas coisas, talvez Deus seja

um, talvez seja três, pode bem ser que seja quatro, a diferença não se

nota, se calhar Deus é o único soldado vivo de um exército de cem

mil, por isso é ao mesmo tempo soldado, capitão e general, e também

maneta, como me foi explicado, e isso, sim, passei a acreditar [...]

(SARAMAGO, 2013, p. 190-191).

Percebemos como a autoconsciência das personagens principais – Blimunda

Sete-Luas, Baltasar Sete-Sóis – autoelucidam-se, mas somente pelo diálogo com a

alteridade. Na passagem acima, a personagem Baltasar dá a sua opinião sobre Deus e a

Santíssima Trindade, revelando que não pensa com frequência nesses assuntos

religiosos. Isso constitui-se a partir das experiências vivenciadas pela personagem que já

foi soldado e lutou na guerra. “A representação do sujeito como efeito de determinações

históricas e ideológicas que o constituem enquanto eu da enunciação” (ZOPPI, 2005,

p.116). A aparente realidade e os costumes que rodeiam a personagem inserem-se no

seu processo de autoconsciência, quando ela usa de suas experiências para falar sobre o

Page 16: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

que lhe foi questionado. Por exemplo, em suas considerações sobre o assunto, a

personagem usa a palavra “talvez” para expressar sua opinião; sendo assim, a opinião

dela não é acabada. Esta é uma característica das personagens autoconscientes, de forma

que Baltasar expressa sua concepção sobre o assunto que lhe foi questionado, mas de

maneira inconclusa. “A sua autoconsciência vive de sua inconclusibilidade, de seu

caráter não fechado e de sua insolubilidade” (BAKHTIN, 1981, p. 60). Blimunda, por

seu turno, estabelece uma nova relação com os discursos religiosos, com as ideologias

presentes em seu cotidiano:

[...] para que precisamos deles, pergunto eu, Sempre ouvi dizer que os

santos são necessários à nossa salvação, Eles não se salvaram, Quem

te disse tal, É que eu sinto dentro de mim, Que sentes dentro de ti, Que

ninguém se salva, ninguém se perde, É pecado pensar assim, o pecado

não existe, só há morte e vida. A vida está antes da morte, Enganas-te,

Baltasar, a morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem

somos, por isso é que não morremos de vez, E quando vamos para

debaixo da terra, e quando Francisco Marques fica esmagado sob o

carro da pedra, não será isso morte sem recurso, se estamos falando

dele, nasce Francisco Marques, Mas ele não o sabe, Tal como nós não

sabemos bastante quem somos, e, apesar disso, estamos vivos,

Blimunda, onde foi que aprendeste essas coisas, Estive de olhos

abertos na barriga da minha mãe, de lá via tudo (SARAMAGO, 2013,

p. 375).

Blimunda ao questionar a necessidade dos santos e dar a sua opinião sobre a

finalidade desses, problematiza e desmistifica a serventia dos santos bem como a crença

em pecados. A personagem constrói a sua autoconsciência através da relação que

estabelece com a religião e suas crenças: a opinião da personagem sobre os santos, a

salvação, os pecados a vida e a morte acontecem através dessa relação que a

personagem trava com a religião. Ela desmistifica crenças religiosas como o pecado,

utilizado para coagir as pessoas através da ideia de salvação. Ao expor sua opinião,

Blimunda luta contra os dogmas religiosos inseridos em sua realidade, como, por

exemplo, que os santos são a salvação e que falar sobre determinados assuntos na

contramão do que a religião expõe é pecado, ela supera essas definições acabadas: “o

homem não é uma magnitude final e definida, que possa servir de base a construção e

qualquer cálculo, o homem é livre, e por isso pode violar quaisquer leis que lhe sejam

impostas” ( BAKHTIN, 1982, p. 67). E Blimunda faz isso, violando acepções religiosas

impostas pelo Santo Oficio.

Page 17: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

A personagem Blimunda tem semelhanças com o herói de Dostoiévski:

“sempre procura destruir a base das palavras dos outros sobre si, que o torna acabado e

aparentemente morto” (ibidem, p.67). Através desse diálogo, Blimunda “reponde por si

mesma e se revela livremente” (ibidem, p.67), quando diz que via de dentro da barriga

de sua mãe. Em contrapartida, a partir da autoconsciência da personagem, que parece

tudo conhecer, questionando e estabelecendo uma nova relação com a religião, temos a

consciência da personagem Baltasar: “Sempre ouvi dizer que os santos são necessários

à nossa salvação”, sua consciência é baseada nas suas experiências pessoais. Quando

ela fala sobre o pecado, percebemos o quanto está inserida nas práticas religiosas que a

rodeiam: a crença que Baltasar tem nos santos, no pecado e na salvação surgem devido

à relação que ele estabelece com a religião, que é de acreditar nas verdades

estabelecidas por essa, diferentemente de Blimunda, que conhece e questiona. Cada

personagem estabelece uma relação diferente com a religião e seus dogmas. Mais uma

vez, percebe-se a autoconsciência das personagens atravessada pela sua relação com o

outro e a profundidade da personalidade de cada personagem diante da sua interação

com a religião.

Considerações finais

Sendo a naturalização do insólito uma das características do Realismo Mágico,

através da análise da obra, percebemos a presença do insólito na elaboração da

personagem principal Blimunda. No romance Memorial do Convento, o Realismo

Mágico é representado através dos poderes da personagem feminina central, que são

narrados com naturalidade por meio do narrador e da voz das personagens Baltasar

Sete-Sóis e Padre Bartolomeu de Gusmão. Articula-se a realidade histórica com a

ficção, de forma que o narrador revela, naturalmente, o dom mágico da personagem

Blimunda sem suscitar dúvidas a respeito dos acontecimentos sobrenaturais que

acontecem na narrativa.

O Realismo Mágico relaciona-se, também, com o romance contemporâneo. Por

meio do conceito de real e o de ficção, entendemos que, tanto no romance

contemporâneo quanto no Realismo Mágico, não há mais apenas a representação

cartesiana do mundo, e, sim, uma nova postura do narrador perante a possibilidade do

real. Assim, já não se utiliza o tradicional conceito de ficção, o qual era entendido como

o contrário de “real” ou uma visão deturpada da “verdade”, e, sim, a ficção comparece

Page 18: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

como questionadora do seu papel, revendo sentidos de personagens subalternizadas;

bem como o empreendido pela Realismo Mágico, já que, através dele, conta-se uma

“nova” versão da construção do convento de Mafra.

Considerando que o romance contemporâneo produz textos os quais questionam

a cultura totalizante e universalizante, Memorial do Convento também o faz, através da

nova perspectiva pela qual conta a construção do convento de Mafra e, também, por

meio do narrador, que dá voz às personagens marginalizadas. O foco nas diferenças

força os leitores a examinar seus próprios valores e crenças, à medida que o

questionamento faz pensar que todos os discursos provêm de uma elaboração humana;

portanto, nos fazem refletir sobre a existência de verdades, antes postas como

universais. Assim, encontramos outra característica estilística, a metaficção

historiográfica, recusando a história enquanto pretensão de verdade, através do

entendimento de que esta, bem como a ficção, são discursos; logo, efeitos de sentido.

Com isso, desmistifica-se não só uma história, bem como o conceito de representação

da realidade, a qual não reproduz transparentemente o mundo real.

Quanto à postura do narrador, este utiliza o discurso indireto livre, o qual faz

com que muitas vozes entrelacem-se à sua, em uma relação de igualdade com as demais

vozes do romance, não se diferenciando das outras, tornando o romance polifônico. As

personagens principais do romance que nos propusemos a analisar constroem a sua

autoconsciência justamente por conta dessa postura do narrador, pois este, através do

discurso indireto livre, dá voz aos personagens, mantendo uma relação de igualdade

com elas e não tentando domesticá-las, deixando, assim, que façam suas enunciações. A

partir dessas, podemos perceber a percepção de si das personagens, que ocorre através

da relação que estabelecem com as manifestações de alteridade, reconhecidas como

constitutivas de todas as identidades.

Diante do que propusemos, acreditamos haver realizado reflexões acerca da

construção da autoconsciência das personagens Baltasar e Blimunda e do narrador

“saramágico”. Entendemos que o Realismo Mágico vai além de um procedimento

estético: neste caso, é também político. A aproximação entre a história e ficção

presentes no romance está aliada ao Realismo Mágico, por ambos terem uma

abordagem de representação do real que torna, assim, Memorial do Convento um

romance aliado ao funcionamento discursivo da ficção no quadro mais amplo da

produção artística e estética contemporâneas.

Page 19: A construção da consciência das personagens no Realismo … · degredo no reino de Angola, e tendo ouvido as sentenças, as minhas e mais de quem comigo vai nesta procissão, não

Referências bibliográficas

ANTONIETTI LOPES, T. M. Realismo Mágico: Uma problematização do conceito.

Vocábulo, V.5, 2003. p.1-15.

____________. O realismo mágico na comunhão estética entre Memorial do

Convento e Cem Anos de Solidão. 2007. 92 f. Dissertação (Mestrado em Estudos

Literários) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista,

Araraquara, 2007.

____________. O realismo mágico e seus desdobramentos em romances de José

Saramago. 2011. 119 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de

Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2011.

BAKHTIN, M. A personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski. In:

BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio

de Janeiro: Forense-Universitária, 39-64. 1981.

________ Estética da criação verbal. Livraria Martins Fontes, 2015.

________ Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi

Vieira. Hucitec, 2009.

BEZERRA, P. Polifonia. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: contexto, p. 191-200,

2005.

HUTCHEON, L. Poética do Pós Modernismo: história, teoria, ficção. Tradução:

Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

OLIVEIRA FILHO, O, D. Carnaval no convento: intertextualidade e paródia em

José Saramago. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.

OLIVEIRA NETO, P. F. Retratos para a construção da identidade feminina na

prosa de José Saramago. 208 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade do

Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2011.

SARAMAGO. J. Memorial do Convento. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras,

2013.

ZOPPI-FONTANA, M. G. O Outro da personagem: enunciação exterioridade e

discurso. In: BRAITH, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido.

Campinas: Ed. da Unicamp, 2005. p. 108-117.