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  • 8/7/2019 A condio ps-humana Jonatas Ferreira

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    A CONDIO PS-HUMANA: OU COMO PULAR SOBRE NOSSAPRPRIA SOMBRA

    Jonatas Ferreira

    Eis-nos aqui, pais de nosso prprio parentesco(Serres, 2003, p. 50).

    O fato de que a Filosofia e a qumica fisiolgicapodem examinar o homem como organismo, sob

    o ponto de vista das Cincias da Natureza, no prova de que neste elemento orgnico, isto , deque no corpo explicado cientificamente, resida aessncia do homem. Isto vale to pouco como aopinio de que na energia atmica, esteja aessncia da natureza. Pois, poderia mesmoacontecer que a natureza escondesse precisamentea sua essncia naquela face que oferece ao domniotcnico do homem (Heidegger, 1987, p. 47).

    Introduo

    Por intermdio de uma interface qualquer, a partir de uma srie deperguntas e respostas, voc seria capaz de diferenciar um computador de umser humano? O famoso artigo de Alan Turing (1990), Computer Machineryand Intelligence, de 1950, prope esse como critrio para decidir se mquinaspodem ou no ser consideradas inteligentes. Voc capaz de distinguirperformance verbal de uma realidade corprea e humana? Se voc existenum mundo em que essa distino no pode em certas circunstncias sertraada com facilidade, pouco importa, ao final, que a mquina em questoresponda suas perguntas por meio de regras pr-estabelecidas. Voc j serelaciona com o computador como se se tratasse de um ser humano. De acordocom Katherine Hayles (1999, p. xii), para alm de nossa opinio pessoal sobreo assunto, ao aceitar os termos a partir dos quais Turing apresenta o problema,deparamo-nos com a seguinte situao:

    O que o teste de Turing prova que uma sobreposio entre a corporeidade vividae representada no mais uma inevitabilidade natural, mas uma produocontingente, mediada por uma tecnologia que se tornou to entrelaada com aproduo da identidade que ela no pode mais ser separada de modo significativodo sujeito humano.

    A percepo de que a subjetividade humana j no pode ser claramentediscernvel de um aparato mecnico um passo decisivo na direo daquiloque ela chama ps-humanidade.

    ISSN 0104-8015

    POLTICA & TRABALHO

    no 21 outubro de 2004. p.31-42.Revista de Cincias Sociais

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    Na medida em que voc olha atentamente significantes florescentes rolando pelatela de seu computador, independente das identificaes que voc possa atribuirs entidades corpreas que voc no pode ver, voc j se tornou ps-humano(Hayles, 1999, p. xiv).

    Recentemente, algumas vozes no campo da sociologia passaram aafirmar que as tecnologias de digitalizao da vida nos conduzem a um tipode sociedade na qual prevaleceria uma ruptura com o humano e com ohumanismo. Lendo as citaes acima, ocorre-me o quanto esse discurso estassociado quilo que se convencionou chamar de virada lingstica ou, maisremotamente, ao fato de, j no sculo dezenove, Nietzsche observar ainexistncia de uma ligao orgnica entre a coisa nomeada, a sensao queela produz e o smbolo que convencionamos adotar para evocar coisa esensao1. Devemos certamente penetrao dessa observao elaboraesposteriores, tais como: a circulao desses smbolos obedece a uma lgicaprpria, em que o significante tem primazia sobre o significado (Saussure); oinconsciente se estrutura como linguagem (Lacan); os meios contemporneosde comunicao produzem realidade como simulao (Baudrillard); avirtualidade dessa simulao implode o tempo e o espao, e, conseqentemente,retira-nos a possibilidade de agir reflexivamente, de pensar criticamente (Virilioe Baudrillard). Se os smbolos tm dinmica prpria e, portanto, j no podemser considerados reflexos, representaes de uma realidade pr-existente, se oprprio inconsciente se estrutura como linguagem, o que nos impede de inferirque o ato de pensar seja separvel de um tipo especfico de suporte: a mentehumana?

    Por isso mesmo, aquilo que o humanismo oferece como fundamentode sociabilidade constituiria um limite que estaria efetivamente sendo cruzadopela digitalizao da realidade, pela simulao, pela ciberntica. Quer sejamoderno o humanismo de que se fala, portador de um projeto poltico e ticoque se legitima em torno da idia de conscincia livre e autnoma, quer setrate de um humanismo greco-latino, que elabora a estreita relao entre acondio humana e o logos, viveramos um momento de ruptura 2. Segundoesse tipo de abordagem, identificar o que seja o humanismo, dizer dentro dessatradio o que o ser humano, no constituiria uma dificuldade. Mais fcilainda seria negar aquilo que o humanismo identifica como a essncia dohumano, negar a relao dessa essncia com um corpo humano, negar aprpria idia de corpo humano. Afinal os humanos e o ambiente que oscircunda so diferentes formas de energia; a nica diferena entre eles a

    forma que a energia adquire (Pepperell, 1997, p. 180-181).

    1 Ver, por exemplo, a esse respeito Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral.2 Quanto a sabermos por que estamos indo irreversivelmente rumo a este limite final, tudo oque podemos fazer nos agarrarmos a hipteses fantsticas, como esta: a espcie humanapoderia estar se empenhando numa espcie de escrita automtica do mundo, dedicando-se auma realidade virtual automatizada e operacionalizada, onde os seres humanos enquanto taisno tm mais motivos para existir. A subjetividade humana torna-se um conjunto de funesinteis, to inteis quanto a sexualidade para os clones (Baudrillard, 2001, p. 71).

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    Proporei aqui uma questo inicial sobre a qual o discurso ps-humanistadeveria dedicar uma ateno mnima: de que exatamente falamos quandofalamos humanismo?3 Se no formos capazes de responder a essa questode forma convincente bem provvel que, na tentativa de estabelecer ouantecipar um momento zero que inauguraria o totalmente outro, na tentativade cortar os laos com o passado, estejamos de fato sucumbindo ao no refletidonesse passado. mesmo to original aquilo que hoje nos anunciam certosintelectuais quando, numa bravata calculada, anunciam a possibilidade de amente humana ser baixada em um meio digital? Pensemos, a esse respeito,na relao problemtica que Descartes j nos propunha entre o pensar e acorporeidade do pensar. Acredito que existe uma linha de continuidade claraentre cartesianismo e ps-humanismo em seu desprezo pela corporeidade do

    pensar. Mas isso, obviamente, diz pouco, caso no possamos especificarminimamente que humano aqui se supe.A possibilidade de encarar essas dificuldades, e de tentar responder s

    questes propostas acima mediante algum tipo de esforo analtico, todavia, apenas parte da dificuldade pressuposta em se engajar numa reflexo acercado discurso ps-humanista. Quando, diante de um eventual futuro ps-humano, certos pensadores desdobram-se em boas-vindas ou alardeiamcenrios catastrficos, no temos aqui meramente um tema filosfico a sertratado, imprecises conceituais a serem reparadas, mas um problema poltico.O reconhecimento desse descentramento leva necessariamente a um fim dohumano, a um futuro ps-humano? Devemos aceitar como dado de partidaque o ser humano possua uma essncia passvel de ser identificada eposteriormente negada (por um discurso ps-humanista)? Se no h nem nunca

    houve uma essncia humana, algo que lhe seja prprio, todavia, as bases sobreas quais uma atitude crtica ao desenvolvimento tecnolgico poderia seresboada parece se tornar algo problemtico.

    O discurso humanista acerca do humano

    O humanismo diz respeito constituio de uma retrica de civilizaocujo eixo, dado de partida e de chegada o ser humano. Nesse sentido amplo,ele se confunde com a prpria histria da metafsica ocidental, no dizendorespeito apenas ao movimento de secularizao que se inicia na Europa apartir do sculo dezessete. Essa acepo da palavra humanismo correspondeao tema sobre o qual Peter Sloterdijk se debrua no ensaio Regras para o ParqueHumano. Trata-se, muitos devem se lembrar da polmica que o livro gerou nofinal da dcada de 1990, de um texto controvertido. A partir de um engajamentocrtico com a Carta sobre o Humanismo de Martin Heidegger, Sloterdijk discute

    3 Podemos aceitar um pensador como Sade em meio aos humanistas? Dependendo daabordagem, eu diria que sim. O platonismo humanista? Pensadores como Todorov, porexemplo, demarcam a modernizao como cenrio exclusivo do humanismo e, dentro damodernidade, o humanismo se diferenciaria de outras concepes de mundo, como oconservadorismo, o individualismo, o cientismo. Que fantasmas o ps-humanismo combatequando diz combater a boa luta?

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    as transformaes culturais advindas de avanos tecnolgicos recentes. Umdos argumentos centrais desse texto nos interessa. Luta contra a barbrie oucontra o embrutecimento, enquanto discurso civilizador, o humanismo concebesua tarefa intelectual como oposio s pulses capazes de levar bestializaodo homem. Por esse motivo, essa tradio procura sempre definir rubicescapazes de delimitar um campo de sociabilidade de um campo de guerra, umhomo humanus de um homo barbarus (Heidegger, 1987, p. 41). Aregularizao desse tipo de delimitao mobiliza na Grcia a idia de proporo(a condenao da Hbris, da desproporo) como princpio moral, poltico eesttico da vida civilizada, do mesmo modo como pressupe estratgiassimblicas que regulem com segurana reas consideradas limtrofes (Vernant,2002). Sob esse ngulo, por exemplo, que se pode entender o papel simblico

    de uma divindade como rtemis, capaz de conduzir em segurana daanimalizao da caa segurana da vida civilizada, ou a desgraa que seabate sobre Minos quando ele negligencia o sacrifcio de um touro a Poseidon:pois, humanismo isto: meditar, e cuidar para que o homem seja humano eno des-humano, inumano, isto , situado fora de sua essncia (Heidegger,1987, p. 41). A partir dessa caracterizao do humanismo, Heidegger (Ibid.,p. 45-46) indaga:

    Estamos ns no caminho certo para a essncia do homem, quando distinguimos ohomem e enquanto o distinguimos, como ser vivo entre outros, da planta, do animale de Deus? Pode proceder-se assim, pode situar-se, desta maneira, o homem, nointerior do ente, como um ente entre outros. Com isto se poder afirmar,constantemente, enunciados certos sobre o homem. preciso, porm, ter bem

    claramente presente que o homem permanece assim relegado definitivamente parao mbito essencial da animalitas; o que acontecer, mesmo que no seja equiparadoao animal e se lhe atribuirmos uma diferena especfica. Pensa-se, em princpio,sempre o homo animalis, mesmo que anima seja posta como animus sive mens e mesmoque estes, mais tarde, sejam postos como sujeito, como pessoa, como esprito. Umatal posio o modo prprio da Metafsica. Mas com isto a essncia do homem minimizada e no pensada na sua origem. [...] A metafsica pensa o homem a partirde animalitas, ela no pensa em direo da sua humanitas.

    Tanto Heidegger quanto Sloterdijk acreditam que o humanismo instaurauma retrica de civilizao em que, ao perigo da bestializao, oferecida atranqilidade da domesticao; em oposio s sensaes e embriaguezdesumanizadoras (Sloterdijk, 1999, p. 18), promove-se a conscincia culta,letrada. Falar do humano significa aqui assumir o poder discricionrio dedeterminar sobre quem e em nome de que o ato civilizador reivindica aqueladomesticao. Assim, a humanitas no inclui s a amizade do ser humanopelo ser humano; ela implica tambm e de maneira crescentemente implcita que o homem representa o mais alto poder para o homem (Ibid., p. 45).Esse gesto, no entanto, pressupe um esquecimento. O terreno de animalidade,o campo puramente biolgico, sobre o qual se pode pensar, por oposio, ohumano, compromete de maneira sub-reptcia o modo como passamos a pensara essncia do humano. A palavra domesticao, empregada acima, indicaria

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    essa contaminao advinda da incapacidade do humanismo pensarverdadeiramente a essncia do humano.

    O ataque heideggeriano ao humanismo bem conhecido. Recordemosseu argumento. O humanismo incapaz de pensar a essncia do humanoporque o pr-determina no campo dos entes: como animal racional, comotransio em direo ao divino ou como produto de condies materiais ehistricas. Nas primeiras pginas de A Condio Humana, Hannah Arendt(2000, p. 180) oferece um argumento semelhante: se temos uma natureza ouessncia, ento certamente s um deus pode conhec-la e defini-la; e a condioprvia que ele possa falar de um quem como se fosse um qu. O humanismo incapaz de pensar a essncia do humano a partir de um terreno mais digno,ou seja, na abertura do ser. Para Heidegger, a essncia do ser humano ocupar-

    se do existir, pensar. Esse ocupar-se, esse pensar, no constituem atos deum sujeito, no lhe pertencem como sua determinao, como determinaode sua vontade ou de sua conscincia. O pensar no coisa sobre a qual aconscincia de um sujeito disponha. Pelo contrrio, o homem atirado peloprprio ser na verdade do ser, para que, existindo dessa maneira, guarde averdade do ser, para que na luz do ser o ente se manifeste como o ente queefetivamente (Heidegger, 1987, p. 55).

    A crtica heideggeriana ao humanismo prossegue atravs de um novoargumento: a humanizao do ser humano pressupe uma compreensoontolgica da linguagem. A linguagem no primordialmente meio decomunicao de uma conscincia, de um sujeito, mas a prpria casa onde oser reside. J dissemos acima: o pensar no uma determinao dessaconscincia, no sua qualidade, pelo contrrio. Em oposio a um pensar

    comprometido com a eficincia, com a utilidade, ele prope a contemplaoda verdade do ser como o apelo mais digno do pensar e como impulso atravsdo qual nos movimentamos na linguagem. Compare-se essa apreciao dofundamento da linguagem com aquela oferecida pela ciberntica4, ou seja, alinguagem como meio para realizao de tarefas determinadas, e estaremosno caminho para apreciar a importncia da definio heideggeriana.

    Aqui se estabelece o ponto em que Sloterdijk j no deseja acompanharHeidegger. Para ele, no apenas a linguagem a morada do ser, mas aoconstituir um mundo ela pressupe outro tipo de casa, produto do empenhotcnico do ser humano para se proteger das intempries, dos predadores. Ouseja, pressupe a habitao concreta a que a metfora linguagem como casarecorre. Por esse motivo, a argumentao de Sloterdijk passa a se diferenciarda de Heidegger, recusando a aceitar como verdadeira a proposio que dizque a tcnica apenas esquecimento do ser (Heidegger, 1987, p. 67), ou seja,encerramento do humano no terreno prtico das utilidades, no terreno emque um quem tratado como um que, no terreno da repetio e doesquecimento. A casa enquanto produto tcnico essencial na humanizaodo ser humano, tanto quanto a linguagem. Evidentemente, a tcnica tambm esquecimento. Tomemos mais detidamente a meno que fizemos acima

    4 Ver, por exemplo, Ferreira (2003) ou Wiener (1971).

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    tragdia do rei Minos. Por ter negligenciado seu compromisso com Poseidon,ele ganha um filho ilegtimo, corpo humano e cabea de touro. Uma soluotcnica para a vergonha de Minos e sua esposa, Pasfae, apresenta porDdalo: confinar o Minoutauro num labirinto onde ele seria soberano. Olabirinto ao mesmo tempo esquecimento e condio de que nada sejaesquecido. Pois o produto do trabalho, no sentido atribudo a esse termo porHannah Arendt, condio de mundo, ou seja, de uma vida pblica, dememria compartilhada. A tcnica, nesse como em outros casos, ento,condensaria um paradoxo: ela o trabalho do esquecimento; ela esquecimentoe condio de rememorao.

    Constatando, a partir de Heidegger, que o humanismo no pensasuficientemente a essncia do ser humano, chegamos a duas concluses.Primeiro, o humanismo localiza essa essncia no mbito dos entes, das coisasnomeveis como um que. Segundo, por esse motivo, o humanismo sempreum discurso de domesticao, de estabelecimento de um campo em que ohumano se constitui em oposio perspectiva de bestializao. Heideggerprope que a discusso da humanidade do ser humano seja tratada num outrombito, no mbito de um pensar sensvel ao ser. Ao faz-lo, todavia, no pdedeixar de considerar a tcnica como possibilidade ontolgica de abertura doser humano para o mundo. Aquilo que no princpio desse texto identificamoscomo discurso ps-humanista deve ser entendido como radicalizao unilateraldessa que uma possibilidade sempre aberta ao ser humano, possibilidadeessa que a essncia do humanismo, a saber, esquecimento do ser,embrutecimento. A tcnica, por outro lado, tambm condio derememorao, de vencer a compulso neurtica pela repetio, a razoinstrumental como destino inescapvel. O descortinar de uma tal perspectiva,

    porm, demanda uma anlise da lgica que orienta o prprio mundo dosaparatos mecnicos que temos diante de ns. Para isso, servir-nos-emos dasconsideraes de Foucault sobre o humanismo, a cincia e a tcnica modernos.

    Foucault, humanismo e ambigidade

    Interessa-nos analisar precisamente o momento em que odesenvolvimento de um discurso cientfico rigoroso elabora, se no uma novadesignao do que seja o ser humano, certamente uma perspectiva especficaa partir da qual seria possvel abordar a humanidade do ser humano. Se nosativermos anlise heideggeriana exposta acima, esse discurso poderia serentendido como radicalizao de uma concepo da essncia do ser humanono domnio dos entes. As consideraes de Sloterdijk, todavia, levam-nos a

    considerar mais de perto a tcnica, sobretudo como ela nos abre o mundo namodernidade. Comentando acerca do pensamento conservador francs, deDe Maistre ou Bonald, Todorov (1998, p. 24) identifica uma tenso bsicasobre a qual se desenvolve o humanismo moderno:

    ... o homem moderno, fermentado por Calvino, Descartes e Rousseau, e lanado nomundo pela Revoluo, no conhece nada de exterior a si. Nem acima dele (um sersuperior), nem para alm dele (seres semelhantes); ele est condenado a permanecerem si mesmo.

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    O humanismo moderno um campo discursivo que sobrevive daambigidade de reivindicar a constituio de um mtodo em que somos aomesmo tempo sujeitos e objetos de nossa investigao. A identificao de talambigidade, a meu ver, central para entendermos o significado que Foucaultatribui ao termo humanismo, e nos aproximarmos do cerne da reflexo quepropomos aqui. Atravs da cincia moderna, o humanismo radicaliza aquiloque descrevemos acima como domesticao, ou seja, a percepo do homemcomo animal com uma qualidade distintiva. nessa qualidade que ele pode setornar um objeto de conhecimento. O poder advindo desse conhecimentoconfigura aquilo que Foucault vir a chamar biopoder.

    O humanismo moderno diz, pois, respeito a uma certa atitude terica,e a uma certa invocao da tcnica, em que o ser humano torna-se sujeito e

    objeto de uma investigao racional, cientfica. Lembremos das consideraesde Foucault acerca do quadro As Meninas de Velsquez, ou seja, o modocomo o pintor deixa de ser transparente para anunciar que toda representaodo real contaminada pela perspectiva produtiva daquele que representa. Opintor capturado em um momento ambguo em que ele se dedica no apenasao ato de representar, mas problematiza ao mesmo tempo a possibilidade desseato. As consideraes de Foucault acerca das cincias sociais do continuidadeao mesmo tipo de preocupao: a legitimidade do conhecimento que essascincias advogam depende de uma relao problemtica com o ato derepresentar5. Fundamental na construo desse tipo de conhecimento aprpria dubiedade de ver e, ao mesmo tempo, ser visto. Essa dubiedade,evidentemente, est associada a uma outra de carter poltico. O conhecimentotecnocientfico institui um espao de poder em que podemos nos colocar

    alternadamente como controladores e controlados. precisamente essaqualidade do espao poltico moderno que faz o ato de vigiar mais eficienteque o do punir, ela que garante a internalizao do controle poltico.

    Assim, a cincia moderna expande-se, no como higienizao dessaambigidade fundamental, mas a partir dela. Contrariamente ao que propeZigmunt Bauman6, a cincia e a tcnica modernas no precisam ser entendidascomo um campo total, mas como articulao diferencial e ambgua, queprospera e se expande na ambigidade. Essa dinmica aparentemente precriadecorre, como dissemos acima, do fato de nos tornarmos sujeitos e objetos deum tipo de conhecimento. A definio weberiana de burocracia j se abria aesse tipo de ambigidade: a burocracia nos garante a posio de sujeitoscontanto que aceitemos nos tornar objetos do controle legal. O apelo do poderque essa dinmica pe em movimento a perspectiva de nos percebermosalternadamente numa e noutra posio. Essa ambigidade sua fora de

    5J tivemos oportunidade de comentar acima o quanto tal relao problemtica e aquilo quese convencionou chamar virada lingstica esto associados ao desenvolvimento de certaspossibilidades de um discurso tecnolgico ps-humanista. Apenas quando a linguagemabandona a pretenso de representar uma realidade qual se subordina abrem-se perspectivastcnicas de que o mundo simblico passe a constituir um mundo, sua prpria jurisdio.6 Em livros como Modernity and Ambivalence ou Modernity and the Holocaust.

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    seduo. Tomemos o panopticismo, de que nos fala Foucault, como modelode administrao tcnica e cientfica da sociedade pois, obviamente, essemodelo de administrao prisional deveria ser um prottipo para a sociedadecomo um todo7. O prisioneiro s se estrutura como objeto de vigilncia namedida em que ele introjeta, torna subjetiva, a perspectiva do dominador.Dominador que nunca se materializa, nunca se torna visvel como tal, mascomo iminncia de que tal materializao possa de fato ocorrer. Aquele que observado capturado em um regime escpico perverso que pressupe quesua mirada seja cindida: coloco-me na perspectiva de algum observado e daperspectiva objetiva e geral de observao daquele que eventualmente meobserva. Talvez seja necessrio ainda enfatizar que o observador capturadona mesma lgica. Porque ele prprio objeto de uma vigilncia

    hierarquicamente superior e igualmente virtual; porque ele s pode exercer opoder de vigiar a partir de uma perspectiva que lhe estranha, ou seja, daperspectiva do regime escpico ao qual ele necessariamente se submete. Quemno se lembra dos apuros miditicos envolvendo o presidente americano BillClinton, seu gosto por charutos cubanos, estagirias gordinhas, coitosinterrompidos, inalaes no tragadas? Ao defender seu mandato comtecnicalidades tais como, a existncia de diferena entre inalar e tragar, entreativamente entrar em intercurso sexual e submeter-se a uma seo de sexooral, Clinton garantiu a condio de sujeito privilegiado ao aceitar que suavida privada se tornasse objeto de um controle pblico.

    Os efeitos prticos de uma concepo de tecnocincia fundada naambigidade podem ser to perversos quanto aqueles advindos do cenriotraado por Zigmunt Bauman8. Ao constituir indivduos como sujeitos e, ao

    mesmo tempo, objetos do poder, essa tecnocincia parece retirar-se do terrenodas coisas humanas. Precisamente pelo fato de no pensar a essncia datcnica, seu modo de abrir-se ao mundo e de constitu-lo, o humanismomoderno limita nossas possibilidades existenciais. Esse o preo do tipo deantropocentrismo que a modernidade instaura. As questes que ainda sopossveis de ser formuladas devem restringir-se, pois, ao terreno daadministrao, da eficincia sempre inercial diante do mundo dado. E essemundo dado porque foi concebido de antemo como coisa disponvel, comoterreno de afirmao de nossa vontade controladora. Sob essa perspectiva,obviamente, possvel pensar que nossos engajamentos tcnicos possam serreduzidos a um nmero delimitado de regras que, por seu turno, podem sertraduzidas em um aparato ciberntico. O ps-humanismo, nesse caso, umhiper-humanismo.

    Dizer que na ambigidade a tecnocincia desaparece, ou seja, quantomais ela se torna onipresente, menos visvel se torna, no significa dizer queela afete politicamente a todos do mesmo modo. Pois h aqueles que fumam

    7 Cf. MACHADO, Arlindo (1993, p. 219 e seq.).8 Em seu af de denunciar a desumanizao a que estaramos expostos ao nos envolvermos coma razo tcnica moderna, Bauman realiza o movimento que ele prprio critica na modernidade,isto , uma despolitizao atravs da defeco da ambigidade.

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    charutos cubanos, apesar de todo embargo econmico pequena ilha doCaribe; h aqueles que humilham, estupram e matam e outros que sohumilhados, estuprados e mortos. O lado negativo do humanismo subjacente cincia moderna, do desejo em nos transformar a todos em sujeitos da histria,nessa perspectiva, seria a desumanizao que nos afeta de modo desigual,porm objetivo.

    A tecnocincia, o humano e o ps-humano

    Nos ltimos quatro anos, venho procurando refletir acerca da relaodo ser humano com a tecnologia a partir de um pressuposto derridiano: preciso pensar o ser humano a partir da perspectiva de sua suplementaridade

    tcnica. Isso no significa dizer, como McLuhan, ou o mcluhanismo emBaudrillard ou Virilio, por exemplo, que nosso meio tcnico constitui sempre amensagem fundamental sobre a qual jogaramos com algumas possibilidadesfechadas de dico, caso em que o exerccio crtico seria impossvel ou intil e oato de refletir meramente reprodutivo. Isso quer dizer que nos abrimos para omundo, e o constitumos, a partir de possibilidades tcnicas sempre conflitantes,ambguas. Essa ambigidade e esse conflito so aspectos fundamentais doshorizontes histricos que se nos abrem - a ns, sempre suplementados porartefatos. Mais que uma ambigidade, diramos que a essncia da tcnica nosabre uma aporia: o trabalho do esquecimento, ou seja, condio deesquecimento e de que nada seja esquecido. Assim, o esquecimento do ser uma das possibilidades abertas ao ser humano enquanto ser que se humanizapela tcnica. A radicalizao unilateral desse esquecimento fundamenta os

    discursos que falam de uma condio ps-humana.A esse respeito, seria interessante comentar, ainda que brevemente,

    uma tese central de um dos ltimos livros de Michel Serres. Em Hominescncias,Serres defende que a ontologia no pode ser entendida como caminho paraabordar a questo da condio humana. No existimos como entes nem comoseres, mas como modos (Serres, 2003, p. 62). O processo de hominizaosignificaria, assim, uma constante evaso do ser: o homem aquilo que noexiste na determinao e finalidade do ser. O homem tem horror do ser(Ibid.). E se o que caracteriza a nossa hominizao contempornea a percepo deuma evaso do sercomo sendo essencial, essa conscincia produto de um modode vida, de um modo tcnico de confrontar o mundo. Esse modo de existncia,em outras palavras, -nos aberto historicamente pelo computador, por essamquina universal e sem finalidade. Desse modo, contrariamente queles quevm no computador uma jaula de ferro da simulao, a priso da informaopara, do pensar instrumental, Serres percebe no computador a expresso denossa falta de vocao para a determinao do ser. As ausncias do ser, deum projeto definido, de uma definio de homem so testemunhas de nossainfinitude que agora se inicia (Serres, 2003, p. 64). Com o advento de umamquina rigorosamente universal, o computador, teramos a possibilidade devencer a determinao fechada dos aparatos mecnicos.

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    Serres parece propor que o computador seja uma mquina que noprojeta sequer um horizonte de sentidos possveis, um horizonte arquvico emque certas coisas so viveis, outras, no, certas coisas so desejveis, outrasno. Fascinado pela abertura tcnica do que o computador propicia, ele nochega a questionar em que medida essa abertura se opera a partir de limitaesprecisas: a linguagem matemtica como pressuposto, por exemplo. Pelocontrrio, a matemtica aclamada por Serres como fundamento ltimo doprprio real. Insistimos aqui no ponto. Lanada na pura produtividade, nooperar irrestrito, a tcnica apenas esquecimento. Para que isso no seja nossohorizonte histrico inescapvel, preciso estarmos sempre atentos sdelimitaes do que aparentemente se oferece como puro jogo simblico, puraderiva. A tcnica no pode ser, portanto, concebida apenas como esquecimento

    do ser. Ela deve nos capacitar a rememorar a estrutura de arquivamento dentroda qual certas prioridades polticas, existenciais, so estabelecidas (Ferreira eAmaral, 2004). Sem isso o exerccio crtico sobre o humanismo , de fato, apenasevaso.

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    41#414141414141 41A condio ps-humana:

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    and the Machine. Cambridge: Massachussets, MIT Press.

    RESUMOA condio ps-humana: ou como pular sobre nossa prpria sombra

    Qual seria o fundamento da natureza humana? Uma resposta aessa questo parece estar pressuposta num determinado leque deabordagens tericas que afirmam que as novas tecnologias dedigitalizao da vida nos conduzem a um tipo particular desociabilidade, a uma ruptura com o humano, a uma condio ps-humana. No artigo que se segue pretendo fornecer subsdios tericosque possam instrumentar uma reflexo acerca de determinados

    projetos de ruptura com a tradio humanista. Meu impulso inicialpara empreender tal tarefa foi dado por dois ensaios curtos: Regraspara um Parque Humano, de Peter Sloterdijk, e Carta sobre oHumanismo, de Martin Heidegger. O texto conclui que no existenada mais metafsico que tentativas de dar um salto para fora dametafsica e do humanismo.

    Palavras-chave: humanismo; ps-humanismo; modernidade.

    ABSTRACTThe post-human condition: or how to jump out of our own shadow

    What would be the essence of human nature? An answer to thisquestion seems to be presupposed by a set of theoretical approacheswhich argue that new life digitalization technologies lead us to aparticular type of sociability, to a rupture with humanism, fromwhich a post-human condition would spring. The following articleaims to provide theoretical support for undertaking a reflection onparticular projects of rupture with the humanist tradition. Myoriginal motivation for doing so was given by the analysis of two

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    short essays: Rules for a Human Park, by Peter Sloterdijk, and Letteron Humanism, by Martin Heidegger. The paper conclues that thereis nothing more metaphysical than attempts to jump out ofmetaphysics and humanism.

    Keywords: humanism; post-humanism; modernity.

    Enviado para publicao: julho de 2004

    Aprovado para publicao: setembro de 2004