a ciência da motricidade humana e sua lógica social

Upload: mariana-magalhaes

Post on 06-Apr-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/3/2019 A cincia da motricidade humana e sua lgica social

    1/8

    A CIENCIA DA MOTRICIDADE HUMANAEA SUA LOGICA DO SOCIAL

    1.Havinte anos atras, quando eu, nasminhasaulas, privilegiava autores como Bachelard,Althusser, Canguilhem, Foucault, Popper e Kuhne revisitava Maurice Merleau Ponty (sem esque-cer, nem dogmatizar, Karl Marx), muitos senti amturbado 0 espirito, pois que pensavam que taisautores eram coisa perfeitamente sobejante numcurso deEducacao Fisica. Andava eu entao pressu-roso na busca da matriz teorica para ssta area doconhecimento, na esteira do que Louis AIthusseraconselhava: irnporta encontrar a "matriz teoricado tipo de questi'ies que uma ciencia coloca ao seuobjecto".! Para tanto, ha que romper com os habi-tos, as tradicoes, as crencas (as ideologias teoricas,em suma), dado que a pre-historia de urna cienciae a historia da sua ideologia. Marx teria feito 0mesmo, no entender de Althusser, por alturas de1845, quando fez surgir a problematica cientffieamarxista, cortando com a problematica ideologicapre-marxista,"

    Manuel Sergio""Porque 0 que basta acaba onde basta

    e onde acaba niio basta"(Alvaro de Campos)

    quais pretendem esconder a dialectics que une aeiencia (ou a teoria) it pratica social. Urn discipulode Althusser comenta, a proposito: "0dogmatisrnopolitico anda a par com a miseria teorica","

    Aprendiz de fi16sofo que era e sou, escuteientao a Louis Althusser que, depois de Lenine, 0lugar da Filosofia situava-se entre as ciencias e apolitics, dado que "aFilosofia representa a politicano ambito da teoria ou, para ser mais preeiso, dasciencias''." E Saw Karsz pondera: "as ciencias e apolitica definem a condieao de possibilidade e 0criterio de inteligibilidade de toda a problematicafilosofica, Galileu nao foi contemporaneo de Des-cartes por razOes exclusivamente cronologicas: 0cartesianismo foi provocado e estimulado por urnanova ciencia (...) que revolucionou de facto a Filo-sofia. Com efeito, produzida contra a fisicaaristotelica, a fisica de Galileu tinha de eriar osseus conceitos, os seus instrumentos proprios (...).I t aqui que intervem Descartes. Ele, como

  • 8/3/2019 A cincia da motricidade humana e sua lgica social

    2/8

    Porque ser sujeito e 000sujeitar-se, deitei-me ao labor r-------------------,de procurar 0 quesito inicialdas minhas aulas de Filosofiadas Actividades Corporais, quese concretizava na interroga-cao seguinte: qual a eienciaque proooca e estimula a fila-sofia de que [alo aos meus alu- L.. ~nos? Tinha presente, na me-moria, "0Eu e primeiramente um Eu corporal", deS. Freud; retinha "a identidade entre as atitudesmentais e as atitudes corporais", de W. Reich;tanto H. Wallon como J. Piaget sublinhavam 0papel das praticas corporais no desenvolvimentodas funcoes cognitivas; M. Merleau-Ponty punhaem evidencia a motricidade como "intencionalidadeoperante" e fazia de mim urn anti-positivista ferre-nho, ainda antes de conhecer 0 fundamento anti-positivismo de Habermas; folheavademoradamente, tanto os contributosneurofisio16gicos de P. Chauchard como osbiosociolegicos de H. Laborit. Enfim, uma no~aopsieo-somatica au psieo-motora do ser humane eraem mim urn dado adquirido. Simultaneamente,nao s6 Jean Le Boulch desenvolvia urna criticapertinente a Educaeao Ffsica, como P. Parlebastrazia, para 0 seu seio, a reflexao epistemologica,"

    registro, sentisse a necessidade de procurar amatriz teorica da area de conhecimento, que pro-vocava e estimulava a Filosofia que eu estudava eensinava. Olhava em redor e todas as minhasesperaneas se desfaziam em fumo: uma indiferen-~a total rodeava 0 tema! A expressao educaciio(isica roubava a curiosidade a qualquerquestionamento filosofico, embora urn ou outroentusiasmo passageiro. Tentei mesmo a leitura delivros, em lingua estrangeira, que pomposamentese intitulavam filosofia da educaciio fieica aufilosofia do desporto e, francamente habituado aurn convtvio diuturno com os grandes vultos daFilosofia, tudo me pareceu infundado e com aousadia especifica da ignorancia. Nao me conside-ro mais sabio do que ninguem (80 sei que nada sei),mas exijo rigor em qualquer pesquisa de ambitocientifico ou filosofico. Se tal nao acontecer, aeon-tece mentira ...

    E foi por este tipo de reflexao que eu comecei,ciente de que calcorreava 0 caminho mais indica-do. Nao procedera, de igual modo, 0 meu MestreLouis Althusser, na analise do marxismo?

    2 _ Epistemologia significa literalmente: dis-curso (logos) sobre a ciencia (episteme), Parecetratar-se de uma palavraja gasta pelo uso. Afinal,80 a partir do seculo passado ela surge no vocabu-lario especializado da Filosofia. E com urn estatutoque alguns consideram ambiguo, pois que encon-tra na Filosofia os seus principios e nas ciencias 0seu objecto. De qualquer forma, muitos a veemcomo urna disciplina especial, no interior da Ftlo-sofia, urna sub-especialidade da gnoseologia. Comose sabe, "a Filosofia permite elaborar conhecimen-tos a que nem 0 conhecimento corrente, nem 0conhecimento cientifico, rem acesso, dadas as suascaracteristicas cognoscitivas"." 0que nao haduvi-da e que, assim, a ciencia pode nao passar de urn

    pretexto a pratica filos6fica.No meu modesto entender, noentanto, nao e de roubar-se aepistemologia 0 seu estatutofilos6fico, mas a ela the assisteo estudo das condieoes de pro-dueao dos conhecimentos ci-entificos, sem entrar em gran-des elucubraeoes metafisicas.Fazer da epistemologia urna

    ciencia, como alguns 0 desejam, implica a existen-cia de urna epistemologia da epistemologia.Demais, "ao contrario do que pensa Rorty,

    julgo que a epistemologia, mesmo aceitando que setrata de urn episodic da cultura ocidental, estalonge da exaustao. Parece-me, alias, que a suavertente filos6fica (...) se aprofundara para acorn-panhar, como contrapeso, a progressiva redueaoda pratica a tecnica, que caracteriza a actual crisedo paradigma da ciencia moderna"." No meu casode estudioso assiduo da Filosofia, a reflexaoepistemol6gica sobre a Educaeao Fisica tratou-sede uma tentativa de conferir maior rigor eobjectividade a s minhas aulas. Ea primeira ques-tao logo me acudiu: e a Educacao Ffsica urn aspectoda Edueaeao? E , sem duvida, mas porque urnainequivoca ambigiiidade se esconde sob a designa-v a o generiea de Ciencias da Educaeao, a Educaeao

    ': 4 c ie nc ia d a m o tric id ad e h um a napossu i a d is p o nib ilid a d e te d ric a

    s ufic ie nte p ara s e p od era uto no m iz ar fa ce a s r es tan tes

    c ie n cia s h um an a s. H

    7 PARLEBAS, Pierre: "Pour une epistemologie de l'Education Physique". In:Revue E. P. S., julho-agosto, 1977. pp.15-22.8 CASTRO, A. A filosofia como tipo autonomo de conhecimento. In: Filosofia, Historia, Conhecimento: homenagem a Vasco

    Magalhiies Vilhena. Lisboa : Caminho, 1989. p.76. SANTOS, Boaventura de Sousa. Introduciio a uma Ciencia Pos-Moderna. Porto : Edi~s Mrontamento, 1989. p.29.

    REVISTA BRASILElRA DE CIENCIAS DO ESPORTE 17 (3),MAIO/96 253

  • 8/3/2019 A cincia da motricidade humana e sua lgica social

    3/8

    Fisiea (como a Educacao Medica, a Educaeao Juri-dica, a Educaeao Visual, a Educacao Filosofica,etc.) dificilmente sera urn qualquer sub-sistema dosistema Ciencias da Educacao. E bern mais certo (elogico) que ela se perfile como 0 ramo pedagogicode uma ciencia autonoma, dado que, no meupensar, a uma praticaautonoma deve corresponder,em principio, urna nova diretriz teo rica discipli-nar. Sem a aquisicao de fundamentos teorico-metodologicos basicos, nao ha pratica profissionale de pesquisa, com 0 minimo de coerencia,

    A ciencia da motricidade humana possui adisponibilidada teorica suficiente para se poderautonomizar face as restantes ciencias humanas.Ela estuda 0movimento intencional da superaeao(ou da transcendencia) e, como tal, 0 Corpo en-quanto forma de Desenvolvimento Humano. Amotricidade compreende-se na rela~ao intencionalentre a situaeao e 0 movimento e na flexibilidadeadaptativa das estrategias de aprendizagem per-manente. E explica-se na relacao inato-adquirido,percepeao-movimento, imanencia -transcendencia.Tendo em conta as herancas culturais, as necessi-dades individuais e sociais e os objectivos dossistemas socio-polttieos, a ciericia da motricidadehumana exige uma pratica pedagogica (a educa-~ao fisica ou educaeao motora) e uma reflexaocientifica onde se alicerce, para alem do que lhepodern dar as ciencias da educacao. A criaeao daciencia da motricidade humana chama tambem aatencao para 0 facto de a Universidade nao deverser tao-so reflexo das necessidades sociais, mastambem a seu projeeto, dado que a sua funeaoprincipal radica na criacao de conhecimentos,

    A producac do conhecimento cientifico; asproblematicas, os problemas e os meios de investi-gacao; enfim, as teorias, as tecnicas e os metodos -devem estar presentes, com priori dade, no en sinouniversitario, As aulas nso se realizam para disse-minar propaganda partidaria, mas para prornovera ciencia. 0 professor que esquece tudo isto devedernitir-se das suas funcoos, dado que ciencia eideologia, coabitando embora, nao se confundem ea universidade e urn espaco marcadamente cienti-fico. Aquilo que global mente caracteriza 0ernprrrsmc e a cre nca, nem sempreconsciencializada, de que se acede ao conhecimen-to e, em particular ao conhecimento cientifico,

    atraves da acumulaeao de observaeoes da realida-de, desprovidas de pressupostos substantives. Aodescodificar-se 0 empirismo reinante em algunsdocentes universitarios, encontramos, muitas ve-zes, a incapacidade de ruptura com determinadasideologias, 0que tern alimentado 0equi voco de quee a luz de slogans partidarios que melhor nosadentramos na analise de situaeoes concretas.

    A ciencia da motricidade humana, sem qual-quer assomo de auto-suficiencia, oferece a educa-~:1ofisica urn conjunto integrado de proposicoeste6rico-substantivas, directamente ajustadas aosprofissionais desta area, que me parece atempadoe a merecer a ateneao dos especialistas, mesmodaqueles a quem 0novo assusta e confunde. Haque deseonfiar das areas cientificas quando setransformam, unicamente, em sensa comum, Eisto, porque "ha uma descoincidencia necessariaentre, de urn lado, formas de conhecimento e deobservacao memorizadas e accionadas na praticasocial e, de outro, model os de racionalidadeconstruidos, testados e acumulados nas comuni-dades cientfficas''." Neste passo, apetece-me citarBoaventura de Sousa Santos. "S6 existe cienciaenquanto crttica da realidade, a partir da realida-de que existe e com vista a sua transforrnacaonuma outra realidada".!' Por outro lado, e born naoesquecer-se que "a epistemologia foi 0 primeiroproduto filosofico relevante da derrocada da visaodo mundo, unitaria, com a qual se inaugurou a eramoderna" .12 Recordo tambem as palavras deGiovanni Papini. dirigidas aos teologos, nas Car-tas os homens do Papa Celestino VI "V6s parasteso relogio da Historica, no seculo XVI, e continuaisa servir perpetuamente a mesma sopa. Nao saistesda rotina petrificada, das repetieoes, dos silogismosmecanicos, durn pedantismo verbal e formalista.Os vossos gabinetes estao repletos de escriba e naode pesquisadores". Estas palavras poderiam apli-car-se nao so aos teologos ...

    SO que eu acompanho Habermas, nas suaobieceoes a Lyotard, quando privilegia 0 consensoem relaeao as difereneas edesaoencas; e a Derrida,Gadamer e Adorno, dado que tambem eu nao mequedo por urna visao estetizante da realidade; epor tim ao positivismo, que nunca achou ensejopropicio a uma reflexao aturada sobre os pressu-

    to PINTO, Jose Madureira. Propostas para 0ensino das ciencias sociais. Porto :Edicoes Afrontamento, 1993. p.121.11 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit., p.52.12 MANNHEIM, Karl.ldeologia e Utopia. Riode Janeiro: Editora Guanabara, 1986. pAl.

    REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DO ESPORTE 17 (3), MAIO/96 254

  • 8/3/2019 A cincia da motricidade humana e sua lgica social

    4/8

    postoe sdcio-politicos da pratica cientffica," ousobre a insercao da filosofia positivista no contextehistorico do progresso do imperialismo europeu.Eu mesmo, num esforco para manejar rnenos pala-vras do que ideias, assumi duras criticas aopositivismo, a luz da fenomenologia: "(,..) porquetoda a experiencia e , segundo Husserl, a experien-cia de uma consciencia que lhe da sentido ou aconstitui, a neutralidade, impessoalidade eobjectividade das ciencias nao garantem uma ver-dadeira cientificidade pois que se poe de lado asubjectividade, nuclear na constituicao daqueletipo de conhecimentos"." Marxja buscou demons-trar a superioridade epistemologiea das analisesque dao relevo as dimensoes macrossociais dosfen6menos. Vale a pena voltar ao prefacio IiContri-buiciio para a Critica da Economia Politica: "0modo de producao da vida material condiciona 0processo da vida social, politica e intelectual emgeral. Nao e a consciencia doshomens que determina 0 seuser; e inversamente 0ser socialque determina a sua conscien-cia. Durkheim fez outro tanto,adiantando 0conceito defactossociais, osquais, conforme vernexpresso nas Regras do Meto-do Sociologico, "consistem emmaneiras de agir, de pensar esentir, exterioree ao individuoe que sao dotados de urn talpoder de coercao que declaradamente 0 subordi-nam", Assim, e impossivel escamotear a naturezasocial de toda a pratica cientifica. Sem esquecer 0seu car act er de activid ade mediatamentetransformadora da realidade objectiva.

    social em que ela (Educaeao Ffsica) se encontraempenhada. 0 que, atr aves da ciencia damotricidade humana seprocura, e urn saber, dadoque, na sua ausencia, as praticas corporais naoalcancarn, com verdade, uma teoria a que possamchamar sua. Se, na Educacao Ffsica, a articulacaoentre tecnica e ciencia fosse visivel, a sua validaeaosocial seria outra, Por que sofrem penasjudiciais (eafmal 0repudio generalizado) as falsos medicos, osfalsos advogados, as falsos engenheiros, etc. e saoabsolvidos de qualquer culpa os falsos professoresde Educaeao Fisica? Porque sao alcados.a treinado-res desportivos, entre fremitos de adrniracao, indi-viduos sem a minima preparacao cientifica e peda-gogica, mas antigos praticantes de modalidadesonde se notabilizaram? Acasoumantigo doente, sopor esse motivo, pode chegar a medico, ou urnantigo criminoso sentar-se na catedra do juiz?Afinal, urn e outro sao antigos "praticantes"! Sem 0

    radical fun dante de uma cisn-cia autonoma, a sociedade naotern da Educaeao Fisiea umadefinicao precisa. Pelo contra-rio: ve nela urn sub-produtoque 0Desporto vern colonizan-do, paulatinamente.

    ''S em um a c ie nc ia a uto no m a, aE d uc afa o F fs ic a, q ue n ad a ma is ed o q ue um a d id ac tic a e um ap ra tic a p ed ag og ic a, p erd e a s uaf un d amen ta fa o fe 6 ric a ,c on stitu tiv a d o p ro ce ss o s oc ia ls em q ue e la (E du ca fa o F is ic aj seen cont ra empenhada. "

    3.Ha pouco, urn amigo meu, a escorregar paraoenfatico, questionava-me: "Para que e necessariaa ciencia da motricidade humana se tudo 0que elapreconiza ja nos praticamos na Educacao Fisica?"Sentei-me e respondi-lhe com vagar: 0meu amigoesta a descambar nomais ingenue dos empirismos.A ciencia, porque teoria, e componente essencial edecisiva dos processos sociais de transformacao darealidade objectiva. Sem uma ciencia autonoma, aEducaeao Fisica, que nada rnais e do que umadidactica e uma practica pedagogica, perde a suafundamentacao tecrica, constitutiva do processo

    A revista Esprit, funda-da por Emmanuel Mounier.jadedicou urn dos seus mimerosa Educacao Ffsica". Nela, treseminen tes professores deEdu-

    cafao Fisica, Michel Bernard, Charles Pociello eGeorges Vigarello escreveram urn ensaio intitulado"Itinerario de urn Conceito", Ai se refere que aexpressao educaciio ftsica surge, pela primeira vez,em Franca, nos meados do seculo XVIII, "comurnadirnensao especificamente escolar", embora cornnormas higienistas e militares amplamente pre-sente. Mais tarde, Georges Hebert (1875-1957),pessoa de grande dom de comunicabilidade,publicita, com exito, 0 conceito, designadamenteapoa 0Congresso Internacional de Educaeao Fisi-ca, corria 0ano de 1913. Tres anos depois, reabertaa Escola de Joinville, as ideias de Georges Hebertrecebem forte impulso e, com elas, 0 termo educa-~ao fisica foi aubstituindo, gradativamente, a gi-nastiea. Hoje, 0 conceito educaciio fisica "tao tar-diamente e penosamente adquirido{. ..) e pcsto ern

    13 Cfr. DELACAMPAGNE, Christian. Histoire de la Philosophie au Kxe siecle, Paris; Seuil, 1995. pp347ss.14 SERGIO, Manuel. Motricidcuie Humana: contribuicoee para um paradigma emergente. Lisboa : Institute Piaget, 1995.

    p.l12.l.!l Esprit, Paris, maio 1975.

    REVISTA BRASlLEIRA DE crtNcIAS DO ESPORTE 17(3),MAIO/96 255

  • 8/3/2019 A cincia da motricidade humana e sua lgica social

    5/8

    causa em favor de novos termosque sejulgammais psicologicas e culturais do movimento". Assinala,adequados (...),porimperativos de ordem educativa, no entanto, Vigarello que os metodos e os conceitos,epistemol6gica e ideologica". Com alguma forea, ja aceites nas ciencias do homem, lhe parecembeneficiando de opulento aparelho critico, despon- soberanos, no estudo daeducacao fisica. E reconhe-tam agora os que integram esta area do conheci- ce que esta disciplina "ainda nao se interrogou 0mento, no grupo das ciencias do homem: a educa- bastante sobre a sua submissao a instituicao esco-~ao psicocinatica de Jean Le Boulch e a Iar (..). Bourdieu e Passeron mostram, sem mar-psicossociomotricidade dePierre Parlebas sao dois gem para duvidas, que a Escola trans mite e repro-curries desta corrente. Urn e outro porem, manifes- dux a ideologia e a linguagem das classes dominan-tando incontida antipatia pela expressao educaciio tes". E questiona: "E nao e verdade que a Educaeaoftsica. Uma segunda tendencia decorre da Fisica se situa ao mesmo nivel das praticasfenomenologia e diante do termo educacao fisica discursivas das outras disciplinas?".prefere e educaciio do corpo subjectioo ou do corpo- A ciencia da motricidade humana, que euproprio, em oposieao ao corpo-objeeto, que pre do- procuro elaborar, beneficiando da colaboraeao dernina ainda na educacao fisica. G. Rioux e R. alguns colegas brasileiros, parece-me dar respos-Chappuis, com 0 seu livro Les bases tasaproblematicalevantadapelosprofissionaisdepsychopedagogiques de l'education. corporelle, sao Educaeao Fisica, atras referidos:dois exemplos flagrantes, Ha r-------------------.uma terceira tendencia, de 1. Apresenta umparadigmafilia~ao na extrema-esquerda, defensavel para uma praticairreverente e demolidora, que ')1 c ie n cia d a m o tric id a de h um a na autonoma. A Educacao Fisicapoe de lado a expressao educa- es tuda 0 H om em n o m o vim e nto assim garante uma fundamen-ciio fisica porque a denuncia ~ ta~ao cientifica e uma ciencia.,. d a supe r~ iio 0 mo vim e n to m a is Icomo demasiado conotada com -r norma .au t en ti camen t e humano ) e , c omoas categorias economicas, 50-cio-culturais e politicas do ca- t a l, c onco rr e a uma le ilu rapitalismo.Aeduca~aofisicaen- p olitic a d o c orp o, ft i q ue o s tie ossina-nos a perder poder e a e o s p ob re s n iio s iio 0 me smoganhar adaptacao'". c or po . C a d a c la s se s oc ia l tem a

    Paginas adiante, na mes- s u a c u llu ra m o to ra .rna revi sta!", GeorgesVigarello, em artigo que da pelonome Education Physique et .....------- _'Revendication Scientifique, su-blinha que "a atitude cientffiea beneficia hoje deurn prestigio invulgar na Educacao Fisica transfor-mando-se mesmo numa reivindicaeao importantena literatura especializada". E apresenta a seguiras razoes do fen6meno: "vontade de abandonaruma pedagogia centrada, durante muito tempo, naintui~ao dos professores; desejo de utilizar novosmetodos e conceitos e provar a sua eficacia; espe-ranea de que se reconheea a cientificidade numadisciplina que a Escola nao prestigiou suficiente-mente". E proesegue: "A lingua gem da EducaeaoFisica esta dividida, no fundo, em duas correntes -uma, corporizada por aqueles que, mesmo dizendo-se educadores, privilegiam os dados positives dabiomecanica e da biologia; outra, que e seguidapelos que dao particular relevancia as dimensoes

    3. Se a ciencia e poder, a cien-cia da motricidade humanasupoe a criaeao de uma comu-nidade cientifica, com a suficiente aceita~ao na

    sociedade, de forma a tranformar-se em poder.4. A ciencia da motricidade humana estuda 0 Ho-

    mem no movimento da superaeao (0 movimentomais autenticamente humano) e, como tal, con-corre a uma leitura politica do corpo, ja que osricos e os pobres nao sao 0 mesmo corpo. Cadaclasse social tern a sua cultura motora.

    5. As Faculdades de Educacao Fisica (ou deMotricidade Humana) porque tern (com a exis-tencia da ciencia da motricidade humana) umamatriz cientffica autonoma, devem procurarformar "homens de ciencia", que podem, ou nao,ser professores, em conformidade com 0 que sepassa nas outras areas do conhecimento.

    2. Integra a ciencia damotricidade humana, nas ci-encias do homem, sugerindoassim urn corte epistamologicocom a passagem do [isico aomotor.

    16 Esprit, op. cit., pp.l04 58.17 Esprit, op, cit., pp.739 55.

    REVISTA BRASILElRA DE CrENCIAS DO ESPORTE 17(3), MAIOf96 256

  • 8/3/2019 A cincia da motricidade humana e sua lgica social

    6/8

    6. E, porque "homens de ciencia", os verdadeirostreinadores desportivos, ja que 0desporto e urndos sub-sistemas dosistema motricidade huma-na. Treinadores que 0 sao, pela razao exclusivade se terem notabilizado na pratica de um des-porto e sem a adequada graduaeao universita-ria, resultam do facto de a Educacao fisica estarpratieamente cireunscrita ao universe escolar eser assim fraco 0 seu prestigio social (conformeVigarello 0referiu, em artigo que atras citamos),As Faculdades de Motricidade Humana devemgraduar especialistas no desporto, na danca, naergonomia e na educaeao fisica adaptada e cha-mar a atencao de que os seus graduados, pelapreparaeao, rigor e honestidade inteleetual, remIugar imprescindivel, na sociedade, como factorde desenvolvimento individual e social. Ao invesdo que se passa com os antigos praticantes ...

    7. A ciencia da motricidade humana apela a umanova cultura do corpo, sem as exigenciasnormativas da sociedade capitalista, onde 0 cor-po e mais urn objecto de eonsurno.

    Eu sei que, com urn riso rasteiro e frfvolo, haquem se mostre avesso a reflexao filosofica, queesta minha tese implica. Mas ha tambem quem,com placidez e dignidade, considere a EducacaoFisica urn "corpo ortodoxo", dotado de umainamovivel eoerencia interna, enquanto pedagogiaque e. Permito-me adiantar que, no conhecimentocientifico, quanto maior e a coerencia, maior e afragilidade racional. Os ortodoxos pretendem com-pensar, com os seus dogmas, a fragilidade racionaldos seus contetidos. A logica da inercia e a quepreside a todas as ortodoxias, onde a tradieaoimpede a inovaeao e sup rime as mudaneas, No meuhumilde pensar, nao me parece haver outra saidapara a Educaeao Fisica do que procurar 0 seuestatuto cientffico e, com ele, isto e, com a suaindividualidade definida e precisa, concorrer atransformaeao da sociedade. Tudo isto e eustoso epenoso (sei-o por experiencia propria), dado que, sea liberdade e apanagio das pessoas, 0determinismoe proprio das instituieoes e a proeura do estatutocientifico ruio tem historia em muitas instituicoes,Resta-nos a cada um de nos questionar 0conservantismo, para que nelas seja possivel 0exercicio e 0 desenvolvimento da liberdade e dacriatividade.

    4. Quando, nos anos de 1987 e 1988 tive ahonra de trabalhar na Faculdade de Educaeao

    Fisica da Universidade Estadual de Campinas(FEFIUNICAMP) soh a orientacao fraterna doentao director Prof. Dr. -Ioao Batista Tojal e tendoa meu lado alguns colegas de solida cultura e que,por isso, nunea me manifestaram 0menor assomode hostilidade que e de regra a todos os adventicios- participei em reunioes do corpo docente onde sediscutiu 0 estatuto cientifico da Educacao Fisica.Foram eneontros de grande entusiasmo e autenti-cidade, que francamente me deliciaram e rapida-mente me deram a entender que alguns profissio-nais da Educaeao Ffsica hrasileiros podem dialo-gar, de igual para igual, com 0que de melhor ha naEuropa. Por generosidade dos participantes,designadamente do -Ioao Tojal, foi discutido antaoum doeumento, por mim elaborado e onde ficoupresente (para alem doutras ideias) a filosofia deurn livro que eu estudava, demoradamente, na-quela altura.P Nele pode ler-se que as diversasareas do conhecimento "nao cessam de se decom-por e recompor, encontrando-se as suas fronteirassubmetidas a incessantes var iacoes". Ahistoricidade de cada uma das ciencias e um factoincontroverso. E, porque se fala em hist6ria dasciencias, fala-se ipso facto em historia das ideias,de que 0conhecimento cientifico e reflexo e projecto.Por isso, foi uma prosa afoita a que eu escrevi.Senti, entao, que 0meu corpo ja nao tinha a idadedo meu espirito; que um adoleseente sobrevivianum corpo, em 1987, com 54 anos de idade.

    Mas, reconheeo, fui mais urn filosofo dascieneias do que um politologo, com grande desgos-to do Lino Castellani Filho, fervoroso adepto dou-tros temas e doutras militancias (dialogamos tantourn com 0outro que nolodeixamos de ser "amigosdo peito", mesmo com epistemologias diferentes).Urn motivo sobre outros me levou a tal postura:desde a Idade Media, a Universitas designou duasrealidades eomplementares - sociologica, naUniversitas magistrorum etScholiarum (universi-dade dos profesores e alunos): ideologica, naUniversitas Scientiarum. (universidade das cienci-as). 0 ressurgir agressivo do racismo e 0racionalismo, ingredientes essenciais do nacional-socialismo hitleriano; 0 alastrar dosfundamentalismos religiosos, inimigos fidagais daliberdade de pensamento; oreamentos governa-mentais para a Educacao, que nao atingem (nernultrapassam) os determinados para as Forcas Ar-madas e a Defesa; 0 desprezo pela promocao dos

    18 Cfr, GUSDORF, Georges. De l'Histoire des Sciences a l'Histoire de la Pensee. Paris: Payot, 1977.

    REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DO ESPORTE 17 (3), MAIO/96 257

  • 8/3/2019 A cincia da motricidade humana e sua lgica social

    7/8

    recursos humanos, como factor de desenvolvirnen-to, num quadro de igualdade de oportunidades ede melhoramento dos niveis de eseolarizaedo emtodos os graus de ensino; 0 facto de a opiniaopublica ser a opiniao que se publica, numa "aldeiaglobal" onde osmass-media, aqui e alem nas maosdosgrandes inieressee, pontificam; a crise do soci-alismo que se deixou confundir com uma Interna-cional Socialista, que pretende casar alta competi-~iio economica, liberalismo e solidariedade - saotemas que condicionam 0 de- _-----------------...,senvolvimento do sistema ei-entifico e tecnologico. Mas auniversidade, au faz ciencia,ou nao e Universidade. 'flo c a s o d a c re n c ia d a m o t ri c id a d eh u m a n a , e la q u e , a b r a F a r a c a u s a

    d o H o m e m , p o r q u e 0 H o m e me s t l e m c a u s a . "

    Confesso, no entanto, quea ciencia da motricidade hu-mana sempre teve presente aspalavras deGaston Baehelard:"0 espirito cientifico moderno L. ---Iesta Iiberto por principio, de qualquer especie dedogmatismo, porque se apresenta em constanterenovacao", E mais ainda: "uma especializacaocientifica muito desenvolvida e sempre acompa-nhada de larga cultura geral. Uma especializaeaoprofunda mobiliza pensamentos que deitam raizesnos amplos dominios da eultura"," E, portanto, sea instituicao universitaria deve fazer ciencia, exis-tern estreitas relacoes de adalteridade entre aciencia e a cultura e assim a Universidade deveassumir, nao so urn caracter participative na cons-trucao da sociedade, mas tarnbern urn papel criati-vo na construeao de uma visao nova do Mundo, daSociedade e da Histdria. Alias, so fazendo cienciae criando cultura, a Universidade pade ser inova-dora; pode ser afinal 0 corpo interrnedio que maisinflui no modo de urn Pais ser e estar noMundo. S6fazendo ciencia e criando cultura, a Universidadepode ser 0 espaco de uma pratica politica que tomea palavra para proclamar, nos dias que passam,que nem tudo e redutivel as formas matematicasimpecaveis da tecnocracia e do liberalismo. Uma

    ltigrima humana e bern mais do que tudo 0 que asciencias explicam. Ealgumas politicas irnplicam ...

    No caso da eiencia da motricidade humana,ela quer abraear a causa do Homem, porque 0Homem esta em causa. E velho, de mais de dois milanos a preceito deDelfos - conhece a ti mesmo, Ora,para mim, 0 ser humano e urn ser aberto atranscsndencia e ao encontro. E e par isso que ele

    se movimenta. a sujeito, en-quanto essente encerrado emsi mesmo, desaparece comHegel. E na Fenomenologia doEspirito que, pela primeira vezse desenvolve, mediante adialectica do senhor e do es-cravo, uma fenomenologia daalteridade, au seja, daintersubjetioidade. Hegel, a

    este proposito, afirma que nao faz sentido falar deurn si-mesmo (Selhst) fora da relacao ao outro.Para njio me perder na citacao enfadonha doutrosfilosofos, relembro tao-so Jean-Paul Sartre, no seucelebre l'etre et le neant: "eu tenho necessidade dooutro para compreender plenamente as estrutu-ras do meu ser, 0 Para-si remete ao Para-ou-trem".20 Uma das caracteristicas do pensamentofilosofico contemporiineo consiste seguramente nadefesa de uma ideia de altrridade subjacente eestruturante da subjetividade, Maurice Merleau-Ponty exclama: "aminha vida tern uma atmosferasocial, tal como possui urn saber mortal" . : < 1 A soli-dao no ser humano e a falta da presenfa do outro.

    A cieneia da motricidade humana, porem, dizmais: porque descobre 0outro implicado em todosos niveis da instauraeac do sentido. Sem 0outro, amotricidade humana per de sentido. Mesmo 0desportista solitario, praticando a sua corridamatinal, eupoe a existeneia doutras pessoas quelhe permitem 0 seu exercicio higienico. Amotzieidade humana die-nos que e infinite 0

    19 BACHE LARD, Gaston. Avoeacao cientifica e 8. alma humana. In: 0 Homem. perante a Cieneia. Encontros Internacionaisde Genebra. Lisboa ; Publicaeoes Europa-America, 1967. pp.16 SS.

    iQ SARTRE, Jean-Paul. L'etre et le neant. Paris: Gallimard. 1976. p.290.UMERLEAU-PONTY, Maurice. Pbenomenologi de la Perception. Paris: Gallimard, 1976. p.418.

    REVISTA BRASILEIRA DE CItNCIAS DO ESPORTE 17 (3), MAIO/96 258

  • 8/3/2019 A cincia da motricidade humana e sua lgica social

    8/8

    caraeter do espaeo intersubjetivo, sublinha que avida e impossivel sem 0 dialogo, A metafisica daeubjectiuidade sofreu tambem urn rude golpe como surgimento das eienciaa humanas (ou eiencias dohomem) as quais, ao tradicional projecto de eonsi-derar a vida hurnana como subjectividade, contra-poem urn contra-projecto de redueao do ser huma-no amero objecto cientifico. Acieneia da motricidadehumana, ao pretender estudar 0 homem no movi-mento da superacao (ou da transcendencia) chegaa conclusao, em primeiro lugar, de que os proble-mas hurnanos nao sao tanto os do ser, mas dosentido do ser. Isto, porque, em Ultima analise, 0problema do real e inseparavel da sua significaeao.E, em segundo lugar, de que 0 senti do nao e maisdo que uma funeao da intencionalidade do sujeito.Assim, e evidente, na eieneia da motricidade hu-

    mana, a sua 16gica do social dado que nao hamotricidade, sem movimento para 0 outro; dadoque eu mesmo nao existo sem 0 outro e, assim, 0bem-estar do outro e 0meu proprio bem-estar.

    Subjaz a eiencia da motricidade humana (deque a Educaeao Fisica, enquanto maero-conceito,e a pre-ciencia) urn principia de responsabilidade:porque 0 sujeito, atraoes de estruturas sociaisopressivas, esta em causa - eu proprio estou emcausa tambeml 0 modelo carte siano dasubjectividade e superado, porque a motricidadehumana e energia para uma dialeetiea entre 0 eue 0 tu, onde a subjectividade se completa naintersubjectividade, onde cada urn de nos nunca eurn dado adquirido.ja que, atraves da motricidade,nos movimentos para ser mais ... com os outros!

    SECRETARIAS ESTADUAIS DOCBCENAREGIAO CENTRO-OESTE

    1. BRASiuASeoretario:Endereco:

    2. GOlASSecretaria:Ender~:

    3. MAlO GROSSOSecretaria:Enderer;o:

    4. TOCANTINSSecretario:Ender~:

    Prof. JOAO ALBERTO LlSOTSON, 307, Bloco 0, Apto 406Cep 70.746-040 - Brasilia - OFFone (061) 349-1091 Fax (061) 274-4409

    ProF-.JANDERNAIDE RESENDE LEMOSR. E-4, n. 247 Apto 1102Ed. Tucuman - Sta Bela VistaCep 74.823-450 - Goiania - GO

    Profa. BELENI SALETE GRANDORua F, n. 344, Bloco 9, apto 202Res. Aclima~oCep 78.070-000 - Culaba - MTFone (065) 322-0299

    Prof. JOAOUIM R. A. N. NUNESAvenida Tocantins n. 1580Cepn803-120 - centro - Araguiana - TO

    REVISTA BRASILElRA DE CIENClAS DO ESPORTE 17 (3), MAIO/96 259