a construção coletiva de uma proposta pedagógica para a capoeira

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*Mestre de Capoeira, Professor de Filosofia e Coordenador de Área do Programa “Gente em Primeiro Lugar” da Prefeitura de Juiz de Fora – MG. A construção coletiva de uma proposta pedagógica para a Capoeira Gláucio Anacleto de Almeida ( Cuité)* Apresentação O Programa “Gente em Primeiro Lugar” é um trabalho da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA) da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, que oferece oficinas artístico-culturais (Capoeira, Dança, Música, Artes Visuais e Teatro) em mais de 60 bairros e 03 distritos de Juiz de Fora, cidade de cerca de 600 mil habitantes na Zona da Mata mineira. A faixa etária que atendemos está situada prioritariamente entre 06 e 14 anos, entretanto, nosso trabalho estende-se até os 22 anos. A ênfase do trabalho está na formação integral do cidadão e não apenas na busca por talentos ou na confecção de um produto. Coerente com a sua denominação, o Programa prioriza o aspecto humano e a sociabilidade. A FUNALFA através de sua superintendência e a coordenação do programa acredita na transdisciplinaridade de saberes, através de uma postura consciente e critica do poder de unificação da cultura. O projeto busca o trabalho de formação e educação da arte / cultura / cidadania junto a profissionais capacitados não só nas áreas específicas de atuação bem como sua relação entre formação e cidadania das crianças e adolescentes participantes das oficinas artísticos culturais. Dessa forma, nossos profissionais (coordenadores/articuladores), ao longo dos últimos quatro anos passaram por uma intensiva formação pautada no estudo e reflexão de ferramentas possíveis para embasar os objetivos do programa, tais como, criar e disponibilizar espaços em sua prática diária, no planejamento e no desenvolvimento das ações para divulgar direitos e deveres do cidadão e trabalhar, além do conhecimento artístico cultural, a vivência prática de valores sociais e respeito a si e ao próximo. Quando iniciamos o trabalho em setembro de 2009, a equipe de Capoeira era composta por um Coordenador e dois Articuladores Culturais (denominação atribuída aos profissionais que atuam no Programa Gente em Primeiro Lugar) atuando em 13 comunidades. Em quatro anos a equipe cresceu substancialmente e hoje contamos com 06 Articuladores atuando em 25 bairros e nos 03 distritos.

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Page 1: A construção coletiva de uma proposta pedagógica para a Capoeira

*Mestre de Capoeira, Professor de Filosofia e Coordenador de Área do Programa “Gente em

Primeiro Lugar” da Prefeitura de Juiz de Fora – MG.

A construção coletiva de uma proposta pedagógica para a Capoeira

Gláucio Anacleto de Almeida ( Cuité)*

Apresentação

O Programa “Gente em Primeiro Lugar” é um trabalho da Fundação Cultural

Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA) da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, que

oferece oficinas artístico-culturais (Capoeira, Dança, Música, Artes Visuais e Teatro)

em mais de 60 bairros e 03 distritos de Juiz de Fora, cidade de cerca de 600 mil

habitantes na Zona da Mata mineira. A faixa etária que atendemos está situada

prioritariamente entre 06 e 14 anos, entretanto, nosso trabalho estende-se até os 22 anos.

A ênfase do trabalho está na formação integral do cidadão e não apenas na busca por

talentos ou na confecção de um produto. Coerente com a sua denominação, o Programa

prioriza o aspecto humano e a sociabilidade.

A FUNALFA através de sua superintendência e a coordenação do programa

acredita na transdisciplinaridade de saberes, através de uma postura consciente e critica

do poder de unificação da cultura. O projeto busca o trabalho de formação e educação

da arte / cultura / cidadania junto a profissionais capacitados não só nas áreas

específicas de atuação bem como sua relação entre formação e cidadania das crianças e

adolescentes participantes das oficinas artísticos culturais. Dessa forma, nossos

profissionais (coordenadores/articuladores), ao longo dos últimos quatro anos passaram

por uma intensiva formação pautada no estudo e reflexão de ferramentas possíveis para

embasar os objetivos do programa, tais como, criar e disponibilizar espaços em sua

prática diária, no planejamento e no desenvolvimento das ações para divulgar direitos e

deveres do cidadão e trabalhar, além do conhecimento artístico cultural, a vivência

prática de valores sociais e respeito a si e ao próximo.

Quando iniciamos o trabalho em setembro de 2009, a equipe de Capoeira era

composta por um Coordenador e dois Articuladores Culturais (denominação atribuída

aos profissionais que atuam no Programa Gente em Primeiro Lugar) atuando em 13

comunidades. Em quatro anos a equipe cresceu substancialmente e hoje contamos com

06 Articuladores atuando em 25 bairros e nos 03 distritos.

Page 2: A construção coletiva de uma proposta pedagógica para a Capoeira

Desde o início do trabalho, nosso foco manteve-se na discussão sobre os valores

e aspectos fundamentais da prática da Capoeira. Dessa maneira, mantivemos um

distanciamento saudável das concepções técnicas individuais ou de escolas específicas e

ao mesmo tempo nos dedicamos mais à compreensão do que nos aproximava, do que

daquelas diferenças que, se ressaltadas poderiam inviabilizar o objetivo principal do

Programa que era possibilitar aos nossos alunos - vindos de diversos bairros da cidade e

aprendizes orientados por profissionais de diferentes escolas – experimentar o prazer de

jogar Capoeira e aprender na convivência com outros capoeiristas em diversos

ambientes onde essa prática acontece. Concebemos a Capoeira como construção

coletiva, e acreditamos que sua riqueza está diretamente relacionada à grande

diversidade existente no meio e ao diálogo estabelecido intuitivamente nas rodas de

Capoeira e no momento do jogo.

Metodologia:

O processo que nossa equipe preconiza consiste na construção de dois valores

fundamentais: Autonomia e Cidadania. A experiência adquirida nos primeiros anos de

atividades do Programa “Gente em Primeiro Lugar” nos mostrou que o envolvimento

dos alunos trona-se muito maior na medida em que são convidados a assumir o papel de

protagonistas do processo e isso inclui o aprendizado dos toques dos instrumentos e os

cânticos desde o princípio, concomitantemente com as atividades que visam o

desenvolvimento do jogo. Toda a dinâmica de nosso trabalho visa dotar os aprendizes

dos conhecimentos fundamentais para a livre participação numa Roda de Capoeira,

estimulando a percepção e o desenvolvimento de várias aptidões exigidas de um bom

capoeirista. Essa metodologia proporciona uma riqueza de experiências e exige dos

mesmos o senso crítico, de oportunidade, de cooperação, de adequação às regras, o

conhecimento da História da Capoeira e de nossa História como um todo, o respeito às

nossas tradições, além de estimular o raciocínio, a iniciativa e a capacidade de trabalhar

em grupo.

A partir dessa construção é que fazemos a ponte entre o microcosmo da

Capoeira e as situações cotidianas pelas quais temos de passar com serenidade e

inteligência. A prática regular da Capoeira estimula habilidades físicas e emocionais de

fundamental importância para o nosso dia-a-dia e quando nos conhecemos, tornamo-nos

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mais seguros e mais aptos ao convívio social. Nossa metodologia utiliza principalmente

a transmissão oral de conhecimentos e valores, uma valiosa ferramenta pedagógica e

uma forma de reunir pessoas e estimular a convivência durante as aulas.

Esse ponto tem para nós uma importância fundamental, porque através dele

promovemos a escuta, o diálogo e as trocas de experiência. Vivemos tempos onde o

distanciamento entre as pessoas é a tônica das relações que a cada dia tornam-se mais

superficiais. A Capoeira é uma excelente ferramenta para a integração entre as pessoas.

Não pode ser praticada isoladamente e exige concentração, atenção e cooperação por

parte dos jogadores. Como não obedece a regras fixadas em regulamentos, exige que o

capoeirista observe permanentemente o comportamento e as atitudes de seus

companheiros para adaptar-se às circunstâncias. Cada aula, cada treinamento, roda, ou

jogo significa uma nova experiência, uma nova possibilidade de aprendizado, de

convivência.

Trabalhamos com crianças e adolescentes que muitas vezes vêm de ambientes

violentos, famílias desestruturadas e baixo desempenho escolar. Esses fatores coexistem

e não há como contorná-los sem escamotear a realidade. Acreditamos que nossa

atribuição é proporcionar aos mesmos, experiências prazerosas, mas também

significativas, que para serem plenamente realizadas dependem de participação,

empenho e interesse. Assim, temos a possibilidade de desenvolver em nossas

atividades, a iniciativa e o desejo de melhorar o desempenho e o crescimento pessoal.

Atitudes fundamentais, não somente para o sucesso na Capoeira, mas ainda mais

importantes na vida, principalmente para aqueles que por diversos motivos carecem de

exemplo e apoio familiar.

O ambiente que procuramos criar durante as atividades é de “investigação”, de

“descoberta”, de “compreensão”, mas também de “re-significação” do que já foi

aprendido através da criação de situações-problema e do contato com as possibilidades

levantadas pelos companheiros; mas também há a busca pela harmonia quando o

assunto é a musicalidade, o entrosamento na composição da bateria, o correto

entendimento das palavras pronunciadas nas cantigas e a resposta efetiva do côro.

A habilidade individual deve estar sempre a serviço da realização de um bom

jogo e não como simples forma de promoção pessoal, assim como a observância dos

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corretos procedimentos de entrada e saída do jogo, o canto e a resposta em coro são

primordiais para a realização de uma Roda de Capoeira.

Todos esses códigos favorecem o entendimento de que assim como na Capoeira,

a vida em sociedade também é regida por leis e normas de conduta que devem ser

observadas por todos, indistintamente, visando o equilíbrio do coletivo. Entendemos

que a criança é um pequeno cidadão, não “meio cidadão”, portanto, deve desde cedo e

durante todo o período de maturação, conhecer e ser um cumpridor de regras que

favoreçam o convívio e o seu desenvolvimento saudável.

Estrutura Física e Organizacional

O Programa “Gente em Primeiro Lugar” atende nos mais diversos espaços

dentro das comunidades, como Associações de Moradores, SPM, Escolas Municipais e

Estaduais, Espaços religiosos diversos, clubes, etc., sempre buscando parceria com a

comunidade e prioritariamente nas comunidades onde não haja outras atividades

semelhantes já sendo oferecidas. Como o trabalho é desenvolvido em parceria com as

entidades, pesa mais o desejo das comunidades de ter as oficinas, do que a estrutura

oferecida. Em alguns locais as condições chegam a ser precárias, entretanto, buscamos

soluções para esses problemas enquanto desenvolvemos as atividades; esperamos pelas

melhorias e trabalhamos para que elas aconteçam, mas não deixamos de atender

nenhuma comunidade que se mostre interessada em nosso trabalho.

Um ponto importante a ser destacado foi a tranquilidade que tivemos em relação

aos recursos materiais para as oficinas de Capoeira. Uniformes e instrumentos de

qualidade sempre foram adquiridos segundo a demanda e de modo satisfatório, isso faz

uma grande diferença tanto em termos organizacionais - pela identificação dos

participantes e seu sentido de pertencimento - como também influencia positivamente

na parte didática, permitindo o desenvolvimento da parte musical da Capoeira desde o

início do aprendizado.

Houve por parte da Superintendência da FUNALFA e da Coordenação Geral do

Programa “Gente em Primeiro Lugar” a sensibilidade de oferecer os recursos

necessários para a realização de um trabalho efetivo por parte da equipe de Capoeira.

De posse dos materiais específicos da nossa atividade, pudemos desenvolver nossa

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proposta de modo satisfatório e alcançarmos os resultados positivos que ora podemos

constatar: a participação de mais de 700 alunos em nossas oficinas, a realização de três

grandes eventos reunindo todos os capoeiristas na Praça Cívica da UFJF, dezenas de

apresentações em Mostras Culturais, a criação de uma “Orquestra de berimbaus” com

alunos oriundos das comunidades por nós atendidas e principalmente a perspectiva de

termos num futuro próximo um grande número de capoeiristas habituados a uma prática

cultural saudável, integradora e cidadã.