a competÊncia discursiva atravÉs dos gÊneros

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO

A COMPETNCIA DISCURSIVA ATRAVS DOS GNEROS TEXTUAIS: UMA EXPERINCIA COM O JORNAL DE SALA DE AULA

MARCOS ANTONIO ROCHA BALTAR

PORTO ALEGRE, MARO 2003

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APRESENTAO Este trabalho foi desenvolvido no programa de Ps-Graduao em Letras do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientao do Prof. Dr. Paulo Coimbra Guedes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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AGRADECIMENTOS

Agradeo aos professores Marc Angenot e Suzanne Chartrand, pela acolhida em Montreal; professora ngela Kleiman, pela luz inicial; ao professor Paulo Guedes, pela serenidade na orientao do trabalho; aos alunos e professores pela cooperao e pelo entusiasmo transmitido na produo dos jornais; Alexandra Finotti, pela sua companhia durante a caminhada.

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SUMRIO APRESENTAO ........................................................................................................i AGRADECIMENTOS................................................................................................. ii SUMRIO.................................................................................................................. iii LISTA DE TABELAS ..................................................................................................v RESUMO.....................................................................................................................vi RSUM ....................................................................................................................vii 1 INTRODUO ....................................................................................................1 2 SOBRE A COMPETNCIA ...............................................................................13 2.1 Introduo....................................................................................................13 2.2 Saussure e Chomsky e Hymes......................................................................13 2.3 Chomsky e Dell Hymes: dois pontos de vista diferentes para a formulao de uma teoria lingstica ..............................................................................................14 2.3.1 Hymes versus Chomsky: em busca de uma teoria.................................15 2.4 Competncia, capacidade e comunicao .....................................................18 2.5 Competncia social; comunidades sociolingsticas e indivduos .................20 2.6 Competncia, tipos de saber e fontes de saber ..............................................22 2.7 Competncia social; competncia de comunicao: competncia sociolingstica........................................................................................................23 2.8 Voz e competncias : comunicativa, social e discursiva ...............................23 2.9 A noo de competncia de Perrenoud.........................................................25 3 OS GNEROS TEXTUAIS ................................................................................27 3.1 Introduo....................................................................................................27 3.2 Um novo tema nos estudos lingsticos........................................................27 3.3 Questes de nomenclatura e definies ........................................................29 3.4 Gneros: classificao e tipologias...............................................................32 3.4.1 Contribuio da sociologia ...................................................................33 3.4.2 Contribuio da Psicologia...................................................................35 3.4.3 A contribuio da Lingstica...............................................................36 3.4.3.1 As classificaes homogneas ..........................................................37 3.4.3.2 As classificaes intermedirias .......................................................40 3.4.3.3 . As classificaes heterogneas .......................................................49 3.5 Os gneros a partir de Bronckart ..................................................................51 3.5.1 As bases do Interacionismo scio-discursivo e os gneros....................52 3.5.2 Gneros textuais: infra-estrutura geral de um texto...............................57 3.5.2.1 O plano geral dos textos ...................................................................57 3.5.2.2 . Mundos discursivos e tipos de discurso ..........................................58 3.5.2.3 Os tipos de discurso..........................................................................61 3.5.2.4 Seqncias .......................................................................................64 3.5.2.5 Outras formas de planificao - Script ..............................................71 3.5.2.6 Outras formas de planificao - Esquematizao ..............................71 3.5.2.7 Os mecanismos de textualizao.......................................................73 3.5.2.8 Os mecanismos de enunciao..........................................................78 4 AES PEDAGGICAS PARA DESENVOLVER A COMPETNCIA DISCURSIVA ESCRITA ...........................................................................................82 4.1 Introduo....................................................................................................82 4.2 O lugar da escrita nas instituies sociais .....................................................82 4.3 Anlise e crtica das pedagogias tradicionais ................................................83

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4.4 Um embasamento terico-psicolgico para a ao pedaggica.....................85 4.4.1 Uma viso interacionista ......................................................................85 4.4.2 Competncia e dimenso metacognitiva ...............................................86 4.4.3 Vygotsky: signo, gneros, pensamento e linguagem .............................87 4.5 Competncia discursiva escrita e competncias gerais..................................87 4.5.1 Competncias gerais.............................................................................87 4.5.2 .A competncia discursiva escrita.........................................................88 4.5.2.1 . As operaes de competncia escrita ..............................................88 4.6 Competncia discursiva e gneros: uma ao pedaggica.............................90 4.7 O papel do educador ....................................................................................91 4.8 A Pedagogia do projeto, a competncia discursiva e o Jornal de Sala de Aula 92 5 PROCESSO HISTRICO METODOLGICO DA PESQUISA .........................94 5.1 Introduo....................................................................................................94 5.2 A imprensa na escola: relato da experincia .................................................94 5.2.1 A escola Emlio Massot e o Jornal de Sala de Aula...............................96 5.2.2 A escola Jlio Grau e o Jornal de Sala de Aula................................... 100 6 OS GNEROS TEXTUAIS DO JORNAL DE SALA DE AULA ..................... 108 6.1 Introduo.................................................................................................. 108 6.2 Os gneros textuais do jornal de sala de aula como atividade de linguagem108 6.3 Descrio e anlise dos gneros textuais do jornal de sala de aula .............. 109 6.3.1 Os gneros textuais que compuseram os jornais produzidos nas duas escolas onde foi realizada a pesquisa so os seguintes:....................................... 109 6.3.2 Anlise dos gneros textuais jornalsticos trabalhados em nossos jornais de sala de aula ................................................................................................... 115 7 CONSIDERAES FINAIS............................................................................. 128 8 REFERNCIA BIBLIOGRFICA ................................................................... 132 ANEXO 1 ................................................................................................................. 140

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LISTA DE TABELAS Tabela 1. Terminologia ...............................................................................................32 Tabela.2. Formas de referncia....................................................................................47 Tabela.3. Planificao .................................................................................................72 Tabela 4 Sees dos jornais....................................................................................... 109 Tabela 5. Estruturao interna das sees .................................................................. 110 Tabela 6. Estruturao interna das sees .................................................................. 111 Tabela 7 Estruturao interna das sees ................................................................... 112 Tabela 8 Estruturao interna das sees ................................................................... 113 Tabela 9. Quadro dos gneros jornalsticos - a partir de entrevistas com a jornalista do Correio do Povo Liana Pithan ............................................................................ 124

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RESUMO O presente estudo busca entender a relao entre a competncia discursiva escrita e o trabalho com os gneros textuais -postulado por Bronckart-, com o seu interacionismo scio-discursivo. Como ferramenta metodolgica da pesquisa foi efetuada a atividade de linguagem da produo de um jornal de sala de aula com alunos do ensino mdio de duas escolas pblicas de Porto Alegre. Atravs desse suporte textual, os alunos-escritores das duas escolas puderam praticar a lngua escrita, trabalhando com gneros textuais diversificados, buscando interagir sciodiscursivamente com seus colegas-leitores e com toda a comunidade escolar. A pesquisa aponta para a emerso de novos gneros hbridos que surgiram em funo da produo dos gneros textuais jornalsticos no ambiente discursivo escolar, alm de mostrar a importncia do trabalho com projetos dentro da escola, visando a uma ao pedaggica legtima, notadamente, no que diz respeito ao ensino-aprendizagem da lngua escrita.

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RSUM Cette tude analyse le rapport entre la comptence discursive crite et le travail propos des genres textuels postuls par Bronckart selon son interactionnisme sociodiscursif. Loutil mthodologique de la recherche a t propos partir de la production dun journal de classe compos par les lves de niveau secondaire des deux coles publiques de Porto Alegre, pratique considre comme une action langagire en conformit avec la pdagogie des projets. travers ce support textuel, les lvescrivains ont pu mettre en pratique la langue crite en travaillant avec des genres textuels diversifis, en cherchant toujours linteraction socio-discursive avec leurs collgues-lecteurs et toute la communaut scolaire. La recherche montre aussi lmergence de nouveaux genres hybrides qui sont apparus en raison de la production des genres textuels journalistiques dans le milieu social quest lcole, en cherchant une action pdagogique lgitime en ce que concerne lenseignement-apprentissage de la langue crite.

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INTRODUO

O propsito deste trabalho o de refletir sobre algumas questes que serviro de base para a elaborao de uma proposta de ensino de lngua materna diferente do ensino vigente na maioria das escolas brasileiras. Tentaremos mostrar com esta pesquisa que o trabalho com produo de textos, associado noo de gneros textuais e de tipos de discursos, notadamente os gneros que ocorrem no ambiente discursivo jornalstico escrito, pode contribuir para desenvolver em nossos alunos o que chamaremos de competncia discursiva;ou seja, uma capacidade de interao verbal que demonstre o entendimento de que conceitos como os de Lngua e Linguagem podem e devem ser trabalhados estreitamente ligados a conceitos como os de sociedade, de comunidades lingsticas, de instituies sociais e de cidadania. A produo dos gneros textuais do ambiente discursivo jornalstico produzidos na instituio social da mdia impressa (jornal): reportagem, editorial, crnicas, etc, e dos gneros textuais, produzidos a partir da sala de aula, ambiente discursivo escolar ou mdia escolar, isto , no lugar social escola, sero tratadas como uma situao de escrita nova, com a possibilidade de surgimento de novos gneros textuais a partir de modelos j existentes, mas com caracterstica particulares, de acordo com a capacidade de seus agentes e do ambiente onde esto inseridos. Embora consideremos necessrio o desenvolvimento da competncia discursiva, tanto no registro oral quanto no registro escrito, nesta pesquisa abordaremos principalmente o registro escrito, ou seja, trabalharemos os gneros textuais a partir da produo de um jornal escrito em sala de aula. A questo da competncia discursiva escrita ser central ao longo deste trabalho por acreditarmos que a reside o grande objetivo de estudar-se a lngua. Acreditamos que a prtica da leitura e da produo escrita sob a tica dos gneros essencial ao exerccio e ao aprimoramento desta competncia; e a escola, embora no seja o nico, deve ser o principal lugar onde isso possa ocorrer. Alm disso, o ensino de lngua materna deve estar associado s necessidades reais do uso da linguagem pelos seus falantes reais em seu meio social. Esse uso requer certas capacidades que, em determinadas situaes, os falantes devem atualizar para sentirem-se confortveis na interao verbal. Pode-se dizer que a competncia discursiva engloba uma srie de capacidades e saberes. Engloba a competncia lingstica ou gramatical; isto , a

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capacidade de usar os recursos gramaticais lingsticos que a lngua oferece nas diversas situaes de comunicao: fonolgicos, morfossintticos e semnticos1. Engloba tambm a competncia textual; isto , a capacidade que todo usurio tem de reconhecer um texto como uma unidade de sentido coerente e de produzir textos coerentes de diversos tipos, a capacidade de resumir um texto, de dar um ttulo ou de produzir um texto a partir de um ttulo dado, de discernir entre um artigo de jornal e um questionrio2. Em outras palavras, a competncia discursiva a capacidade que os usurios da lngua (no caso da nossa pesquisa, alunos de ensino mdio de uma escola pblica) tm ou devero ter para, ao criarem seus textos, escolherem o gnero que melhor lhes convier, dentro de um inventrio de gneros que existem no intertexto elaborado por geraes de escritores. Tais gneros esto disponveis nas formaes scio-discursivas contemporneas para serem utilizados como modelos ou serem transformados em novos gneros, atravs de sua atualizao individual pelos usurios de uma lngua natural. A competncia discursiva que postulamos, diferentemente das competncias lingstica e textual de Chomsky e Van Dijk, que partem de um pressuposto cognitivista inatista, s pode ser adquirida nas atividades de linguagem, na interao verbal dos indivduos atravs dos gneros textuais, dentro das formaes scio-discursivas e dos ambientes discursivos que existem em sociedade. Seguimos, portanto, a tese de Bronckart com o seu interacionismo scio-discursivo, a partir, principalmente da psicologia interacionista de Vygotsky, da teoria discursiva de Bakhtin e da tese de M. Foucault sobre as formaes discursivas. A partir destas consideraes, propomos uma reflexo sobre a prtica do ensino da escrita em sala de aula centrada na redao escolar. Consideramos textos escolares os textos monolgicos escritos por alunos endereados ao professor de portugus, com a finalidade nica de ganhar uma nota; isto , uma produo dissociada do uso real da linguagem e sem o propsito de dialogar com o outro, de interagir em uma instituio social dada. Portanto, uma produo sem um ponto de vista expresso que demonstre a compreenso do mundo discursivo em que est contextualizada a prtica escrita e sem uma posio assumida e defendida pelo aluno-sujeito-produtor, a partir de seu texto, neste mundo discursivo. A este propsito observemos o que diz Pcora (1992):

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V.Chomsky (1971), sobre a noo de competncia lingstica V. Van Dijk (1972), sobre a noo de competncia textual

3 O que levou o aluno a encarar um pedao de papel em branco no foi nenhuma crena de que ali estava uma chance de dizer, mostrar, conhecer, divertir, ou seja l outra atividade a que possa atribuir um valor para um empenho pessoal. O que os problemas de redao apontam que, atrs de cada um destes textos, ao invs de estar um sujeito de discurso, encontra-se um aluno e sua carga escolar. A atividade passa a ser algo semelhante a percorrer uma via-crcis grfica que lhe cabe por dever e por lio de casa e ao fim desta receber uma recompensa, a nota. Essa a imagem da escrita que consagrada pela escola. A bem dizer, uma boa parte do que foi escrito no chega a ser escrita: mera redao.

Diferentemente de um aluno que escreve uma mera redao, um usurio competente discursivamente aquele que pensa a produo de textos situando-os dentro de um gnero com sua estrutura estvel, que pertence a um ambiente discursivo, como produo escrita dialgica, que busque atingir objetivos scio-comunicativos especficos. aquele sujeito- produtor que pretende interagir com outros sujeitos dentro de uma instituio dada, de acordo com as situaes de uso real da lngua, que compreenda o mundo discursivo e as possibilidades de expresso de acordo com a variedade de gneros textuais que esse mundo discursivo possibilita, levando-se em considerao no s o produto da interao - os textos e seus mecanismos de textualizao - mas todo o processo de enunciao que sustenta as atividades de linguagem dentro das diversas instituies sociais. Julgamos importante a reflexo sobre a competncia discursiva escrita e os gneros textuais para podermos analisar com maior critrio os tipos de prticas de ensino de lngua que esto sendo executadas em nossas salas de aula e, sobretudo, propormos alternativas. Mesmo aps um sculo do surgimento da Lingstica com estatuto de cincia da Linguagem, e, apesar de inmeras publicaes em Lngua Portuguesa que versam sobre a impropriedade de trabalhar-se o ensino de uma lngua ancorado nos preceitos da gramtica tradicional prescritiva (POSSENTI, 1997, LUFT, 1994 e ILARI,1989), ainda comum encontrarmos professores repetindo esta prtica anacrnica. A partir da metade do sculo que passou, surgiu na Europa uma corrente lingstica denominada de Lingstica Textual, que, diferentemente do Estruturalismo de Saussure (1916) e do Gerativismo de Chomsky (1971), concebe como objeto de estudo da lngua no mais suas estruturas, tampouco sua propriedade geradora de frases, e comea a tratar da questo de sua unidade coesa e coerente denominada texto, o que, sem dvida, representa um grande avano no enfoque de ensino de lngua. Um exemplo disso que o ensino pode libertar-se da prtica mnemnica da gramtica tradicional,

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que exige do aluno conhecimentos metalingsticos. Prtica essa que oferece dificuldade e confunde a maioria dos professores; confuso oriunda, s vezes, da divergncia dos gramticos, como o caso da classificao de palavras e das funes sintticas que elas exercem dentro da frase, conforme as obras citadas. Alm disso, esta prtica do ensino mnemnico das regras gramaticais, considerada por Faraco como normativismo e gramatiquice, gera o problema srio da insegurana no trato da Linguagem causado pelo medo de errar, ou seja, o medo de ir de encontro norma. O autor denomina este pnico de sndrome do erro. O trabalho com o texto escapa desta prtica, pois os professores no podem exigir que alunos memorizem todos os textos que existem na lngua, assim como exigem a memorizao das regras da gramtica. O trabalho com o texto pressupe o trabalho de pensar, de tomar decises sobre os gneros possveis de expressar o que se quer dizer, de acordo com os efeitos de sentido que se pretende em relao ao interlocutor; pressupe o exerccio de criar estratgias, de mobilizar conhecimentos prvios para poder materializar em linguagem o que se pretende dizer ou, ento, entender o que est sendo dito. Ao contrrio da prtica de memorizar as regras da norma gramatical para fazer um teste de conhecimentos sobre a lngua ou mesmo para escrever certo, a prtica da produo textual possibilita mobilizar-se o aluno para antes de tudo expressar-se, soltar sua voz. A configurao estrutural de um texto, embora apresente leis, como o caso da coeso, da progresso semntica e da coerncia, para exemplificar, pode ser moldada de acordo com o fluxo do pensamento dos produtores dos textos, o que possibilita uma combinao infinita de textos coesos e coerentes possveis, de acordo com os gneros de textos, os tipos de discurso e o contexto imediato da produo verbal. Mais recentemente, os contatos de alguns professores de lngua materna com a lingstica do texto, atravs de cursos de Ps-graduao ou de aperfeioamento, proporcionaram uma outra viso de ensino de lngua, que utiliza o texto como base de suas prticas pedaggicas. Porm, acreditamos que essa prtica deve ser reavaliada pelo fato de que tem ocorrido de os professores utilizarem os textos em sala de aula como pretexto para desenvolver as unidades gramaticais que constam dos currculos2 Como, em sua maioria, os currculos desenvolvidos hoje foram elaborados no tempo em que se trabalhava, como unidade maior da Lngua, a frase e no o texto, h um paradoxo a ser resolvido. Para atuar seguindo a prtica da produo de textos, utilizando-se dos postulados difundidos pela Lingstica Textual, necessrio reformular os currculos e2

Ver nos anexos a carta de Mrio Prata ao Ministro da Educao Paulo Renato, sobre a utilizao de sua crnica Meninas Moa, num concurso vestibular.

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trabalhar com texto sim, mas de acordo com as reais necessidades de uso dos falantes da Lngua. Esta prtica, ao nosso modo de ver, equivocada, de trabalhar-se textos para cobrar prioritariamente o conhecimento das unidades gramaticais como ortografia, acentuao grfica, noes de sujeito e predicado, em detrimento de uma viso da produo textual como possibilidade de o aluno dialogar, de dizer o que pensa sobre os temas abordados, no intuito de interagir socialmente atravs da linguagem, foi verificada por nossa equipe de pesquisa do Projeto Prolabore: Laboratrio de Produo e Recepo de Textos. Tratava-se de um projeto de formao de professores do estado do Tocantins, financiado pela Secretaria de Educao (BALTAR, 1998). Assim, caso esta prtica seja legitimada, correremos o risco de ouvir dos alunos, que antes diziam detestar portugus, afirmar, hoje, que detestam escrever e ou ler textos de sua lngua materna, ou que no entendem nada do que est escrito nos textos que lem. Contrria a essa perspectiva, nossa proposta a de estender a prtica do trabalho com o texto para a prtica do trabalho com o gnero textual e sua relao cotextual, de composio interna: os tipos de discurso, as seqncias, alm de suas relaes contextuais, atividades de ao de linguagem, e situao de enunciao. Pois, assim como o rio corre para o mar, um texto que no se integra constitutivamente em um ambiente discursivo com gneros bem definidos, estruturas estveis pertencentes a um mundo discursivo, com determinados tipos de discurso, no passar de unidade imanentemente lingstica. Portanto, no creditamos valor ao trabalho com o texto em si mesmo, mas ao trabalho com o texto a servio da interao social e discursiva como sugere Bronckart (1999). Alm disso, nossos alunos precisam estar cientes de que a lngua que falam e que precisam saber escrever para interagir em sua sociedade letrada lhes oferece um repertrio infinito de possibilidades textuais; mas, sobretudo, precisam entender que a escolha desse repertrio deve ser feita de acordo com o espao discursivo onde usaro esses textos para interagir socialmente . Esta capacidade de escolha das possibilidades de textualizao constitutiva dos gneros e a apropriao desses gneros que existem nas instituies sociais, alm da possibilidade da criao de gneros textuais novos, que precisamos despertar em nossos alunos, para com isso oferecer-lhes a chance de integrarem-se na vida social de suas comunidades atravs do contato com o mundo da linguagem verbal escrita. nesse sentido que nos propusemos inicialmente a pensar prticas de ensino de lngua voltadas para o desenvolvimento da competncia discursiva.

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Assim, procuraremos apresentar e defender a tese de que ensinar uma lngua dar condies a seus falantes de desenvolverem suas competncias discursivas para, com isso, dialogarem com seus interlocutores. Alm disso, admitindo que a sociedade est dividida em classes distintas, representadas por instituies definidas, e que cada instituio social o lugar onde diferentes discursos3 so forjados, interessante que, ao trabalharmos a competncia discursiva de nossos alunos, tenhamos em vista que precisamos coloc-los em contato com o maior nmero possvel de gneros que existem na sociedade para inclu-los nos processos de compreenso e de transformao desta sociedade. Com a possibilidade de transitar pelos diversos espaos discursivos que compem uma sociedade letrada, um falante/ouvinte de uma lngua poder participar da constituio e da transformao desses espaos de discursos como um usurio/cidado. A propsito de um ideal de sociedade democrtica, que possibilite a cidadania, Foucambert (1994) declara que a escola nova tem o grande desafio de promover o encontro dos alunos com o que chama de leiturizao, ou seja o contato com textos autnticos que esto circulando em nossa sociedade na condio de leitor e de produtor. Em outras palavras, o autor francs quer dizer que cabe escola, mas naturalmente no s a ela, executar polticas pedaggicas que sejam capazes de inserir indivduos no mundo da escrita. A escrita concebida como ferramenta que permite desencadear os processos cognitivos, permitindo o distanciamento em relao ao conjuntural, imediato e, propiciando a construo de um modelo terico estrutural do mundo, uma forma privilegiada de viabilizar e de visibilizar pensamentos. Foucambert apresenta a tese de que a escola, que j cumpriu o papel de alfabetizar grandes massas populacionais, agora deve dar um passo adiante e promover a leiturizao dos indivduos ou o pleno acesso ao mundo da escrita. S assim, defende o autor, um indivduo pode deixar de ser um mero consumidor e passar a ser um cidado. Este estudo procurar mostrar, tambm, que uma possibilidade de desenvolver em nossos alunos o exerccio de sua cidadania estimular-lhes suas competncias discursivas, atravs da produo de gneros de textos inseridos em um ambiente discursivo dentro de uma instituio social, com a possibilidade de dilogo real com interlocutores reais, dispostos a atitudes responsivas ativas (BAKHTIN, 1997). Ao propomos a confeco de jornais em sala de aula, com diferentes sees, e a partir do trabalho de anlise de leituras e de produo de jornais em sala de aula,3

Discurso aqui est sendo usado no sentido das formaes discursivas de M. Foucault (1969).

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esperamos propiciar aos alunos o contato com este que um importante suporte do mundo letrado, o jornal; alm do contato com o ambiente discursivo jornalstico escrito institucionalizado, que, alis, goza de muito prestgio junto nossa sociedade. Acreditamos que o fato de escrever um texto emprico de um determinado gnero textual em uma seo de jornal, que tm uma estrutura estvel definida, uma espcie de subgnero dentro de um gnero maior que o jornalstico, com um tipo de leitor especfico, dar atividade de escrever o estatuto dialgico e contribuir para o desenvolvimento da competncia discursiva escrita do aluno produtor de um gnero textual, provocando a atitude responsiva ativa de que nos fala Bakhtin. Um aspecto que julgamos muito relevante o de que os gneros textuais do ambiente discursivo jornalstico, ou o discurso da mdia, por gozar de um estatuto privilegiado, tem um poder grande de persuaso e determinante em muitos casos das transformaes sociais que ocorrem em nossa sociedade. Alm disso, o que se escreve e se l nos jornais, mesmo que subliminarmente, est pautado pelos interesses das classes sociais que ali se fazem representar. Nesse sentido, oferecer aos nossos alunos a participao na produo de um jornal, mesmo que no mbito de sua escola, dar-lhe chance de, segundo seus interesses de pauta, dialogar com seus leitores sobre o que julgarem importante, de forma autnoma, participativa e independente. Na nossa concepo, aqui pode-se falar em aliar competncia discursiva ao exerccio de cidadania, entendendo cidadania como a participao ativa do indivduo no tecido social (MACHADO, 1997). Portanto, o conceito de cidadania no se restringe apenas noo de direitos e de deveres virtuais, garantidos em leis. Para que de fato se atue na sociedade como um cidado, fundamental a participao dos indivduos de forma motivada e competente. Segundo o autor: mltiplos so os instrumentos para a realizao plena da cidadania ativa. Alm da participao do processo poltico de sua sociedade, o indivduo deve ser alfabetizado nos dois sistemas bsicos de representao da realidade, a saber: a lngua materna e a matemtica. No que diz respeito lngua materna, pensamos que o processo de alfabetizao de um indivduo deve ser completado ao longo de sua vida com o processo de leiturizao e o aprimoramento de sua competncia discursiva, para assim poder participar do jogo das relaes sociais, dialogando e contribuindo na realizao de projetos coletivos sem abrir mo da conquista de seus projetos pessoais. Lembremos de Foucambert: apenas alfabetizar a populao, dar-lhe acesso ao cdigo sem dar-lhe acesso ao mundo da escrita est longe de representar uma possibilidade de fazer de um indivduo um cidado.

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Entretanto, o ensino de lngua materna no est dando conta desta leiturizao. Ao contrrio, a escola, com seus currculos defasados e suas pedagogias tradicionais, vem entravando o acesso da populao ao mundo letrado e com isso ratificando as discrepncias sociais promovidas pela sociedade brasileira que existem desde o nosso descobrimento. Aproprio-me circunstancialmente de uma frase lida na apresentao do livro Discurso da escrita e ensino, de Solange Gallo, que considero pertinente para propor uma reflexo sobre o que vem sendo o ensino de Lngua Portuguesa no Brasil: o que significa um brasileiro ensinar Portugus para outros brasileiros? A autora do livro chama a ateno para a relao histrica de dominao que existe entre lngua do colonizador e lngua do colonizado. Ocorreu-me que, na poca de Marqus do Pombal, o governo portugus chegou a baixar decretos, cartas rgias, para sustentar o domnio da Lngua Portuguesa sobre a lngua falada pela maioria da populao luso-brasileira. Bandeirantes, padres, ndios, comerciantes portugueses e mestios haviam institudo uma lngua franca ou de contato: o Nhengatu, que era uma simplificao, uma espcie hbrida de lngua Tupinamb com Latim que intermediava as relaes sociais (RODRIGUES, 1986). Hoje, seria um absurdo admitir um decreto proibindo o Portugus Falado e ou Escrito no Brasil em favor do Portugus de Portugal. Existem, inclusive, trabalhos de lingistas que apresentam gramticas de cunho funcionalista do Portugus falado, como o caso do trabalho coordenado pelo professor Ataliba Castilho, da USP, que deve em breve publicar uma Gramtica do Portugus Falado, no normativa, mas descritiva; ou o trabalho da professora Maria Helena de Moura Neves, que a partir de dados da lngua escrita, publicou recentemente uma Gramtica de usos do Portugus. Mas, apesar dessas publicaes, e, por mais paradoxal e anacrnico que parea, o Portugus que se tenta ensinar como lngua materna na maioria das escolas brasileiras, reconhecido como norma culta da lngua nas gramticas de Lngua Portuguesa, ainda muito prximo quela lngua do colonizador. Baseado no ensino descontextualizado de um conceito nico de gramtica normativa como um livro de certo e errado, deve-se aprender as classes e as categorias gramaticais e todas as regras da lngua de forma mnemnica, para depois aplicar estes conhecimentos em exerccios estruturais, verdadeiros testes de memria sobre a nomenclatura da gramtica da lngua, e proceder a anlises lgicas de frases isoladas de qualquer situao scio-comunicativa para descobrir as funes dos termos das oraes. Como se os falantes de uma lngua se comunicassem atravs de

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oraes e no de gneros de textos, conforme nos fala Bakhtin (1997). Em se tratando da prtica da lngua escrita, ou cobram este inatingvel conhecimento gramatical nas redaes dos alunos como forma de acerto de contas (ILARI, 1989), ou baseiam-se, como modelo, nos textos clssicos dos bons autores, o que acarreta um profundo desinteresse da maioria dos alunos pela nossa lngua, dado o anacronismo dos temas. Citando Faraco (2001):[...] o que antes fora efeito de um trabalho emprico de registro dos clssicos na escrita e da fala da elite erudita latina, depois lusitana, hoje um cdigo arbitrrio de leis que foram criadas cerca de dois mil anos atrs[...].

Por outro lado, a sociedade brasileira letrada, atravs de suas instituies organizadas, exige que nossos alunos saibam ler e escrever. Esto a as redaes dos vestibulares, o provo do ensino mdio (ENEM), o provo dos cursos de graduao exigindo de nossos alunos a competncia discursiva escrita. O mercado de trabalho est tambm a exigir um profissional qualificado, que tenha acesso lngua escrita, conhecimento da linguagem da informtica, que esteja informado das questes polticas, econmicas e culturais; enfim, que possa dialogar com seus concorrentes de igual para igual e que tenha acesso aos espaos discursivos, no apenas da instituio em que est inserido, mas de todas com as quais necessita relacionar-se. Por isso, acreditamos que no h mais espao para prticas pedaggicas excludentes, que no deixem bem claro o poder do uso da linguagem nos contextos discursivos definidos pelas instituies que compem a sociedade, onde nossos alunos vivem e pretendem atuar como cidados dispostos a desenvolver seus projetos pessoais em confronto ou em sintonia com projetos coletivos. Ao propor-se a produo de jornais e de sees de jornal em sala como prtica de lngua escrita, pretende-se proporcionar aos alunos a possibilidade do contato com textos legtimos de circulao na escola e, como escritor, dialogar com seu leitor, do mesmo modo que ele faz quando l sua seo preferida de jornal. Partiremos do pressuposto de que nesta situao de atividade linguagem, ele no estar preocupado apenas em acertar ou errar a gramtica da lngua, mas sim em falar o que pensa, atravs do suporte do jornal, dentro daquela estrutura estvel que o gnero textual a que pertence a seo escolhida. Este dilogo, quando se trata da produo de um texto para o professor de Portugus, inexistente, pois o aluno preocupa-se primeiro com a opinio que o professor, como autoridade da lngua, ir emitir sobre seu texto, que pouca chance tem de chegar a ser dialgico. Entendemos que preciso reavaliar a

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prtica da redao escolar monolgica sem destino determinado, sem a presena de uma voz que fala e de uma que ouve. Em outras palavras, preciso reavaliar a produo de texto que quase sempre escrito de forma a atender um comando de um professor que vai avali-lo e lhe dar uma nota quantificando seus erros gramaticais (PCORA,1992; GUEDES, 1998). Por essa razo, escolhemos estudar a competncia discursiva atravs da prtica da escrita de gneros textuais de um jornal de sala de aula, no intuito de descrever uma nova prtica do ensino da lngua escrita; alm de contribuir para a anlise de novos gneros textuais, a saber: os gneros pertencentes ao ambiente discursivo jornalstico de sala de aula. Enfim, o acesso ao registro escrito da lngua deve passar pela compreenso de que a sociedade letrada est organizada em instituies definidas: os lugares sociais ou ambientes discursivos, conforme Bronckart, que so representados por gneros textuais definidos, organizados em estruturas estveis. Apesar de no ser a nica, a escola uma das instituies sociais onde a sociedade letrada est presente; portanto, necessrio que os professores de lngua materna auxiliem seus alunos a desenvolver suas competncias discursivas para conquistar espaos discursivos em outras instituies sociais, atravs do conhecimento dos seus diversos gneros textuais. Os alunos, falantes e ouvintes da nossa lngua, devem ser competentes para dialogar nos mais variados ambientes discursivos que existem na sociedade em que vivem. Nesse sentido, acreditamos que a experincia de escrever um jornal em sala de aula, visando como interlocutora toda a comunidade escolar, dar aos alunos a oportunidade de produzir gneros textuais - que dialoguem com o discurso jornalstico abalizado pela sociedade letrada, produzido na instituio jornal, de onde provm os modelos dos gneros com suas estruturas estveis -, ao mesmo tempo que lhes permitir, paulatinamente, desvencilhar-se da produo escrita estril e monolgica da redao escolar - gnero textual oriundo do lugar social escola ou ainda do ambiente discursivo escolarpedaggico . O escopo terico ser conduzido pelo trabalho de Dell Hymes (1984) e de Perrenoud (1999) sobre o conceito de competncia, pela Teoria do Discurso de Bakhtin, (1990, 1997), notadamente, no que concerne s suas noes de dialogismo e de gneros do discurso (enunciados/textos); e pela teoria do Funcionamento dos Discursos de Bronckart et al, (1985), e do interacionismo scio-discursivo de Bronckart (1999), pelas idias de Adam (1990,1992), no que diz respeito organizao das seqncias textuais, quando tratarmos a questo da textualizao de um texto emprico, pertencente a um

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determinado gnero. Para refletir sobre uma prtica pedaggica eficiente do ensino da escrita, prtica libertadora, que permita integrar nossos alunos nos diversos espaos discursivos constitudos em nossa sociedade, e para com isso consolidar sua cidadania, recorreremos s obras de Machado (1997), Foucambert (1994) e de Paulo Freire, notadamente, (Freire, 1997, 1996). A segunda parte deste trabalho estar centrada na explicitao do que se tem chamado Competncia. Para tanto, analisaremos posies adversas como a de Competncia e Performance de Chomsky (1971) e a de Competncia de Comunicao de Hymes (1984), bem como a noo de Competncia de Perrenoud (1999), para melhor abalizarmos nossa proposio inicial de trabalhar para o desenvolvimento da competncia discursiva escrita de nossos alunos, (Cap. 2). O terceiro captulo tratar da questo dos gneros. Comentaremos de forma tangencial a problemtica da classificao. Analisaremos os problemas de nomenclatura e de denominao entre tipos, gnero, discurso e texto, de acordo com Bakhtin (1997), Petitjean (1989), Bronckart (1985, 1999) e outros autores que escreveram sobre o assunto, e buscaremos apresentar uma padronizao dos termos utilizados por esses autores. Alm disso, apresentaremos sucintamente a teoria do interacionismo sciodiscursivo de Bronckart, que nos parece mais adequada para a anlise dos gneros, (Cap. 3). A seguir procuraremos associar a noo de competncia discursiva noo de gneros, e ao pedaggica. Ancorados principalmente nas teses de Bakhtin (1997), Bronckart (1999) e Reuter (1998), tentaremos mostrar a importncia de se reverem as prticas tradicionais de ensino de lngua materna, destacando a importncia de uma pedagogia de projetos e do trabalho com os gneros textuais, (Cap. 4). O quinto captulo tratar sobre como foi desenvolvida a pesquisa, a partir do trabalho da confeco do jornal de sala de aula, ferramenta metodolgica a servio da nossa proposta de desenvolver a competncia discursiva escrita atravs dos gneros textuais em alunos do ensino mdio. Abordar a tarefa de fabricao do jornal de sala de aula como uma atividade de linguagem especfica visando interveno concreta na rotina pedaggica do ensino de Lngua Portuguesa, em duas escolas pblicas estaduais da cidade de Porto Alegre: escola Emlio Massot, no ano de 2000, e escola Jlio Grau, no ano de 2002. Alm disso, mostrar a relevncia do tema no cenrio acadmico atual,

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atravs de um breve relato histrico das experincias com a mdia escolar no Brasil e na Frana, (Cap.5). O sexto captulo analisar a contribuio do trabalho da fabricao do jornal de sala de aula como uma atividade de linguagem, atravs da produo de gneros textuais prprios deste suporte de textos, para o desenvolvimento e aprimoramento da competncia discursiva escrita dos alunos envolvidos no projeto, alm de descrever e analisar a ocorrncia e as caractersticas dos gneros textuais que compem o jornal, (Cap.6). O stimo captulo trar algumas consideraes finais sobre a experincia realizada, mostrar alguns resultados e apontar alguns caminhos para o maior aprofundamento do tema da pesquisa, (Cap.7).

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2 2.1

SOBRE A COMPETNCIA Introduo Para discutir a competncia discursiva, questo central desta tese, julgamos

necessrio uma discusso prvia do que competncia, de como esse conceito apareceu na cena lingstica moderna, e de como foi tratado desde Saussure, Chomsky, Hymes e, mais recentemente, Perrenoud. 2.2 Saussure e Chomsky e Hymes Apesar de no serem equivalentes, pode-se dizer que os conceitos de competncia e de performance derivam dos conceitos Saussureanos de langue e parole. Chomsky utilizou o conceito de competncia como o conhecimento da lngua, e o de performance como o uso da lngua. Mais precisamente como conhecimento da gramtica da lngua e a aplicao deste conhecimento, Chomsky (1971) diz:A teoria lingstica diz respeito primeiramente a um falante-ouvinte ideal, em uma comunidade de falantes completamente homognea, que conhece perfeitamente sua lngua e no est afetada por condies gramaticalmente irrelevantes como limitaes de memria, distraes, falta de ateno e de interesse, erros fortuitos, etc., ao aplicar seu conhecimento da lngua numa performance atualizada.

Entretanto, as noes de falante ideal, de competncia como conhecimento gramatical e de comunidade lingstica homognea, questes centrais na teoria Chomskyana, apresentam alguns problemas. Primeiro, a palavra competncia, expressando conhecimento internalizado sugere que a competncia, entenda-se gramtica, seja um modelo lingstico-psicolgico. Nesta questo Chomsky no logrou xito, pois, a pesquisa em psicolingstica, baseada na premissa de que a gramtica transformacional representa a estrutura e a aplicao do conhecimento lingstico, no resistiu s limitaes do modelo, que estava ancorado na sintaxe da lngua e apresentou inmeros problemas quando teve que tratar do nvel semntico. Segundo, como veremos a seguir, em vez de terem uma competncia internalizada, a gramtica, os falantes de uma lngua, ao interagirem com outros falantes, utilizam-se de vrias competncias, e no apenas uma, estritamente psicolingstica.

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Dell Hymes, outro lingista norte-americano, desafiou as formulaes de Chomsky baseado no pressuposto de que diferentes pessoas tm diferentes comandos sobre sua lngua. Este ponto de vista o fez cunhar o termo Competncia Comunicativa, que parece apresentar um sentido mais inclusivo, visto que engloba o conjunto inteiro de conhecimentos: lingsticos, psicolingstico, sociolingsticos e pragmticos, alm das habilidades que os falantes devem desenvolver a fim de comunicar-se atravs da lngua. Um exemplo a habilidade para falar apropriadamente em diferentes contextos, para reconhecer diferentes tipos de textos e l-los adequadamente.

2.3

Chomsky e Dell Hymes: dois pontos de vista diferentes para a formulao de uma teoria lingstica O primeiro tem como objetivo descobrir na lngua suas propriedades universais

relacionando-as com a natureza da linguagem e com o patrimnio inato da humanidade enquanto espcie. Entretanto, para estabelecer as formalizaes necessrias para essa teoria lingstica foi necessrio abstrair-se de muitas caractersticas das comunidades lingsticas e da vida real de seus membros. O segundo tem como objetivo descobrir as capacidades dos indivduos enquanto membros de uma comunidade lingstica, estudar a organizao dos recursos de fala que os falantes utilizam e determinar a relao deste domnio dos meios da fala com a histria das comunidades, com o presente e com o futuro da humanidade. Para isso se faz necessrio muito estudo emprico e uma constante anlise comparativa destes estudos. Assim, teremos uma teoria suficientemente diversa e mais precisa para se conhecer os fatores que determinam a atualizao de uma competncia. Na verdade, a formalizao necessria para se propor uma teoria lingstica ainda est restrita ao nvel sistmico material e estrutural, que provoca uma abstrao necessria mas no suficiente para explicar a lngua e as relaes sociais que se estabelecem atravs dela entre os seus usurios. Por isso, Hymes considera mais pertinente estender a anlise dos fenmenos de linguagem ao estudo da organizao e da utilizao dos recursos de fala dos membros das comunidades lingsticas, seus repertrios verbais, seus modos de fala nas situaes mais diversas da interao humana atravs da palavra, aproximando os estudos lingsticos de uma perspectiva social e concreta das relaes humanas.

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2.3.1 Hymes versus Chomsky: em busca de uma teoria O trabalho de Hymes tem como objetivo principal fazer uma crtica lingstica hegemnica proposta por Chomsky, que teve a adeso da maioria dos lingistas na dcada de 60. O ponto positivo, talvez, de Chomsky seria o de ampliar a viso anterior do Estruturalismo; ampliar a viso de uma lingstica imanente para a questo da relao entre os estudos da linguagem e o comportamento humano, ou da psicologia cognitivista. Ao contrrio disto, a proposta de Hymes indica outra direo. Trata-se da ampliao do quadro terico da lingstica em direo linguagem como fruto da experincia social das comunidades de falantes, colocando a pesquisa alm da lingstica imanente e da psicologia mentalista ou cognitivista. Hymes analisa a questo da competncia e da performance de Chomsky como uso criativo da linguagem, refutando esta idia e afirmando que onde Chomsky diz competncia deve-se ler gramtica; onde diz Performance, deve-se ler realizao psicolgica, e onde diz criatividade, deve-se ler produtividade sinttica. Ainda acrescenta que onde diz apropriao - adequao -, h um problema, pois a apropriao adequao - da linguagem implica, na sua viso, analisar o contexto social, o que Chomsky no faz. Esta mudana de viso vai desembocar em outras propostas metodolgicas, o que vai proporcionar o desenvolvimento da Sociolingstica; notadamente porque comeam a surgir conceitos como o de comunidade lingstica e, tambm, porque se d uma maior nfase para os falantes individuais dessas comunidades. Nesta proposta, a gramtica passa a ser um modo de organizao entre outros e no mais o nico e fundamental modo de organizao de uma lngua. vista como produto de uma herana cultural e tem cunho especificamente normativo. A idia de Hymes a de que ns vivemos num mundo do mesmo modo que nos relacionamos com as questes lingsticas deste mundo. Sua tentativa de desenvolver uma lingstica til ancorada no fato de que, em matria de linguagem, os problemas tericos e prticos parecem convergir. Isto quer dizer que todo trabalho motivado por necessidades prticas pode contribuir para construir uma teoria que se faz necessria. At ento, a lingstica moderna, de acordo com os preceitos Chomskianos tinha um locutor-ouvinte-ideal, pertencente a uma comunidade lingstica homognea, que conhece perfeitamente sua lngua e que, quando aplica este conhecimento numa performance efetiva, no afetado pelas condies gramaticais no pertinentes, como

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distraes, falta de memria, erros fortuitos, deslocamentos de intenes ou de ateno. Trata-se de uma competncia inata da lngua, de uma capacidade infinita de produzir e de compreender toda a frase gramaticalmente bem feita na sua lngua. Todavia, esta perspectiva terica nos leva a crer que todos os falantes de uma comunidade lingstica so iguais. Desse modo, parece muito limitada, principalmente quando defrontamos este falante homogneo e ideal com nossos alunos, nas escolas. Neste caso esta perspectiva terica tem que ser revista, e, em seu lugar, deve-se pensar uma teoria que permita a anlise dos falantes de uma lngua e de suas produes lingsticas linguajeiras -4, na qual os fatores scio-culturais tenham papel constitutivo. Para exemplificar, podemos observar as comunidades indgenas e suas competncias. Umas comunidades conservam, atravs da tradio e da memria de alguns falantes mais velhos, o Discurso Narrativo dos Mitos. Outras, por questes scio-culturais aculturamento- perdem esta competncia ou alguns membros (quase sempre os muito velhos) a mantm e outros a perdem. Porm, h uma grande diferena entre o que no dito porque no h ocasio de dizer e o que no dito porque no se tem meios de diz-lo. Alm do mais, o processo de integrao s comunidades nacionais com organizao social mais complexa cria uma divergncia de competncia importante numa comunidade lingstica. H tambm o exemplo dos ndios peruanos que abandonaram o Quchua em detrimento do Espanhol; ou das diversas etnias de ndios brasileiros que paulatinamente abandonam suas lnguas em favor do Portugus. Por outro lado, h ndios brasileiros, como os do tronco Aruak (BALTAR, 1995), que falam muitas lnguas em virtude de seu sistema de casamento ser exogmico e, deste modo, aprendem a lngua do cnjuge e dos pais do cnjuge, alm das lnguas da comunidade branca com a qual esto em contato, como o Portugus e o Espanhol; e, freqentemente, de acordo com a regio onde vivem, as duas. As comunidades se distinguem umas das outras por seus sistemas de valores e de crenas que so manifestos pela linguagem e tm papel fundamental em suas vidas. Elas se distinguem tambm quanto aos modos de desenvolvimento do potencial de produtividade inerente aos sistemas lingsticos. Isto nos faz admitir que, para o falante, bem como para a comunidade qual ele pertence, a lngua o que aqueles que a falam4

Cf. Bronckart (1985), atividade linguajeira: uma superatividade motivada pelas necessidades de comunicao, representao, articulada com outras formas de comunicao no verbal que ocorre em zonas de cooperao social, os lugares sociais.

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podem fazer de seu uso, de acordo com as ocasies e os objetivos de us-la. E, certamente, possvel perceber, entre os falantes de uma comunidade lingstica dada, diferenas marcantes no que diz respeito fluncia, ao domnio e adequao aos discursos que no so acidentais, mas fazem parte da atividade linguajeira e da lngua em questo, pois ela existe para que seus falantes interajam entre si. preciso fazer uma distino entre o potencial infinito e a equivalncia funcional das lnguas, enquanto sistemas formais, e o carter finito e a no equivalncia, que podem caracteriz-las enquanto meios (instrumentos) de utilizao diante de uma realidade. Uma teoria como a de Chomsky, que postula um sujeito falante ideal, com um conhecimento perfeito da lngua e supe uma comunidade lingstica homognea, no pode perceber esta distino, haja vista que torna invariantes e suprfluas as relaes entre os falantes. Alm disso, uma comunidade lingstica formada por falantes idnticos parece muito mais com abstrao a servio de uma teoria qualquer do que com a realidade. inerente a cada comunidade a assuno de papis diferentes definidos pelo convvio social, de acordo com as instituies sociais vigentes; e a competncia dos falantes est intrinsecamente associada a esses papis. Citando Wallace (1961): "uma comunidade no uma reproduo da uniformidade, mas a organizao do diverso". Na verdade, o que garante a existncia de uma comunidade lingstica no uma lngua comum: isto j foi mostrado por Labov (1966) em suas pesquisas sobre o Ingls falado em Nova Iorque. Para os falantes se comunicarem em uma determinada lngua necessrio mais que simplesmente conhecerem as mesmas regras gramaticais: preciso partilharem as mesmas regras de conversao, ou ainda, conhecer os gneros textuais apropriados s interaes verbais. Isto mostra que toda comunidade lingstica tem uma base social por natureza, que pode ou no determinar a competncia discursiva de seus falantes. Hymes (1984) fala que os membros de uma comunidade lingstica partilham, ao mesmo tempo, de uma competncia de dois tipos: um saber lingstico e um saber sociolingstico, ou ainda, um conhecimento conjugado das normas gramaticais e das normas de emprego . Para Bronckart (1985), os sujeitos que interagem dentro dos lugares sociais, ou ambientes discursivos, devem ter condies de saber escolher o gnero textual apropriado para aquela ao de linguagem e conhecer os mecanismos de textualizao,

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de enunciao e de planificao dos textos empricos atravs dos quais podero interagir numa atividade de linguagem. Um falante normal de uma comunidade lingstica possui um saber tocante a todos os aspectos do sistema de comunicao de que ele dispe. Ele manifesta este saber quando interpreta e avalia a conduta de seu interlocutor e de si prprio. Neste sentido pode-se admitir a equao saber=competncia; mas, normalmente, competncia vai alm do saber. Poderia ser um termo genrico para designar as capacidades dos indivduos. Se a competncia inclui o saber, ela inclui tambm uma capacidade de utilizar este saber, de mobilizar e colocar em prtica este saber. Segundo Bronckart, este conjunto de capacidades pode ser denominado de domnio da lngua ou manejo da lngua. Segundo Goffman (1967), para se falar de domnio da lngua deve-se levar em considerao alguns fatores como a coragem, segurana em cena, presena de esprito, etc. Outra questo importante a da identidade individual e a identificao de si atravs dos outros como fatores decisivos na aquisio de diversos tipos de competncias. Isto permite refutar a tese simplista de que a aquisio da competncia apenas um fato de maturao e de desenvolvimento; ou ainda: a quantidade de exposio linguagem que determina a fala. Neste sentido, a noo de domnio e de utilizao da lngua como parte da competncia nos ajuda a entender melhor o processo de desenvolvimento scio-discursivo atravs da linguagem. 2.4 Competncia, capacidade e comunicao O termo capacidade refora o conceito de competncia medida que diz respeito ao que os indivduos podem fazer com os recursos lingsticos; o que no a mesma coisa que o que o sistema que eles possuem em comum torna possvel. Uma vez admitido que necessrio levar em conta uma gama de capacidades e no apenas a capacidade concernente ao saber gramatical, muitos lingistas decidiram acrescentar ao termo competncia o complemento de comunicao. Em Campbell e Walles (1970), temos um caso; eles utilizam esta expresso no contexto da aquisio da linguagem. Este termo tambm foi utilizado no contexto de aprendizado e ensino de lngua estrangeira, e, neste domnio, significa uma capacidade de entrar em interao espontnea numa situao de comunicao em uma lngua dada (Savignom, 1979). Entretanto ela admite que h outro tipo de uso para o termo competncia de comunicao no trecho a seguir: os que trabalham em Ingls segunda lngua, tm

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tendncia a utilizar CC no sentido de Hymes. E aqui eles incluem no somente as formas lingsticas da lngua, mas, tambm, as regras sociais, o saber quando, como e com quem apropriado utilizar estas formas E tudo isso faz parte da lngua ensinada. interessante que a difuso do termo tenha sido feita por vrios autores ao mesmo tempo, e muitos deles citam o livro de Hymes de 1971 como texto base. De fato, o que houve foi uma espcie de consenso entre alguns lingistas que se recusavam a aceitar a definio de competncia de Chomsky, que gozava de muito prestgio no momento. Autores como Katz e Fodor (1962) falavam em capacidades savoir-faire com o propsito de descobrir a natureza do controle de sua lngua que possui o locutor falando fluentemente. Outros lingistas introduziram o termo matrise d'une langue Sinclair (1971) e Teeter (1970). Este ltimo, falando sobre o trabalho de Bloomfield acrescenta: ns podemos distinguir o conhecimento que tem um locutor de uma lngua, do seu domnio matrise- sobre esta lngua. H, tambm, o termo proficincia, relacionado a questes de bilingismo e de ensino de lngua segunda. Gorman (1971) diz: um locutor proficiente de uma lngua dada um locutor que possui nesta lngua um repertrio verbal, cuja complexidade est em correlao aproximativa com a gama funcional, ampla ou reduzida, desta lngua nos diferentes grupos em que ele membro. Van Dijk (1981) fala sobre a equivalncia entre as expresses savoir-faire e competncia: em outros termos, o aprendiz deveria adquirir uma gama completa de savoir -faire comun icacionais, mas, at o momento existem poucos manuais permitindo colocar em prtica de forma sistemtica este gnero de competncia de comunicao Quando alguns autores falam sobre a necessidade de ampliar o sentido do termo competncia, empregado por Chomsky para alm do nvel estritamente gramatical, eles falam freqentemente de um tipo de adio competncia. Hymes, percebendo isto, indica trs tendncias para esta ampliao do termo competncia: h os que se interessam pela literatura e utilizam termos como competncia potica, como o alemo M. Bieewisch -apud Hymes (1984). Conforme Fowler (1981), um terico americano introduziu o conceito de competncia literria para uma discusso crtica e uma interpretao positiva. No campo da antropologia e do folclore, McLendon (1977) falou

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em competncia narrativa para descrever a capacidade de reconhecer diversas verses de narrativas como resumos de uma mesma histria. A segunda tendncia diz respeito ao uso interpessoal da lngua. Da vm os termos competncia da conversao de crianas de Keenam (1974). Outros termos aparecem como competncia de interao, Erickson e Shultz (1981), e competncia de situao, Borman (1979). Os autores que vm das cincias sociais empregam competncia social, como Edmonson (1981), e Canale e Swain (1981), falam de competncia sociolingstica. A terceira tendncia est centrada nas diferenas entre os indivduos e seus papis individuais exercidos na sociedade. Troike (1977) citou a dificuldade de examinar a competncia receptiva diferentemente da competncia produtiva e as relaes de ambas as competncias no ensino de aprendizes de origens diferentes. Em resumo, pode-se perceber que h uma gama muito grande de competncias arroladas acima, e parece tcito que no se pode mais aceitar a viso restrita de uma competncia nica, meramente gramatical, j que o domnio do conhecimento bem maior quando se fala de capacidades de um indivduo falante de uma dada lngua. Carrol (1979) diz que construir uma teoria das competncias e das performances bem mais elaborada das que so oferecidas hoje pela Lingstica e pela Psicolingstica se faz necessrio se quisermos dar conta de maneira adequada das capacidades lingsticas, e deve-se acrescentar aqui: capacidades de linguagem dos indivduos. Neste sentido que Hymes assevera que o termo competncia de comunicao um termo indispensvel para efeito de generalizao. Competncia de comunicao deveria, ento, ser entendido como competncia NA comunicao e competncia PARA comunicao. A comunicao no apenas um objetivo da linguagem, mas um atributo. Toda utilizao da linguagem coloca em jogo esse atributo.

2.5

Competncia social; comunidades sociolingsticas e indivduos Milroy (1981) escreve:Se ns queremos estudar a competncia devemos estudar dados concernentes aos indivduos e no a gruposestudar no somente o que os indivduos conhecem de sua lngua, mas como eles a utilizam, o que eles sabem das diferentes situaes sociais, que significam simbolicamente a identidade social e como manifestam suas atitudes com relao a esta identidade social.

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Fowler e Krees (1979) em favor da competncia de comunicao dizem: certo que esta competncia de comunicao enriquecida variar segundo os indivduos, ao invs de ser a mesma para todos os membros de uma populao lingstica. Assim, devemos falar do indivduo como ser socializado e no como pessoa nica.

Filmore (1977) fala que a dicotomia competncia- performance perde seu valor numa situao em que a utilizao da lngua tem papel essencial para a interveno do locutor numa matriz de aes humanas. Esta distino s teria valor num mundo onde a linguagem apenas produto para produzir linguagem, ou seja, o mundo ideal da gramtica inata interiorizada de Chomsky. Ele argumenta dando como exemplo a importncia do conhecimento de frmulas j prontas no julgamento do domnio da lngua. Estas expresses so memorizadas e no geradas pela gramtica, ou seja, esto associadas s suas situaes de emprego. O manejo destas frmulas j prontas pode ser comparado, de uma maneira mais abrangente, com o que Bakhtin nomeia de estruturas estveis da lngua. Assim, o domnio do uso de determinados enunciados ou gneros discursivos, de acordo com a situao de uso, vai determinar o nvel da competncia de um indivduo em uma determinada lngua. Esta associao entre frmulas j prontas, enunciados ou discursos nos permite utilizar o termo competncia discursiva para falarmos desse domnio de um indivduo sobre sua lngua. Trata-se da competncia de saber inserir-se em ambientes discursivos estabelecidos pelas instituies que compem a vida social de uma comunidade lingstica manejando os diversos gneros textuais ou as estruturas estveis de Bakhtin, de acordo com a necessidade de interao social. Edmonson (1981) distingue competncia de comunicao de competncia social:A competncia de comunicao pode ser representada por uma srie de regras relativas codificao e decodificao controladas por atos de comunicao maiores. Na conversao efetiva, os membros utilizam ou manipulam essas regras a fim de atingir alguns objetivos comunicativos e de manter ou restabelecer a harmonia social. A utilizao feita da competncia da comunicao manifesta a competncia social de um indivduo. Alguns entre ns so mais fortes do que outros neste domnio.

Ele diz ainda: a variedade das qualidades de interao no reflete minha competncia de comunicao como membro da comunidade lingstica considerada, ou de um subgrupo desta comunidade, mas reflete minha competncia social enquanto que membro social individuo. Berstein (1981) fala de contexto de comunicao e associa de certo modo competncia noo de cdigo. Ele postula que, se todos os falantes elegem um cdigo,

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em princpio, pressupe-se que no haja incompetncia de comunicao. Na verdade ele preocupa-se mais em desenvolver as idias de classificao e codificao das lnguas, e neste caso, a individualidade no lhe diz muito respeito. Entretanto, para Hymes, o que Berstein define como cdigo muito semelhante idia de diversos tipos de competncia de comunicao ligados a grupos socialmente diferenciados. A organizao de categorias e de atividades (classificao e codificao), que ele considera como fundamental na reproduo das diferenas de classe, pode ser aproximada da dimenso que sustenta e informa os modos de falar, onde falar deve ser entendido como comunicar. 2.6 Competncia, tipos de saber e fontes de saber

Muitos lingistas adotam a posio de que manejar uma lngua revela uma capacidade e consideram que essa capacidade um tipo de saber. Estabeleceu-se uma distino entre saber que e saber como e colocou-se em evidncia o saber como. Outros colocaram esses dois tipos de saber dentro da competncia de comunicao. Hudson (1981) sugere que a capacidade um termo mais adequado para designar a utilizao apropriada das formas lingsticas. Hymes chamou a ateno para o que intuitivo e infervel e o que observvel. Ele afirma que mesmo os trabalhos que seguem orientao observacional lanam mo de uma capacidade intuitiva e, acrescenta, por outro lado, que a intuio jamais conseguir apreender as realidades da linguagem no espao e no tempo. Ento as divises maiores so entre o saber que e o saber como, e o saber intuitivo infervel e o saber observvel dedutivo. Entretanto, na sua concepo, o objetivo o de compreender as capacidades dos membros de uma comunidade lingstica. Do ponto de vista da competncia da comunicao, deve-se levar em conta as idias dos usurios quanto ao que considerado saber. No se pode ficar dentro de um ponto de vista estreito de lingstica, segundo o qual o que no est de acordo com a gramtica deva ser descartado. Com as contribuies dos usurios podemos perceber como as mudanas lingsticas ocorrem e como as capacidades de manejo da lngua evoluem; em suma, como uma comunidade e seus indivduos se modificam ao longo do tempo. O que se tem feito, notadamente, no campo educacional colocar-se como mediador entre o que as pessoas sabem e o que se pensa que elas deveriam saber. Hymes prope uma reflexo entre as idias de um lingista e as idias dos membros de uma comunidade para que se possa entender o que competncia comunicativa no interior desta comunidade, e com isso perceber em que essa comunidade se parece ou se distingue com outras. No se deve aceitar a noo de um saber prvio, estanque, que

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como colocar em prtica algumas regras. Deve-se incluir o saber numa perspectiva dialtica de sua relao com a experincia e com a vida social. 2.7 Competncia social; competncia de comunicao: competncia sociolingstica

Cicourel (1981) estabelece uma relao entre competncia social e competncia de comunicao e define a primeira como um saber relativo aos valores, normas e prticas institucionais. Com relao aos valores e crenas de uma sociedade, h de se levar em conta que eles podem mudar independentemente dos recursos de fala e de sua utilizao. As representaes podem manter-se as mesmas enquanto que os recursos lingsticos mudam. Schmidt (1973) incorpora competncia lingstica como fazendo parte da competncia de comunicao. Na verdade, para se falar em competncia de comunicao, na perspectiva de Hymes, ao mesmo tempo que necessrio direcionar o olhar para a comunidade lingstica como um sistema heterogneo organizado, portador de valores, crenas, hbitos e atitudes, necessrio tambm jogar luz sobre os indivduos que dela fazem parte. necessrio perceber como eles lanam mo das capacidades de manejo dos recursos lingsticos, como a presena do interlocutor e do meio determinante para a prtica destes saberes e como estes saberes so desenvolvidos medida que este indivduo se relaciona com sua comunidade e consigo mesmo, entendendo-se como um membro pertencente comunidade, e, portanto, com identidade em relao aos outros membros. 2.8 Voz e competncias : comunicativa, social e discursiva

Um conceito importante desenvolvido por Berstein o de voz. No sentido de vozes dominantes e dominadas. Hymes considera que este conceito no deveria ficar preso somente s hierarquias sociais (dominante - com voz / dominado - sem voz), mas pensar no tipo de voz a que as comunidades lingsticas do vida. Ele liga a noo de voz s identidades e aos papis sociais desempenhados pelos falantes. Essa anlise exigiria a representao de uma gama de identidades e a concepo de sociedade como uma cena de teatro na qual os papis so representados, e uns so bem-vindos e outros no. O conceito de voz coloca em relevo a relao competncia social e competncia individual e indica as mudanas no apenas das lnguas, mas sobretudo das sociedades. Em 1979, Hymes escreveu em um compndio organizado por Filmore, Kempler e Wang: a questo crtica para um tratamento das diferenas individuais como problemas de competncia e de significao social a seguinte: qual a relao entre a distribuio atual da competncia individual na nossa sociedade e a distribuio e a organizao

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que ns gostaramos de ver? E como poderamos passar de uma para outra? A diferena de voz um dado natural, mas no a realizao desta voz. Uma das maneiras de pensar uma sociedade consiste em interrogar-se sobre as vozes que ela possui e sobre quais ela poderia possuir. Aqui se pode fazer de novo analogia com a noo de Bakhtin e de Bronckart de discursos sociais e ambientes discursivos ligados s instituies sociais. Cada instituio social de uma comunidade dada faz valer sua voz. As comunidades elegem vozes segundo suas necessidades, objetivos em comum. Cada voz fala por si e freqentemente uma sobrepe-se a outra ou a outras. Enxergar essa diviso tnue das vozes sociais, das instituies que as sustentam uma forma de competncia que queremos nomear de competncia discursiva. Falar em competncia discursiva nos parece mais apropriado do que falar da competncia comunicativa de Hymes ou da competncia social de Milroy, Edmonson e Cicourel, visto que sempre que h interao verbal, esta interao se faz num mundo discursivo dado, conforme as formaes sciodiscursivas de Bronckart5. Esse mundo que est ligado a uma instituio social dada, com seus gneros textuais e tipos de discursos especficos. Os falantes de uma lngua devem buscar aprimorar sua competncia discursiva para agir atravs da linguagem em diferentes domnios discursivos e perceber a interdiscursividade que est presente nas relaes sociais. Em suma, a concepo de competncia desenvolvida por Hymes, associada comunicao e ao, deve ser estudada com muito zelo, pois contribuiu muito na compreenso do que linguagem e seu uso por falantes individuais dentro de comunidades lingsticas heterogneas. Alm disso, restabeleceu a relao entre linguagem e vida social, que Chomsky havia refutado, com o propsito de desenvolver sua gramtica gerativa transformacional, ancorada em abstraes que, a servio de suas formulaes tericas, afastava a lingstica das contribuies sobre o funcionamento da linguagem em sociedade. Acreditamos que, ancorados nos pressupostos de Hymes, podemos seguir adiante com nossa idia de associar competncia a discurso e a instituies sociais, aproximando-nos, assim, de autores como Bakhtin, quando se trata de gneros discursivos, e de Bronckart, quando fala nos gneros textuais oriundos das diversas formaes scio-discursivas que existem em uma sociedade, nos seus interdiscursos e intertextos e na assuno dos falantes dos seus papis sociais. Parece que esta concepo de competncia discursiva nos permite entender o jogo social que jogado nas atividades de linguagem entre os falantes de uma lngua dentro5

Noo que Bronckart (1999) empresta de M. Foucault e suas formaes discursivas.

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de uma comunidade lingstica dada. E, de um certo modo, remete-nos s idias de Wittgenstein da instrumentalidade e do uso da lngua, como que se a comunicao entre os falantes de uma lngua se assemelhasse a um jogo de sobreposies de idias e de intenes. Falar de competncia discursiva, a partir de Hymes e sua competncia comunicativa, passando pela noo de competncia social, tambm nos permite aproximar-nos do que diz Bronckart, com o seu o interacionismo scio-discursivo. Entender essa competncia discursiva para melhor explicar aos aprendizes como funcionam as relaes sociais de uma comunidade lingstica, entre os ambientes discursivos, parece que deve ser uma tarefa que os educadores devam empreender, em lugar de estipularem como horizonte de aprendizado escolar de lngua materna o conhecimento estanque de uma gramtica. Este, como foi visto, apenas mais um elemento a ser levado em considerao, no quadro das competncias que se atualizam quando os falantes entram em interao atravs da linguagem.

2.9

A noo de competncia de Perrenoud Com uma abordagem um pouco diferente da abordagem de um lingista, o

socilogo Philippe Perrenoud (1999, 2000, 2002) prope que os alunos devero ser capazes de mobilizar suas aquisies escolares dentro e fora da escola, em situaes diversas, complexas, imprevisveis. Para tanto, os educadores precisam propiciar momentos em sala de aula, ou at mesmo fora dela, durante a formao escolar dos alunos, para que estes possam desenvolver suas competncias. Ele diz: Competncia em educao mobilizar um conjunto de saberes para solucionar com eficcia uma srie de situaes. No livro Construir as Competncias desde a Escola, Perrenoud defende como uma prtica de ensino adequada a competncia que se constri com a prtica da lngua estrangeira, que lana mo das mais variadas situaes de interao, em detrimento de um ensino voltado para as regras gramaticais e ou listas de vocabulrios. Ele diz: situaes reais de conversao e estgios em pases onde se fala a lngua estudada so mais proveitosos do que oito anos de aulas de memorizao de estruturas. Portanto, so as situaes reais de comunicao; ou ainda, so as atividades legtimas de linguagem que permitem que os usurios de uma lngua, na oralidade ou na escrita, desenvolvam determinados esquemas de uso, de acordo com o registro formal ou informal, com o contedo temtico, associando-os aos ambientes discursivos, de acordo com o nvel de expectativa de seu interlocutor em relao a sua produo textual. Em sntese: s h

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competncia estabilizada quando a mobilizao dos conhecimentos supera o tatear reflexivo ao alcance de cada um e aciona esquemas constitudos. Tais esquemas so adquiridos pela prtica, o que no quer dizer que no se apiem em nenhuma teoria. Perrenoud explica que mobilizar esquemas no o mesmo que competncia. A competncia vai alm da mobilizao de esquemas. A competncia se verifica quando algum dispe de algum esquema em uma situao de interao dada, em uma situao concreta de uso da lngua. Isto pode implicar uma adaptao (acomodaes menores) de um esquema constitudo atravs da repetio ou do hbito. Por exemplo, o esquema elementar de beber num copo ajusta-se a copos das mais variadas formas, como taas, canecos, etc. Na verdade, os esquemas para Perrenoud so ferramentas flexveis que se podem utilizar de acordo com as situaes. Quanto maior o manejo, maior a competncia Enfim, este captulo procurou esclarecer qual a noo de competncia que utilizaremos e escolhemos para propor aos nossos alunos, o trabalho com os gneros textuais, atravs do jornal de sala de aula. A partir desta sntese das diversas vises de competncia, chegamos ao que estamos chamando de competncia discursiva escrita. Trata-se de mobilizar recursos de vrios nveis para, atravs de um texto emprico, interagir scio-discursivamente. Esses recursos implicam o conhecimento e a escolha dos gneros textuais presentes nos ambientes discursivos; implica o domnio das estruturas estveis que compem esses gneros, o conhecimento dos mecanismos de textualizao e de enunciao, a capacidade de mobilizar contedos temticos tendo em vista o ambiente discursivo e o nvel de conhecimento do seu interlocutor. No prximo captulo abordaremos os gneros textuais, questo fundamental para o desenvolvimento da competncia discursiva escrita de nossos alunos.

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3 3.1

OS GNEROS TEXTUAIS Introduo Esse captulo buscar explicitar as noes de gnero a partir das contribuies de

Swales, Petitjean, Bakhtin, Bronckart e outros, alm de demonstrar a importncia desta explicitao para o ensino-aprendizagem da lngua escrita. Conhecer os gneros textuais, presentes no intertexto da sociedade letrada contempornea, com suas configuraes contextuais e cotextuais, na nossa viso, condio necessria para desenvolver a competncia discursiva dos usurios de uma lngua materna.

3.2

Um novo tema nos estudos lingsticos A lingistica textual, na dcada de 80, aprofundou-se nas discusses sobre

textualidade, intertextualidade, noes de coeso e de coerncia textuais e abordou noes de estruturao (micro, macro e superestruturas). No incio da dcada de 90, outro tema veio baila: a questo da tipologia e dos gneros. O lingista americano John Swales escreveu em 1990:Os gneros no so apenas fenmenos lingsticos e sim fenmenos lingisticamente situados, ou seja, so eventos discursivos. Trata-se de um conjunto de eventos codificados e chaveados no interior de processos sociais comunicativos. Reconhecer estes cdigos e chaves pode tornar-se um facilitador poderoso, tanto para a compreenso quanto para a produo.

Concordamos com Swales quando ele diz que os gneros no so apenas fenmenos lingsticos, mas sim fenmenos lingisticamente situados. Entretanto sua afirmao de que gneros podem ser considerados como eventos discursivos merece uma avaliao mais afinada. Podemos considerar como um evento discursivo uma aula, por exemplo. Seria talvez considerada como um macro ato de linguagem; todavia, possvel falar-se de aulas do tipo expositiva, aula inaugural, com ocorrncias macroestruturais diferenciadas, que vo se consubstanciar em gneros textuais constitudos por tipos de discursos; ou, como prefere Adam, tipos de seqncias

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diferenciadas, tais como seqncias injuntivas, explicativas, dialogais, etc. Embora a definio de evento discursivo no tenha sido aprofundada por Swales, acreditamos que ela estaria num ponto eqidistante entre a definio de gneros textuais e a definio de ambientes discursivos. Na nossa opinio, um evento discursivo uma ocorrncia num tempo e num espao exclusivo e especfico, que envolve enunciadores com objetivos comunicacionais especficos. Outro exemplo seria uma audincia num tribunal. Aqui, nos parece bem configurado um evento discursivo, no qual ocorrero alguns gneros textuais, escritos e orais, constitudos de tipos de discursos e de seqncias, num ambiente discursivo determinado, o jurdico ou judicirio, envolvendo enunciadores em situao real de comunicao, com objetivos a atingir. Pode acontecer de, em determinadas situaes, haver um entrelace entre um evento discursivo e um gnero textual. Quando ocorre, por exemplo, o evento discursivo entrevista, simultaneamente estar sendo aplicado o gnero textual entrevista, com os interlocutores desempenhando cada um o seu papel de enunciadores no ato de linguagem, dentro de um ambiente discursivo. As contribuies da lingstica para o desenvolvimento dos estudos sobre gnero residem, a princpio, na nfase dada a dois processos de anlise: a) anlise de gneros como ocorrncias em eventos discursivos e em ambientes discursivos especficos, voltados para uma finalidade (relaes entre lngua e sociedade, suportes textuais, instituies sociais e seus enunciadores); e b) anlise de gneros como sendo estruturas esquemticas estveis diferenciadas (relaes intralingsticas, processo de textualizao). Bakhtin (1997) exemplificou como gnero a carta - com suas variadas formas -, a ordem do dia, o romance, etc. Trata-se de fenmenos muito dspares, e o que se pode inferir da posio deste autor que a questo no est na designao do gnero, mas sim na identificao de elementos que distingam um enunciado de um outro, e mostrem os traos bsicos do modelo macroestrutural ali realizado. No que diz respeito relao lngua e sociedade, os gneros refletem os avanos histricos e tecnolgicos de uma sociedade. Hoje, por exemplo, com a ampliao do acesso s linhas de telefone e do crescente uso do computador, uma parcela da populao mundial, para suas relaes pessoais e ou comerciais, utiliza-se de correio

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eletrnico e fax, em detrimento do telgrafo e do telex, que esto paulatinamente deixando de ser utilizados pela maior parte das sociedades letradas contemporneas. As novelas, antes escritas em folhetins de jornais e em livros, hoje so escritas para televiso. Com os avanos tecnolgicos e a ampliao dos suportes textuais, os eventos discursivos vo sofrendo contnuas modificaes nas estruturas esquemticas de base gneros estveis de enunciados-. Isso implica mudanas nos processos de textualizao e provoca mudanas nas relaes dos usurios de lngua materna, que necessitam conhecer a diversidade dos gneros existentes em seu meio para interagir nos eventos discursivos dentro dos ambientes discursivos especficos de uma sociedade. Como nos fala Bronckart (1999):Na escala scio-histrica, os textos so produtos da atividade de linguagem em funcionamento permanente nas formaes sociais: em funo de seus objetivos, interesses e questes especficas, essas formaes elaboram diferentes espcies de textos, que apresentam caractersticas relativamente estveis (justificando-se que sejam chamadas de gneros de textos) e que ficam disponveis no intertexto como modelos indexados, para os contemporneos e para as geraes posteriores.

3.3

Questes de nomenclatura e definies Andr Petitjean, no final da dcada de 80, escreveu um artigo importante sobre a

noo de gnero e de tipologia textual.6 Nesse artigo, o lingista francs, embora no exaustivamente, prope algumas possibilidades de classificao de tipos e de gneros textuais. Seu trabalho comea apontando para a necessidade de estabelecer-se uma nomenclatura mais estvel para se tratar deste tema. Faz uma crtica aos livros didticos que ora falam em tipo de texto, tipo de discurso, ora em gnero de texto, gnero de discurso, tipos de escritos, etc. Na sua opinio, essas hesitaes terminolgicas"confundem a compreenso dos leitores, professores e alunos de lngua materna.. Tratar o discurso narrativo, por exemplo, sob as definies ora de texto, ora de discurso e ora de gnero. Como observou Petitjean, comum encontrarmos num livro didtico de lngua materna, numa pgina, um pedido para construir um texto curto para relatar um fato, e, na pgina seguinte, aconselhar-se a praticar oralmente diferentes tipos de discursos, entre os quais a narrao, que j foi tratada, no caso da escrita, como composio escrita em diferentes gneros, principalmente narrativos. No Brasil, a maioria dos livros didticos de Ensino Fundamental e Mdio, ressalta a necessidade e demonstra o interesse pedaggico de trabalhar-se com os alunos uma6

Petitjean, A. Tipologias Textuais. Pratiques n62, 1989.

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diversidade de textos. O que um dia se chamou de composio, depois passou a ser chamado de redao, e hoje est sendo chamado de produo textual pela maioria dos livros didticos e dos manuais que trabalham a escrita. O professor Paulo Guedes7, em sua tese de doutoramento apresenta sobre isso um interessante estudo. Alguns livros de hoje, trabalhados em escolas e universidades, j do nfase criao de textos de diversos gneros, com diversos tipos de discurso. Os parmetros curriculares nacionais tambm sugerem essa prtica em se tratando do ensino-aprendizado da compreenso e da produo textual em lngua materna. Sugerem que, no final de determinado ciclo de observao, o aluno dever saber, entre outras coisas: definir a especificidade de um texto e reconhecer os principais traos que caracterizam alguns gneros de textos e alguns tipos de discursos: narrativo, teatral, potico, etc .(BRASIL, SEF, 1997). Na tentativa de resolver a confuso terminolgica sobre esse tema, e a ttulo de sistematizao de nosso trabalho, utilizaremos as seguintes definies:

A) chamaremos de GNEROS TEXTUAIS a diversidade de textos que ocorrem nos ambientes discursivos de nossa sociedade, os quais so materializaes lingsticas textualizadas, com suas estruturas estveis, disponveis no intertexto para serem atualizados nos eventos discursivos que ocorrem em sociedade;

B) chamaremos de TIPOS DE DISCURSOS as formas de organizao lingstica em nmero limitado que existem e que so percebidas dentro dos gneros textuais com a finalidade de produzir um efeito discursivo especfico nas relaes entre os usurios de uma lngua, como o caso da Narrao, do Relato Interativo, do discurso Terico, e do Discurso Interativo, que esto ancorados em mundos discursivos especficos - Narrar/Expor (Bronckart, 1999);

C) chamaremos de SUPORTES TEXTUAIS os espaos fsicos e materiais onde esto grafados os gneros textuais, como por exemplo, o livro, o jornal, o computador, o folder, o manual de instruo, a bula de remdio, etc. Numa

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Guedes, P. C. Ensinar Portugus ensinar(-se) a escrever (como a )literatura brasileira, 1994.

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concepo ampla de texto, sob o ponto de vista da semitica, a televiso, o cinema, o rdio tambm podem ser considerados como suportes textuais.

D) chamaremos de AMBIENTE DISCURSIVO o lugar ou a instituio social onde se organizam formas de produo e respectivas estratgias de compreenso e onde ocorrem as atividades de linguagem, atravs dos diversos gneros textuais; por exemplo, o AD escolar, acadmico, mdia, jurdico, religioso, poltico, etc.

E) chamaremos de EVENTOS DISCURSIVOS as atividades de linguagem que se do no tempo e em determinados ambientes discursivos, atravs de gneros textuais constitudos de tipos de discursos e de seqncias, envolvendo enunciadores determinados, com objetivos especficos.

F) admitiremos o uso de GNEROS DE DISCURSO, como o discurso do judicirio, da mdia, da escola, da academia, o discurso religioso, o familiar, o poltico, etc.; referindo-se respectivamente aos AMBIENTES DISCURSIVOS correspondentes.

Obs.: Enquanto que o nmero de gneros textuais numa determinada sociedade , em princpio, ilimitado, ampliando-se de acordo com os avanos culturais e tecnolgicos, sendo passvel de se fazer um corte sincrnico num determinado tempo e lugar, para efeito de anlise, o nmero de tipos de discurso mais ou menos limitado e em nmero bem menor8.

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Ver Marcuschi (2000), e Bronckart (1999).

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Vejamos a seguinte tabela para melhor compreender estas definies : Tabela 1. Terminologia GNERO TEXTUAL NOVELA CRNICA ROMANCE ENTREVISTA CARTA OFCIO BIOGRAFIA MANUAL DE INSTRUO DE TV CHEQUE EDITORIAL NOTICIRIO NARRAO DE JOGO DE FUTEBOL TIPO DE DISCURSO / MUNDO DISCURSIVO Narrao Narrar Narrao Narrar Narrao Narrar Interartivo Expor Misto Interativo Terico Expor Relato interativo Narrar Terico Expor Terico Expor Terico Expor Terico Expor Narrao Narrar SUPORTE AMBIENTE INTERAO DO TEXTO DISCURSIVO VERBAL (INSTITUIO) ENUNCIADORES Televiso Mdia televisiva Autores telespectadores Escritor leitor de jornal/revista Escritor leitor

Seo coluna Mdia impressa de jornal/revista jornal/revista Livro Indstria literria Revista Folha papel timbrado e envelope Livro Folheto, folder, livro impresso Talo de cheque Jornal /revista impressos Jornal tev rdio Rdio/TV Mdia escrita

Jornalista e entrevistado/leitor Acadmico escolar Universiade/Escola oficial Prefeitura Indstria Literria Escritor/Leitor Indstria-comrcio Empresa indstria (mercantil) cliente Bancria Mdia jornal impresso Mdia Mdia esportiva Cliente - banco Empresa (jornal/revista) leitor Apresentador pblico Narrador ouvintes/telespectadores

3.4

Gneros: classificao e tipologias preciso dizer que a confuso de nomenclatura, definio e de classificao no

privilgio de autores de livros didticos. Com relao literatura de referncia, principalmente obras que expem as teorias lingsticas, os modos de classificao so tambm muito pouco precisos. Para uns, discurso ope-se a texto; o primeiro designando um enunciado posto em situao de uso, e o segundo, um modo de organizao lingstica abstrata. Esta oposio reconhecida entre as teorias da anlise do discurso e os modelos de gramticas de texto. Ver, por exemplo, Beaugrade e Dressler (1983),.e Charolles (1978). Para outros, discurso e texto so expresses

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sinnimas. Para alguns a investigao tipolgica necessria e possvel, para outros, ela impossvel. Para Hjemslev (1966), somente atravs da tipologia que a Lingstica eleva-se a pontos de vista de fato gerais e torna-se uma cincia. Petitjean (1989), pensando em contribuir para o esclarecimento da questo das classificaes e dos gneros, props um esboo de classificao, conduzindo sua reflexo sobre o prprio ato de classificao, de acordo com sua abordagem em diversos campos tericos de referncia, a saber: a Sociologia, a Psicologia e a Lingstica.

3.4.1 Contribuio da sociologia Segundo esse autor, deve-se aos socilogos uma olhar etnogrfico dos modos de consumo dos textos e uma reflexo crtica sobre o carter constituinte dos gneros. Na verdade, esta relao est estritamente ligada s questes econmicas de consumo dos textos de acordo com determinadas classes sociais. Conhecer e classificar gneros para a Sociologia pode ser uma forma de legitimao da segmentao social, pois h uma tendncia de classificar-se grupos de leitores de acordo com os gneros lidos. Esta prtica largamente usada em pesquisas de opinio de empresas de mdia impressa, revistas e jornais, quando querem colocar um novo produto no mercado. Divulga-se que este ou aquele jornal ou revista preferencialmente consumido pelas classes A, B, C, D, etc., devido aos gneros textuais que ali figuram, em funo do poder aquisitivo dos leitores e do nvel de interesse presumido que esses leitores tm pelo contedo do produto oferecido. Parmentier (1986) levanta a questo de que os questionrios aplicados em pesquisas sobre leitores e sobre gneros lidos, em sua maioria, no colocam como gneros de textos: catlogos, panfletos, folderes, manuais de instruo, cartas, cartes postais, etc., alm de uma srie de outros gneros. Segundo o autor, esses textos no aparecem nos questionrios das pesquisas por no gozarem de um estatuto de legitimidade de um pretenso saber ler, tal como um livro de romance, uma revista ou um jornal lder de vendas num determinado mercado. Nota-se que uma classificao, baseada em parmetros preestabelecidos por classes de consumidores, provoca distores na relao leitores e gneros textuais. Estipulam-se, de um lado, alguns gneros consagrados e, de outro, gneros no consagrados, uma espcie de infraliteratura, e consideram-se leitores apenas os que tm acesso aos gneros consagrados. Uma pesquisa bem dirigida estimularia os indivduos a se situarem atravs de suas respostas, tanto em relao legitimidade social de determinados textos, quanto sua prtica pessoal como leitores. Um estudo sobre a mdia de leitura/ano dos cidados

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brasileiros deveria contemplar em seus questionrios a diversidade de gneros textuais que existem de fato nas instituies sociais de nosso pas. muito comum constatar-se o fraco ndice de leitura de livros, revistas e jornais, associados aos dados de comercializao destes produtos, e esquecer-se de que, alm destes suportes, existem inmeros outros nos quais figuram variados gneros textuais. Em nosso questionrio de pesquisa do projeto Prolabore9 perguntamos aos entrevistados se eles eram leitores ou no, e a maioria respondeu que no. Porm ao avanarmos o questionrio os entrevistados faziam lista de todos os gneros de textos que haviam lido recentemente, mas que no haviam julgado dignos de s