a comunidade do neutro- outro inconfessÁvel.pdf

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A COMUNIDADE DO NEUTRO: OUTRO INCONFESSÁVEL Gabriel Seabra de Freitas Medeiros 1 Nada de tentativas sérias de reforma, senão uma presença inocente (por essa causa supremamente insólita) que, ante os olhos dos homens de poder e escapando e suas análises, não podiam ser mais que denegridas com expressões sociologicamente típicas, como chienlit 2 , é dizer, o desdobre carnavalesco de seu próprio desconcerto, é de um mandamento que não mandava nada, nem sequer a si mesmo, contemplando, sem vê-la, sua inexplicável ruína 3 . Blanchot La comunidad de los amantes É preciso se aproximar cada vez mais perto do momento em que a linguagem mostrará seu poder absoluto fazendo nascer delas, de todas as suas pobres palavras, o terror; mas esse momento é aquele em que justamente a linguagem não poderá mais nada, em que o fôlego será cortado, em que ela deverá se calar sem sequer dizer que se cala. É preciso que no infinito a linguagem recue esse limite que leva consigo, e que marque ao mesmo tempo seu reino e seu limite. Daí, em cada romance, uma série exponencial e sem fim de episódios; depois, mais além, uma série sem fim de romances... A linguagem do terror é predestinada a um dispêndio infinito, mesmo quando ela se propõe a alcançar apenas um efeito. Ela se priva de qualquer repouso possível. Foucault A linguagem ao infinito De fato, quando eu falo, reconheço que somente existe palavra porque o que “é” desapareceu naquilo que o nomeia, fulminando para tornar-se a realidade do nome: a vida desta morte, eis o que é admiravelmente a palavra, a mais ordinária e, num nível mais elevado, a do conceito. Resta no entanto que – e seria cegueira esquecê-lo e covardia aceitá-lo –, o que “é” precisamente, desapareceu: algo estava, que não está mais aí; como reencontrar, como recuperar em minha palavra, esta presença anterior que precisa excluir para falar, falar dela? Aqui, evocaremos o eterno tormento de nossa linguagem, cuja nostalgia volta-se para aquilo que sempre faz falta, pela necessidade na qual se encontra a linguagem de ser falta para o dizer. Blanchot A conversa infinita 1 INTRODUÇÃO Em La communauté inavouable (A Comunidade Inconfessável), Blanchot busca recuperar uma reflexão – nunca interrompida a partir do texto de Jean-Luc Nancy 4 – que se expressa sobre a 1 Mestrando em Filosofia/UFRN e Advogado. Orientador: Dr. Eduardo Aníbal Pellejero/UFRN 2 Expressão atribuída a De Gaulle em Maio de 68: “ La réforme, oui; la chienlit, non”. Chienlit é uma máscara grotesca de carnaval, que fazia a frase de De Gaulle ressoar “ La reforma, sí; la carnavalada, no”. Há que assinalar que, lida literalmente, chienlit soa bastante forte: “caga-la-cama”. Em casteliano tem o “cagalaolla”. (Maurice Blanchot, La comunidad inconfesable, 2002). 3 Não é legenda, não é inversão, é o que reverbera paralelamente à visão: uma paisagem remota que se localiza no tempo (JUNG, Ana Emília. Robert Frank: entre visão e palavra, a imagem como fascínio). 4 NANCY, Jean-Luc. La communauté désoevrée, In Aléa, 4.

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A COMUNIDADE DO NEUTRO: OUTRO INCONFESSÁVEL

Gabriel Seabra de Freitas Medeiros1

Nada de tentativas sérias de reforma, senão uma presença inocente (por essa causa supremamente insólita) que, ante os olhos dos homens de poder e escapando e suas análises, não podiam ser mais que denegridas com expressões sociologicamente típicas, como chienlit2, é dizer, o desdobre carnavalesco de seu próprio desconcerto, é de um mandamento que não mandava nada, nem sequer a si mesmo, contemplando, sem vê-la, sua inexplicável ruína3.

BlanchotLa comunidad de los amantes

É preciso se aproximar cada vez mais perto do momento em que a linguagem mostrará seu poder absoluto fazendo nascer delas, de todas as suas pobres palavras, o terror; mas esse momento é aquele em que justamente a linguagem não poderá mais nada, em que o fôlego será cortado, em que ela deverá se calar sem sequer dizer que se cala. É preciso que no infinito a linguagem recue esse limite que leva consigo, e que marque ao mesmo tempo seu reino e seu limite. Daí, em cada romance, uma série exponencial e sem fim de episódios; depois, mais além, uma série sem fim de romances... A linguagem do terror é predestinada a um dispêndio infinito, mesmo quando ela se propõe a alcançar apenas um efeito. Ela se priva de qualquer repouso possível.

FoucaultA linguagem ao infinito

De fato, quando eu falo, reconheço que somente existe palavra porque o que “é” desapareceu naquilo que o nomeia, fulminando para tornar-se a realidade do nome: a vida desta morte, eis o que é admiravelmente a palavra, a mais ordinária e, num nível mais elevado, a do conceito. Resta no entanto que – e seria cegueira esquecê-lo e covardia aceitá-lo –, o que “é” precisamente, desapareceu: algo estava, que não está mais aí; como reencontrar, como recuperar em minha palavra, esta presença anterior que precisa excluir para falar, falar dela? Aqui, evocaremos o eterno tormento de nossa linguagem, cuja nostalgia volta-se para aquilo que sempre faz falta, pela necessidade na qual se encontra a linguagem de ser falta para o dizer.

BlanchotA conversa infinita

1 INTRODUÇÃO

Em La communauté inavouable (A Comunidade Inconfessável), Blanchot busca recuperar uma

reflexão – nunca interrompida a partir do texto de Jean-Luc Nancy4 – que se expressa sobre a

1 Mestrando em Filosofia/UFRN e Advogado. Orientador: Dr. Eduardo Aníbal Pellejero/UFRN2 Expressão atribuída a De Gaulle em Maio de 68: “La réforme, oui; la chienlit, non”. Chienlit é uma máscara grotesca de carnaval, que fazia a frase de De Gaulle ressoar “La reforma, sí; la carnavalada, no”. Há que assinalar que, lida literalmente, chienlit soa bastante forte: “caga-la-cama”. Em casteliano tem o “cagalaolla”. (Maurice Blanchot, La comunidad inconfesable, 2002).3 Não é legenda, não é inversão, é o que reverbera paralelamente à visão: uma paisagem remota que se localiza no tempo (JUNG, Ana Emília. Robert Frank: entre visão e palavra, a imagem como fascínio). 4 NANCY, Jean-Luc. La communauté désoevrée, In Aléa, 4.

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exigência comunista5, com as possibilidades (e a impossibilidade) de uma comunidade que perdeu

sua compreensão6 em sua imanência, submetendo à noção de reciprocidade.

Assumir tal postura, que leve o indivíduo a confirmar, com seus direitos inalienáveis, sua recusa a

ter outra origem que ele mesmo, sua indiferença a qualquer dependência teórica frente ao outro que

não fosse um indivíduo como ele, é dizer, ele mesmo, indefinidamente repetido, no passado ou no

por vir, não seria, de resto, a origem aparentemente sã do totalitarismo mais insano? Não haveria

um outro fora do entendimento comum, distinto do coletivo?

O perfeito desacordo (o abandono a ausência de limites) surge como a regra de uma ausência de

comunidade7; ou ainda, não se permite a ninguém não pertencer a minha ausência de comunidade.

Na base de cada ser, existe um princípio de insuficiência, princípio de incompletude8.

O ser, insuficiente, não busca associar-se a outro para formar uma sustância de integridade. A

consciência da insuficiência9 vem a seu próprio questionamento, o qual tem necessidade de outro ou

de algo distinto para ser efetuado. Só, o ser se fecha, dorme e se tranqüiliza. Ou bem está só, ou não

5 A comunicação, nessas condições, não é um vínculo (...) A ordem do comparecimento é mais originária que a do vínculo. Não se instaura, não se estabelece ou não emerge entre sujeitos (objetos) já dados. Consiste na aparição do entre como tal: tu e eu (o entre-nós), fórmula que não tem valor de justaposição mas de exposição. (NANCY, Jean-Luc. La comunidad desobrada, p. 58).6 Não está a comunidade fora do entendimento? Não há, sobre o defeito da linguagem, algo distinto que pode ser comum aos que pretendem pertencer a um conjunto, um coletivo, ainda que fosse proibido formar parte dele, qualquer que seja sua forma? Conceitos desonrados ou traídos, não existe tal coisa, senão conceitos que não são convenientes sem seu próprio-impróprio abandono (que não é uma mera negação), aqui temos o que não nos permite recusa-los tranqüilamente. Por mais que queiramos, estamos ligados a ele precisamente por sua defecção. (BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. ps. 11 a 13).7 É certo que (aproximadamente) de 1930 a 1940, a palavra comunidade se impões em sua investigação muito mais que nos períodos que seguirão, inclusive na publicação de L'erotisme. É possível dizer que a exigência política não há estado ausente de seu pensamento, mas que adota formas diferentes segundo sua urgência interior ou exterior. A comunidade não é, por conseguinte, a simples posta em comum, nos limites que ela se traçará, de uma vontade compartilhada de ser em muito, ainda que seja para não ser nada, é dizer, não fazer nada mais que seguir compartilhando algo que precisamente parece estar sempre sendo subtraído à possibilidade de ser considerado como parte em um compartilhamento: fala, o silêncio. As primeiras páginas do Le coupable diz sem rodeios: escrever baixo a pressão da guerra não é escrever sobre a guerra, sem em seu horizonte e como se ela fora companhia com quem um divide a cama (admitindo que ela te deixe um lugar, uma margem de liberdade). (Idem, ps. 11-12-13-15-16-21).8 Citações tomadas de George Bataille, da revista Contre toute attente, apud. BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable.9 O ser busca não ser reconhecido, senão ser impugnado: vá, para existir, até o outro que o impugna e às vezes o nega, com o fim de que não comece a ser senão nessa privação que não o faz consciente (esta é a origem de sua consciência) da impossibilidade de ser ele mesmo, de insistir como ipse ou, se se quer, como indivíduo separado: assim talvez ex-istirá, experimentando-se como exterioridade sempre prévia, ou como existência vista na perspectiva linear, só se compondo como se descompusera constante, violenta e silenciosamente. Deste modo, a existência de cada ser reclama ao outro ou uma pluralidade de outros (porque é como uma deflagração em cadeia que tem necessidade de certo número de elementos para produzir-se, mas que correria risco, se esse número não fosse determinado, de se perder no infinito, a maneira do universo, em qual só se compõe ilimitando-se em uma infinidade de universos). Reclama, por isso, uma comunidade: comunidade finita, porque ela tem, por sua vez, seu princípio na finitude dos seres que a compõem e que não suportariam que esta (a comunidade) esqueça de levar a um grau de tensão mais alto a finitude que os constitui. (BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. p. 19).

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se sabe mais que se não está10.

A ajuda mútua, egoísta ou generosa, que se comprova também nas sociedades animais não é

suficiente para fundar a consideração de uma simples coexistência gregária. A vida em manada já

está hieraquizada, mas, na submissão a um (ou a outro), não permanece a uniformidade que nunca

se há singularizado. A suficiência não se conclui a partir de um modelo de suficiência. Não se busca

o que se aprofunda à medida que se começa11.

Se a existência humana é a existência que se questiona radical e constantemente, não pode ter por si

só esta possibilidade que a supera, de outro modo que à pergunta lhe faltaria sempre uma pergunta

(a auto crítica não é evidentemente senão a recusa da crítica do outro, uma maneira de ser auto

suficiente reservando-se ao direito à insuficiência, o rebaixamento ante si que deste modo se

sobressalta)12.

Consignada à morte (desobra), a comunidade não se consigna a ela como quem se consigna a sua

obra. Não opera à transfiguração de seus mortos e de alguma substância ou classe de sujeito –

pátria, solo natal, nação... falatório absoluto ou corpo místico..., a comunidade assume e inscreve

em certo modo a impossibilidade da comunidade... Uma comunidade é a presentação a seus

membros de sua verdade morta (o que é tanto como dizer que não há comunidade de seres

imortais...). É a presentação da finitude e do excesso irrecuperável a qual funda o ser finito...13

A comunidade, em quanto rege para cada – para mim e para ela – um fora de si (sua ausência) que é

seu destino, da lugar a uma fala não compartilhada e sem dúvida necessariamente múltipla, de tal

maneira que não pode desenrolar-se em palavras: sempre já perdida, sem uso e sem obra e não 10 A sustância de cada ser é impugnada por cada outro sem descanso. Visto inclusive que expressa ou amor ou a admiração que se liga a mim como uma dúvida que afeta a realidade. O que penso não é só pensado. Há aqui um intrincado de motivos dissimiles que justificaria uma análise, mas que tem sua força em uma mistura de diferenças associadas.11 Sem dúvida a insuficiência requer a impugnação que, assim vem só de mim, é sempre a exposição ao outro (ou a outro), único capaz, por sua posição mesma, de se por em jogo. Aquele que prescreve o princípio da insuficiência está também encomendado ao excesso. O homem: ser insuficiente com o excessivo como horizonte. O excesso não é o demasiado pleno, o sobreabundante. O excesso dá carência e por carência é a exigência nunca satisfeita da insuficiência humana. (BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable).12 A presença do outro é imediata na relação de encontro ao outro, através da busca errante que retoma a exigência da palavra, os homens não se implicam diretamente, mas se engajam na elaboração de uma jornada comum, ou a relação desempenho fusional em qualquer hipóstases coletivas: e aquilo os separa, permite-os comunicar, protegendo-se através da distância que se mantém presente. O indivíduo é inacessível, e o inacessível é, de algum modo, imediato: o que me ultrapassa está, de algum modo, ao meu dispor, numa essência inalcansável. Não é isso evidentemente o que se debate.13 Blanchot acrescenta: Há dois rasgos essenciais neste momento de reflexão: 1) A comunidade não é uma forma restringida de sociedade, assim como tampouco tende a fusão comunal. 2) A diferença de uma célula social, se proíbe fazer obra e não tem como finalidade nenhum valor de produção. Para que serve? Para nada, se não é parar fazer presente o serviço ao próximo até a morte, para que o próximo não se perda solitariamente, senão que se faça suprido (remediado suas carências), ao mesmo tempo que lhe aporta ao outro essa suplência que lhe é procurada. (BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable, p. 27-28).

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magnificando-se nesta mesma perda. Sendo assim dom14 da fala, dom em pura perda que não podia

assegurar a certeza de ser nunca recebida por outro (se o próximo é o único que se faz possível se

não em fala, pelo menos a súplica de falar), e que leva consigo o risco de ser recusada ou extraviada

ou não recebida.

Cada membro da comunidade não é sozinho toda comunidade, senão sua encarnação violenta,

disparada, equipada, impotente, do conjunto de seres que, a tender a existir integralmente, têm

como corolário a nada em que eles de antemão já não tenham caído (dado). Cada membro forma

grupo só mediante o absoluto da separação que é necessário afirmar para que se rompa até o ponto

de se converter em relação, relação paradoxal, inclusive insensata, se é relação absoluta com outros

absolutos que excluem qualquer relação15.

Ressalta-se que a comunidade não é o lugar da soberania, é o que expõe expondo-se. Inclui a

exterioridade de ser que a exclui: exterioridade que o pensamento não domina, ainda que fosse

dando nomes diversos – a morte, a relação com o próximo ou inclusive a fala, quando esta não

replica em modos falantes – e não permite assim nenhuma relação (nem de identidade nem de

alteridade) consigo mesma.

A experiência interior16 diz o contrário do que parece dizer: movimento de impugnação que, vindo

do sujeito, o devasta, mas que tem como origem mais profunda a relação com o outro que é a

comunidade mesma, a qual não seria nada se não abrisse aquilo que se expõe nela à infinidade da

alteridade, ao mesmo tempo que ela decide sua inexorável finitude17.

A multiplicidade de indivíduos se apresenta através da multiplicidade de palavras, que medirão as

experimentações à presença do outro. De fato, a relação com o outro não pode se reduzir a qualquer

medida. Entre este outrem e este eu, a distância é infinita, no entanto, ao mesmo tempo, outrem é

14 Há o dom pelo qual se obriga a quem o recebe a entregar um excedente de poder ou de prestígio a aquele que dá – deste modo, não se dá nunca. O dom que é abandono encomenda ao ser abandonado a perder, sem pensar em uma restituição, sem cálculo e sem salvaguarda, até seu ser que dá: daí a exigência do infinito que há no silêncio do abandono. O dom ou o abandono é tal que em último término não há nada que dar nem nada que abandonar e tal que o tempo mesmo é somente uma das maneiras entre as quais esse nada que dar se oferece e se retira como o capricho do absoluto que sai de si dando lugar a outro distinto de si, baixo as espécies de uma ausência. Ausência que, de maneira restringida, aplica-se à comunidade da qual seria seu único segredo, evidentemente inapreensível. (BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable, ps. 34-35).15 Paródia dum sacrifício efetuado não para destruir certa ordem opressora senão para reconduzir a destruição a outra ordem de opressão. (BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable, ps. 32-33).16 Termo usado por Georges Bataille em Acéphale. A ilusão Acéphale é portanto o abandono vivido em comum, abandono de/e à angústia última que outorga o êxtase. (BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable, p. 37).17 Inclusive se a comunidade exclui a imediatez que a afirmaria a perda de cada um no desvanecimento da comunhão, propõe ou impõe o conhecimento (a experiência, Erfahrung) do que não pode ser conhecido: esse “fora de si” (ou o fora) que é o abismo e ou êxtase, sem deixar de ser uma relação singular. (BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable, p. 38).

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para mim a presença mesma do infinitamente distante da palavra que se afirma, desviada do todo,

presente em sua própria ausência – uma presença infinitamente outra, fora de qualquer tentativa de

se nomear18.

A representação se apresenta como problema à comunidade dos homens, que tecem o espaço de

convivência comum. Os acontecimentos de Maio de 68 são ora registrados por Blanchot como uma

festa de comunicação explosiva!19, sem projeto nem vontade política, de uma possibilidade de estar-

juntos que dava a todos o direito à igualdade na fraternidade de uma liberdade de palavra que

exercia cada um20. Assim, diz que a estranheza do que não poderia ser comum é o que funda essa

comunidade eternamente provisória e sempre desertada. A abertura que cada um lhe permitia – sem

distinção de idade, de sexo ou de cultura, congregar-se com o primeiro que passa, como um ser já

amado, precisamente porque era o familiar-desconhecido21.

A comunidade aparece onde o indivíduo é posto fora de si, em seus limites. A experiência

comunitária dos limites tem se convertido agora na experiência, necessariamente compartilhada, da

finitude. A experiência dessa partição que recorta as singularidades em sua distância irredutível é a

comunidade mesma como espaçamento do fora de si22.

O coração da emancipação está, neste caso, em se declarar capaz daquilo que certa distribuição dos

18 Em La Communauté Desoeuvrée, Nancy apresentará uma dimensão da palavra (parole) segundo a qual as palavras (mots) – composição individualizada de fonemas, meios de expressão que, segundo o contexto em que aparecem, podem ser orais ou escritas – formam-se na articulação da boca, na exposição de um “dentro” ao “fora”. A palavra (parole) não é um meio de comunicação – como a fala seria, outra acepção para parole, sobretudo consoante o entendimento que provém da linguística saussuriana, na qual a dicotomia langue/parole atribui à segunda a realização ou desempenho –, mas a comunicação até o silêncio, nas palavras de Nancy, a exposição, e para tanto se reportará ao canto dos esquimós inuítes, cujos gritos se entregam à boca aberta de um parceiro: “A boca falante não transmite, não informa, não opera um laço, ela é – talvez, mas no limite, como no beijo – o batimento de um lugar singular contra outros lugares singulares” (NANCY, 2004, p.77, grifo nosso, apud. CASAL, Amanda Mendes e FILHO, Eclair Antonio Almeida. Cadernos de Tradução, nº 29, p. 195-210, Florianópolis – 2012/1, pg. 204).19 Michel de Certeau resumiu em seu famoso livro A tomada da palavra, Maio de 68 é, principalmente, a festa de uma “comunicação explosiva” na qual todo o mundo tinha algo a dizer, a dizer-se. Expor-se não é uma ação. Se assim fosse, seguiria remetendo a um filosofia do sujeito, capaz de decidir e de se definir segundo sua vontade. O êxtase “é o que acontece com a singularidade”, escreve Nancy (J. L. Nancy, La comunidad desobrada , Madrid, Arena Libros, p. 21). Giorgio Agamben retoma o mesmo fio de pensamento em A comunidade que vem: o “que seja” é “o sucesso de um fora” ( Agamben, G., La comunidad que viene , Valencia, Pre-textos, p. 53), uma experiência do limite, um dom que a singularidade recolhe das mãos vazias da humanidade. A presença desse dom que põe o indivíduo fora de si e o obriga ante o outro, do dom como obrigação que se contrai com o outro.20 Também neste sentido é como o mais pessoal não podia se guardar como segredo próprio de um só, posto que rompia com os limites da pessoa e exigia ser compartilhado, melhor ainda, se afirmava como o compartilhamento mesmo. Tal como remete à comunidade, expõe-se nela, aí pode se teorizar, é o risco que corre, convertendo-se numa verdade ou num objeto que se podia reter, entre a comunidade, como diz Jean-Luc Nancy, só se mantém como o lugar – o não-lugar – onde não há nada a reter, segredo de não ter nenhum segredo, que não obra senão na desobra (désoeuvrément) que atravessa a escritura mesma ou que, que repique o silêncio final onde, sem embargo, não se está seguro de que todo, finalmente, termine. Não há fim ali onde reina a finitude. (BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable, ps. 41-52).21 Idem, ps. 55-89.22Idem, p. 41.

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lugares lhe nega a capacidade, de declarar-se capaz disso como representante qualquer de todos

aqueles cuja capacidade é aparentemente denegada23.

Para Blanchot, o que haveria entre o homem e o homem, se não houvesse nada mais que o intervalo

representado pela palavra, entre, vazio tão vazio que não se confunde com o puro nada, seria uma

separação, dando-se como relação nessa exigência que é a palavra nossas relações no mundo e

como mundo são sempre, finalmente, relações de potência, onde a potência está em germe na

possibilidade. Ficando nos traços mais aparentes de nossa linguagem, quando falo, tenho sempre

uma relação de potência. Eu pertenço, quer saiba ou não, a uma rede de poderes da qual me sirvo,

lutando contra a potência que se afirma contra mim: toda palavra é violência, violência que se

exerce já sobre aquilo que a palavra nomeia e que ela não pode nomear senão retirando dela a

presença – sinal, nós o vimos, de que a morte fala (essa morte que é poder), quando eu falo

(sabemos que quando se discute não se luta). A linguagem sinaliza a ação pela qual a violência

aceita não estar aberta, mas escondida, renuncia a se esgotar numa ação brutal para reservar-se

visando um domínio mais potente, não se afirmando mais desde então, mas no entanto, no cerne de

toda afirmação24.

O comum é, de fato, o regime do mundo: da circulação dos sentidos. A esfera do comum não é

uma: ela é feita de múltiplas aproximações da ordem do sentido – a qual, por sua vez, é ela mesma

múltipla, como na diversidade das artes, dos pensamentos, dos desejos, dos afetos etc..25.

Comunidade formada por singularidades não identitárias ou, como dirá Pelbart, pelo

“compartilhamento de uma separação dada pela singularidade26.

Certa vez, Georges Bataille, escrevendo sobre a literatura de Emily Brontë, afirma que na ficção há

uma vontade de ruptura com o mundo, para melhor enlaçar a vida em sua plenitude e descobrir na

criação artística o que a realidade recusa. É o despertar, a utilização propriamente dita, de

23 A emancipação funda uma ideia do universal político não mais como aplicação da lei comum aos indivíduos, mas como processo de desidentificação, isto é, de saída por quebra de certo estatuto sensível, de certo lugar na ordem do visível e do dizível, na distribuição dos lugares e dos tempos. Tudo passa entre nós: esse entre, como seu nome indica, não tem consistência própria, nem continuidade. Não conduz de um a outro, não serve de tecido, nem de cimento nem de ponte. Talvez, nem sequer seja exato falar a respeito de vínculo: nem está ligado nem desligado, mas por baixo de ambos (...) Todo ser toca a qualquer outro, mas a lei do tato é a separação. É a partir dessa desidentificação que repensei a democracia como o poder dos sem-parte, isto é, daqueles que não representam nenhum grupo, função ou competência particulares. (MIGUEL ABENSOUR, JEAN-LUC NANCY & JACQUES RANCIÈRE. Insistências democráticas e entrevista, realizada por Stany Grelet, Jérôme Lèbre & Sophie Wahnich. Revista Princípios, v. 19, nº 32. Natal (RN), Julho/Dezembro de 2012, p. 526 (Traduzido do francês por Vinícius Nicastro Honesko)).24 Blanchot, M., L'entretien infini, Gallimard, 1969, p. 97.25 O que democracia quer dizer aqui é a admissão – sem assunção – de todas as diversidades em uma comunidade que não as unifica, mas que implanta, ao contrário, sua multiplicidade e, com ela, o infinito em que elas constituem as formas inomináveis e inacabáveis (Nancy, 2009, p. 91).26 PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios sobre biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 141.

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virtualidades ainda insuspeitadas. Que esta liberação seja necessária a todo artista é incontestável;

ela pode ser sentida mais intensamente naqueles em que os valores éticos estão mais fortemente

arraigados27.

No que discorre sobre o movimento de Maio de 68, Blanchot situa as artes como espaço de

expressão de uma comunicação infinita, que se pregava às paredes, tendo sido deliberadamente

descartadas ações políticas como base da comunidade. Neste contexto, palavra fragmentária se

torna capaz de recorrer ao sentido coletivo, almejado por Blanchot e seus amigos – seja nas revistas

desses anos, através de pixos, panfletagem28 –, nada imposto pela eficácia. Eficazes ou não,

pertencem a decisão do instante. Aparecem, desaparecem. Não dizem tudo, pelo contrário arruinam

ao todo, estão fora do todo. Atuam, refletem fragmentariamente sem deixar rastros (traços e riscos

sem rastro, como as palavras sobre as paredes, escrevem-se na insegurança e são recebidas com

ameaça, levando em si mesma o perigo), e logo passam com o transeunte que as transmite, as perde,

ou as esquece29.

A relação com o outro assinalava um tipo de pertença que não remete a nenhum tipo de vínculo,

mas que é pensada como pura comunicação entre singularidades, entre um e outro, num espaço de

comunicação infinita30. Marina Garcés31 nos recorda que, em 68, a ruptura32 já não é só deserção,

mas se torna revolução: ruptura do tempo, descontinuidade radical, acontecimento que produz o

vazio. Como escreverá Blanchot quinze anos depois, “dizer prevalecia sobre o dito”33.

Na carta Sobre el movimiento, publicado pela Les Lettres nouvelles em junho/julho de 1968, após a

dissolução do Comitê de ação Estudantes-Escritores a serviço do Movimento, Blanchot reafirma a

importância do movimento para o cenário político da época:

27 BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. ed. L&PM, 1989 – Porto Alegre, ps. 19-20.28 Para Blanchot, a palavra é, para o olhar, guerra e loucura. A terrível palavra ultrapassa todo limite e, até, o ilimitado do todo: ela toma a coisa por onde não se a toma, por onde não é vista, nem nunca será vista; ela transgride as leis, liberta-se da orientação, ela desorienta (Blanchot, M., La communauté inavouable, París, Minuit, p. 53/67).29 BLANCHOT, Écrits politiques, 1958-1993, p. 112.30 SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 31 Garcés, Marina. Escritos Políticos de Maurice Blanchot, 2011. Disponível em: http://revistapolichinelo.blogspot.com/2011/06/escritos-politicos-de-maurice-blanchot.html.32 ¿Qué ruptura? La ruptura con el poder, por tanto, con la noción de poder, en todos los lugares donde predomina un poder. Eso vale ciertamente para la Universidad, para la idea de saber, para la relación de palabra docente, dirigente y quizás para toda palabra, etc., pero eso vale incluso para nuestra concepción incluso de la oposición al poder, cada vez que esta oposición se constituye en partido de poder. (…) Afirmar radicalmente la ruptura: eso equivale a decir (es el primer sentido) que estamos en estado de guerra contra aquello que, en todo lugar y siempre, sólo se relaciona com una ley que no reconocemos, con una sociedad cuyos valores, verdades, cuyo ideal, cuyos privilegios nos son extraños; y que, por ende, sólo se relaciona con un enemigo tanto más temible cuanto que parece más complaciente. (BLANCHOT, Écrits politiques, 1958-1993, ps. 101-102).33 Blanchot, M., La communauté inavouable, París, Minuit, p. 53. [Existe traducción al castellano: La comunidad inconfesable , Madrid, Arena Libros, 2007.

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Dicho de outro modo, el “movimiento” (en la medida en que ese término tiene un sentido y no disimula una inmovilidad agitada), en lugar de resguardarse en la contestación universitaria, debe buscar expresarse mediante una lucha principalmente social, una lucha siempre colectiva concerniente a todas las categorías oprimidas, que movilice toda la energía popular, en la cual debe hacerse todo lo necesario para articular, hasta la ruptura, aquellos conclictos que la sociedad moderna siempre ha ocultado y que, desde ahora, constiuyen la realidad pública cotidiana. Lucha extremadamente difícil, de donde deben ser separadas las pequeñas acciones aisladas, todas las iniciativas que sólo tiendan al espectáculo y que no puedan ser retomadas por el conjunto de las clases en lucha; dicho combate es tanto más difícil cuanto que, en cieta forma y en el plan de la representación, el resultado victorioso es ya intervenido sin haber podido concretarse en términos políticos e institucionales, porque la apuesta superaba ampliamente las habitualies posibilidades políticas. (BLANCHOT, 2006, págs. 127-128).

A presença do povo havia que ser entendida, não como o conjunto de forças sociais, prontas para

decisões políticas particulares, senão em sua recusa instintiva a assumir algum poder, em sua

apreensão absoluta a se confundir com um poder ao que estaria delegado, por tanto em sua

declaração de incompetência. Daí o equívoco dos comitês que se multiplicaram em seguida, que

pretendiam organizar a inorganização, respeitando-a por completo, e que não mais deveria se

distinguir da “multidão anônima e inumerável do povo em manifestação espontânea”34. Assim como

Tristão e Isolda, nos lembra Blanchot, o outro se funde no mesmo, o que o devolve o sentimento de

que a paixão escapa à possibilidade, e ao escapar – como no caso dos que estão imersos nela –

escapa a seus próprios poderes. Nem separados nem divididos, inacessível e, no inacessível,

submetidos a uma paixão infinita, dando atenção infinita ao próximo, com uma indigência que se

põe sobre todo ser35.

Nancy reforça o sentido não vinculativo desse entre da seguinte maneira:

Tudo passa entre nós: esse entre, como seu nome indica, não tem consistência própria, nem continuidade. Não conduz de um a outro, não serve de tecido, nem de cimento nem de ponte. Talvez, nem sequer seja exato falar a respeito de vínculo: nem está ligado nem desligado, mas por baixo de ambos (...) Todo ser toca a qualquer outro, mas a lei do tato é a separação36.

Apesar dos mal-entendidos próprios das existências particulares, com essa comunicação, Blanchot

dá lugar a algo que, permitia por alguns instantes, próprios das existências singulares, através dos

mal-entendidos reconhecer a possibilidade de uma comunidade previamente estabelecida ao mesmo

tempo que já póstuma: nada subsistiria dela, isso oprimia o coração, também era exaltando – algo

assim como a prova mesma da rasura que exige a escritura37.

34 Georges Preli, La force du dehors, Encres, Editions Recherches, apud BLANCHOT. Comunidad Inconfesable, p. 57.35 Mas é lei a moral que desafia à paixão toda lei, como responsabilidade ou obrigação com o próximo que não venha da lei (da aliança que está dada aos humanos para os libertar da idolatria, quando esta cultua a idolatria sobre si mesma, nas formas da lei) – quando a urgência de socorrer ao próximo altera qualquer estudo e se impõe como aplicação da Lei que sempre precede a lei. (BLANCHOT. Comunidad Inconfesable, p. 75).36 NANCY, JEAN-LUC. Ser singular plural, Arena Libros, 2006, p. 21.37 BLANCHOT. Comunidad Inconfesable. Tradução de Isidro Herrera, Madrid: Arena Libros, 1999. [Existe traducción

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Na década de 80, a fala se volta a outra experiência do comum na qual o Outro absoluto, e não o

nós, se tornou o protagonista solitário de qualquer idéia de comunidade. A experiência comunitária

dos limites tem se convertido agora na experiência, necessariamente compartilhada, da finitude. A

experiência dessa partição que recorta as singularidades em sua distância irredutível é a comunidade

mesma como “espaçamento do fora de si”38.

O movimento, em lugar de resguardar-se na contestação universitária, deve buscar se expressar

mediante uma luta principalmente social, uma luta sempre coletiva concernente a todas as

categorias oprimidas, que se move a toda energia popular, na qual deve haver todo o necessário para

articular, até a ruptura, aqueles conflitos que a sociedade moderna sempre há ocultado e que, desde

agora, constituem a realidade pública cotidiana39. Assume-se, neste instante, que a palavra liberta, e

se mantém a distância que repousa na admiração e no acordo da conversa – como na amizade –

infinita. Neste sentido, a fala não pode ser considerada propriedade (ou vinda de alguém). Caso

sigamos uma trajetória, que seja uma trajetória cega. Não vamos a lugar algum. Nessa medida, que

propõe a relação de terceiro gênero, na qual um e outro perdem seu caráter pessoal e subjetivo para

experimentar a impessoalidade, a neutralidade, da alteridade radical – uma relação pensada desde

uma separação, que não remete a nenhuma unidade pensável: um e outro no abismo, na vertigem,

na interrupção que escapa à toda medida.

O neutro é a nova figura do anonimato, tal como se apresenta na cena da alteridade. Como o anonimato coletivo põe em marcha uma relação que rompe o campo lógico e lingüístico do diálogo entre sujeitos, de seu encontro, unidade ou superação. Essa seria a relação de homem para homem quando já não houver entre eles a proposta de um Deus, nem a mediação de um mundo, nem a consistência de uma natureza40.

Em A Conversa Infinita, mantém a palavra como o modo de busca pela compreensão, como a forma

pela qual nos aproximaríamos do Outro; ao mesmo tempo que ela age como fator de

impossibilidade e de afastamento, pois, se o Outro fala, fala através da infinita distância que o

al castellano: La comunidad inconfesable , Madrid, Arena Libros, 2007].38Idem, p. 41.39 Texto intitulado Sobre o movimento, escrito em dezembro de 1968, e publicado em junho/julho de 1969, sem assinaturas, junto de outros quatro textos, publicados na edição “Um ano depois, o Comitê de ação Escritores-estudantes”, no Les Lettres Nouvelles. Maurice Blanchot propõe uma linguagem que se afirme na busca de uma palavra plural, fundada não mais na igualdade e na desigualdade, nem na predominância e na subordinação, tampouco na mutualidade recíproca, mas na dissimetria e na irreversibilidade, de tal modo que, entre duas palavras, uma infinidade esteja sempre implicada como movimento da própria significação – que se escreva de tal maneira, que a continuidade do movimento da escrita possa deixar intervir fundamentalmente a interrupção como sentido e a ruptura como forma.40 A cada retomada, eles ouvem (como não ouviriam?) estas considerações que são, neste momento, o fundo sobre o qual todas as palavras ainda se destacam: cansados ou benevolentes, nós nos compreendemos. Compreensão que, de repente, abre-se a esta palavra, na qual nada se exprime: um pouco mais que um murmúrio: não sei o que serei ( je ne sais que devenir). A comodidade de um objetivo, ainda que objetivo distante, não existe. Nem máximas, nem aforismos, nem palavras expressivas, menos ainda o vale-tudo da escrita automática. L'Entretien Infini (A conversa infinita, 1969) reúne textos elaborados de 1953 a 1965. (BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita, 2001, p. 77-97).

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separa de mim, e sua palavra me anuncia precisamente este infinito41. A busca pela compreensão

permanece enquanto busca, como um centro que não se encontra, mas permite-se encontrar e girar,

enquanto “a verdade dissiparia o erro, se o encontrasse. (…) Errar é provavelmente isto: ir ao

desencontro”42.

As palavras o jogo, o acaso, o encontro designam, sem definir, um novo, que é a vertigem do

espaçamento a partir do qual o desconhecido se anuncia – quer seja na vida pelo desejo, no saber

pela expressão nada incontrolada de uma ausência de saber, no tempo pela afirmação da

intermitência, no todo do Universo pela recusa do Único e pelo entendimento de uma relação sem

unidade, na obra enfim pela liberação da ausência de obra – espaço múltiplo que apenas afirmaria,

longe de toda afirmação, uma fala plural, dando um sentido novo à pluralidade43.

É justamente no retorno à busca inacabada, errante e fugaz, que o autor revela que “a experiência

não é a saída. Ela não satisfaz, é sem valor, sem suficiência, e apenas tal que libera de seu sentido o

conjunto das possibilidades humanas e todo o saber, toda fala, todo silêncio e todo fim e até esse

poder morrer de que tiramos nossas últimas verdades”44. Neste sentido, a palavra se afirma em sua

experiência latente e, como no sonho, nem encobre nem desvela, mas se impõe como risco no

mundo, fazendo referência ao que se diz. Consequentemente, numa tarefa incansável do cotidiano,

edificamos o mundo, a fim de que a secreta dissolução, a universal corrupção que rege o que “é”,

seja esquecida em favor desta coerência de noções e de objetos, de relações e de formas . Assim,

fazemos uso dos conceitos como instrumentos para instaurar um novo por vir45.

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