a cidade e a loucura

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i RACHEL TEGON DE PINHO CIDADE E LOUCURA: ENTRE O CENSO DE 1890 E A INAUGURAÇÃO DO PAVILHÃO DE ALIENADOS EM CUIABÁ CUIABÁ 2006

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Processo de Loucura nas Cidades

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Page 1: A Cidade e a Loucura

i

RACHEL TEGON DE PINHO

CIDADE E LOUCURA: ENTRE O CENSO DE 1890

E A INAUGURAÇÃO DO PAVILHÃO DE ALIENADOS

EM CUIABÁ

CUIABÁ

2006

Page 2: A Cidade e a Loucura

i

RACHEL TEGON DE PINHO

CIDADE E LOUCURA: ENTRE O CENSO DE 1890

E A INAUGURAÇÃO DO PAVILHÃO DE ALIENADOS

EM CUIABÁ

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre, pelo Curso de Pós-Graduação em História, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ludmila de Lima Brandão

CUIABÁ

2006

Page 3: A Cidade e a Loucura

ii

COMISSÃO JULGADORA

_______________________________________

Presidente: Prof.ª Dr.ª Ludmila de Lima Brandão

_______________________________________

Prof. Dr. Oswaldo Machado Filho (UFMT)

_______________________________________

Prof.ª Dr.ª Leny Caselli Anzai (UFMT)

_______________________________________

Prof. Dr. Robert Moses Pechman (UFRJ)

Cuiabá, de de 2006.

Page 4: A Cidade e a Loucura

iii

À minha mãe, Nair Leal Tegon de Pinho, e ao

meu pai, Rubens de Pinho (in memorian),

com todo o meu amor.

Page 5: A Cidade e a Loucura

iv

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Professora Doutora Ludmila de Lima Brandão, que acreditou

no tema proposto e que escancarou inúmeras portas para, generosamente, compartilhar

comigo um pouco do muito que ela sabe; e mais do que isso, incitou-me a experimentar o

novo sem medo. Assim foi com o computador, com a internet, com o Messenger e, sobretudo,

com o pensamento. Desconcertantes, muitas vezes, como foram as discussões sobre a obra de

Gilles Deleuze e Felix Guatarri, entre outras, que não se restringiam ao espaço reservados às

reuniões do Núcleo de Estudos do Contemporâneo e, como rizomas, se prolongavam para a

mesa do bar, para minha casa e tantos outros lugares. Suas aulas brilhantes, com tiradas tão

inusitadas quanto pertinentes, compõem o arsenal que, daqui por diante, pretendo ter sempre

comigo, todas as vezes que eu pisar numa sala de aula. A sua simplicidade, informalidade e o

respeito a mim dispensado foram fundamentais para o percurso realizado até o momento, em

que o prazer tem sido uma constante. A ela devo todas as tentativas de acerto; quanto aos

erros, possíveis equívocos e/ou superficialidade com que apresento algumas possibilidades de

se pensar a cidade e a loucura, estes são de minha inteira responsabilidade.

Aos membros da banca de Exame de Qualificação, pelas valiosas sugestões. À

Professora Doutora Leny Caselli Anzai, que, com simplicidade e carinho, não deixou

que eu desistisse diante de um problema delicado e, pacientemente, explicou-me as

mudanças que estavam ocorrendo nas produções historiográficas.

Ao Professor Doutor Oswaldo Machado Filho, que me mostrou a importância

de estar aberta a novos aprendizados e territórios da história.

Ao Professor Doutor Robert Moses Pechman, pela forma carinhosa com que

aceitou o convite para participar da banca de defesa, mesmo tendo de encarar o calor de

Cuiabá, e também pela grande contribuição, já que sua escrita sensível contaminou meu

pensamento e também este trabalho.

Na oportunidade, quero também registrar meu agradecimento à Professora

Doutora Maria Stella Bresciani, pela forma simpática com que me tratou e,

principalmente, pelas pistas seguras na época em que eu, como detetive, “procurei

Pechman”.

Page 6: A Cidade e a Loucura

v

A todos os professores do Programa de Mestrado em História, em especial aos

Professores Doutores José Carlos Leite e João Carlos Barrozo, pela forma gentil com que

praticam a atividade docente e com os quais eu aprendi muito; ao Professor Doutor Carlos

Alberto Rosa, que me contagiou com a sua paixão pelos arquivos e que estimulou o meu

pensamento na época do cumprimento dos créditos do mestrado; e, finalmente à Professora

Doutora Regina Beatriz Guimarães Neto, por todas as recomendações, sugestões de leituras e

suas grandes lições sobre o ofício do historiador na atualidade.

À Maurília Valderez, grande amiga e filósofa, que contribuiu intelectualmente em

vários momentos, com sua percepção aguçada e amadurecimento intelectual, e que foi

agenciada tantas vezes que é quase uma co-orientadora deste trabalho.

A Ricardo Carrion Carracedo, que se solidarizou com as minhas dificuldades

financeiras e me deu um computador, ferramenta indispensável para fazer a dissertação, e

confesso que não sei se teria conseguido concluir no prazo sem essa incalculável ajuda.

Ao grande amigo Júlio Coelho, que dividiu comigo dificuldades, leituras, reflexões e

muitas risadas, ajudando a aliviar as inseguranças que acomete quem faz o mestrado.

Ao Mário Leite, Gilbert, Dagoberto, Bosco, Hélio, Regiane, Fernanda, João Antonio,

Luiz Vicente, Sandrinha, Miriam, Antonio, João Carlos Bertoli, Carol, Acir, Inês, Domingos

Sávio e Clementino, Eduardo Ramalho, amigos e colegas com quem estreitei laços, como é o

caso dos antigos, e os vínculos que fiz, como é o caso dos novos, no convívio da sala de aula

do Mestrado em História, do MEL, do Núcleo de Estudos do Contemporâneo, na UNEMAT,

nos acervos consultados e em tantos outros lugares.

À SEDUC, que me liberou das atividades docentes no período de realização do

mestrado e, sobretudo, aos professores e alunos da Escola Estadual União e Força, em

Cáceres, Mato Grosso, lugar onde leciono e onde mais aprendi do que ensinei.

A Lucia Muller, que muito tempo atrás me incentivou a levar adiante a pesquisa

sobre a loucura num programa de mestrado.

Ao Astrogildo Settini, meu amigo, pelo ombro e também pelas rotas de fuga

ocasionais, tão necessárias para oxigenar o pensamento e enxergar outras direções.

Page 7: A Cidade e a Loucura

vi

Aos amigos Yugi, Claudio Conte, Caia, Roberta, André Borges, Romyr e Elair, que

compartilharam este momento da minha vida com toda a solidariedade de que só os amigos

sabem dispor e de que me vali sempre que precisei.

Ao Zanizor Rodrigues da Silva, que, de informante na época da minha graduação,

transformou-se em um grande amigo, não apenas meu, mas de toda minha família.

Ao doutor Julio Strubing Müller Neto, pelo aprendizado oportunizado na Secretaria

de Estado de Saúde de Mato Grosso e pelas dicas valiosas na área de saúde mental; por meio

dele, quero estender meus agradecimentos aos meus grandes médicos, Tio Admar Concon,

Fernanda, Ticão e Dema.

Aos meus familiares de Mato Grosso, São Paulo, Campinas e Valinhos, por toda

ajuda material e emocional e pela tolerância com que me escutaram por tanto tempo, falando

e ruminando um único tema, não é Tetela?

Aos meus filhos, Mariana, José Rodolfo e Rafael, que encararam comigo a difícil

tarefa de vida de estudante, com dinheiro curto em plena adolescência e juventude, quando

comprar é o verbo preferencial da maioria, e que tiveram de engolir, muitas vezes quietos, a

constância da palavra não.

Grande paradoxo: para que eu pudesse estudar, minha filha teve de suspender

temporariamente o sonho de fazer uma faculdade para trabalhar e ajudar nas despesas da casa.

Mariana foi e tem sido, com certeza, a minha grande aliada neste caminho e a ela devo muito,

para não dizer tudo, e espero que este título valha todos os dias em que ela se levantou cedo

para trabalhar, todos os ônibus que ela pegou e todo sonho que ficou em suspenso.

Page 8: A Cidade e a Loucura

vii

SUMÁRIO

RESUMO ....................................................................................................................... viii

ABSTRACT ................................................................................................................... ix

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 1

1 A (RE)INVENÇÃO DA CIDADE E DA LOUCURA EM CUIABÁ ................ 16

1.1 Lugares e Personagens da Cidade ........................................................................... 19

2 A CIDADE DISCIPLINAR .................................................................................. 46

2.1 Polícia para Quem Precisa ...................................................................................... 54

3 A CIDADE HIGIENIZADA ................................................................................ 77

CONCLUSÃO ................................................................................................................ 117

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 125

Page 9: A Cidade e a Loucura

viii

RESUMO

Em 1890, realizou-se em Cuiabá, Estado de Mato Grosso, um recenseamento urbano que, pela primeira vez, identifica, codifica e classifica isso que chamamos de loucura. Naquele momento, podemos verificar que ela ainda gozava de certa liberdade, já que diversos são os seus endereços. A identificação dos loucos da cidade foi, então, o primeiro passo dado pelo Estado, para civilizar a cidade e inserir a capital mato-grossense no projeto de construção da nação, em curso no País em fins do século XIX. Para empreender tal projeto, o Estado, não se furtou em lançar mão de tecnologias de poder diversas. Passando pelo cuidado com o indivíduo, pela disciplinarização e normatização dos cidadãos, a cidade pouco a pouco vai revelando seus estriamentos e os perigos que a rondam, tanto por meio da adoção de inúmeras práticas tidas como modernas, como no cerceamento de tantas outras, consideradas atrasadas e nocivas ao sonho de progresso. É nesse contexto que vemos o recolhimento dos alienados de Cuiabá pelas mãos da polícia, tanto à Cadeia Pública da capital como à Santa Casa de Misericórdia. Entretanto, será com a instituição de uma outra tecnologia de poder — o biopoder —, por meio de práticas de higienização e saneamento, que veremos a intensificação do projeto civilizatório. Nesse quadro, a loucura passará a ser considerada como perigo social iminente, e ao louco se atribuirá um novo status, o de doente mental, e um novo endereço, o do hospício. A inauguração em Cuiabá, em 1928, do Pavilhão de Alienados encerra este trabalho, quando, então, a cidade não mais expulsa os seus loucos: ela os aprisiona. Palavras chave: cidade, loucura, higienização, disciplinarização, biopoder.

Page 10: A Cidade e a Loucura

ix

RÉSUMÉ

En 1890 a été réalisé à Cuiabá, État du Mato Grosso, un recensement urbain qui, par la première fois, identifie, codifie et classifie ce que nous appellons folie. À ce moment nous pouvons vérifier que la folie jouit encore d’une certaine liberté, une fois que ses adresses étaient divers. L’identification des fous de la ville a été le premier pas donné par l’État pour civiliser la ville et pour incluire la capitale du Mato Grosso au projet de construction de la nation, en cours au pays à la fin du XIXème siècle. Pour entreprendre tel projet l’État a employé plusieurs technologies de pouvoir. À travers le soin avec l’individu, l’attitude de discipliner et de normatiser des citoyens, la ville, peu à peu, révèle ses fissures et les dangers qui la rondent, par l’adoption de pratiques variées, dites modernes et par le la négation d’autres, considérées dépassées et nocives au rêve du progrès. C’est dans ce contexte que nous regardons le receuillement des aliénés de Cuiabá par les mains de la police, à la prison publique de la capitale et à Santa Casa de Misericórdia. Toutefois, c’est à travers l’instituition d’autre forme de tecnologie de pouvoir _ le biopouvoir _ par des pratiques d’hygienisation et d’assainissement que nous regardons l’intensification du projet civilisateur. Dans ce cadre la folie passe à être considérée como un danger social imminant. Le fou passe à la condiction de malade mentale et son adresse passe à être l’hospice. L’inauguration, à Cuiabá, en 1928, du Pavilhão de Alienados, renferme ce travail, au moment où la ville n’expulse plus ses fous: elle les emprisonne.

Parole clé: ville, folie, hygienisation, discipliner, biopouvoir.

Page 11: A Cidade e a Loucura

1

INTRODUÇÃO

Escrevia no espaço.

Hoje, grafo no tempo,

Na pele, na palma, na pétala,

Luz do momento. . .

Page 12: A Cidade e a Loucura

2

Paulo Leminski

A aproximação da História com as Ciências Sociais, Filosofia e Antropologia, em

particular, a partir de reflexões teóricas a respeito do fazer história, possibilitou a pertinência

do estudo de temáticas até então ignoradas pela historiografia.

Foi neste ambiente que ocorreu o meu contato com o tema da loucura e os estudos de

Michel Foucault. Lembro-me da primeira vez que entrei no Hospital Psiquiátrico Adauto

Botelho, em 1989, para entrevistar um médico da instituição1. Era final de uma manhã de

verão amazônico, quente e úmida. O mau cheiro do pátio central e as imagens que flagrei

permanecem até hoje na minha memória e suscitaram algumas questões: Como seres

humanos podiam ser tratados daquela forma? Quem os enclausurou? Quando surgiu o

hospício em Cuiabá? Que práticas foram adotadas e/ou interditadas que contribuíram para a

institucionalização da loucura em Cuiabá? Quem eram, afinal, os loucos e quando estes se

tornaram problemas? Para quem? Frente o quê?

Tantas perguntas carregadas de perplexidade levaram-me a pensar que, de acordo

com Michel De Certeau2, eu deveria dar início à fabricação da história. O ingresso no

programa de mestrado em História ofertado pela Universidade Federal de Mato Grosso,

através da linha de pesquisa Territórios e Fronteiras: Temporalidades e Espacialidades,

possibilitou o desenvolvimento do trabalho, que ora se encontra em andamento.

Na tentativa de responder às questões iniciais, selecionei e desloquei as seguintes

fontes: mensagens governamentais; leis; decretos; portarias; ofícios; processos crimes;

1 Esta entrevista foi realizada com o Dr. Zanizor Rodrigues da Silva, para atender às exigências da disciplina

Antropologia I, do curso de História, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), ministrada pela antropóloga Joana Fernandes. Um dos seus desdobramentos foi o trabalho de conclusão de curso A institucionalização da loucura em Cuiabá na primeira metade do século XX. Cuiabá, 1993. UFMT.

2 DE CERTEAU, Michel. A operação historiográfica. In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p 65.

Page 13: A Cidade e a Loucura

3

inquéritos; periódicos; correspondências; livros de registros de ofícios da Inspetoria de

Higiene; relatórios da chefatura de Polícia, da intendência Municipal e da Inspetoria de

Higiene; algumas plantas, mapas, fontes iconográficas, além do recenseamento da capital.

Tais fontes constam dos acervos do Núcleo de Documentação Histórica e de Informação

Regional da UFMT e principalmente do Arquivo Público de Mato Grosso, cujo acervo do

período correspondente a este trabalho (1890-1931) encontra-se majoritariamente identificado

apenas pelo ano. Nessa etapa do trabalho, a busca prescinde da paixão pelo tema, já que, às

vezes, demoram-se dias, às vezes semanas, até se encontrar alguma coisa que aponte pistas ou

sinais relativos à temática, remotos que sejam. Penso que talvez esteja no esforço realizável

de desnaturalização e dessacralização dos registros — que torna possível a sua transformação

em documento histórico — uma das primeiras dificuldades do historiador na atualidade.

Apesar do impulso que nos dá De Certeau3, quando afirma (e realiza) a cientificidade

da História (que não deve ser confundida com o cientificismo do século XIX), logo vemos

que isso não corresponde a nenhuma simplificação, ao contrário, a historiografia torna-se cada

vez mais complexa e, como toda ciência, prescinde de regras. O movimento de articulação

entre questões, pesquisa empírica e referencial teórico é a operação metodológica que

conjuga, a princípio, pelo menos duas destas regras: o lugar social e a prática.

Nesta operação algumas perguntas foram respondidas, outras foram abandonadas e

outras tantas foram suscitadas. Destas, a questão da cidade adquiriu grande importância para o

meu olhar. A cidade como lugar do possível, como escreveu Peter Pál Pelbart4 como o lugar

da exterioridade por excelência, a cidade “como um universo dissonante e pluralista, mundo

do perspectivismo nietzschiano onde já não se trata de múltiplos pontos de vista sobre a

mesma coexistência de cidadãos, mas múltiplas cidades em cada ponto de vista, unidos por

3 DE CERTEAU, Michel. A operação historiográfica. p. 65. 4 PELBART, Peter Pál. Cidade, lugar do possível. In: A vertigem por um fio: políticas da subjetividade

contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000. p. 43-49.

Page 14: A Cidade e a Loucura

4

sua distância e ressoando por suas divergências”5. E aí rememoro meus tempos de criança,

quando, ainda morando em Campinas, meu pai nos levava de carro para conhecer lugares da

cidade. Pelos vãos de braços, cabeças e cotovelos, afinal éramos oito numa Rural Willys, eu

olhava atentamente para todas as ruas, lugares e pessoas de nosso trajeto e achava que

conhecia o mundo. Muitos anos depois, foi que me dei conta de que eu “conhecia” apenas

pedacinhos de mundo de uma cidade e daquilo que ela se permitia mostrar, mas aí eu já era

uma apaixonada pela cidade, pela em que nasci e por aquelas a que fui sendo apresentada no

decorrer da vida. Talvez isso explique, pelo menos parcialmente, a escolha da cidade como

um dos temas sobre o qual me debruço, por isso, se é que posso externar o sentimento

presente neste trabalho, ele é o da paixão. Todavia, esta escolha decorre também de questões

simples, formuladas ainda na época da graduação em História, influenciada por algumas

leituras que privilegiam a cidade como objeto de estudo, das quais uma percorre todo o

trabalho, aquela formulada por Angel Rama: quantas cidades existem numa cidade?

Chegaram-me, então, pelas mãos de minha orientadora, algumas obras que tratam da forma-

cidade, e foi assim que me apossei do “seu ex-livro” Cidades Estreitamente Vigiadas – o

Detetive e o Urbanista, de Robert Moses Pechman, entre outras obras, que analisam a questão

da cidade e que a tratam como o lugar privilegiado pelo Estado para interditar práticas e tentar

solapar o sonho humano do labirinto, que é o de se perder na multidão.

Assim, entre encontros e abandonos, redefini o meu tema, que trata da cidade e da

loucura. A construção do objeto, por sua vez, implica, entre outras práticas, na articulação

entre as leituras relacionadas à temática eleita e à pesquisa empírica, e deste ir-e-vir entre as

leituras e os arquivos, resultou a escolha de algumas estradas, caminhos e trilhas.

5 Ibid., p. 48.

Page 15: A Cidade e a Loucura

5

Denomino estradas os resultados de pesquisas realizadas com um fôlego

extraordinário, como é o caso dos trabalhos de Michel Foucault6, que historicizou a loucura e

sua problemática na Europa, o grande enclausuramento dos loucos, o nascimento do hospício

na Europa, o nascimento da Psiquiatria, a tecnologia de poder disciplinar — tecnologia de que

o Estado habilmente lança mão, com o objetivo de disciplinar os indivíduos — e a

regulamentação de sua população por meio do biopoder. Tais questões e formulações

conceituais estão presentes nas obras A História da Loucura; Vigiar e Punir; Os Anormais e a

Aula do dia 17 de Março, publicada no livro Em Defesa da Sociedade, utilizadas como

grandes referenciais teóricos deste trabalho, dadas a sua amplitude e densidade, já que

auxiliaram na análise sobre a percepção da loucura em Cuiabá, ao percorrer os deslocamentos

operados na cidade, por meio de inúmeras práticas e técnicas de poder utilizadas, para vigiar,

disciplinar, excluir, punir e regulamentar.

O conceito de civilização apresentado por Norbert Elias7, como também a obra de

Robert Moses Pechman, Cidades Estreitamente Vigiadas8, cujo tema central é a questão

urbana sob a perspectiva da construção de civilização e barbárie, também foram utilizados

neste trabalho, já que ofereceram suporte necessário para proceder às análises realizadas. A

obra de Sandra Jatahi Pesavento9, O Imaginário da Cidade: visões literárias do urbano e de

Roberto da Matta10, Carnavais, Malandros e Heróis, funcionaram como guias para percorrer

as ruas da cidade e os espaços públicos privilegiados. Serviram como percurso desta estrada.

6 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987; A história da loucura. São Paulo: Perspectiva,

1991; Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002; Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 7 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. 8 PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da

Palavra, 2002. 9 PESAVENTO, Sandra Jatahi. O imaginário da cidade: visões literárias (...) 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2002. 10 MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis... 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Page 16: A Cidade e a Loucura

6

Os caminhos, por sua vez, estão sinalizados por meio das seguintes obras: A História do

Medo no Ocidente: 1300–1800, de Jean Delumeau11, que foi fundamental para compreensão do

medo então presente no imaginário coletivo cuiabano, em decorrência de vários fatores, mas,

sobretudo, da peste, o que será tratado ao longo do trabalho. Em O Espetáculo das Raças, de Lilia

Moritz Schwarcz12, realizamos a aproximação com a Antropologia, importante referência para

examinar a construção das identidades e a preocupação com a raça e a inserção do Brasil no

mundo da ciência, e que, de certa forma se alia à obra de Serge Gruzinski13, Os Pensamentos

Mestiços, ao demonstrar, entre outras coisas, que o estranhamento do nosso olhar é construído

culturalmente.

Ainda no caminho, encontramos Heitor Rezende14e Vera Portocarrero15, pesquisadores

da Fiocruz, cujos trabalhos voltam-se para as políticas de saúde mental no Brasil e os arquivos da

loucura, e a dissertação de mestrado de Luciana Vieira Caliman16, que trata da questão do

biopoder em Foucault. Finalmente, ainda no caminho, os convites sedutores de dois autores

audaciosos: Nicolau Sevcencko17, mais precisamente em Orfeu Estático na Metrópole, que

privilegiou os periódicos enquanto fonte para penetrar na subjetividade da cidade de São

Paulo, na década de 1920, e a obra de Ludmila de Lima Brandão18, A Casa Subjetiva:

Matérias, Afectos e Espaços Domésticos, que, entre inúmeras possibilidades, auxiliou-me a

pensar nos rizomas e nos devires, conceitos que foram formulados por Gilles Deleuze e Felix

Guatarri e que ainda são tão desconhecidos, sobretudo por aqueles que os rejeitam.

11 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300–1800 (...) São Paulo: Companhia da Letras, 1989. 12 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas (...) São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 13GRUSINSKY, Serge. Os pensamentos mestiços. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 14 REZENDE, Heitor.Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Cidadania e loucura. Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 16-69. 15 PORTOCARRERO, Vera. Arquivos da loucura. (...) Rio de Janeiro, Fiocruz, 2002. 16 CALIMAN, Luciana Vieira. Dominando corpos, conduzindo ações... 2001. Dissertação (Mestrado em Saúde

Coletiva) - Instituto de Medicina Social, UERJ, Rio de Janeiro. 17 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 18 BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços domésticos. São Paulo:

Perspectiva; Cuiabá: Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso, 2002.

Page 17: A Cidade e a Loucura

7

A brilhante obra de Maria Clementina Pereira Cunha19, que pesquisou sobre o

Hospital Psiquiátrico Juqueri, em São Paulo; também a de Yonissa Marmitt Wadi20, cujo

trabalho traz o contexto de construção do Hospício São Pedro, em 1870, em Porto Alegre,

além dos trabalhos que tratam deste tema na historiografia regional, como as monografias de

Loiva Canova21, Lisle Maria da Silva22, Aúrea Assis Lamber e Sueli B. Oliveira23, entre

outros de outras áreas, que, apesar de ser referências importantes, não foram utilizadas neste

trabalho24 por privilegiar o estudo de instituições totais ou do louco institucionalizado. Este

trabalho, ao contrário do estudo da loucura a partir do interior de seu espaço disciplinador

institucional, tomou-a no âmbito do espaço público da cidade e da problematização de uma

por outra, ou seja, da loucura pela cidade.

As trilhas finalmente se inscreveram em um desafio de outra natureza, a escrita, cuja

dificuldade penso que foi superada com o auxílio daqueles que detêm tal domínio, os

escritores e poetas. Os literários, com sua potência criativa, enveredaram pela temática da

loucura muito tempo antes que nós, historiadores. O Alienista, de Machado de Assis25, o

Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto26, e um conto de Carlos Drummond de Andrade27,

todos publicados nos séculos XIX e XX, além de algumas obras de outros artesãos da palavra,

como Ítalo Calvino28, Edgar Allan Poe29, Franz Kafka30 e Charles Baudelaire31, foram como

19 CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo. Juquery... São Paulo: Paz e Terra, 1986. 20 WADI, Yonissa Marmitt. Palácio para guardar doidos (...) Porto Alegre: UFRGS, 2002. 21 CANOVA, Loiva. A loucura é uma loucura: as representações sobre o louco e a ordenação do espaço urbano

em Cuiabá (1889–1931). Departamento de História - UFMT.2000. 22 SILVA, Lisle Maria da. Hospital de alienados: esboço para um enfoque histórico-social. UFMT - 1988. 23 LAMBER, Aúrea Assis; OLIVEIRA, Sueli B. História do atendimento ao doente mental no Estado de Mato

Grosso até 1970. Cuiabá, 1995. Monografia (Especialização em Enfermagem) - UFMT. 24 À exceção de informações contidas nas citadas monografias de Aúrea de A. Lamber e Sueli B. Oliveira. 25 ASSIS, Machado de. O alienista. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. 26 BARRETO, Lima. Cemitério dos vivos. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961. 27ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de aprendiz. 10. ed. São Paulo: José Olimpio; Civilização

Brasileira e Editora Três, 1973. 28CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 29 POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/d. 30 KAFKA, Franz. O Processo. Lisboa: Europa–América. S/d. 31 BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Page 18: A Cidade e a Loucura

8

locais de visita permanente para que a minha mão, no decorrer da escrita, ainda que tremesse,

não se transformasse em chumbo, impossível de ser segurado, pelo seu peso, e, mais ainda, de

ser lido.

∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗

Cuiabá, cidade fundada32 no período setecentista, por ocasião da descoberta de ouro,

capital33 de Mato Grosso, localizada quase no Extremo-Oeste do Brasil, é o local escolhido,

neste trabalho, para se percorrer o processo civilizatório. O marco temporal de seu início

compreende o final do século XIX, que converteu a cidade em questão e a loucura em

problemática frente ao projeto de construção da nação, desejado por governantes e

intelectuais.

Para empreender tal percurso, explicitaram-se e analisaram-se algumas práticas de

disciplinarização e higienização, adotadas nas primeiras décadas da República, em Cuiabá, da

qual se ocuparam governantes, autoridades policiais e médicas, entre outros, e que, neste

trabalho, são os personagens privilegiados.

Cuiabá, em fins do século XIX, é uma cidade com uma população urbana de pouco

mais de 9.000 habitantes34, marcada pela guerra, pela peste e pela fronteira. São marcas

indeléveis que os seus governantes tentarão apagar, pelo menos na parte que se traduz como

32 Há controvérsias a respeito da data de fundação, como observa Sandra Pesavento: “... todo ato fundador tende

a se sacralizar...” Assim, a data oito de abril, como data de fundação de Cuiabá, foi sacralizada no Governo de Dom Aquino Corrêa, através da Legislação de Mato Grosso. Já o historiador Carlos Alberto Rosa rejeita essa data e afirma que a Ata redigida por Pascoal Moreira Cabral em nenhum momento traz a palavra fundação; esta Ata simplesmente oficializa o registro da descoberta de ouro na região, cuja atividade era realizada desde 1716. Jornal A Gazeta. 8/4/2002. p. 2.

33 A primeira capital de Mato Grosso foi Vila Bela da Santíssima Trindade, instalada em 1752 por Dom Antonio Rolim de Moura, 1º Capitão General de Mato Grosso. A transferência de capital para Cuiabá ocorreu em 1832.

34 Censo 1890 – Arquivo Público de Mato Grosso (APMT).

Page 19: A Cidade e a Loucura

9

pontos negativos. Ainda no período colonial, a guerra contra algumas etnias indígenas foi uma

constante, principalmente contra os Paiaguás e os Guaicurus, segundo o cronista José Barbosa

de Sá35, o que implicava num ambiente de tensão permanente para os conquistadores, já que

os ataques poderiam ocorrer a qualquer momento.

A abordagem desses confrontos é recorrente na historiografia regional produzida no

final do século XIX e início do século XX, e concorre para a construção da figura mítica do

bandeirante como um desbravador destemido. Na segunda metade do século XIX, a guerra

contra o Paraguai (1865-1870) foi o acontecimento que evidenciou, entre outras coisas, a

fragilidade das guarnições militares de Cuiabá e também de outras localidades próximas ao

rio Paraguai, como Cáceres e Corumbá, tanto quanto o distanciamento desses locais com

relação às demais províncias. A Guerra do Paraguai trouxe grandes dificuldades para o

abastecimento de gêneros da Província de Mato Grosso, que, desde 1857, utilizava o

transporte fluvial pelos rios Paraguai e Paraná, interrompido durante o conflito36.

A ocupação de Corumbá pelas tropas paraguaias, por sua vez, suscitou a discussão

em torno da condição de fronteira da província, tema que se tornou uma questão cara no

século XIX e adentrou o século XX. As fronteiras são pensadas, neste trabalho, como

conceitos múltiplos que servem para designar a linha tênue que separa civilização e barbárie,

os limites entre a razão e a desrazão e que, segundo a assertiva de Margarida de Souza Neves,

[...] estabelecem o espaço imponderável em que um passo faz de nós estrangeiros em terra alheia e outro nos traz de volta à casa. Nela nos reconhecemos e nos diferenciamos do ‘outro’ porque a fronteira é sobretudo o marco simbólico da alteridade, o traçado nem sempre nítido na vida (...) construída paulatinamente no tempo, cuja história é muito mais complexa e menos óbvia que o traçado das cartas geográficas, transforma-se num dado de demarcação também de nossa memória coletiva...

35 BARBOSA DE SÁ, José. Relação das povoações do Cuiabá e Mato Grosso, de seus princípios até os

presentes tempos. Cuiabá: UFMT, 1975. 36 VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850–1888. p 42.

Page 20: A Cidade e a Loucura

10

Talvez por essas características de mobilidade oculta sob uma aparente fixidez a idéia de fronteira transborde tantas vezes seu sentido estrito e ganhe foros de metáfora eloqüente para caracterizar experiências limite; para indicar situações especiais; para estabelecer marcos temporais significativos (como foi o caso da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai e a epidemia de varíola) para definir o limiar entre o conhecido e o que resta por conhecer, e entre o mundo do real e o universo dos sonhos, entre o corriqueiro e o extraordinário, entre a lógica e o mistério37.

Retomando o contexto da guerra, a fronteira significa também lugar do perigo, já

que, nessa situação, o encontro com outros povos ocorreria sob a égide da violência.

Mas, ainda que a ocupação por paraguaios de núcleos mato-grossenses povoados

tenha-se restringido à cidade de Corumbá, a população cuiabana não foi poupada de

ocorrências nefastas. A enchente do rio Cuiabá, em 1867, trouxe a destruição para parte da

cidade de Cuiabá, a região do porto. A epidemia de varíola, no mesmo ano, produziu o que se

mais temia, a morte, que ceifou a vida de grande parte da população cuiabana38. Assim, a

guerra, a fronteira e a peste produzem na região um imaginário e uma existência marcados

pelo signo do medo.

Jean Delumeau, a respeito de algumas ocorrências epidêmicas na Itália, afirmou que

elas integraram a representação mental da peste, uma vez que “é ao mesmo tempo identificada

como uma nuvem devoradora vinda do estrangeiro e que se desloca de país em país, da costa

para o interior e de uma extremidade à outra de uma cidade, semeando a morte à sua

passagem”39, atingindo ricos e pobres indistintamente. Esse mal enraizado, implacavelmente

“recorrente, a peste, em razão de seus aparecimentos repetidos, não podia deixar de criar nas

populações um estado de nervosismo e de medo”40.

37 NEVES, Margarida de Souza. Fronteiras. A Gazeta, Cuiabá, 9 jul. 2002. p. 1E. 38 VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão. p. 56-81. 39 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. p. 112. 40 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. p. 108.

Page 21: A Cidade e a Loucura

11

Em Cuiabá, o medo da peste norteará a adoção de algumas medidas por parte de

governantes, médicos e autoridades policiais, tanto com o intuito de conter a propagação do

mal, quando este se aproximava, como para combatê-lo, quando as evidências comprovavam

que este era um fato. Medidas inócuas, sob o ponto de vista contemporâneo, mas

compreensíveis para a época, se considerarmos que “até o final do século XIX, ignoraram-se

as causas da peste que a ciência de outrora atribuía à poluição do ar, ela própria ocasionada

por funestas conjunções astrais, seja por emanações pútridas vindas do solo ou subsolo”41.

É nesse ambiente marcado pelo medo que encontramos a cidade de Cuiabá, em fins

do século XIX, ainda mantendo a cartografia representada pela iconografia42, que mostra a

disposição de suas edificações sob a forma de uma muralha — ainda que não se trate, é claro,

das muralhas propriamente ditas, que, no período medieval, protegiam as cidades européias e

seus habitantes de possíveis ataques. Na iconografia do século XVIII, a cidade que vemos

assim construída sugere que caberia aos seus habitantes o papel de guardiões contra possíveis

ataques durante um longo período43. Todavia, na posterior cidade moderna, sob o efeito da

implantação de uma sociedade disciplinar, a própria cartografia será alterada e outros atores

serão encarregados de cumprir esse papel: as estratégias de vigilância se sofisticam porque a

cidade é o lugar da exterioridade.

Mesmo se tratando da cidade disciplinada e disciplinadora, vigilante e vigiada,

constituída pelos processos de modernização (bem como constituidora), Peter Pál Pelbart alia-

se a Deleuze e Guattari para dizer que a forma-cidade é, sobretudo, a forma do movimento, da

fluidez, da exterioridade. Tudo que ela opera ou faz operar no oposto do movimento e da sua

fluidez é resultado de sua captura pelo Estado:

41 Ibid., p. 110. 42 Pintura a/d. Expedição Alexandre Rodrigues. Acervo: Museu de Hamburgo/ Reprodução- IPHAN-MT. 43 Esta observação é apenas uma inferência que fazemos, já que neste trabalho não pretendemos realizar

nenhuma análise iconográfica ou iconológica das imagens que porventura sejam referidas.

Page 22: A Cidade e a Loucura

12

A cidade historicamente existe em função de uma circulação, de entradas e saídas cuja incumbência é fazer passar os fluxos. Como o sugerem Deleuze e Guattari, ela faz com que aquilo que nela entre esteja suficientemente desterritorializado para introduzir-se na rede, submeter-se à polarização, seguir o círculo de recodificação urbano e viário. Assim a cidade é rede, multiplicação, fluidez, escape, dispersão. Ela é a relação com o fora ou mais radicalmente ela é a própria Forma da exterioridade. Por essas características todas contrapõem-se inteiramente ao Estado. Pois o Estado obedece a um outro processo maquínico: ele é uma espécie de caixa de ressonância, que faz ressoar todos os seus pontos (em vez de fazê-los fugir), por mais heterogêneos que sejam, geográficos, étnicos, lingüísticos, morais, econômicos, tecnológicos. Nesse sentido ele faz até ressoar a cidade e o campo, esses dois supostos arquiinimigos. Se a cidade é inseparável de sua própria relação com outras cidades, com sua exterioridade, com a rede das cidades, o Estado tende, ao contrário a uma espécie de totalização, de fechamento, de redundância. A forma-cidade é escape, exterioridade, dispersão, a forma-Estado é totalização, interioridade, estratificação. Isso significa que a cidade luta contra o Estado. Mas também contra o capitalismo, com o qual pretendem identificá-la, num jogo muito complexo44

É a partir deste ponto de vista que compreendemos a cidade como o local escolhido

pelo Estado — nunca ela em si mesma — para interditar práticas tidas como atrasada ou

práticas que tendem a escapar a qualquer controle (em geral umas e outras acabam sendo

coincidentes), além de identificar, isolar, classificar e finalmente excluir os indivíduos que

obstam o desejo premente de construção da nação que querem para si. Entre essas práticas,

encontram-se aquelas que passaram a ser classificadas como “irracionais”, isoladas no âmbito

da “loucura” e os sujeitos envolvidos designados “loucos”, passíveis de isolamento ou

exclusão. Tomo de Peter Pál Pelbart45 a compreensão do “louco” “como esse personagem

social discriminado, excluído e recluso” e por “loucura”, que em trabalho anterior o autor

designou por desrazão, como “uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a

ameaça, a alteridade radical, tudo aquilo que uma civilização enxerga como o seu limite, o seu

contrário, o seu outro, o seu além...”

44 PELBART, Peter Pál. Cidade, lugar do possível. p. 46-47. 45 PELBART, Peter Pál. A utopia asséptica. In: A nau do tempo rei... Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 105.

Page 23: A Cidade e a Loucura

13

O recenseamento de 1890 é o primeiro em que a loucura em Cuiabá aparece sob o

epíteto de alienados, dementes e idiotas, identificados, domiciliados e dispersos em inúmeros

endereços e que se avizinham e se misturam aos demais moradores. A identificação destes no

censo, como também em outras fontes, foi apenas a primeira de uma série de medidas

adotadas no curso do processo civilizatório, cuja base é o pensamento racional, que

corroborará para que a loucura seja percebida como o seu outro, o seu contrário, e que,

gradualmente, vai ser vista como uma vizinhança perigosa.

Até 1928, o enclausuramento — forma de exclusão da loucura — ainda não havia

sido realizado em Cuiabá, exceto em situações pontuais, com o recolhimento de alguns

indivíduos de ambos os sexos, na cadeia pública da capital ou na Santa Casa de Misericórdia,

uma vez que, até essa data, não havia nenhum hospício ou espaço embrionário deste em Mato

Grosso. Mas o manicômio, no Brasil, em fins do século XIX, já não era uma novidade. O

primeiro deles — o do Rio de Janeiro, sede do Império —, foi inaugurado em 1852, batizado

com o mesmo nome do Imperador Pedro II, cuja localização na época foi cuidadosamente

escolhida, ou seja, bem longe do centro da cidade, na Praia Vermelha. A decisão de sua

criação reunia aspectos políticos e considerações científicas. Heitor Rezende salienta, todavia,

que tal base científica aportou no Brasil modificada46 e faz a seguinte consideração:

“Socialmente ignorada por quase trezentos anos, a loucura acorda, indisfarçadamente notória

e vem engrossar a leva de vadios e desordeiros nas cidades, e será arrastada na rede comum

de repressão à desordem, à mendicância, à ociosidade”.47

Esse comentário revela várias questões relevantes, como uma percepção moral da

loucura, tal como apresenta Michel Foucault com relação à Europa no período que antecede o

46 REZENDE, Heitor.Política de saúde mental no Brasil (...) Petrópolis: Vozes, 1994. 47 Ibid., p. 35.

Page 24: A Cidade e a Loucura

14

grande enclausuramento48; também salienta a preocupação com o projeto de construção da

nação, civilização e identidade brasileira, que tem a cidade como vitrine para visualizar tal

projeto. Revela ainda o cuidado em demarcar um território, o do saber médico, já que no

século XIX é instalado no Império brasileiro o estado de polícia, encarregada de vigiar,

disciplinar e punir, entre outras atividades, sobretudo as de cunho moral49.

O Hospício Pedro II foi construído para receber pessoas de todo o Império, com

capacidade para abrigar 350 loucos, mas, se na data de sua inauguração contava com 144

enfermos, pouco mais de um ano após a sua abertura, já estava com a lotação completa50.

A transferência de alienados mato-grossenses para a capital federal ocorreu em

apenas alguns casos isolados, no final do século XIX, conforme as fontes que serão

apresentadas no segundo capítulo.

Com o advento da República, o manicômio carioca sofreu algumas modificações,

que acusavam o desejo de distanciamento dos republicanos de tudo que remetesse à época

anterior, a começar pelo nome: a instituição foi rebatizada com o nome de Hospício Nacional

de Alienados. A direção foi retirada das mãos das religiosas e passou a ser exercida por um

corpo médico51, e a admissão de enfermos passou a ser regulamentada com a implantação de

divisão por seções e classes e formas de encaminhamento de pacientes52. Mas, de acordo com

Lopes Rodrigues, a introdução de um corpo médico na instituição não significou o

estabelecimento de uma psiquiatria científica, já que o modelo copiado seguia os pressupostos

48 FOUCAULT, Michel. A grande internação. p. 45-78. 49 AMARAL, Maurília Valderez Lucas do. Razão de Estado e Estado de Polícia. In: Constituição do sujeito,

governamentalidade e educação. 1998. Dissertação (Mestrado em Educação) - UFMT, Cuiabá. p. 61-65. 50 REZENDE, Heitor. Política de saúde mental no Brasil. p. 37. 51 Relatório Ministerial. Ministério do Interior. Hospício Nacional de Alienados Rio de Janeiro, 1891. Neste

relatório é informado que o Hospício foi desanexado da Santa Casa de Misericórdia, pelo Governo Provisório, em 11/1/1890, e que a retirada das irmãs de caridade resultou em escândalos, mas que a atual direção encontrou inúmeros documentos que comprovam os maus tratos praticados pelas religiosas contra os pacientes. A falta de pessoal com conhecimento técnico para prestar atendimento adequado, conforme o relatório, implicou na contratação de 20 enfermeiras, formadas na Escola Municipal de Paris.

52 Instruções - Assistência Médico-Legal de Alienados. Rio de Janeiro, 1890. Caixa 1890. Fundo Saúde/APMT.

Page 25: A Cidade e a Loucura

15

de Morel e Magnan, cujo pensamento, segundo Rodrigues “patejava neste estuário levadiço

das ‘degenerações’”53. Para Lopes Rodrigues, a psiquiatria científica só ocorreu no Brasil com

Juliano Moreira. Convém ressaltar que tal observação tem o intuito apenas de situar a

abordagem da loucura no Brasil, mais precisamente aquela preconizada pelo Estado e que foi

implantada na cidade do Rio de Janeiro — espécie de laboratório e vitrine para as demais

capitais — e demonstrar como a loucura foi percebida em Cuiabá no período anterior à sua

institucionalização.

Problema de difícil resolução esse das relações entre a cidade que se busca civilizar e

a loucura. Através das práticas de disciplinarização e higienização que neste trabalho são

percorridas, é possível perceber os deslocamentos, pelas mãos dos cronistas do período, dos

governantes, das autoridades e funcionários públicos. Com eles talvez possamos desencavar

os segredos da cidade, tentando uma aproximação com o que brilhantemente realizou Robert

Moses Pechman, como o detetive que segue pistas para desvendar o mistério que envolve a

cidade, desnudando-a naquilo que ela própria não se permite dizer. As práticas apresentadas e

analisadas nesta dissertação são pensadas não como produto, mas como terreno propício que

convergirá para a inauguração do Pavilhão dos Alienados, anexo à Santa Casa, em 1928,

como o primeiro passo para a transformação da loucura em doença mental, por meio da

institucionalização do alienado e da posterior construção do seu espaço de exclusão, o

Hospício, data em que o trabalho se encerra.

No primeiro capítulo percorremos a cidade, seus lugares e personagens, com ênfase para

os alienados, tomando como referência o recenseamento de 1890 e outras fontes. Cuiabá, nesse

período, carrega as marcas da peste, da guerra e da fronteira, o que nos aproxima sobremaneira da

cidade de Porto Alegre, da obra de Pesavento. É digna de nota aqui, particularmente, a descrição das

ruas e seus respectivos nomes que evocavam sensações, que vão, aos poucos, sendo substituídos, 53 REZENDE, Heitor. Política de saúde mental no Brasil. p. 43.

Page 26: A Cidade e a Loucura

16

como parte do projeto de modernização, por nomes que sugerem acontecimentos e construção de

personalidades. Já no trabalho de Pechman, Cidades Estreitamente Vigiadas, o aspecto de

civilização inscrito nas cidades modernas é, sem dúvida, uma referência presente neste e também

nos demais capítulos. A História da Loucura, de Michel Foucault, por sua vez, é imprescindível

para a aproximação de algumas teses a respeito da loucura.

O segundo capítulo visa capturar a construção da cidade disciplinar/disciplinada. Discorre

sobre as práticas da Polícia explicitadas nos ofícios, relatórios e regulamentos. Essas fontes também

revelam os estriamentos da cidade e, neles, os indivíduos considerados perigosos; aí temos o louco e

o vagabundo como obstáculos ao estabelecimento da ordem e da disciplina. A leitura de tais fontes

gradualmente desencobrem a cidade, expondo aquilo que ela tenta ocultar. A referência teórica mais

importante para a composição deste capítulo é a obra Vigiar e Punir, de Michel Foucault.

O terceiro e último capítulo explora as práticas médicas do período e as tentativas, bem-

sucedidas ou nem tanto, de higienização e saneamento da cidade e de sua população. A questão da

raça e a hierarquização dela decorrente terão um papel decisivo na exclusão de indivíduos e no

encarceramento dos loucos em espaços construídos especialmente para esse fim. A inauguração, em

1928, do Pavilhão dos Alienados, anexo à Santa Casa de Misericórdia, encerra este trabalho, quando

então o saber médico em Cuiabá já deu os primeiros passos, no sentido de tomar para si o alienado e

fazer deste o seu paciente, construindo finalmente o “doente mental”.

Page 27: A Cidade e a Loucura

17

1 A (RE)INVENÇÃO DA CIDADE E DA LOUCURA EM CUIABÁ

As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa. Ítalo Calvino54

Três de fevereiro de 189055. A aurora já anuncia a sua chegada juntamente com o homem que

vem apagar os lampiões56. O cheiro da terra molhada misturada aos odores que exalam das imundícies

jogadas em qualquer lugar57 denuncia a chuva do início da madrugada que expulsou os freqüentadores do

batuque58 costumeiro das bandas do Baú59 e que quebram o silêncio noturno, a despeito de antigas

proibições60. A brisa fresca do princípio da manhã obriga o Senhor J.61 a ajeitar o paletó e o chapéu,

peças da indumentária escolhidas com apuro para a expedição que vai liderar, assim como as botas

possivelmente um pouco gastas pelo tempo, mas reforçadas o suficiente para o serviço. A comitiva,

composta de um amanuense62 e alguns ajudantes, aproxima-se do Senhor J. e confere o equipamento que

será utilizado: um grande livro de capa dura; tinta, tinteiro e pincel, tudo de boa qualidade trazidos do

estrangeiro por um dos muitos vapores que abastecem as casas comerciais locais. Essas casas, que já são

muitas por estas paragens, inundam o comércio de coisas variadas: maquinários, tecidos, azeites, vinhos,

cristais, pianos, drogas, perfumes, louças, ferramentas, livros, ferragens, sombrinhas, entre tantas outras

necessidades antigas e novidades – quinquilharias, algumas delas incorporadas ao repertório do consumo

local, já que despertaram o interesse de alguns, e em certos casos, acabaram virando “moda”. Nas ruas

ainda desertas de pessoas, animais de pequeno porte circulam à vontade, enganando facilmente qualquer

estrangeiro, já que de longe parecem cachorros, que também existem muitos pela cidade, sejam vira-

54 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 44 55 Este trecho não foi extraído de nenhuma fonte; trata-se, na verdade, de uma licença poética que a autora se

permitiu. 56 Indicador de Leis e Decretos. 1892. p. 1/APMT. 57 1844- Posturas Municipais. Título 1º Art. 1º Fica proibido lançar nas ruas e praças da Cidade, Arrayes

Adjacentes animais mortos e outra qualquer imundície. APMT. 58 Designação comum às danças negras acompanhadas de instrumentos de percussão. In: FERREIRA, Aurélio

Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. p. 193. 59 Denominação antiga do atual Bairro Lixeira existente em Cuiabá, localizado nas proximidades da Igreja do

Rosário. 60 Os batuques foram proibidos em 1844, conforme o artigo 10º do Código de Posturas Municipais. 61 O Senhor J., na verdade, é José Barnabé de Mesquita, responsável pela coordenação dos trabalhos de

recenseamento da população urbana de Cuiabá. Pai de José Barnabé de Mesquita, um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instalado em Cuiabá em 1919, é por isto citado na historiografia como José Barnabé de Mesquita Sênior. Para evitar confusões, optou-se, nesta parte do trabalho, por tratar o mesmo como Senhor J.

62 Funcionário público de condição modesta que fazia a correspondência ou registrava documentos. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. p. 80.

Page 28: A Cidade e a Loucura

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latas e sejam os de raça63. Mas neste caso, são os porcos de sempre que as pessoas insistem em criá-los

soltos, ignorando por completo as reclamações do Intendente64. Diante do Palácio do Governo, o Senhor

J. transmite as últimas instruções desta expedição que nos próximos dias percorrerá todas as casas e

casebres localizadas nas ruas, travessas e becos dos dois distritos da cidade. Nenhum morador será

ignorado, do patrão ao criado de todas as moradias, todos os seus ocupantes serão identificados,

revelados, à exceção dos presos da cadeia e do corpo de soldados do Quartel, simplesmente porque,

estes, já se sabe quem são. O ranger de portas sendo abertas indica que a cidade já acordou, logo todo o

comércio estará aberto e os meninos seguirão para a escola65. O relógio de bolso avisa: é hora de

trabalhar. Daí a mais um pouco já se ouvem os sinos da Catedral.

∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗

O trabalho a que se refere a narrativa de abertura é o censo de 1890, registrado em

dois livros66, que traça e desenha um quadro da população urbana de Cuiabá, dividida em

primeiro distrito e segundo distrito, a exemplo da divisão administrativa da cidade. Rico em

informações, o documento adquire quase o aspecto de fundação67, já que mapeia e

esquadrinha a cidade, indica seus lugares e individualiza os seus moradores.

O recenseamento do primeiro ano da recém-instaurada República é uma grande

medida que se opera no projeto de construção de civilização inscrito na cidade de Cuiabá e

que adquire contornos mais bem definidos e consideravelmente distintos daqueles iniciados

no Rio de Janeiro, à época do Império, no momento seguinte ao das turbulentas décadas de 30

e 40 do século XIX, quando a unidade da nação já não corria o risco de se fragmentar e “o

olhar daqueles que constituíram (depois da Independência) o corpo do país e ‘descobriram’ a

63 1844 - Posturas Municipais. Título 2º Art. 9º “A ninguém se permite o ter cães soltos (exceto os de caça) nas

ruas, os quaes poderão, precedendo de qualquer Autoridade policial, ser mortos por qualquer pessoa do povo...” APMT.

64 1844 - Posturas Municipais. Título 1º Art. 4º. APMT. 65 Código de Posturas de Cuiabá. 1832. “1º Todos os moradores desta cidade de qualquer condição que seja, que

tiverem Meninos livres em suas companhias de idade de seis a quatorze anos, da data desta em diante os ponham nas Escolas Públicas, ou nas particulares...” APMT.

66 Recenseamento de Cuiabá em 1890 - 2 volumes. APMT. 67 O conceito de fundação aqui utilizado é o mesmo de que trata Flora Sussekind na obra O Brasil não é longe

daqui.

Page 29: A Cidade e a Loucura

19

paisagem nacional se desvia das cenas primordiais da constituição da nação para repousar

numa nova ‘paisagem’ que se constituía: a paisagem urbana”68.

Em Cuiabá, tal projeto reflete uma ambição: a da cidade civilizada. Daí a

necessidade de desnudar, retirando uma a uma as camadas que a encobrem e que apresentam

sua população como uma massa amorfa.

Os trabalhos coordenados por José Barnabé de Mesquita69, funcionário público

encarregado da estatística da capital, não só cumprem a missão comumente designada aos

cartórios de registrar nascimentos, casamentos e óbitos, como também vão além destes, ao

anotar os nomes de todos os moradores da sua porção urbana, as respectivas idades, o estado

civil, profissão, raça, nacionalidade, religião, e se estes sabiam ou não ler, se freqüentavam ou

não a escola, além de registrarem algum defeito físico que porventura possuíssem.

Decorridos quatro meses e vinte e um dias, a tarefa de coleta de dados foi cumprida,

apesar de Barnabé ressaltar algumas dificuldades no decorrer do trabalho, como a substituição

de amanuense e auxiliares abatidos pela epidemia de gripe que atingiu quase toda a população

de Cuiabá70, nesse período, felizmente sem nenhum óbito registrado,“por estar a cidade em

boas condições higiênicas”71.

O censo é como um guia que nos conduz a inúmeros lugares, suscita questões e

revela personagens. As questões levantadas dizem respeito ao desejo manifesto de alguns

governantes e intelectuais de retirar da capital a imagem de atraso e de semelhança com o

mundo agrário e, sobretudo, ao processo de constituição de uma nova ordem social. É certo

que a população cuiabana, de certa forma, já havia experimentado o desenvolvimento urbano

68 PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 16. 69 Ofício de José Barnabé de Mesquita ao Governador Antonio Maria Coelho. Caixa 1890. Fundo Saúde/APMT. 70 Ofício de 24/06/1890 de José Barnabé de Mesquita ao Governador de Mato Grosso Antonio Maria

Coelho.Caixa 1890- Fundo Saúde- Maço Estatística/ APMT. 71 Ofício de 10/06/1890 do Inspetor de Higiene ao Presidente do Estado. Caixa 1890. Fundo Saúde - Maço

Inspetoria de Higiene/APMT.

Page 30: A Cidade e a Loucura

20

na época da exploração aurífera, contudo, a estagnação e, posteriormente, o declínio desta

atividade no início do século XIX72, suspendeu temporariamente o desenvolvimento de sua

porção urbana.

1.1 Lugares e Personagens da Cidade

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa./ Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada./ Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás da casa./ Era uma enseada./ Acho que o nome empobreceu a imagem. Manoel de Barros

Ruas, travessas, becos e praças, cujos nomes ainda permanecem inalterados em 1890, desde a

época colonial, evocando sentimentos ou indicando a localização de algum ponto importante ou endereço

de alguém, podem ser compreendidos como

[...] palavras da cidade, as designações que identificam os espaços e fazem deles um lugar revelam o pitoresco das socialidades da época... Românticas ou pitorescas, cômicas ou enigmáticas, as primeiras designações dos espaços urbanos nos falam das vivências de uma pequena comunidade com os seus hábitos [...]73

72 A tese de que a estagnação e o declínio da atividade mineradora em Mato Grosso ocorreram somente no início

do século XIX — ao contrário da assertiva de muitos historiadores que datam esta ocorrência em meados do século XVII — é defendida por Romyr Conde Garcia na tese de doutorado: Mato Grosso (1800–1840): crise e estagnação do projeto colonial. São Paulo, 2003. USP.

73 PESAVENTO, Sandra Jatahi. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano (...) 2. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002 p. 252.

Page 31: A Cidade e a Loucura

21

tal qual a Rua dos Porcos, pelo grande número de porcos criados não apenas nos quintais, como também

soltos pelas ruas; ou a Rua da Misericórdia, por causa da Santa Casa de Misericórdia instalada no início

do século XIX74. Enigmas ainda não revelados sugerem perguntar o que teria ocorrido na Rua dos Aflitos?

Quantos desejos foram encerrados no Beco da Esperança? O que ou quem demorava na Travessa da

Paciência? Que práticas ensejavam os moradores e freqüentadores da Rua dos Prazeres?

Mas essas “palavras da cidade” de um período anterior encontravam-se com outras, batizadas

no período recente e que aludem a fatos, acontecimentos e pessoas que se deseja personificar, tais

como: Rua Barão de Melgaço, 13 de Junho, Comandante Antônio Maria, Rua 7 de Setembro e Travessa

Voluntários da Pátria, e muitos outros. Vê-se de imediato que se já não é uma outra cidade, já se trata

de uma cidade imaginada bem diversa da primeira; são outras as expectativas que se têm dela. Estes

nomes se reportam, na sua maioria, à Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai e passam, a partir de

então, a se constituir como uma das marcas que a cidade carrega.

A rua do Coronel Alencastro foi o local escolhido para iniciar o recenseamento e revela a época

de sua realização, uma vez que é nela que se concentram o Palácio do Governo, o Quartel General e a

Intendência Municipal, alguns dos principais organismos de poder da República recém-instaurada.

∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗

Este é o primeiro sinal dos muitos que virão a seguir que evidenciam as mudanças

que se operavam em Cuiabá naqueles tempos, tanto no que diz respeito às instituições de

poder republicano, que perseguirão o distanciamento em relação à Colônia e ao Império —

quando a Igreja, o Senado da Câmara e a Cadeia eram os principais símbolos de poder vigente

—, como por meio da adoção de inúmeras práticas e representações que aqui se configuram

como o estabelecimento de um novo centro, ou o que pretendia se fosse reconhecido dali por

diante como o centro do centro da capital.

O botequim de Joaquim Mares Rich75, situado na mesma rua do Coronel, quebrava a

sisudez institucional e sugeria a possibilidade de certa aproximação informal com os órgãos

públicos. Outros vizinhos evidenciam ainda mais a superposição de temporalidades nessa

74 VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850–1888.

Cuiabá: Marco Zero e Editora da UFMT. 1993. p. 29. 75 Censo 1890/APMT.

Page 32: A Cidade e a Loucura

22

quadra, que não era exclusivamente cívica — caso do Barão do Diamantino, então com 74

anos, nascido no finalzinho da Colônia, criado no Império, quando também se torna nobre;

vindo a morrer como um capitalista, na República76. A rua era ainda marcada pela mistura:

próximos do Barão, residiam o copeiro Benedicto de Faria, a professora Luisa Hans Jacob,

suíça, solteira e protestante, e Maria, lavadeira, preta, solteira, católica e brasileira; todos sem

nenhum defeito físico.

Na quadra lateral, os artefatos da Praça Dom Carlos77 indicam que a República,

apesar de almejar laicizar-se, mantém uma certa proximidade com a Igreja e reconhece nesta

um poder periférico ao qual pode eventualmente recorrer. Nessa praça, encontramos a

Catedral da Sé, ainda em estilo colonial, com um grande sino em seu campanário, símbolo de

regulação do tempo78 que se deseja que se torne passado, e também o Quartel do Batalhão; em

frente da Catedral, na rua 13 de Junho, a Secretaria e o Quartel da Polícia, próximos ao local

anteriormente ocupado pela cadeia, quando a rua se chamava Bela do Juiz. É nesse quartel

que encontramos vários praças, dentre os quais o de nome Manoel Lourenço de Almeida,

considerado, em 1891, pelo Chefe de Polícia Emiliano Augusto de Matos, portador de “todos

os indícios de sofrimento mental”, o que justificará o pedido encaminhado ao Presidente do

Estado para que fosse submetido “a exame médico a fim de ser excluído da referida

Companhia, por sua incapacidade física”79.

Os indícios mencionados pelo Chefe de Polícia parecem baseados na fisiognomonia,

que ressurgiu como ciência na segunda metade do século XVIII, pelas mãos de Johann Caspar

Lavater, fruto de mais um cruzamento entre “a história social e a história natural [que

76 Censo 1890/APMT. 77 Id. 78 A respeito das mudanças ocorridas na concepção de tempo, ver o trabalho de Edward Thompson. 79 Ofício do Chefe de Polícia ao Presidente do Estado. 28/02/1891. Fundo Saúde. Caixa 1891/APMT.

Page 33: A Cidade e a Loucura

23

intentava seguir] a trilha de uma semiótica médica que (...) vasculhava a cidade à procura de

indícios de doenças e da desordem urbana.”80

Segundo Pechman,

Lavater, autor de Essais de Physiognomie, propugnava que, através da fisionomia, podia-se entrever a alma: ‘Tudo tem no exterior um sinal distintivo, um sinal hieróglifo por meio do qual um observador pode conhecer-lhe as virtudes secretas e as propriedades’. Lavater procura no rosto o caráter e a psicologia, pois para ele nada existe no homem que não seja expressão81.

Deste modo, a cidade, pode ser entendida como um laboratório, cujos espécimes

reinantes, os citadinos, servirão de matéria-prima para estudos não apenas como os de

Lavater, mas de muitos outros, como os de Césare Lombroso, com grande repercussão no

Brasil e sobre o qual se tratará mais adiante, mais precisamente no terceiro capítulo. Mas a

cidade é também “a realização do antigo sonho humano do labirinto”, como afirmou Walter

Benjamim82, e a massa humana é, por sua vez, o meio mais curto para alcançar o labirinto.

Contudo, no projeto civilizatório no qual é inscrita a cidade moderna, o

esquadrinhamento e a individualização barram o desejo utópico de perder-se na multidão. A

antropologia e a estatística constituem-se, neste contexto, em ferramentas das quais o Estado

lançou mão. Esta é uma das possibilidades de compreensão do censo de 1890 na capital mato-

grossense e, por esta razão, prosseguimos, de certa forma, acompanhando o mapa inscrito

neste, já que elaboramos uma cartografia da cidade83, estabelecendo interfaces com os

cronistas da época, governantes, autoridades e outros.

80 PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 245, 285. 81 Ibid., p. 285. 82 Ibid., p 281. 83 A utilização dos conceitos de mapa e cartografia apóia-se nos trabalhos de Delleuze e Guattari.

Page 34: A Cidade e a Loucura

24

Mais adiante chegamos ao edifício da Administração do Correio, cujo papel

fundamental era o de diminuir as longas distâncias entre a capital de Mato Grosso e as

cidades, vilas e povoações do interior da Província e também desta com outras províncias, a

Capital Federal etc.; afinal, se a existência da “cidade historicamente ocorre em função de

uma circulação, cuja incumbência é fazer passar os fluxos”, conforme ressaltou Pelbart84, o

Correio seria um dos importantes instrumentos utilizados para tal.

A Biblioteca da Associação Literária, instalada também na Praça Dom Carlos, num

prédio acanhado, informava a lenta, contudo, gradual consolidação da atuação de intelectuais

cuiabanos, cujas produções eram disseminadas nos periódicos locais, que viriam,

posteriormente, promover a fundação tanto da Academia Mato-Grossense de Letras como do

Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, instalados em 1919 por ocasião do bi-

centenário de Cuiabá, quando passaram a ocupar o endereço da casa outrora pertencente a

Augusto de Leverger, o Barão de Melgaço.

As placas instaladas em inúmeras edificações que se concentravam majoritariamente

no primeiro distrito da capital indicavam o comércio de gêneros e serviços variados,

comandados por negociantes, freqüentados por aqueles que podiam comprar, e visitados por

viajantes cujas malas carregavam amostras de inúmeras surpresas inventadas no estrangeiro.

Assim, a cidade, nessa época já possuía alguns pontos delimitados e não podia mais

ser confundida com a cidade de Zoé, conforme Marco Pólo, que apresentou a seguinte

descrição:

Em todos os pontos [...] alternadamente, pode-se dormir, fabricar ferramentas, cozinhar, acumular moedas de ouro, despir-se, reinar, vender, consultar oráculos. Qualquer teto em forma de pirâmide pode abrigar tanto o lazareto dos leprosos quanto as termas das odaliscas. O viajante anda de um

84 PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio. p. 47.

Page 35: A Cidade e a Loucura

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lado para o outro e enche-se de dúvidas: incapaz de distinguir os pontos da cidade, os pontos que ele conserva distinto na mente se confundem... e se pergunta... qual é o motivo da cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o estampido das rodas do uivo dos lobos?85

O funcionamento dos estabelecimentos comerciais ainda não estava regulamentado

em 1890; assim, tanto fazia ser domingo, feriado, ou terça-feira, todo tipo de comércio

permanecia aberto, pelo menos até 1893, quando foi determinada a proibição de abertura das

casas comerciais aos domingos. Essa medida provocou reações indignadas, a exemplo do que

fez o Intendente Municipal da capital em seu relatório anual, com críticas a tal determinação,

utilizando como argumento a Constituição Federal, naquilo que dispõe sobre o respeito a

qualquer religião, conforme artigo 148. O Intendente conclui então que “Assim é intuitivo que

não podemos obrigar o judeu, o luterano ou calvinista, o [...] e o budista a guardar o domingo,

como uma obediência a religião católica, apostólica romana[...]”86. Possivelmente essa reação

tinha mais relação com os interesses econômicos que estavam em jogo do que como forma

manifesta de repúdio à igreja católica. Mas, já que tal determinação não se aplicava a todos os

estabelecimentos comerciais, os demais, como barbearias e tavernas, estavam livres para abrir

suas portas diariamente, o que causava alívio aos seus proprietários, sobretudo àqueles

instalados nas cercanias das instituições de poder da capital, como era o caso do Senhor José

da Cruz Ferreira, brasileiro, casado com Dona Ana Maria da Cruz, pai de três filhos e

proprietário de uma taverna, situada na Rua Antonio João, 2673, local que também servia de

residência da família, só que nos fundos desse estabelecimento87.

Avançando na sua peregrinação pelas ruas de Cuiabá, José Barnabé de Mesquita e

comitiva caminham por ruas estreitas e tortuosas, típicas das cidades mineradoras do período

colonial português, num padrão de plano urbano definido por Sérgio Buarque de Holanda

85 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. p. 34-35. 86 Relatório semestral da Intendência Municipal de Cuiabá. 1893/APMT. 87 Quadro geral da população urbana do 1º Distrito da capital de Mato Grosso. 1890./APMT.

Page 36: A Cidade e a Loucura

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como o do semeador, bem diferente da experiência colonial espanhola. Para Buarque de

Holanda,

[...] o traçado geométrico jamais pôde alcançar, entre nós, a importância que veio a ter em terras da coroa de Castela: não raro o desenvolvimento ulterior dos centros urbanos repeliu aqui esse esquema inicial para obedecer antes às sugestões topográficas. A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade88.

A topografia acidentada, repleta de sobe-e-desce e escassez de calçamento nos

logradouros89, mesmo na parte central do primeiro distrito no final do século XIX e início do

século XX, implicava na dificuldade da caminhada. Na época de chuva, entre novembro e

fevereiro, poças de água estagnada se formavam por toda parte, sobretudo nas proximidades

do córrego da Prainha90. No período de seca, o pó entranhava na pele, emprestando aos

citadinos um aspecto macilento e era o maior inimigo das moças, já que era impossível

manter limpas as barras das saias e vestidos, como relata o cronista, por ocasião dos festejos

do Divino:

As matronas, verdadeiras crentes e devotas, vão a esses atos religiosos com o fim de analisar a vestimenta das moças, reparar que uma não tem jeito para se vestir, outra ainda que está com a barra da saia branca suja, indo todas fazer o comentário em casa, a seu bel prazer... 91

Como flâneurs, continuamos a percorrer o roteiro por nós escolhidos, a partir

daquele elaborado por Mesquita, cruzando no caminho com alguns morféticos, confirmando o

que relatou o Provedor da Santa Casa ao Presidente do Estado sobre o fato de percorrerem as

ruas da capital alguns doentes que estavam recolhidos no Hospital São João dos Lázaros92, à

88 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 109. 89 Código de Posturas de Cuiabá, 1832. Art. 4º. 90 Ofício nº 46 do Inspetor de Higiene ao Secretario de Fazenda. Caixa 1912- Fundo: Saúde - APMT. 91 Jornal “O Comércio”. 12/05/1910. NDHIR-UFMT 92 A respeito da história do lazareto São João dos Lázaros, conferir: NASCIMENTO, Heleno Braz do. A lepra

em Mato Grosso: caminhos da segregação social e do isolamento hospitalar (1924-1941). Cuiabá, 2001. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais. UFMT.

Page 37: A Cidade e a Loucura

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procura de alimento para a sua subsistência, conforme noticiou o último número da Gazeta. O

Provedor informou que

[...] existem 6 morféticos sob a direção de um guarda mor e um servente. A distribuição de comida é feita no penúltimo dia de cada mês, a cada um doente de todos os gêneros alimentícios necessários para a alimentação de um mês. Acontece porém que dois dos morféticos são dados ao vício da embriaguez com excesso e preferem muitas vezes dispor de suas rações, ocultamente, para obterem a aguardente ou esmolarem para consegui-la....93

A fuga para a rua daqueles que estavam proibidos de circular livremente era

justificada pelo Provedor, tanto pelo vício da bebida, como pelas precárias condições da Santa

Casa de Misericórdia e do Lazareto. Aliás, esse tipo de ocorrência servia de argumento para

várias solicitações de aumento da subvenção de verba das instituições, nenhuma delas,

todavia, merecedora de atenção. Ao que parece, só o medo da peste persuadia o pronto

atendimento do Estado no repasse de recursos financeiros, conforme o ofício do Presidente do

Estado, que informa o atendimento ao pedido de aumento na subvenção da Santa Casa “para

auxiliar as despesas daquele estabelecimento, em conseqüência do número considerado de

doentes afetados pela epidemia reinante que para lá se dirigem em busca de tratamento”94.

Pixé, bolo de arroz, de queijo, de milho e de mandioca, francisquito, puxa-puxa...

Delícias que passavam sobre a cabeça dos inúmeros ambulantes, longe do alcance fortuito de

alguma mão ligeira, mas cujo aroma incitava o esticar de pescoços e o movimento de erguer

das cabeças, para olhar, apreciar e desejar deliciar-se com iguarias da culinária local. Tais

movimentos, que estabeleciam a quebra do fluxo contínuo do arrasto, eram facilitados pelo

ritmo e velocidade do deslocamento, feito majoritariamente a pé, e garantia, de certa forma, o

retorno do tabuleiro vazio para casa ao fim do dia, ainda que o tempo idealizado pelo capital

fosse o da velocidade.

93 Ofício do Provedor da Santa Casa ao Presidente do Estado. Caixa 1890- Fundo: Saúde - APMT. 94 Ofício do Presidente Antonio Maria Coelho. Caixa 1890- Fundo Saúde- APMT.

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Passos ligeiros eram o ritmo constante, mas não o único, tal qual o tique-taque do

relógio, que acelera quando se desloca da marcação das horas para minutos e destes para

segundos, insuficientes, porém, para atender à velocidade do tempo desejante na cidade

moderna. Os bondes puxados a tração animal — cuja utilização era feita principalmente no

deslocamento entre o primeiro e o segundo distrito, sobretudo quando o apito da sirene

anunciava a chegada de algum vapor ao porto do rio Cuiabá — e os animais de montaria eram

os meios de transporte utilizados até o início do século XX. Ainda que não alcançassem a

rapidez almejada, eram mais rápidos, contidos e mais facilmente domesticáveis do que as

pernas dos citadinos, cujos ritmos eram múltiplos.

O registro de atropelamentos causados pelos bondes, que se reportam a poucos casos

isolados95, evidenciava a diferença entre a celeridade humana e os cavalos de força, no que

concerne à agilidade. No final da década de 1910, os veículos automotivos foram introduzidos

na paisagem citadina cuiabana como meio de transporte coletivo96. Os trens, por sua vez,

símbolos do progresso, foram transformados em signos de um desejo utópico da cuiabania, já

que estes nunca chegaram por estas paragens.

Assim, temos na cidade a adoção de formas de tempo que gradualmente atendem às

especificidades do capital, como agilidade e rapidez, mas também temos outros tempos

inscritos nesta paisagem, alguns valorizados e aclamados; outros passam a ser repudiados no

projeto de civilização.

Pelas ruas cuiabanas, há a circulação de pessoas de todos os tipos: negociantes,

desocupados, ambulantes, profissionais liberais, funcionários públicos, inspetores de

quarteirão e outros.

95 Relatório do Tribunal da Relação. Caixa 1893. Fundo: Saúde/ APMT. 96 O presidente do Estado de Mato Grosso, Dom Aquino, informou a contratação do fornecimento do serviço de

transporte urbano automotivo na capital mato-grossense, por ocasião do bicentenário de Cuiabá. Mensagem governamental relativa ao exercício de 1919.

Page 39: A Cidade e a Loucura

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O fluxo de pessoas de ambos os sexos e idades pelas ruas da capital intensificava-se

por ocasião dos preparativos das festas religiosas, entre as quais se destacavam as festas de

Santo Antônio, São João, São Benedito e a festa do Senhor Divino, que aparece nos

periódicos locais como o principal evento dessa natureza no período, possivelmente por

congregar o maior número de pessoas, sobretudo aquelas oriundas da elite cuiabana. O

recolhimento de oferendas, comandado pelos festeiros, que se alteravam anualmente, era

cuidadosamente planejado, bem como o roteiro do percurso e a programação, ambos

divulgados nos jornais locais, conforme o anúncio seguinte:

Festas do Espírito Santo

Prometem desusado esplendor as próximas festas do Espírito Santo. Não nos permitindo a escassez de espaço uma notícia desenvolvida, nos limitaremos a publicar apenas o programa de tais festas:

Maio - 1. Bando mascarado;

2, 3, 4- esmolas e a 7 leilão;

12, 13, 14 - Missas de madrugada e a noite iluminação;

15 - Missa e procissão;

16, 17, 18 - Corrida de touros...97

Além da programação, os cronistas dos periódicos e as lentes dos fotógrafos Cláudio

e Raimundo Bastos registraram o movimento nas ruas cuiabanas nas décadas de 1910 e 1920,

sobretudo nos dias de festas, quando a população se vestia com o requinte que lhe era

possível, que o evento exigia e que o espaço público reclamava.

Estamos em plenas festas! [...] Doidos pelas ruas correm velhos e matronas, rapazes e moças, meninos e meninas, todos sobraçando embrulhos e caixas com vestidos e fatiotas, chapéus e botinas para a festança do Divino e do Janota.

As nossas ruas tornam-se deusadamente movimentadas e possuídas de um aspecto mais alegre. E as festanças tem sido concorridas; o povo move-se em massa para assistir as esmolas, as missas de madrugada e outros atos religiosos. O leilão foi sublime! Imaginem quantos trabalhos bonitos não houve por lá, trabalhos feitos pelas delicadas mãos de nossas patrícias! E esses mimos arrematados por quaisquer vinte mil réis!

97 Jornal O Comércio. 07/04/1910. Núcleo de Informação Histórica e Regional (NDIHR)/UFMT.

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Quantas brigas, arrufos e outras coisas não houve no dia do leilão, entre namorados, noivos, visando estas discórdias para o coió não arrematar um presentinho para a coióa? [...] Chega o domingo grandioso! Nesse dia, não há nem cozinheira, nem lavadeira, nem pessoa alguma que queira perder a missa de festa e procissão. Os rapazes no seu smartismo com a envergadura de um terno novo, ficam a todo transe, querendo mostrar o talhe elegante que o alfaiate lhes fez na roupa. As moças nesse dia, fazem a exposição dos seus chapéus enormes, verdadeiros balaios, cheios de morangueiro e ramos de São Caetano e dos ultra-magníficos vestidos de cores indescritíveis cheios de enfeites, de nove horas e nós pelas costas [...]98

O movimento frenético de pessoas pelas ruas da capital, que a cidade atraía por conta

das festas religiosas, também ocorria no período eleitoral, mas este era um povo que diferia

consideravelmente daquele que freqüentava as ruas cuiabanas nos dias de celebrações

religiosas. Na descrição do cronista, neste contexto, a mulher desaparece da cena urbana, o

que não surpreende, afinal, o direito ao voto estava ainda circunscrito aos homens de posse.

Assim, o cenário político se inscrevia com alguns traços característicos, quer pela ambiência

predominantemente masculina, quer pela presença escancarada da fraude, da corrupção e,

sobretudo, da negociata, já que o voto era encarado como mercadoria, passivo, portanto, de

ser negociado entre vendedores e compradores.

Os compradores aparecem no texto do cronista como os proprietários das casas

comerciais locais, insinuando a identificação parcial da elite local, detentores de poder

econômico e “prestígio” político. Uma outra diferença que o cronista parece desejar

estabelecer é entre o homem citadino e aquele da porção rural. Nesta comparação, o vestuário

descrito sugere a deselegância do caipira mato-grossense contraposta à elegância do homem

urbano, apontando, talvez, o desejo manifesto do período de delimitar as fronteiras entre a

cidade, lugar civilizado e, portanto, moderno, e o ambiente rural, símbolo de atraso:

[...] nos dias próximos das eleições, as nossas ruas adquirem um regular movimento: é gente que passa abarcando trouxas de roupas ou caixas de chapéus de largas abas, tudo preparado para a votação. Os proprietários das

98 Jornal O Comércio. 12/05/1910. NDIHR/UFMT

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nossas casas comerciais [...] tem sempre as suas lojas cheias de eleitores, moradores, quase sempre, dos lugares afastados da capital, e que, por meio de uma cabala desenvolvida ‘tout a fait’ admiravelmente, aqui vem receber os seus respectivos quinhões para votarem no seu Herme ou Ruy. E estes presentes consistem sempre em ternos de brim, camisas, botinas e algumas vezes dinheiro que alegram o pessoal votante e os fazem fanáticos pela candidatura que o comerciante lhes aponta. Então, no dia das eleições, como dizem, a cidade move-se e as ruas regurgitam-se de povo; uns envergam paletós muito largos com mangas curtas; outros tem as calças larguíssimas e também curtas; outros trazem espaventosas de cores que simbolizam o partido a que pertencem, ou enormes colarinhos que lhe ficam quase a desaparecer a cabeça, ou também grandes chapéus enterrados até a nuca [...]99

Mas a multidão cuiabana (nos momentos em que ela surge em cena revelada, e de

forma aclamada, pelas mãos dos cronistas, como os mencionados anteriormente), em nada se

assemelha à multidão das cidades descritas pelos escritores do século XIX, como o fez Edgar

Allan Poe, no instigante conto O homem da Multidão100 ou aquela dos Quadros Parisienses,

de Charles Baudelaire, em que o poeta se lança contra a multidão, qual um esgrimista. É a

partir deste Quadros que Walter Benjamim elabora a teoria do choque relativa à poética de

Baudelaire101, que se evidencia no poema O Sol:

Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros Persianas acobertam beijos sorrateiros, Quando o impiedoso sol arroja seus punhais Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais, Exercerei a sós a minha estranha esgrima, Tropeçando em palavras como nas calçadas, Topando imagens desde há muito já sonhadas. Este pai generoso, avesso à tez morbosa, No campo acorda tanto o verme quanto a rosa; Ele dissolve a inquietação no azul do céu, E cada cérebro ou colméia enche de mel. É ele quem remoça os que já não se movem E os torna doces e febris qual uma jovem, Ordenando depois que amadureça a messe No eterno coração que sempre refloresce!

99 Jornal O Comércio. 17/03/1910. NDIHR/UFMT 100 POE, Edgar Allan. O homem na multidão. In: Os melhores contos de Edgar Allan Poe. São Paulo: Círculo do

Livro S.A. s/d. p 130. 101 Cf., a este respeito, BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Textos escolhidos. São

Paulo: Abril Cultural. 1980.

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Quando às cidades ele vai, tal como um poeta, Eis que redime até a coisa mais abjeta, E adentra como rei, sem bulha ou serviçais, Quer os palácios, quer os tristes hospitais.102

Contrastando com a multidão parisiense — a partir da qual escreveu Baudelaire, sem

esconder sua repulsa —, a multidão cuiabana, ainda que não fosse uma paisagem que a cena

urbana apresentasse cotidianamente, em fins do século XIX e início do século XX,

potencializava o frenesi das ruas, sobretudo nos dias de festa, e é sobre este estado de ânimo

que o cronista vai clamar: “Temos com as festas (...) bem boas diversões que nos vem tirar

desta frieza produtora de neurastenia, que é o estado normal desta nossa capital...”103

O cenário predileto do cronista é aquele que emerge por ocasião das festas, mas o

palco privilegiado para onde seu olhar se volta é o das ruas: a rua como o grande espetáculo,

ou, ainda, “a expressão”, como anunciou Sébastien Mercier, em fins do século XVIII.

Segundo Pechman, tal enunciado apresenta novidade e indica mudança, uma vez que elege

[...] a rua, como o novo lugar da sociabilidade, onde o olhar, livre da obliteração das paredes palacianas, pode vagar à procura de novos objetos de observação; e a expressão, como atributo de uma parte enorme da população que nunca saíra do anonimato e, na rua, vê-se, de repente, alvo dos olhares dos viajantes, dos pintores, dos desenhistas, dos literatos, dos artistas em geral104.

A multiplicidade de contextos que emergem nas cenas de rua serve como cenário

para os cronistas, pois aí desfilam personagens variados, com inúmeras nuances e que

implicam num novo aprendizado. Novamente se recorre a Pechman, para tentar penetrar

102 BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. p. 319. 103 Jornal O Comércio. 23/06/1910. NDIHR/UFMT. 104 PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 248.

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Nesse mundo ‘onde tudo pode se perder definitivamente’, diante das surpresas da rua é preciso reaprender a olhar, a repensar a natureza dos novos objetos a serem observados, a redimensionar o problema da aparência e da identidade do homem da rua. Definitivamente, estava-se diante de problemas inusitados colocados pelas novas formas de sociabilidade que a vida urbana evocava105.

Ora! Se era preciso reaprender a olhar, era necessário também elaborar outras

ferramentas, outras lentes que possibilitassem a identificação do indivíduo, sobretudo no

ambiente urbano das grandes cidades. A antropologia emerge neste contexto, como a ciência

do homem, para dissecá-lo, mas esta ciência, ainda que se volte a princípio para as chamadas

sociedades primitivas, vai muito além, quando afirma ser o próprio rosto moldado pelas

condições sociais.

Mas a nova sociabilidade inscrita nas ruas da cidade de Cuiabá é, para o Estado, um

problema, principalmente perante o projeto de civilização, quando a urgência pela

identificação torna-se imperativa. Para Pechman,

[...] novos sistemas de classificação do rosto vão deixando para trás os fundamentos da fisiognomonia calcados na dualidade do homem e vão cedendo lugar à antropologia e à estatística nascentes, que mais do que se preocupar com os sinais interiores do corpo que assomam-se a face, voltam-se para a classificação de tipos e enumeração de populações (...) É preciso, portanto, distinguir cada corpo do outro, cada rosto do outro a partir de uma referência que seja infalível, ‘científica’ – o cálculo que permita a identificação, através de medições, da virtude ou do vício que impregnam cada rosto. A partir daí, os corpos são reconhecidos como característicos de uma natureza perigosa ou típicos de uma natureza civilizada. Essa ‘politização’ dos rostos funcionará como um derradeiro índice de proteção social, na medida em que servirá para que se identifique, na massa, aqueles virtualmente capazes de romper o pacto social106.

Mais uma vez, o recenseamento da população urbana da capital mato-grossense, feito

em 1890, é uma grande ferramenta, ainda que não seja a única, de que o Estado dispõe para

105 PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 249. 106 Ibid., p. 252-253.

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desvendar os segredos da sua população, para liquidar, ou pelo menos tentar liquidar, com a

possibilidade das rotas de fuga que o labirinto apresenta, retirando as camadas que encobrem

diferenças para compor uma população como massa amorfa, e que necessitam ser reveladas,

identificadas, classificadas, para aí, sim, poder agrupar, isolar e excluir. Retoma-se, portanto,

o caminho por ele percorrido.

Ainda na parte central do primeiro distrito da capital, na Travessa dos Voluntários da

Pátria, situa-se a residência do médico Augusto Novis, com idade de 51 anos, pai de Alberto

Novis, na época com 17 anos de idade, que seguiria a carreira do pai, vindo três décadas

depois ocupar o cargo de Inspetor de Higiene da capital107. Nessa casa, moravam também sua

mãe, Maria da Glória, os irmãos, a avó materna e a tia materna, Clementina C. Gaudie Ley.

Além dos laços de parentesco, muitos traços os aproximam e os inserem no mesmo grupo que

a estatística utiliza em seu sistema classificatório pleno de distinções. A aproximação se dá

pela raça (conceito tão caro ao século XIX, sobre o qual este trabalho discorrerá no terceiro

capítulo), já que todos são brancos. São também católicos e brasileiros. As diferenças, por sua

vez, se inscrevem pelas vias do estado civil, dada a variedade de idade dos moradores, e pelas

vias da instrução. Até aí nenhum estranhamento, considerando que a educação de massa só

ocorreria no Brasil décadas mais tarde108. Mas no sistema classificatório aplicado no censo em

questão, outro traço distintivo relevante são os defeitos físicos distinguidos com o auxílio das

referências científicas. É assim que um corpo, um rosto, no interior de um mesmo grupo, se

distingue dos demais e se torna o seu outro. Clementina C. Gaudie Ley, a tia materna, branca,

solteira, com 36 anos, é alienada mental109.

107 Ofício nº 08 de 26/01/1920 - Do Inspetor de Higiene ao Secretário do Interior, Justiça e Fazenda. Comunica a

posse do Dr Alberto Novis como Inspetor de Higiene Pública da Capital interinamente conforme Portaria nº 110. Livro de Registro de ofícios expedidos pela Inspetoria de Higiene. APMT.

108 Cf. MULLER, Maria Lúcia Rodrigues. As construtoras da nação: professoras primárias na primeira república. 1998. Tese (Doutorado em Educação) - UFRJ, a respeito da educação de massa no Brasil e mais especificamente em Mato Grosso.

109 Quadro da população urbana da capital Cuiabá - 1º Distrito - 1890/APMT.

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Mas a alienação de Clementina, tida e inscrita no censo como defeito físico, não é o

único tipo registrado no censo que marca a diferença entre as pessoas e que delimitam as

fronteiras entre o eu e o outro. Aliás, para Foucault, essa diferença consiste numa

[...] nova forma de consciência: inaugura um novo relacionamento da loucura com a razão; não mais dialética contínua como no século XVI, nem uma oposição simples e permanente, nem o rigor da partilha como no começo da era clássica, mas em ligações complexas e estranhamente estabelecidas110.

Idiotia e demência se juntam a esse universo de diferentes; espécies reconhecidas

pela maioria dos médicos europeus dos séculos XVII e XVIII, que carregam nesse período um

forte conteúdo de negatividade e que, no caso da demência, segundo Foucault, é a forma que

mais se aproxima da essência da loucura em geral, “da loucura experimentada em tudo aquilo

que pode ter de negativo: desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão, não-razão e

não-verdade”111.

No início do século XIX, Pinel, médico francês, elaborou outro conceito e salientou a

diferença entre demência e imbecilidade, relacionando-a com a distinção existente entre

imobilidade e movimento, uma vez que, segundo este,

No idiota, há uma paralisia, uma sonolência de ‘todas as funções do entendimento e das afecções morais’; seu espírito permanece imobilizado numa espécie de estupor. Na demência, pelo contrário, as funções essenciais do espírito pensam, mas pensam no vazio e, por conseguinte, com extrema volubilidade112.

110 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva. 1991. p 184. 111 Ibid., p. 25. 112 Ibid., p 261.

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Esses conceitos elaborados por Pinel apresentam uma novidade, se comparados com os da

época clássica, já que, lentamente, a demência vai sendo desvinculada da porção negativa e começa

a ser considerada no âmbito de “uma certa intuição do tempo e do movimento”113.

Pinel, que viveu no período correspondente ao final do século XVIII e início do século

XIX, orgulhava-se de ter presenciado o contexto da Revolução Francesa — segundo ele, ocasião

propícia para a irrupção de diversas formas de loucura. Foucault, afirma que

A noção de loucura, tal como existe no século XIX, formou-se no interior de uma consciência histórica, e isto de dois modos: primeiro, porque a loucura em sua aceleração constante forma como que uma derivada da história; e, a seguir porque suas formas são determinadas pelas temporalidades do homem: é assim que nos aparece a loucura tal como ela é então reconhecida ou pelo menos sentida, bem mais profundamente histórica, no fundo, do que ainda o é por nós.114

Na capital mato-grossense, entretanto, a loucura não será encontrada como em Paris, no

Hospital Geral, ou no Hotel de Dieux, e em vários outros estabelecimentos onde Pinel encontrou

enclausuradas várias de suas faces.

Na Cuiabá do final do século XIX, vemos emergir lentamente, pelas mãos do amanuense,

uma população de alienados, idiotas e dementes esparramados pela cidade, protegidos ainda pelo

manto familiar, nesta cidade tão distante do litoral. Mas este é um cenário que não perdurará por

muito tempo; só terá uma duração maior se o compararmos aos do Rio de Janeiro, São Paulo e

Porto Alegre.

O manto familiar, cujo tecido é tido pelo Estado como frágil demais, será gradualmente

rasgado, esburacado, dilacerado, até chegar ao ponto em que restem apenas pedaços de retalhos,

fragmentos de fios tão podres e tão frágeis, que será necessário mais de meio século para elaborar

outros pontos, tecer outros fios, reuni-los em outra trama... mas essa é uma outra história. Nesse

113 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. p. 262. 114 Ibid., p. 375.

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momento da vida da cidade, o que se segue é o esquadrinhamento desta população de

“outros”.

Marias, Josés, Antônios, Januárias, Dionísias, Justinas, Beneditos, entre muitos

outros, irão integrar o universo comum de Clementina. O universo do não-lugar, o mundo dos

desarrazoados. É um mundo que atrai como ímã, da mesma forma e com a mesma potência

que a cidade, na época em que isto ocorria nela.

Saindo da Travessa dos Voluntários da Pátria, misturamo-nos a Mesquita e comitiva,

caminhamos uns poucos metros e logo chegamos a mais um endereço, onde diferentes se

misturam. Na rua 2 de Dezembro, coabitam a casa de nº 143 Maria Cândida da Cunha, 40

anos, solteira, branca, de profissão agência115; Leocádia da Cunha, 60 anos, solteira, branca,

de profissão agência, e paralítica; o pequeno Martiniano, que com dez anos freqüentava a

escola, seguindo as determinações das Posturas municipais116, afinal, ainda que fosse de raça

preta, contava com o benefício da legislação. Era nessa mesma casa em que também morava

Maria Xavier da Cunha, possivelmente mãe de Martiniano, solteira, sem profissão, com 26

anos e alienada mental.

Cruzando a ponte do Rosário, de madeira ainda, já que a de alvenaria seria construída

somente em 1893 sobre o córrego da Prainha, nas proximidades da rua da Emancipação117, chega-

se à Rua do Rosário, lugar descrito como sujo e infecto, conforme relata o Inspetor de Higiene

Pública:

O serviço de asseio e limpeza desta Capital é quase nulo, porque além de ser costume antigo do povo mandar depositar nas margens do córrego da Prainha e na maior parte das travessas todo lixo que diariamente junta em suas casas, a própria carroça contratada com a Intendência para esse fim,

115 O termo agência aparece como profissão de inúmeros indivíduos, de ambos os sexos e idades, no censo de

1890. A repetição, entretanto, não implica em compreensão sobre o seu significado até este momento. 116 Posturas Municipais de Cuiabá. 1832. Art. 1º. 117 Relatório da Intendência Municipal de Cuiabá. 1893 - Caixa: 1893. Fundo: Saúde/APMT.

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deposita também nas mesmas margens da Prainha um pouco adiante do quartel da polícia quanto de imundície apanha nas ruas118.

Próxima à Igreja do Rosário, construída no núcleo urbano de Cuiabá ainda no

período colonial, freqüentada predominantemente pela população cuiabana pobre, encontra-se

a capela de São Benedito, o santo negro, cuja devoção resultou na constituição da Irmandade

de São Benedito. Nessa rua, a do Rosário, mora o empregado aposentado Antonio Anastácio

Monteiro de Mendonça, de 53 anos, branco, brasileiro e casado, juntamente com sua esposa

Ignes e seus filhos, Nunon de 11 anos, Almiran, com 7, e Palmira, de 5 anos de idade. Do

serviço da casa, encarregava-se Maria de Carvalho, de 55 anos, a criada, solteira, preta,

católica, africana e idiota. Ah, Lombroso, grande teórico da degenerescência humana!

Na mesma rua, em outra moradia, residia José Antunes Maciel, 45 anos, branco,

solteiro, brasileiro, católico, que sabia ler, mas era alienado. Próximo dali, na rua de São

Benedito, vivia a alienada Januária, com meio século de existência, que vem se juntar a esse

mundo dos diferentes, profissão: agência; e o pequeno Vicente de Carvalho, com apenas 9

anos de idade e de idiotismo.

Na rua da Emancipação, a jovem Maria Joana, 15 anos, receberia a marca do

idiotismo. Em outra casa da mesma rua, no 14º quarteirão, Mesquita revela Dona Dionísia

Gonçalo, viúva, brasileira, com 60 anos, preta, católica e alienada mental. Já em outra casa da

mesma quadra, o jovem Eduardo da Silva Daltro, outro alienado, como Dona Dionísia,

porém, branco e solteiro.

Na Igreja do Senhor dos Passos, construída, segundo Rubens de Mendonça, por um

devoto, como forma de agradecimento, vivia Antônio Claudino de Siqueira, branco, solteiro e

118 Relatório da Inspetoria de Higiene Pública. Caixa - 1898. Fundo: Saúde/ APMT.

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que, além dos paramentos da igreja que provavelmente carregava, quando solicitado, dali por

diante levaria mais um ad eternum, à sua revelia: o epíteto de idiota.

Pelas ruas da cidade, é possível observar alguns indícios de que, lentamente, a

paisagem urbana ia sofrendo transformações/intervenções; construções imponentes de estilo

eclético e neoclássico estavam sendo erigidas e evidenciavam o crescimento econômico da

cidade pós-guerra. Os grandes pés-direitos desse novo modelo arquitetônico começaram a ser

introduzidos na paisagem da capital mato-grossense, no final do século XIX, e passaram a ser

copiados, ou melhor, improvisados, pelos proprietários das antigas construções coloniais, por

meio de arranjos, como a “maquiagem” nas fachadas, por meio da instalação de platibandas

que sugeriam grandes pés-direitos, e de gradis de ferro ou balaústres.

Assim, a fachada se modernizava; bastava, entretanto, cruzar a porta de entrada

dessas moradias para perceber que o interior delas continuava inalterado, mantendo uma

disposição de espaços fiel à época colonial. Tal mistura, ou combinação, podia ser visualizada

por toda a cidade e também nos hábitos da população urbana cuiabana, onde antigos e novos

modelos se misturavam.

A construção de passeios públicos seria privilegiada pelos Intendentes municipais no

decorrer dos anos seguintes, já que o aumento de circulação de pessoas pelas ruas da cidade, e

a transformação desta em lócus de civilização, exigia a definição de lugares por onde se

poderia transitar. Assim foi, com a construção do passeio público da Travessa do Palácio do

Governo, na extensão do jardim público até o edifício da Delegacia Fiscal, em 1893, e o

nivelamento de ruas119.

119 Relatório Semestral da Intendência Municipal de Cuiabá - 1893/APMT.

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Também se privilegiou a delimitação e construção de espaços públicos destinados à

sociedade cuiabana, como foi a gradual transformação dos assim antigos largos em jardins e

praças, com direito à urbanização que uma capital merecia, ainda que, a princípio, tímida.

Em 1893, o jardim público da capital recebeu uma atenção especial, por meio da

importação de diversos espécimes de plantas vivas de Montevidéu, repetindo assim um

recurso já utilizado anteriormente, mas, para frustração do Intendente da época, essas espécies

chegaram a Cuiabá quase todas mortas. A solução encontrada para embelezar o jardim foi a

obtenção de mudas e sementes na própria cidade. A natureza impunha limites à domesticação

e indicava o que poderia ser copiado e/ou importado de outros lugares. Os eucaliptos, por

exemplo, adaptaram-se bem ao novo ambiente e emprestaram às praças Ipiranga e da Sé um

toque e um aroma da civilidade que se tinha como modelo. Os cipestres, por sua vez, serviram

para adornar, com uma áurea romântica e européia, o Cemitério da Piedade.120

No itinerário ziguezagueante, chega-se à rua da Misericórdia, onde residia, na casa

de nº 575, a senhorita Maria Silveira de Jesus, paralítica e demente; mais adiante, no número

578, Joana Anastácia Monteiro, 30 anos, analfabeta como Maria, que apesar do seu idiotismo,

exercia a profissão de agência.

Seguindo ladeira acima, no alto do morro, aproxima-se da Igreja do Seminário, quase

incendiada acidentalmente, em junho de 1890, por um menino que jogou inadvertidamente

um palito de fósforo dentro de um caixão de velas121. Em frente desta, finalmente, chega-se à

Santa Casa de Misericórdia, lugar de maior concentração de alienados, dementes e idiotas da

cidade, em 1890. É ali que se encontram: Ana, brasileira e alienada; Josepha, alienada e

africana; Edwiges, brasileira como Ana e também como esta alienada mental e, finalmente, a

120 Relatório Semestral da Intendência Municipal de Cuiabá - 1893/APMT. 121 Ofício de 02/06/1890 da Secretaria de Polícia ao Presidente do Estado de Mato Grosso. Caixa 1890. Fundo:

Saúde/APMT.

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paraguaia Gertrudes, também uma alienada mental. Endereço requisitado, sobretudo pela

autoridade policial, quando a loucura explodia enfurecida, invadindo um território proibido, o

espaço público, e também endereço provisório, já que a Santa Casa se recusava a manter esse

tipo de paciente por muito tempo. Na realidade, na maioria das vezes, a admissão de

indivíduos alienados era recusada, conforme se lê no seguinte ofício:

Aparecem constantemente nesta Capital pessoas atacadas de alienação mental sem que a autoridade possa de pronto providenciar sobre seu recolhimento em lugar seguro e apropriado por falta de um estabelecimento que se preste a esse fim. A Santa Casa de Misericórdia desta Cidade, único estabelecimento de caridade que atualmente existe, acha-se em estado de não poder receber pessoas alienadas em vista de não possuir acomodações próprias e suficientes, e tanto assim que por vezes têm esta Chefatura, mandado para ali indivíduos maníacos que entram mas saem ao mesmo tempo porque aquele edifício nenhuma segurança oferece; pelo que vê-se as mesmas Chefatura na contingência de, muitas vezes recorrer à prisão da Cadeia desta Cidade para melhor recolher algum alienado que aparecem e perturbam o sossego publico. Convém pois que se proporcione meios de ser adquirida uma casa para alienados.122

Mas a admissão de pacientes insanos na Misericórdia podia ocorrer, ainda que

esporadicamente, mediante algumas concessões:

Tendo obtido guia para ter entrada no hospital da Santa Casa de Misericórdia, a fim de ali tratar-se como pensionista, o sr. Balbino Antunes Maciel, que dizem estar sofrendo de suas faculdades mentais, e não se achando o dito hospital em condições de obstar a nação de doentes afetados de tais enfermidades, que algumas vezes se tornam agitados e furiosos, e mesmo para se evitar algum desastre, rogo a V. Excia, providenciar no sentido de haver diariamente ali uma pequena guarda do Batalhão de Polícia, enquanto estiver em tratamento o referido alienado, conforme acaba de requisitar o médico do estabelecimento...123

122 Relatório apresentado em 1894 ao Dr. Manoel José Murtinho, Presidente do Estado de Mato Grosso, pelo

Chefe de Polícia Tenente Pedro Antunes de Souza Ponce, com dados relativos ao ano de 1893/APMT. 123 Ofício do Presidente da Sociedade Beneficiente da Santa Casa de Misericórdia, José Viegas de Brito, ao

Presidente Coronel Antonio Paes de Barros. (Respondido em 9-3-1904) - Caixa 1904- Fundo: Saúde/ APMT.

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Contrastando as pessoas afetadas pela alienação, como menciona o Provedor da

Santa Casa, com o restante da população, mencionados no ofício citado acima, apresentamos

outra opinião, que diz respeito tanto ao contingente populacional dos ditos doentes em Cuiabá

e também do restante do Estado de Mato Grosso: “[...] neste Estado, nunca houve asilo de

alienados, sendo porém recolhidos ao hospital de Caridade desta Capital, em épocas

(transactas), alguns casos raros de alienação mental, sem tendências para aumento [...]”124

Esta assertiva incita a retomada de outra observação feita, e já citada, sobre a

existência de alienados na capital mato-grossense. Trata-se do relato feito pelo Chefe de

Polícia, em 1897, segundo o qual apareciam constantemente, na capital, lançando-nos, para

aquilo que estava em jogo naquele momento, a construção da cidade civilizada que tenta se

desvencilhar de qualquer indício de degenerescência que poderia ser suspeitada como inscrita

na fisionomia cuiabana.

A alienação mental era uma coisa ruim que vinha de algum lugar, fosse este lugar,

qualquer parte do Brasil ou do estrangeiro. Uma coisa porém era preciso dar como certa: a

alienação não era natural de Cuiabá. Para tanto, bastava confrontar com os registros do censo

que informavam a nacionalidade dos citadinos.

Novos endereços da loucura vão, porém, brotando nas páginas dos grandes livros,

assim como a florada dos ipês roxos e amarelos, que parecem ignorar a época de seca do

cerrado.

Ah! A rua dos Prazeres! Ainda que se ignore o porquê de seu nome, ele evoca

desejos, que não se pode dizer se algum dia, na mocidade ou vida adulta, a menina Silvinia de

Araújo, com apenas 8 anos de idade, viesse conhecer, já que possuía o defeito do idiotismo

que, segundo Pinel, imobiliza os sentidos. Seguindo esta definição, talvez Silvinia se

124Ofício nº 3 de 03/02/1905 - do Inspetor de Higiene Pública Dr. José Marques da Silva Bastos ao Presidente

Coronel Antonio Paes de Barros. Caixa 1905 - Fundo: Saúde/ APMT.

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encaixasse melhor no endereço ocupado por Silvéria Ribeiro da Silva, brasileira, preta,

solteira, com 30 anos, profissão ajustes — ofício este exercido a despeito do seu idiotismo,

mas que coadunava com o seu domicílio, situado na Travessa da Paciência.

E assim os endereços multiplicam-se no primeiro distrito da capital. As dementes

Clara, moradora de uma casa na Rua do Coronel Peixoto; Maria da Conceição e Justina, na

Travessa da Câmara; os idiotas Manoel e Maria Delgada Pinto, na Rua Barão de Melgaço;

Benedito Pinto de Moraes, na Rua do Diamantino; Júlia, na Rua Bela Vista, em casa

relativamente próxima àquelas ocupada por um grande número de pessoas da família Pinho,

mas que também residiam em outros endereços, como era o caso da família do empregado

aposentado Francisco Leite de Pinho Azevedo, com 50 anos, casado com Maria das Dores

Galvão, de 40 anos, e pais de Idalina, Nicanor, Amélia, Afra, Ana Georgina e Rachel de

Pinho, que contava, na época do recenseamento, 14 anos. E, finalmente, os alienados: João

Baptista, com 25 anos, morador na rua de Nossa Senhora da Guia; Jesuína Inocência do

Espírito Santo, com 60 anos de idade, que residia na Rua do Frei José, e Diocleciana

Pulcherio, casada, com 40 anos de idade, moradora da Rua de Poconé.

Na freguesia de São Gonçalo, segundo distrito da capital, outros rostos da loucura

emergem. Seguindo pela Rua Barão de Melgaço, na casa número 422, morava a alienada

Maria da Glória, e, mais adiante, na mesma rua, no número 462, compartilhavam o mesmo

teto Maria Timóthea, solteira e alienada mental, e Anna Rosa, profissão agência, portadora de

idiotismo.

Paralelamente a essa rua, outros prolongamentos do primeiro distrito se seguiam: o

da Rua 13 de Junho, onde vivia o jovem João da Costa e Faria, 14 anos, brasileiro, pardo,

católico e com idiotismo e, na extensão da Rua Comandante Costa, Lucrécio Ramos da Costa,

20 anos, solteiro, profissão agência, cujo defeito era o idiotismo. Mais adiante, numa casa da

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Rua da Varginha, habitava Joana Delfina da Conceição, mais uma idiota na relação de figuras

defeituosas registradas nos dois livros do censo de 1890.

Apenas três praças existiam no segundo distrito da capital. Na Praça Riachuelo,

residia na casa de número 140 a alienada mental Rita dos Santos, com 50 anos; na Praça

Aquidaban, na moradia de número 335, vivia com seus familiares o menino Manoel Barboza,

cujo defeito físico era o idiotismo. Digna de nota era a Praça do General Miranda Reis, local

onde se encontrava instalado o Arsenal de Guerra, prédio imponente, de estilo neoclássico e

que fazia jus ao contexto de época, já que, com o advento da República, o exército adquiriu

força e importância jamais vistas até então no Brasil.

Mais do que adentrar o interior do Arsenal, permanecer nele era o desejo da maioria

das famílias pobres cuiabanas, que vislumbravam nessa instituição algum futuro para os seus

meninos, por meio da Escola de Aprendizes e Artífices, que contava na época com cinqüenta

e cinco aprendizes, além de vinte e cinco praças de operários militares e também trezentos e

vinte e dois praças do 8º Batalhão de Infantaria do Exército.125

Nessa mesma praça estava instalada a Cadeia Pública de Cuiabá, num prédio onde

volta e meia era feita a solicitação de reparos, conforme o que se lê a seguir:

O Carcereiro da Cadeia Pública desta Capital participou já haver sido tomadas as goteiras aparecidas no telhado do mesmo edifício, cuja providência vos foi solicitada em ofício de 25 do mês próximo findo [...]”126

Na época do censo, a Cadeia contava com uma população de sessenta e sete presos,

alguns dos quais já haviam sido sentenciados e outros ainda não, situação que dificilmente poderia

significar alguma alteração para a população encarcerada, no que diz respeito à transferência

125 Quadro da população urbana da Freguesia de São Gonçalo, segundo distrito da capital. 1890/APMT. 126 Ofício de 05/11/1892 do delegado Elpidio Bem de Moura ao Presidente do Estado. Caixa 1890. Fundo:

Saúde/ APMT.

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destes para outro estabelecimento, considerando que havia apenas doze cadeias em todo o Estado

de Mato Grosso naquele período, a despeito da constante reivindicação para transformar a cadeia

pública da capital em penitenciária, o que não ocorreu.

Alguns membros da elite, como também os governantes do período, não mediram

esforços para conseguir essa transformação, através da adoção de inúmeras medidas que

aparecem nos relatórios dos Intendentes Municipais, como também dos governadores, sob o título

de Melhoramentos Urbanos127.

Apesar dos esforços de disciplinamento da capital, era imperativo propagar, como

observa quase aos berros o cronista em 1910, que

[...] o nosso Estado, continua pois, desconhecido; Cuiabá, Corumbá, Cáceres, etc. são tidas como cidades em cujas ruas existem espessos matagais e onde, em pleno dia, vêem-se onças, veados, cobras e toda a espécie animal dos nossos matos, assim como bugres no meio das ruas, derrubando transeuntes com as suas flechas envenenadas [...]

Vejam só o que pensam de nós!

Para melhor julgarem, o que o resto do Brasil idealiza de Mato Grosso e Cuiabá, transcrevemos aqui algumas linhas de uma carta de um mato-grossense, atualmente em São Paulo, a um colega:

“Não imaginas, quanto a nossa terra é desconhecida aqui... Dar-se aqui por mato-grossense é arriscar-se até a passar por uma entidade fora do vulgar, alguma coisa que transcende os limites do natural e que requer três pontos de exclamação bem lançados depois de seu nome [...]”

Mais adiante, outras linhas dizem assim:

“Já um respeitável burguês me perguntou se, de fato, existia em Mato Grosso gente civilizada, e, de resto, não é raro ver a qualquer um que me reconhece como mato-grossense, dizer de boca aberta e olhos esgazeados: - ‘E o senhor veio de Mato Grosso aqui? Já é coragem!”

Vejam só isto! E em lugar de fazermos uma boa propaganda a nosso favor, apontando as riquezas do subsolo, a uberdade de nossas selvas, o saudável do nosso clima, vivemos a fazer política... Não! Precisamos mudar de rumo, ao governo cabe dar o exemplo, aproveitando as aptidões dos seus conterrâneos, onde quer que elas existam, adversários ou não.

127 A esse respeito Maria Stella BRESCIANI apresenta análise sobre alguns significados dos chamados

melhoramentos no artigo: Melhoramentos entre intervenções e projetos estéticos: São Paulo (1850-1950). In: Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS. 2001.

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Chega de atraso. Bugres, bugres, não somos, mas bem possível é que lá cheguemos. É preciso a reação! Mudemos de rumo, sejamos unidos!128.

A partir dessas considerações indignadas, cabe salientar que em nenhuma das centenas

de páginas dos dois livros do quadro da população urbana de Cuiabá encontra-se uma única

referência a alguma etnia indígena domiciliada em qualquer endereço que seja na cidade. É

possível inferir que talvez este silêncio — que se prolonga até a década de 10 do século XX e um

pouco além dela — expresse o desejo de negar qualquer proximidade com etnias que carregam as

marcas da barbárie. Era preciso afastar do mato-grossense, mais ainda do cuiabano, qualquer traço

de bugre.

Ainda que nem todos os moradores da porção urbana representassem o ideário de

civilização desejado por alguns indivíduos, já que muitas práticas persistiram por muito tempo e

denotavam atraso, esta era uma preocupação que se voltava, sobretudo, para o espaço público da

cidade. Entre essas práticas, podemos citar a manutenção, por um longo período, do hábito de lançar

nas ruas as águas servidas; ou ainda, as práticas populares dos cururus, siriri e batuques,

freqüentados inclusive por aqueles que deviam vigiar a observância da moral nos costumes

citadinos, a polícia, por cujas mãos chegamos à cidade disciplinar, sobre a qual trataremos no

próximo capítulo.

∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗

128 Jornal O Comércio. 21/04/1910. Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.

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2 A CIDADE DISCIPLINAR

Ninguém sabe precisar a que horas vieram buscá-lo, nem o que seria feito dali pra frente com

as crianças, seus filhos, todos menores de idade. Da mãe, ninguém falou se estava viva e por onde

andava. A taverna. Ah! Essa fazia algum tempo que não funcionava mais. Mas isso talvez não tivesse

importância. O que importa é que alguém deveria ter falado alguma coisa sobre ele, senão, por que a

polícia viria para buscá-lo? Não houve quem o acompanhasse, mas talvez tenha sido mais ou menos assim:

Ainda era dia quando os homens cruzaram o grande portão de madeira da Cadeia Pública e o entregaram

ao carcereiro, que o guiou ao interior do prédio. A porta da sala do Chefe estava aberta, mas seguiram

adiante, afinal não era caso de perder tempo com interrogatório, não havia nada para perguntar,

tampouco para ouvir, tudo já havia sido dito pelo vizinho dele, um funcionário público, e isso bastava.

Nenhuma conversa foi tabulada entre eles. Um conduzia, o outro se deixava conduzir. Ciente de sua

tarefa, o carcereiro seguia indiferente pelo corredor escuro, entremeado num e noutro ponto por réstias

de sol que entravam pelos buracos do telhado. Logo começaria o tempo das chuvas e os buracos

continuavam lá, aliás, a tendência desses buracos era só aumentar, assim como a população carcerária.

Era para lá que eram mandados criminosos de todo tipo e de todas as partes, à Cadeia Pública da Capital,

a melhor de todo o Estado. Indiferente aos murmúrios que se produziam por trás das portas fechadas, o

carcereiro prosseguiu à condução dele. Noutros tempos não teriam escutado quase nenhuma voz, já que

o lugar para onde se costumava levar gente como ele ficava do outro lado da Cadeia, mas o estrago que

um outro como ele havia feito na parede era tão grande, que tentar prender alguém ali era inútil. Para a

primeira seção, não podia levá-lo, ali ficavam os que esperavam julgamento; para a segunda, também

não, essa era para os condenados; na terceira, ficavam as mulheres. Postaram-se diante de uma porta,

finalmente tinham alcançado o recinto determinado para ele. O carcereiro escolheu uma dentre as várias

chaves que carregava na cintura, abriu a porta e o empurrou para seu interior. Ele ouviu o barulho da

tranca e demorou algum tempo para se acostumar à pouca luz da cela, para então poder enxergar o que

havia no seu interior. Primeiro viu o que pareciam sombras de corpos estirados no chão batido, depois

percebeu um grupo, amontoado num canto, muitos olhos arregalados olharam na sua direção, os corpos

quase nus, pois não podia chamar de roupa algumas tiras de pano sujo e rasgado. Ali estavam os seus

companheiros: os loucos.129

∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗

129 Esta narrativa de abertura é fictícia. Apesar de utilizar informações extraídas de vários documentos, não se

reporta a eles, que aqui serviram apenas como inspiração para introduzir o leitor no ambiente da cidade disciplinar, diferente daquele de que tratamos no capítulo anterior.

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Em 1894, José da Cruz Ferreira foi conduzido à cadeia pública da capital. Sua prisão

foi informada ao Governador do Estado Manoel José Murtinho, pelo chefe de polícia interino

Pedro Antunes de Souza Ponce, motivada pela denúncia feita pelo funcionário público

Antonio Modesto, que declarou na ocasião que José estava apresentando sinais de sofrimento

mental130.

Se o lugar não era adequado, pelo menos era melhor do que a Santa Casa de

Misericórdia, onde esse tipo de paciente era submetido aos piores tratamentos, e muitos deles,

presos a ferro, conforme constatou o chefe de polícia em diligência realizada ao hospital,

ocasião em que verificou tantos maus tratos aplicados aos alienados que ali se encontravam,

que tratou de transferir para a cadeia o louco Antonio Antunes Ferraz, que por conta dos

suplícios recebidos na Misericórdia veio a falecer pouco tempo depois.

Que crime José da Cruz havia cometido? Não, ele não tinha atirado em ninguém.

Tampouco havia jogado pedra. Nem esfaqueado quem quer que fosse.

Apenas quatro anos haviam se passado em Cuiabá desde a realização do

recenseamento da capital e quanta mudança se percebe na sociedade cuiabana neste episódio!

Senão, vejamos. Em 1890, encontramos José da Cruz Ferreira como morador da casa número

2673, na Rua Antonio João, com os seguintes dados: 40 anos; taverneiro; raça parda; católico;

brasileiro; sabia ler, mas não freqüentava a escola; não possuía nenhum defeito físico, era

casado e pai de quatro filhos131. Todas essas informações foram registradas pelo amanuense

sob a coordenação de José Barnabé de Mesquita por ocasião do censo, que identificou,

mapeou e registrou a existência de alienados, dementes e idiotas na porção urbana da capital,

entre outros portadores dos chamados defeitos físicos. A identificação de cada um de seus

1301894, Dezembro, 21, Cuiabá. Ofício nº 97 do Chefe de Polícia interino Pedro Antunes de Souza Ponce ao

Presidente Manoel José Murtinho. Caixa 1894 Maço: Repartição de Polícia do Estado de Mato Grosso. APMT.

131 Recenseamento Urbano da Capital Cuiabá. 1890. APMT.

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moradores se restringiu, num primeiro momento, à individualização da população, sem que

nenhuma mudança ocorresse em relação aos mesmos. Mas, bastaram quatro anos, para

compreendermos que a individualização era, apenas, uma das estratégias da disciplinarização

a que seria submetida a sociedade cuiabana.

No recenseamento da capital realizado em 1890, a ausência de relatório que trate dos

métodos utilizados para a confecção do mesmo e também a decisão sobre as categorias

eleitas, se por um lado impossibilita que se conheça a intenção que facultara a sua produção,

traz como novidade a designação de algumas categorias que, ao que parece, foram julgadas

importantes para compor a identidade da nação.

Realizado no primeiro ano da República e segundo da Abolição da Escravatura, o

documento suprime o quesito escravidão para, em seu lugar, aparecer raça; assim, temos as

três raças que comporiam a identidade nacional: a branca, a preta e a parda. A escolaridade e

alfabetização da população denotam a influência dos membros do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro — a denominada geração de 70132 —, cujos intelectuais indicam a

importância da escolaridade. O estado civil, por sua vez, remonta ao período colonial de

forma sofisticada e detalhada, uma vez que nos antigos mapas de população aparece o número

de fogos existentes em cada localidade. A religião recebe o mesmo grau de importância que

os demais indicadores e sinaliza a aproximação do Estado laico com a igreja católica e a

submissão desta ao Governo. Quanto à categoria defeitos físicos, esta reflete a importância

dos corpos sadios para o projeto de civilização em curso no país e vai mais além, uma vez que

não prescinde do saber médico para designar os respectivos defeitos dos indivíduos. Talvez

132 A expressão geração 70 é utilizada por Robert Pechman ao tratar da geração de intelectuais membros do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que defendeu a Proclamação de República e Abolição da Escravatura. Esses intelectuais defendiam ainda grandes reformas e acreditavam que só com o auxílio da ciência se poderia alcançar o progresso do país. PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p 350.

Page 60: A Cidade e a Loucura

50

seja por essa via que temos a explicação para o diagnóstico feito por Antonio Modesto, o

denunciante, a respeito de José da Cruz Ferreira, prontamente aceito pela autoridade policial.

O recenseamento de 1890 se constitui numa espécie de marco fundador na prática de

diagnosticar o alienado em larga escala em Cuiabá e, a partir daí, possibilitar um

“prognóstico” preliminar, através do recolhimento do alienado à cadeia ou à Santa Casa de

Misericórdia. A identificação, localização e fixação dos alienados, dementes e idiotas, por sua

vez, podem ser compreendidas tanto como a escolha de novos objetos de saber, como também

a dimensão de um território inscrito no corpo do indivíduo, que carregará, dali por diante, o

epíteto de alienado, considerando a inexistência, em Cuiabá, nesse período, de um espaço de

exclusão destinado especificamente para esse fim133.

Em 1894, o amanuense saiu de cena para dar lugar à polícia, que passa a ser

solicitada para cumprir o seu dever: retirar do cenário das ruas e do convívio familiar aquele

que perturba a ordem pública, aquele que não pode mais gozar da liberdade: o alienado.

Algumas questões chamam a atenção nesse episódio. A primeira diz respeito à

percepção da loucura como alienação mental, cujo diagnóstico podia ser feito por qualquer

pessoa. A segunda trata da necessidade do recolhimento do alienado a alguma instituição, o

que indica que o enclausuramento já era praticado como medida necessária à contenção desse

tipo de indivíduo. A terceira reporta-se ao papel desempenhado pela Polícia nesse período,

afinal, era a essa instituição que as pessoas começaram a recorrer para solucionar o problema,

o que nos sugere a idéia de que a loucura era caso de polícia. Mas do que tratava, afinal, a

Polícia? Quais circunstâncias determinaram a emergência da loucura e da pessoa do louco

como problema social, ou como problema da cidade, justificando as proposições de criação de

instituições para controlá-los e, eventualmente, tratá-los? Ou ainda, por que teria o alienado,

133 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs (...). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v. IV. p. 122.

Page 61: A Cidade e a Loucura

51

em Cuiabá, surgido na cena social como um problema, muito antes de as instituições que iam

acolhê-lo terem sido criadas?

Tomando por base a afirmação de Angel Rama, que disse que, dentro de cada cidade

sempre houve outra cidade, vejamos algumas possibilidades de se olhar para “as cidades” que

se descortinam para nós.

Cuiabá, em fins do século XIX, segundo a descrição de Joaquim Ferreira Moutinho,

era uma cidade onde o viajante, depois de uma longa e fastidiosa viagem “sente-se alegre e

impressionado; porque contra toda a sua expectativa, encontra no meio de um sertão inóspito

e selvagem uma cidade regularmente bela, e um povo já bastante civilizado”. E continua

tecendo elogios, descrevendo o cuidado com as vestimentas usadas pelos homens e mulheres

de posses e também sobre as formalidades presentes nas relações sociais destes. Sobre as

edificações, Moutinho revela uma cidade onde as casas são,

(...) pela maior parte, de mesquinha aparência, térreas, compondo-se de sala, loja, alcova, varanda e cozinha. Usam branqueá-las à cal. (...) A construção é de taipa ou de adobes, e no interior da cidade é rara já a casa de pau a pique. Há contudo muitas bem construídas segundo o sistema moderno, adornadas de vidraças, com a frente a gosto das de Montevidéu e Buenos Aires. Há também não pequeno número de sobrados de bonita aparência e de arquitetura elegante, pintados a óleo, forrados de papel e perfeitamente mobiliados, contando ali móveis de subido valor fabricados na província ou em Montevidéu e Buenos Aires, alguns mesmo na Corte ou na Europa, estofados de seda, etc.134

Nas mensagens governamentais, os problemas apresentados vão da falta de esgoto

até a inexistência de iluminação pública, que fazia da capital, em épocas variadas, um lugar

fétido e lúgubre.

134 MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Itinerário da viagem de Cuiabá a São Paulo. 1869. Mimeografado.

Page 62: A Cidade e a Loucura

52

Mas é nos ofícios e relatórios policiais que temos uma espécie de escritura da cidade,

daquilo que ela mesma não se permite ver. Muito mais do que lixo, entulho, água fétida ou

edifícios modernos ao lado de antigas construções, o que irá brotar nesse texto da cidade são

fissuras, que tornam o espaço citadino um espaço estriado, pela interdição de práticas que

contrariavam o projeto civilizatório.

Possivelmente estamos diante da sociedade disciplinar. A disciplina sobre a qual

vamos tratar neste capítulo nada tem a ver com aquela da “cidade pestilenta atravessada

inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada

no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos

individuais, utopia da cidade perfeitamente governada”, como observou Foucault, que viu

nessa cidade [pestilenta] a projeção de recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do

internamento. Mas também considerou que a disciplina suscitada pela peste, ainda que fosse

excepcional, perfeita, era absolutamente violenta. Curiosamente, a peste despertava sensações

contraditórias: por um lado, era temida pela iminente ameaça da morte, por outro, era

desejada pelos governantes, já que, sob o seu estado, a cidade era plenamente governada,

afinal, foi a peste que suscitou esquemas disciplinares.

No século XVIII, Josep Bentham apresentou a solução da disciplinarização da

sociedade com a formulação do esquema panóptico. O Panóptico de Bentham constituía-se

numa arquitetura que possibilitava a vigilância permanente, contínua, do ver-sem-ser-visto,

projetada, a princípio, como um novo modelo de prisão, escola, e outras instituições fechadas,

em que se prescindia da disciplina. Todavia, era muito mais do que isso. O panóptico estava

“destinado a se difundir no corpo social”, com função generalizada e papel amplificador. Para

Foucault,

o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu

Page 63: A Cidade e a Loucura

53

funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico135.

Ainda segundo Foucault, Bentham mostrou como se pode

destrancar as disciplinas e fazê-las funcionar de maneira difusa, múltipla, polivalente no corpo social inteiro. Essas disciplinas que a era clássica elaborara em locais precisos e relativamente fechados — casernas, colégios, grandes oficinas — e cuja utilização global só fora imaginada na escala limitada e provisória de uma cidade em estado de peste, Bentham sonha fazer delas uma rede de dispositivos que estariam em toda parte e sempre alertas, percorrendo a sociedade sem lacuna nem interrupção. O arranjo panóptico dá a fórmula dessa generalização. Ele programa, ao nível de um mecanismo elementar e facilmente transferível, o funcionamento de base de uma sociedade toda atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares136.

Os aspectos negativos de punições, suplícios, de exclusões — tão recorrentes na

época da escravidão no Brasil, quando assentar pelourinho era medida tão importante quanto

a construção de igreja, palácio de governo e Senado da Câmara — são deixados para trás

quando entram em cena formas sutis de vigilância permanente, hierarquizada, a que são

submetidas todas as pessoas, já que a tecnologia política tem este caráter de reverberação, e

que ocorre não na paralisia, na interrupção, mas no movimento. Movimento do capital, do ir e

vir de pessoas, de circulação de idéias, de fluidez e que tem o espaço público como o lugar

para onde as atenções se voltam e onde os dispositivos disciplinares poderão atuar sem

estardalhaço.

Não que tivesse ocorrido o fim das instituições fechadas. Em Cuiabá, no final do

século XIX, as escolas, a Santa Casa de Misericórdia, a cadeia, o Batalhão de Polícia Militar

continuaram e continuam a existir, e chegam até nós, na atualidade, à exceção do Arsenal de

135 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 181. 136 Ibid., p. 184.

Page 64: A Cidade e a Loucura

54

Guerra. Mas o que nos interessa é voltar nosso olhar para outros lugares, mais precisamente

para aqueles lugares em que a disciplina parecia jamais poder alcançar, não fosse a adoção de

dispositivos disciplinares: o espaço público.

O espaço público tanto pode ser o lugar do trabalho, ou o caminho para este, como

pode ser o lugar onde a desordem pode reinar absoluta. O espaço público (a rua, neste caso), é

o lugar da imprevisibilidade, onde tudo pode acontecer e onde não se tem o controle de nada,

pelo menos não aparentemente. A rua parece indicar o mundo, seja pela novidade ou pelo

inusitado, e que tem como regra básica o engano, a decepção137.

A cena das ruas é o lugar onde se pode tudo ver, sem ser visto. Espécie de espetáculo

a céu aberto — mas não o espetáculo dos teatros como o tinha sido na Antigüidade Clássica,

quando, na Grécia, a grande multidão lotava as arenas para assistir à exibição de um

gladiador. Ou ainda, o espetáculo das touradas cuiabanas, quando uma arena era montada,

com arquibancada e camarote, em lugar previamente determinado, e que atraía um grande

número de pessoas para assistir ao desempenho dos capinhas diante dos animais.138 Num ou

noutro caso, temos muitos olhares voltados para um ponto específico, um pequeno alvo, que é

submetido ao exame de muitos. Na sociedade disciplinar, ocorre exatamente o contrário disso:

temos um grande número de pessoas vigiadas, contínua e ininterruptamente, por uma única

pessoa, ou por um pequeno número de pessoas que examinará os gestos, as relações, as

afetividades, as coisas mais insignificantes.

Mas quem é que pode vigiar?

137 DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis (...). p. 91. 138 Cf., a respeito das touradas cuiabanas, a Dissertação do Mestrado em História, de Marisa de Oliveira

Camargo, pela UFMT, 2005.

Page 65: A Cidade e a Loucura

55

Seguindo os preceitos de Bentham, qualquer um podia vigiar e ser vigiado, o que nos

remete à idéia de uma vigilância não identificável, ou invisível, ou ainda um olhar sem rosto,

como observou Foucault. No Brasil, essa tarefa coube à polícia.

2.1 Polícia para Quem Precisa

Polícia, para quem precisa?

Policia para quê precisa de Polícia?

Titãs

Em 1808, D. João VI criou a Intendência Geral da Polícia, instituição estatal, espécie

de braço do rei, cujas funções não estavam muito claras à época de sua criação. Pechman situa

a dificuldade em estabelecer as atribuições da polícia nesse período, já que a sua instalação se

deu sem que houvesse um Código Penal que definisse com maior precisão o que era “crime e

os limites do comportamento”, o que levou a polícia “a se instituir como a divisora de águas

entre a ordem e a desordem e a fixar o padrão de tolerância da sociedade para com os

excessos da nova sociabilidade que se instaura com a corte”139. Em 1894, esse argumento

ainda pôde ser utilizado, apesar da promulgação do primeiro Código Penal republicano

poucos anos antes140.

139 PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 94. 140 RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade. Estudo e análise da Justiça no Rio de Janeiro. (1900–

1930) Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995. p 13.

Page 66: A Cidade e a Loucura

56

Examinando o que diz Foucault a respeito da estatização dos mecanismos de

disciplina — em especial o que ocorreu na França, onde esse mecanismo foi ocupado pela

polícia —, teremos diante de nós um sistema que se ocupa de tudo, um aparelho “coextensivo

ao corpo social inteiro, e não só pelos limites extremos que atinge, mas também pela minúcia

dos detalhes de que se encarrega”141.

Os limites provavelmente se aplicavam aos casos que resultavam em algum tipo de

crime ou delito, como homicídio, furto, roubo, agressão física, entre outros, mas a polícia

também vai se ocupar de detalhes, de “tudo que acontece”. Seu objeto “são essas coisas de

todo instante [...] essas coisas à toa”142.

No Dicionário Enciclopédico de Almeida Lacerda, publicado em 1868, temos o

seguinte significado aplicado ao verbete polícia:

I) Polícia (do latim politia; do grego polites, cidadão; de polis, cidade): governo e boa administração do estado, da segurança dos cidadãos, da salubridade, subsistência, etc. Hoje entende-se particularmente da limpeza, iluminação, segurança e de tudo que respeita a vigilância sobre vagabundos, mendigos, facinorosos, facciosos, etc. II) Polícia (do latim polidio, de polire, polir, assear, adornar): cultura, polimento, aperfeiçoamento da nação, introduzir melhoramento na civilização de uma nação.143

No decorrer dos anos, outros dicionários são publicados, onde apareceram algumas

variações de significados para designar polícia, que tanto podia ser sinônimo de polidez, como

de civilização. Essas pequenas variações talvez insinuem a tentativa de atribuir à polícia um

significado que abrangesse a complexidade de sua função, já que seu campo de atuação

compreendia exatamente aquele ponto intermediário entre o poder do Estado e as instituições

fechadas, onde estas não podiam e nem podem intervir, como observou Foucault,

141 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 187. 142 Ibid., p. 188. 143 PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 69.

Page 67: A Cidade e a Loucura

57

“disciplinando os espaços não disciplinares; mas que ela recobre, liga entre si, garante com

sua força armada: disciplina intersticial e metadisciplina”144

É nesse ponto intermediário que encontramos em Cuiabá, em fins do século XIX,

aqueles indivíduos que não estão sujeitos a nenhum mecanismo disciplinar: os loucos e os

vadios. É sobre os vadios que as Instruções Policiais de 1892 vão tratar de forma contundente,

uma vez que são tidos como criminosos em potencial. Esse perigo social iminente, o

vagabundo que transita pelas ruas, que circula por todos os lugares e que ameaça a ordem

pública, tanto pela sua presença, pelos atos que pode vir a cometer, como também pelo risco

de contaminar os demais indivíduos, deverá, a partir de então, ser contido pela polícia.

Essas mesmas instruções estabelecem parâmetros para o exercício do “poder” da

polícia, quando determina que ela, sem ultrapassar os limites de suas atribuições, pode e

deve, com energia e atividade, prestar reais serviços à causa pública. A polícia não pode

mais tratar com indiferença esse tipo de indivíduo (aqui, o vadio) que passa a ser considerado

“perigoso”, mas terá que atuar compenetrados do zelo, solicitude, critério e imparcialidade..

Localizar, identificar, disciplinar e punir (se preciso for) constituíam o conjunto de

medidas que deveriam ser cumpridas, em todas as etapas, pela autoridade policial. Essas

medidas podiam ser resumidas em seis artigos normativos que tinham por finalidade reprimir

a vadiagem oriunda dos crimes e desordens.

O artigo primeiro determinava à policia a identificação da profissão de todos aqueles

que circulavam pela cidade. O artigo segundo propunha a observação de todos os vagabundos

e ociosos, obrigados a arrumar algum serviço que lhes garantisse o próprio sustento de forma

lícita, com comprovação, para evitar a prática de algum crime. O artigo terceiro tratava da

sanção normalizadora, já que todo aquele que não arrumasse um serviço, por motivo frívolo,

144 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 189.

Page 68: A Cidade e a Loucura

58

seria obrigado a assinar o “termo de bem viver”145. O artigo quarto estabelecia a assinatura de

contrato para aqueles que tivessem arrumado algum trabalho. A hierarquia, por sua vez,

estava assegurada no artigo quinto, pela atuação do subdelegado, figura esta a quem todos os

inspetores de quarteirão da respectiva jurisdição deveriam ser submetidos. A idoneidade dos

inspetores, por sua vez, seria afiançada pelos próprios subdelegados que proporiam a

nomeação de pessoas de sua confiança tanto para ocupar os cargos vagos, como para proceder

a substituição daqueles indivíduos que não lhes inspirassem crédito. Por fim, no sexto e

ultimo artigo, os inspetores de quarteirão deveriam

conhecer as pessoas residentes nos quarteirões de sua jurisdição, e não só levar ao conhecimento das autoridades policiais os fatos criminosos dos quais tiverem conhecimento como auxiliar as autoridades com as informações sobre os ociosos ou vagabundos, a fim de procederem contra eles na forma das suas atribuições146.

O exame dessas Instruções aponta para a reflexão de algumas questões, como a

transformação da sociedade, a mudança na concepção do trabalho e a utilização de técnicas de

vigilância utilizadas pela polícia.

Nesse período, a sociedade, nos padrões desejáveis da modernidade, ainda se

encontrava em processo de gestação. Afinal, ela estava tentando se desvencilhar da antiga

sociedade brasileira, moldada, segundo Buarque de Holanda147, por uma estrutura familiar

cujas afetividades e relações de simpatia tornaram difícil a incorporação normal a outros

agrupamentos.

145 Segundo Pechman, Termo de Bom Viver era “o compromisso das pessoas que, quando convocadas eram

obrigadas a ir à sede da Intendência Geral de Polícia, para, em presença da autoridade, lá assinarem o tal termo, se comprometendo a ‘bem viver’, isto é, a viver dentro dos parâmetros definidos como os da ordem”. Cf. PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 77-78.

146 Relatório da Força Pública. 1893. Secretaria de Policia da Capital Cuiabá. APMT. 147 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. p. 141-151.

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59

A moralidade, os comportamentos, as atitudes, os vícios, as sociabilidades, o lazer,

as relações de trabalho, a observância às leis, o comércio, a higiene, a saúde já não podiam ser

tratados apenas no âmbito familiar, ou na esfera privada. O Estado passa a se ocupar dessas

questões, tanto por meio da adoção de estratégias de disciplinarização, como pelo

estabelecimento e fortalecimento de algumas instituições que vão circunscrever o espaço

citadino.

Da educação se incumbirá não apenas a família, mas também o Estado, tornando

obrigatório o ensino primário em Mato Grosso, a partir de 1892. Mas esta determinação não

foi cumprida de imediato, conforme as informações contidas nos relatos governamentais de

1894 e dos anos subseqüentes. A falta de professores e também de espaço físico destinado

para esse fim comprometiam a sua execução segundo o que determinava a Constituição

Estadual. Não que as crianças da capital não freqüentassem a escola nesse período. Segundo o

Presidente do Estado, Antonio Cesário de Figueiredo, as pessoas de posses optavam por

matricular os seus filhos nas escolas particulares existentes em Cuiabá, sobretudo pela baixa

qualidade de ensino ofertado pelas escolas Modelo e Liceu Cuiabano, mantidas pelo governo

estadual. Além disso, a capital carecia de mão de obra qualificada, o que demandava a

necessidade de contratar professores oriundos de outros Estados. Contudo, os salários pagos

eram tão baixos que não atraíam a vinda desses profissionais para Mato Grosso. Apenas três

escolas públicas estavam em funcionamento: a Escola Modelo, o Liceu Cuiabano e a Escola

de Aprendizes e Artífices, sendo esta última recém-inaugurada e mantida com recursos da

União.

A saúde pública começou a ser organizada nos primeiros anos da República. O medo

de epidemias — a exemplo da varíola, que, como peste, causara a morte de tantas pessoas em

1867 —, a preocupação com a proliferação de endemias, como também o grande fluxo de

Page 70: A Cidade e a Loucura

60

pessoas e cargas no Porto de Cuiabá contribuíram para a criação da Inspetoria de Higiene

Pública. Nos primeiros anos, sua atuação foi caracterizada pela adoção de algumas medidas

pontuais e não implicou na formulação de políticas públicas de saúde em Mato Grosso

(abordaremos este assunto no terceiro capítulo). A Santa Casa de Misericórdia e O Hospital

São João dos Lázaros eram os únicos hospitais existentes em Cuiabá destinados a prestar o

atendimento à população pobre, mas também atendia o Corpo de Soldados do Batalhão de

Polícia Militar, que, apesar de contar com um médico entre os seus integrantes, nunca possuiu

um hospital na sua unidade.

Da segurança do Estado se encarregava o Corpo de Polícia Militar, criado pela Lei

n.º 9, de 1892, e composto de duas companhias de infantaria. O número de pessoas que

integrava o seu corpo era fixado anualmente e girava em torno de pouco mais de 300 pessoas,

se bem que, no decorrer das primeiras décadas da República, houve dificuldade para

completar o quadro de pessoal. Em 1894, o efetivo do Batalhão compunha-se de: 1 tenente-

coronel, 1 major, 1 capitão-médico, 3 capitães, 3 tenentes, 9 alferes, 1 sargento ajudante, 1

sargento-quartel mestre, 1 corneteiro-mor, 1 mestre de música, 3 primeiros-sargentos, 3

forries, 14 cabos de esquadra, 16 anspeçadas, 18 músicos, 182 soldados e 3 corneteiros.

Esse número era tido como insuficiente para cobrir a demanda de todo o Estado, por

isso houve algumas tentativas de atrair homens para integrar o Corpo de Polícia, por meio da

concessão de benefícios e prêmios — todas elas, porém, frustradas. As razões para essa

situação, segundo os governadores, era a predileção pela ociosidade de muitos homens da

capital, que não percebiam que poderiam ser úteis para si e para os outros. O recrutamento no

interior também era difícil, por razão diferente daquela observada na capital. Conforme o

Governador Manoel José Murtinho, o maior obstáculo era a repugnância que os homens

sentiam em relação à atuação da força policial, decorrente da ignorância a respeito da

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61

instituição, mas que poderia ser superada por meio do esclarecimento aos refratários.

Enquanto isso não ocorria, o guarnecimento do interior era feito por meio do envio de homens

da capital. Solução paliativa que não resolvia o problema e comprometia ainda mais o

número reduzido de efetivos policiais na capital.

Vale ressaltar, porém, que o recolhimento dos “ociosos” às fileiras do Exército se

configurava, num primeiro momento, num arranjo perfeito, já que resolvia, numa só medida,

dois problemas — o de aumento de contingente do exército e o banimento das ruas de pessoas

cujas práticas eram tidas como perniciosas, e que a educação fornecida pelo Exército trataria

de extirpar: “A caserna, nos tempos modernos, é também uma escola de educação intelectual,

moral e cívica onde o soldado pode adquirir as qualidades de um bom cidadão: alma sã em

corpo são”148.

O soldado que se buscava por essa época já não era o soldado pronto, aquele cujos

traços evidenciam a aptidão para o exercício do ofício, como no século XVII. Na segunda

metade do século XVIII, o soldado passou a ser algo que se fabrica pela disciplina, tal qual

conceituou Foucault: “como conjunto de métodos que permitem o controle minucioso das

operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõe uma relação

de docilidade-utilidade”149.

O controle minucioso, por sua vez, deixa de lado a massa uniforme e se volta para o

indivíduo, o que evidencia a estreita ligação entre a disciplina e o detalhe, em que todos os

movimentos são observados. A importância do detalhe é revelada pelos documentos que

tratam de episódios envolvendo membros da corporação militar que não se submeteram, não

se deixaram disciplinar e que foram punidos com a expulsão, como podemos constatar no

ofício expedido pelo Diretor do Arsenal de Guerra ao Governador do Estado, que solicitou

148 Relatório Força Pública 1907 – Batalhão de Polícia Militar de Mato Grosso. APMT. 149 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 126.

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inspeção de saúde no “aprendiz de artífice Augusto Benedito da Penha que havendo

completado a idade de 16 anos não mais poderá permanecer na Companhia a que pertence por

seu mau comportamento”.150

Outro episódio revela tipos de comportamentos que também não eram aceitos na Polícia

Militar, como foi o caso da expulsão de Benedito Pacheco da Silva, que adoeceu por causa do

abuso de bebida alcoólica151.

É certo que nem sempre o alcoolismo desdobrava-se na expulsão de um integrante da

Polícia Militar; na maioria das vezes ocorria, apenas, a abertura de algum inquérito disciplinar

para averiguação dos fatos152 .

Tiros, inquéritos, expulsão, prisão eram as medidas usuais para conter e punir os

indisciplinados — que não eram poucos —, mas havia também aqueles que se deixavam

disciplinar. Para esses, estavam reservados os elogios. Na Polícia Militar, o atraso de sete

meses no pagamento dos soldos não gerou nenhum murmúrio, muito menos revolta, conforme

trecho do relatório anual, em 1907:

É bem lisonjeira a disciplina do soldado atual [...] suportaram com muita resignação e sem o menor murmúrio um atraso de sete meses de vencimentos com que o atual Governo encontrou a polícia e o funcionalismo civil...

[...] os oficiais e praças foram, dada as circunstâncias, forçados a fazer transações de seus vencimentos com agiotas sem entranhas. Apenas observou-se maior deserção de praças, principalmente na guarnição de Corumbá onde a Companhia do Urucum seduziu muitas praças, pagando a seus trabalhadores boa diária. Hoje com o pagamento em dia tem-se verificado poucas deserções153.

150 1890, Setembro, 18, Cuiabá: Ofício do Diretor do Arsenal de Guerra ao Governador de Mato Grosso. Caixa

1890/ Maço Diretoria do Arsenal de Guerra. APMT. 151 1891, Cuiabá. Ofício do Comandante da Companhia Policial ao Presidente do Estado Manoel José Murtinho.

Caixa 1891- Maço: Quartel do Comando da Companhia Policial. APMT. 152 Esse foi o caso do Soldado Benedicto Antonio de Oliveira, que alcoolizado, abandonou o posto altas horas da

noite e foi espancado por dois homens. No processo do Conselho de Investigação, ao qual Benedito foi submetido, o mesmo foi considerado culpado, mas não foi expulso da Companhia. Comando do Corpo de Polícia Militar. Cuiabá, 5 de Junho de 1896. Caixa 1897 – Maço: Comando do Corpo de Polícia Militar. APMT.

153 Relatório Força Pública – Batalhão de Polícia Militar.1907. APMT.

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A deserção motivada pelo atraso no pagamento de soldo, ao que parece, é apenas

lamentada, considerando-se a dificuldade para prover o efetivo com o número de homens

necessários, entretanto, percebe-se também a tolerância para com todos aqueles que

desertassem para trabalhar em algum outro lugar.

O trabalho, nesse período, já não era visto como castigo, como o fora na época da

escravidão; passou a ser visto como uma solução, do tipo preventivo, para crimes e desordens,

pois a vadiagem aparecia como a causadora das desordens. É óbvio que não era o caso de

fazer todo mundo trabalhar — ao que parece, isso se restringiu à parcela pobre da população

—, posto que acreditavam nas autoridades, que lhes diziam que, pelo trabalho, é que se daria

a subsistência do indivíduo de forma honesta.

A esse respeito, as instruções policiais de 1892 foram muito claras. Não se tratava

mais de expulsar, dos domínios da cidade, aqueles que não trabalhavam, para que levassem

suas vidas errantes bem longe da cidade154. Tampouco se tratava de encarcerá-los. A

sociedade disciplinar implica em movimento, não em interrupção; aí reside o aspecto positivo

dessa tecnologia política. Todos serão incitados ao mundo do trabalho, posto que o trabalho

exige o cumprimento rigoroso de horário, a produtividade, a submissão ao chefe, o respeito à

hierarquia, a obediência às ordens. Neste mundo, outros atores podem ser agenciados para

fiscalizar o cumprimento de todos esses preceitos disciplinares.

Se nem o Exército, o Batalhão, o trabalho, a escola, e nenhuma outra medida

disciplinar desse certo, então, uma alternativa começou a ser desenhada a partir de 1895.

Naquele ano, a Assembléia Legislativa aprovou o Projeto-Lei de implantação da Colônia

154 Em 1890. Tendo o Delegado de Polícia do 1° Termo desta Capital enviado a esta Chefatura o individuo de

nome João Christiano Moreira, como vagabundo e desordeiro e sendo de grande e urgente necessidade fazer retirar desta Capital o referido individuo o qual fazia parte do grupo que promovia conflito na noite de 5 para 6 do corrente e porque tal individuo esteja no caso de assentar praça no exército, onde ainda pode ser útil faço por isso apresentar-vos com este, para o aludido fim.

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Correcional, destinada prioritariamente a recolher os vagabundos e os alcoólatras155. Contudo,

a aprovação da Lei não significou a sua pronta execução; pelo contrário, muitos anos se

passaram, até que tivéssemos notícia da “famosa” Colônia por um periódico local:

Há dezoito anos a Assembléia Legislativa estadual votou uma lei criando uma Colônia Correcional, para escola prática de trabalho de lavoura e repressão da vadiagem, já então reconhecida em boa parte da população. E convém notar que votado o projeto e remetido à sanção, o Presidente Dr. Manoel Murtinho, negou esta, devolvendo o projeto ao corpo legislativo, presidido pelo Sr. Coronel Pedro Celestino, que o fez passar como lei, com aprovação unânime.

Como ninguém ignora, tem subsistido a necessidade da providencia tomada por aquela lei: os lavradores carecem aprender alguma coisa que os possa encaminhar melhor no exercício da laboriosa profissão, e os desocupados, seja lá quais forem, devem ser retirados do vício e da perdição, regenerando os sujeitos ao estabelecimento de educação proveitosa [...] A repressão da vadiagem também é pedida de todos os pontos do estado pelas autoridades policiais em permanente dificuldades para atenderem as desordens provocadas pelos vagabundos...156

Em Mato Grosso, em fins do século XIX, a lista de “espécimes” dos quais a polícia

estava encarregada, será aumentada. Um novo personagem-problema irá emergir em Cuiabá.

Alguém que não pôde ser recolhido às fileiras do exército, nem à polícia militar, ao mundo do

trabalho, à escola e a nenhuma instituição existente na capital mato-grossense naquele

período. Aquele que representa a imagem destorcida da sociedade, o seu espelho: o louco.

Este personagem, que pôde, durante muito tempo, gozar de uma certa tolerância

social e de uma relativa liberdade, teve, segundo Heitor Rezende, “esta liberdade cerceada e

seu seqüestro exigido, levado de roldão na repressão a indivíduos ou grupos de indivíduos

que, por não conseguirem ou não poderem se adaptar a uma nova ordem social, se

constituíram em ameaça a esta mesma ordem”157.

155 Mensagem do Presidente do Estado de Mato Grosso, enviada à Assembléia Legislativa. 1896. Disponível em:

<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>. 156 Jornal O Comércio. 08/09/1910. Colônia Correcional Agrícola. Microfilme. Rolo 60. NDHIR/UFMT. 157 REZENDE, Heitor. Política de saúde mental no Brasil. p. 29.

Page 75: A Cidade e a Loucura

65

As circunstâncias que determinaram a loucura como problema no Brasil, mais

especificamente na cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX, foram

semelhantes às da Europa do século XVI. Em ambos os casos, a decisão de encarcerá-los

precedeu a construção da idéia de desordem e da paz social ameaçada para justificar o próprio

isolamento. Na Europa, o Grande Enclausuramento, como denominou Foucault, o

aprisionamento de devassos, profanadores do sagrado, libertinos e aquele que nos interessa

nesse trabalho, os loucos, nos antigos leprosários “assinala o nascimento de uma ética do

trabalho em que este é moralmente concebido como o grande antídoto contra a pobreza [...]

portanto, um fenômeno eminentemente moral”158, considerando que o louco não recebia no

Hospital Geral 159, lugar para onde era levado, nenhum tipo de tratamento médico. No Brasil,

as técnicas de poder, como as disciplinas foram adotadas ainda no Império, muito antes do

fenômeno da industrialização ou de condições econômicas objetivas.

O Rio de Janeiro parece ter servido de modelo para Cuiabá e, possivelmente, para as

demais capitais de província do país onde os loucos, marginais, miseráveis e vagabundos

tornaram-se alvos privilegiados da ação dos governantes, que empreenderam uma verdadeira

varredura destes nos lugares públicos, já que se tornaram sinônimos da desordem urbana,

sendo conduzidos às cadeias públicas e às Santas Casa de Misericórdia.

Os miseráveis doentes continuavam sendo acolhidos na Santa Casa de Misericórdia,

instalada no começo do século XIX, exatamente com a finalidade de receber os doentes

pobres da capital, vilas e povoações próximas. É esse o destino que começa a ser reivindicado

158 MACHADO, Roberto. Ciência e saber. A trajetória da Arqueologia de Foucault. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal,

1981. p. 64. 159 Cf. FOUCAULT, Michel. História da loucura, em que o autor fala do Hospital Geral, uma instituição

francesa que abrigou todos os tipos que não se ajustavam à ordem, mas desprovida do caráter médico terapêutico, onde a figura do médico era solicitada apenas nos casos de doença, quando esta configurava em ameaça de epidemia.

Page 76: A Cidade e a Loucura

66

para os alienados, que não pode mais usufruir o convívio familiar, em face de um

comportamento agora considerado impróprio e tido como atrasado.

“Proliferaram” os pedidos de internação dos alienados na Santa Casa de

Misericórdia, sobretudo oriundos da autoridade policial da capital, e também do interior. A

aceitação dos alienados na Santa Casa, por sua vez, se transforma em caso de polícia e

“intervenção” do Governo do Estado. Muitos dos pedidos feitos nesse sentido eram recusados

sob a alegação de falta de espaço e estrutura adequada para esse fim. Curioso notar é que os

pedidos de internação de insanos se apóiam em argumentos distintos. A maioria deles é de

ordem moral. Simples interdição ou aprisionamento que não prescreve nenhuma

medicalização, nenhuma terapêutica, e propõe somente que se retire de circulação aquele ser

estranho. Mas encontramos pelo menos um pedido que utiliza a expressão tratamento:

Tendo o Delegado de Polícia do Termo da cidade de Poconé me participado, em ofício de 6 do corrente, por mim recebido ontem a noite, que ali existe vagando pelas ruas um indivíduo de nome Plácido Vieyra da Costa, cujo procedimento tem perturbado a ordem e sossego público e, sendo evidente, pelo que se expõe aquela autoridade, que, esse indivíduo está sofrendo de alienação mental, pois só assim se poderá explicar a série de desatinos, que tem cometido, resolvi mandar conduzi-lo para o estabelecimento da Santa Casa de Misericórdia, onde pode ser tratado, com cuidado daquela enfermidade. 160

Cadeia ou Santa Casa de Misericórdia são as duas opções de locais de “internação”

do alienado mato-grossense. E não se trata de pensar nessas opções como opostas ou

excludentes: a diferença entre uma e outra restringe-se apenas à nomenclatura, já que ambas

não passam de meros locais de aprisionamento, ainda que o simples fato de recolher os loucos

em um espaço diferente dos criminosos — na cadeia —, e os doentes — na Santa Casa — já

160 1891, Outubro, 9, Cuiabá.Ofício n.º 122 do Chefe de Polícia João Marino de Souza ao Presidente do Estado

Dr. Manoel José Murtinho.(providenciado em 09/11/1891). APMT.

Page 77: A Cidade e a Loucura

67

seja o relevante indício de “uma condição quase-médica”161. Não é esse, porém, o ponto

importante dessas “variações” de aprisionamento e de motivações. O que há de importante

por trás disso é a consciência que já se produziu da loucura. A cadeia pública e a Santa Casa

representam essa consciência, de que a loucura deve ser aprisionada.

Enganam-se, porém, aqueles que pensam que os internamentos eram prerrogativas

exclusivas da polícia. Nos casos envolvendo crimes ou delitos praticados por algum alienado,

eram os magistrados quem determinava o internamento destes162, como na liminar abaixo, em

que o Juiz do Tribunal da Relação “Concede habeas-corpus a Antonio Bernadino de Souza e

determina a remoção do paciente da Cadeia Pública de Cáceres para o Hospício Nacional dos

Alienados do Rio de Janeiro”163.

Nesse e nos demais casos que envolviam crime ou delito, a internação recorria à

ciência médica apenas como acessório, espécie de ritual sumário, pois o exame médico

restringia-se tão-somente à aplicação de perguntas elaboradas pelo juiz. Nos demais casos, era

suficiente a determinação de aprisionamento dos alienados feita pela autoridade policial.

Demorariam ainda mais três décadas até que se construísse um local para

recolhimento dos alienados. Essa situação, aliada à resistência da Direção da Santa Casa em

receber os insanos imediatamente, fazia da cadeia o destino preferencial desses indivíduos e,

na falta de boas cadeias em todos os municípios de Mato Grosso, recorria-se à cadeia da

capital, local este em que a distribuição interna de seus espaços já existia justamente para

facilitar a vigilância sobre aqueles que ali se encontravam recolhidos.

161 FOUCAULT, Michel. História da loucura. p. 114. 162 Há alguns processos crimes do Tribunal da Relação de Mato Grosso que tratam de delitos ou crimes

praticados por alienados, no período compreendido entre 1890 e 1929, mas optei, neste trabalho, por não enveredar por esse caminho, que trata da inimputabilidade etc.

163 Liminar do Tribunal da Relação-1921, Junho, 16, Cuiabá. APMT.

Page 78: A Cidade e a Loucura

68

[...] Os presos acham-se ali divididos por classes e sexo, conforme preceitua o Regulamento em vigor, servindo de prisão aos sentenciados o salão denominado 1ª prisão e aos não sentenciados, a 2ª contígua a 1ª, ficando a 3ª prisão desocupada por ter sido julgada sem segurança desde que foi arrombada o ano passado pelo preso Luiz Marciano d’Alvarenga.

Há igualmente naquele estabelecimento mais duas prisões sendo uma para mulheres e outra para presos correcionais, além da Custódia164 .

A divisão por classe e sexo abriu o caminho para que, tempos depois, se conjugasse

num mesmo aparelho um duplo fundamento: jurídico-econômico por um lado, técnico-

disciplinar por outro165 .

Quanto ao recolhimento de alienados à cadeia pública, esta era uma medida que não

significava a solução do problema. Muitas vezes, o que ocorria era a produção de um outro

problema, já que este tipo de preso poderia causar danos à edificação e implicava em aumento

de vigilância sobre eles, conforme o relato do delegado de polícia, em 1895.

Cumpre-me comunicar-vos mais, que o alienado Manoel do Carmo que se acha detido na Cadeia pública desta Cidade, conseguiu arrombar a prisão em que estava, fazendo um grande buraco junto da porta e por onde conseguiu igualmente sair ontem de manhã, para fora da referida prisão. Tão logo tive conhecimento deste fato providenciei para que o dito alienado, em falta de outros recursos, ficasse sob a vigilância da guarda daquele estabelecimento, e assim tem se conservado ele até hoje, sem haver entretanto alteração alguma166 .

Os estragos causados pelos alienados evidenciavam as dificuldades financeiras para a

manutenção da cadeia, que tinha como despesas a manutenção física do prédio e a provisão

(alimentação e vestuário) dos presos pobres. As condições destes eram tidas como deploráveis

e serviam de argumento para pedidos de verbas: “É lastimável o estado de alguns presos que

só possuem verdadeiros trapos, entretanto não ficaria tão pesado à municipalidade a

164 Relatório da Força Pública. 1893. Secretaria de Policia de Cuiabá. APMT. 165 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 208. 166 1895, Abril, 1, Cuiabá. Ofício n.º 2 do Delegado de Polícia Agostinho [...] de Azeredo ao Presidente Manoel

José Murtinho. Caixa 1895 - Maço: Repartição de Polícia. APMT.

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69

designação de uma pequena verba para atender a esse ato humanitário reclamado pela

higiene”167.

Entretanto, o custeio de presos ficou ainda mais complicado com a transferência para

a cadeia da capital de presos de outros municípios. A reclamação do chefe de polícia com

relação aos gastos, apontava também para a questão da cidade e, nesse caso mais

precisamente, para a responsabilidade ou a despesa de cada cidade com relação aos seus

cidadãos: “Pesa este encargo sobre a municipalidade da Capital, não obstante a maior parte

dos municípios do estado mandarem para a cadeia desta cidade os seus presos e assim carrega

ela com despesas que em grande parte pertencem a outras Câmaras fazer”.

O recolhimento dos alienados à cadeia, no entanto, não era visto com bons olhos pela

autoridade policial, conforme observou o chefe de polícia, por ocasião do recolhimento de

José da Cruz Ferreira à mesma:

[...] no meu relatório do ano passado tratei da edificação de uma casa própria para receber esses infelizes, e hoje mais me convenço da necessidade urgente dessa medida. Vós que tendes se mostrado solicito em promover a felicidade desta Pátria, que vos viu nascer, não deveis cessar os ouvidos aos gemidos dos que sofrem, assim pois, espero tranqüilo pelas vossas providências, visto não poder esta Chefatura de pronto remediar o mal, a que lamenta...168

Infelizes. Essa é a designação utilizada pelo chefe de polícia ao se referir aos

alienados, cuja tutela, a ele conferida, parece não mais estranhar. Todavia, as opiniões

emitidas pelo dito chefe sugerem que ele já tivesse conhecimento sobre o destino adequado

167 Relatório da Força Pública. Cuiabá, 02/01/1900. APMT. 168 1894, Dezembro, 21, Cuiabá.Ofício n.º 97 do Chefe de Polícia interino Pedro Antunes de Souza Ponce ao

Presidente Manoel José Murtinho. Caixa 1894 - Maço: Repartição de Polícia do Estado de Mato Grosso. APMT.

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70

para os desatinados — o recolhimento —, ainda que a denominação Asilo ou Hospício não

tenha sido empregada.

O discurso do chefe de polícia parece ter brotado de páginas da literatura, já que este

reclama atenção do Governador com relação aos alienados, tanto quanto o Dr. Simão

Bacamarte169 em discurso proferido na Câmara de Vereadores de Itaguaí, em que se voltou

contra os Vereadores e os acusou de cometer

Entre outros pecados [...] tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua.170

A piedade também é recorrente no argumento usado pelo Dr. Simão Bacamarte para

obter a concessão de criação da Casa Verde, mas esta se restringe a mera retórica já que, no

decorrer da história, Bacamarte revelará a ambição de colocar o Brasil no topo do

conhecimento científico na área psíquica, recanto que, segundo este, é tão pouco explorado ou

quase inexplorado no país e terreno propício para a realização de experimentos diversos.

Nos primeiros anos da República, o Hospício Nacional dos Alienados do Rio de

Janeiro vivia um momento delicado. Houve mudança na direção do hospital, que ficou a

cargo de médicos, em substituição às freiras religiosas que foram afastadas. Tal mudança teve

como justificativa a necessidade de introduzir, na instituição, pessoas com conhecimento

científico, já que as aflições psicológicas eram doenças, e como tal assim deveriam ser

tratadas. A alienação mental passaria a ser problema da ciência e não mais da caridade. Além

disso, pesava sobre as freiras a acusação de praticarem barbaridades contra os internos, que

169 Dr. Simão Bacamarte é o personagem de Machado de Assis, o alienista criador da Casa Verde, um hospício

construído pelo mesmo em Itaguaí, para recolher todos os loucos da cidade. In: ASSIS, Machado de. O Alienista. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

170 ASSIS, Machado de. O alienista. p. 9-10.

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71

eram conduzidos pela polícia ao Hospício Nacional de forma tão indiscriminada, que não era

raro confundir um mero miserável com um alienado171.

Isso indica que o problema — para a modernidade — era o indivíduo de aspecto

repulsivo no espaço público. Maltrapilho ou louco tanto faz; seu aparecimento nas ruas terá

curta duração, já que logo será dali retirado e trancafiado em algum lugar. Foucault observou

que, na França, logo após Revolução Francesa, foi no Hospital Geral e demais instituições

totais que Pinel encontrou todos os loucos e deu início à elaboração de uma classificação da

loucura. No Brasil, em fins do século XIX, a medicina psiquiátrica vai gradualmente se impor

como saber (com seus efeitos de poder), reivindicando a extensão de seus domínios e, por

conseguinte, a definição dos limites de atuação das várias instituições existentes no país,

reivindicando para si o cuidado dos loucos172.

A indiscriminação, erro, ou confusão cometida pela polícia, por sua vez, não cessou

com a mudança de direção, apesar dos protestos dos médicos e alienistas, que passaram a

exigir que o internamento no hospício ocorresse mediante o diagnóstico feito através de

exame médico. Tentava-se com isso impor o saber médico à ignorância da polícia, já que uma

espécie de triagem passa a fazer parte do protocolo de internamento no Hospício Na cional e

servirá de modelo para as demais instituições psiquiátricas instaladas em todo país. Essa

triagem, até então feita pela polícia, que determinava quem deveria ser retirado da rua, passa a

ser realizada pelos médicos, que tomam para si aqueles que interessam à ciência, deixando os

demais sob a égide da truculência policial, nascida da ignorância, isso, é claro, na visão dos

detentores do saber.

Contudo, na década de 1920, tal prática ainda persistia, conforme denunciou o

escritor Lima Barreto, que foi internado duas vezes no hospício:

171 Relatório Anual do Hospício Nacional dos Alienados. Ministério do Interior. 1891. 172 Cf., no terceiro capítulo, a respeito do nascimento da psiquiatria.

Page 82: A Cidade e a Loucura

72

A polícia, não sei como e por que, adquiriu a mania das generalizações, e as mais infantis. Suspeita de todo sujeito estrangeiro com nome arrevesado, assim os russos, polacos, romaicos são para ela forçosamente cáftens; todo o cidadão de cor há de ser por força um malandro; e todos os loucos hão por ser por força furiosos e só transportáveis em carros blindados.

Os super-agudos homens policiais deviam perceber bem que há tantas formas de loucura quanto há de temperamentos entre as pessoas mais ou menos sãs, e os furiosos são exceção; há até dementados que, talvez, fossem mais bem transportados num coche fúnebre e dentro de um caixão, que naquela antipática almanjarra de ferro e grade173 .

O retrato da loucura que Lima Barreto apresenta no seu Cemitério dos Vivos é muito

mais esclarecedor do que a imagem equivocada da polícia, que, ao que parece, só entende a

loucura pelo bizarro, pela deformação e pela fúria, mas Barreto esclarece que havia também

outras impressões sobre a loucura: “A loucura se reveste de várias e infinitas formas; é

possível que estudiosos tenham podido reduzi-las em uma classificação, mas ao leigo ela se

apresenta como as árvores, arbustos e lianas de uma floresta: é uma porção de coisas

diferentes”174.

É sobre os alienados que vagueiam sem rumo, ou num outro rumo, ritmo e tempo,

que a polícia será acionada. É ainda Lima Barreto quem nos dirá o que deve nos assustar na

loucura:

Vista assim de longe, a noção do horror que se tem da loucura não parte da verdadeira causa. O que todos julgam que a coisa pior de um manicômio é o ruído, são os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta. É um engano. Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação a outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso da loucura é o silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos.

Há indivíduos que se condenam a um mutismo absoluto, que não conversam com ninguém, não dizem palavra anos e anos. Destes, uns vivem de um lado para outro, outros deitados; ainda outros fazem gestos, e certos outros prorrompem em berreiros175.

173 BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos. p. 151-152. 174 Ibid., p. 186. 175 Ibid,. p. 184.

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73

Bobo, bobó, bobochera...176

Durante muito tempo, o louco pôde gozar do convívio da família, vagar pelas

estradas, circular pelas ruas das cidades e receber os cuidados da família e dos citadinos, sem

ser barrados por quem quer que fosse. Entretanto, no final dos oitocentos, em Cuiabá, essa

situação começará a ser alterada. Pesará sobre as famílias uma zona de silêncio. Ninguém

falará de seus loucos, afinal ele não é motivo de orgulho e, sim, de vergonha. Ele é o

obstáculo do progresso e da civilização. Isso não significa que não tivessem ocorrido

resistências e que todos os alienados tenham sido trancafiados na cadeia, na Santa Casa ou,

posteriormente, no Asilo dos Alienados. E esta é uma situação que pôde ser verificada na

capital mato-grossense no período, bastando, para isso, confrontar o nome dos alienados,

dementes e idiotas que aparecem no recenseamento de 1890, com os nomes dos alienados que

foram posteriormente trancafiados. Quanto às cidades do interior e à zona rural, é possível

inferir que essa resistência foi muito maior que na capital, considerando que muitas famílias

tinham seus bobós integrados na vida doméstica, com suas próprias tarefas, e que alguns até

mesmo eram figuras públicas.

Este, porém, é um outro tipo de silêncio, diferente daquele tratado por Lima Barreto,

e que se abaterá apenas sobre as famílias dos alienados. A partir do recenseamento de 1890,

em que os alienados emergem como categoria defeituosa, outros textos farão menção de sua

existência incômoda, e transbordará nos ofícios, relatos e relatórios policiais, pelas desordens

que provocam nas ruas, nas atitudes estranhas, na explosão enfurecida, e que servirão de

justificativa para sua interdição pela polícia.

176 Essas são as expressões populares empregadas em Cuiabá na atualidade, pelos cuiabanos quando querem se

referir a algum louco. No jornal O Comércio, de 21/04/1910, encontramos uma piada de época sobre as touradas cuiabanas, onde uma garota se dirige à outra perguntando – Otê qui ocê tá falando, bobó?

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É ainda Lima Barreto, quem nos vai apresentar a visão de alguns sobre a atuação da

polícia: “Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão

da polícia na minha vida”.177

Entretanto, eventualmente, a “intromissão” da polícia era solicitada pela própria

população para resolver casos corriqueiros, conforme noticiou o jornal O Comércio, sobre um

episódio envolvendo dois vizinhos e um mourão178, e que demonstra que a população já

estava inserida numa nova ordem, a ordem da disciplina.

No mesmo periódico, em outras datas, a polícia é advertida a “cumprir” o seu papel:

Pedem-nos para que reclamemos do Sr. Desembargador Chefe de Polícia, providências no sentido de evitar-se que indivíduos desocupados, em turmas e aos magotes alta noite, continuem a praticar toda a sorte de desordens e atentados, disparando tiros, pedradas e danificando casa particulares e edifícios públicos.

Contra tais indivíduos dos quais alguns se apresentam vestidos de saia, urge a aplicação rigorosa do devido corretivo [...]179

Em outro episódio, o redator do mesmo jornal, não apenas chama a atenção da

polícia sobre os desordeiros, como determina a esta autoridade o que fazer:

Freqüentemente indivíduos de má nota divertem-se em perturbar o sossego público dando tiros de carabina e revólver às dez horas.

Ainda anteontem, pelas duas horas da madrugada, muitos tiros foram dados para o lado do Rosário e do cemitério.

À polícia cumpre deitar a mão a esses vagabundos, fazendo-os assinar termo de bem viver.180

177 BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos. p. 33. 178 Jornal O Comércio. Década de 1910. Na matéria, o redator parabeniza a postura da autoridade policial, “que

não se deixou sugestionar pela prática, entre nós muito comum, da polícia intervir em assuntos para o qual não tem em absoluto competência” Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.

179 Jornal O Comércio, 30/06/1910. Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT. 180 Jornal O Comércio, 26/05/1910. Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.

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Por estes episódios, é possível inferir que, para a população, a ordem pública e

disciplina no início do século XX já se apresentam como dimensões desejadas da vida urbana;

podemos observar, em uma outra escala, a disciplinarização progressiva, em que o cidadão já

incorporou a idéia de cidade disciplinada e, portanto, está mergulhado na nova ordem,

sabendo muito bem quando e a quem recorrer ao constatar desordens e indisciplinas. As

intervenções da polícia já não eram mais compreendidas como intromissão, desde que se

restringisse a estas questões e, sobretudo, às ocorrências do espaço público. Quando, porém, a

polícia civil adentrava o interior de outras instituições, como foi o caso de um episódio

envolvendo as polícias civil e militar, isso provocava algumas rusgas no interior do aparelho

estatal, demonstrando que os conflitos sobre os campos de atuação não se restringiam àqueles

provocados pela arrogância do saber médico, tido como superior à polícia Foi isso que

ocorreu em Cuiabá, quando o chefe de polícia determinou o desligamento de um soldado do

Batalhão de Polícia Militar, alegando estar o mesmo apresentando indícios de sofrimento

mental. Na ocasião, o comandante do Batalhão não titubeou em recorrer ao Regimento para

lembrar ao chefe de polícia os limites de sua atuação181 .

Os conflitos entre as polícias militar e civil se manteriam no início do século

seguinte. Segundo Ribeiro,

[...] no início do século XX a polícia já exercia as funções administrativas e judiciárias que, teoricamente, são bastante distintas. Naquela época havia a polícia militar — que deveria acumular apenas as funções judiciárias — e a polícia civil, que deveria se limitar a exercer as funções administrativas. Na prática, além de estarem em constante disputa de autoridade e competência, as duas polícias acabavam exercendo as duas funções indistintamente182.

181 Quartel do Comando da Companhia Policial Cuiabá, 2 de março de 1891 - do Capitão Comandante

José dos Santos Ferreira. Of. N.º 81. APMT. 182 RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade (...) p. 36-37.

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Conflitos à parte, o certo é que a polícia estendeu seu raio de ação para todos os

lugares. Cuidando dos vivos e dos mortos, zelando pelo estabelecimento da ordem, fosse por

meio de instruções, portarias ou decretos, ou qualquer outro instrumento disciplinador.

Segundo Amaral, a “disciplina penetrara no exército, nas escolas, nas reflexões sobre tática,

na aprendizagem, na educação e na ordem das sociedades”183.

A população, por sua vez, foi o seu grande alvo, e se nem todos se submeteram à

disciplina, não foi por falta do uso de tecnologia de poder, nem por ignorarem a

multiplicidade de tipos existentes. A preocupação com a população não obedeceu a nenhum

apelo humanitário e, sim, à sua importância para o fortalecimento do Estado. Por essa razão,

“todos os fenômenos a ela relacionados vão se constituir em objetos para o saber e alvos para

a relação de poder. Saúde, longevidade, natalidade, atitudes, produção, fertilidade, etc, serão

objetos das mais variadas técnicas e de intermináveis campanhas”184.

É Foucault quem nos demonstra que, ainda que o problema da população não seja

novo nas sociedades ocidentais, o século XVIII, na Europa, possibilitou sua generalização e

sua politização. No Brasil, um século depois, vemos que um poder sobre a vida, em seus

fenômenos de conjunto, passa a ser exercido, enquanto antes havia somente descontínuas

incitações para modificar uma situação pouco conhecida. Há a aplicação de novos tipos de

saber e aparelhos de poder permitindo a manipulação e a intervenção direta na população, o

que se constitui como particularidade do final do século XIX. Emergência de novos tipos de

saber e poder, que Foucault denomina de tecnologia biopolítica. Tecnologia da observação e

do exame das populações, nascimentos, óbitos, medição estatística, mapeamento dos

fenômenos, ou seja, tudo que possa ocasionar uma subtração de forças da população e,

conseqüentemente, do Estado.

183AMARAL, Maurilia Valderez Lucas do. Constituição do sujeito, governamentalidade e educação. 1998.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Instituto de Educação, UFMT, Cuiabá. p. 44. 184 Ibid., p. 56.

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Percebe-se, então, o desenvolvimento de um poder em que a preocupação recai sobre

a saúde da população, que privilegia o prolongamento da vida tanto quanto mais for possível e

sempre mais desejável. Afastando todos os acidentes, corrigindo suas incapacidades.

Poder este que serviu de base para a construção da nação e afirmação da burguesia como classe dominante. A sexualidade, o racismo, a degenerescência, a medicina, a norma e a família são analisadas como dispositivos privilegiados que possibilitam seu exercício na trama mais tênue da sociedade.185

É assim que chegamos ao conceito de biopoder, elaborado por Foucault, e que pode

ser mais bem compreendido nas suas palavras:

Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação de outro186.

As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização sobre a vida187.

A aplicação de tais tecnologias implicará, ao Estado, lançar mão de outros agentes,

além da polícia, para regular e controlar as populações, desenvolvendo um conjunto de

técnicas de poder direcionadas aos indivíduos. É nesse contexto que vemos o saber médico —

além de outros não menos importantes, mas que não interessam neste trabalho —

desempenhar seu papel, e é sobre suas práticas que visam à higienização da cidade e sua

população que vamos tratar no próximo capítulo.

185 CALIMAN, Luciana Vieira. Dominando corpos, conduzindo ações: Genealogia do biopoder em Foucault.

Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva). 2001. Instituto de Medicina Social. Rio de Janeiro, UFRJ. Disponível em <www.pepas.org.com>.

186 FOUCAULT, Michel. Aula do dia 17 de Março de 1976. In: Em defesa da sociedade. Martins Fontes. São Paulo. 2002. p. 302.

187 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal.1999. v. I, p. 131.

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3 A CIDADE HIGIENIZADA

Sete dias de viagem e o paquete Rio Verde188 finalmente atraca no cais do Porto. Algumas

pessoas se aproximam, mas apenas o Chefe de Polícia sobe na embarcação. Conversa com o Comandante

e logo outro homem embarca também. É um médico. O Comandante informa os passageiros sobre a

inspeção de saúde. Medida desagradável, mas necessária, sobretudo por causa dos boatos de alguns casos

de varíola em Corumbá189. O médico inspeciona primeiro a tripulação e depois seus passageiros. A

presença das autoridades funciona como uma espécie de barreira, chamada pelos governantes de cordão

sanitário, que impede a saída e entrada de qualquer pessoa suspeita de contaminada dos vapores,

lanchas e chatas. Sinal de civilização, até parece o Rio de Janeiro... Lá fora, a cidade. Mas, da

embarcação, a única vista possível é a do Porto, espécie de pórtico da cidade, já que o rio é sua estrada

e o cais, parada obrigatória para todos os que chegam a Cuiabá. O Porto é um lugar mutante. De dia, o

ritmo frenético das trocas, movimento intenso, barulho... As pessoas cruzam os arcos do Mercado do

Peixe, um belo edifício neoclássico, carregando tudo quanto é tipo de mercadoria, inclusive o próprio

peixe, pescado ali mesmo, na barranca do rio Cuiabá ou em algum outro ponto de pesca do mesmo rio.

Nas imediações do mercado, as ruas estão enlameadas, bem diferentes daquelas do primeiro distrito,

calçadas com pedra cristal190, e que, quando molhadas, sob a luz do crepúsculo, adquirem a aparência de

pé-de-moleque recém saído dos fornos de fundo de quintal. Mas no Porto, com as chuvas, as ruas

parecem mesmo melado mole, circundando as casas de moradia, algumas tavernas e bolichos191. As

construções maiores e mais novas são, na sua maioria, filiais das casas comerciais de Corumbá e Cáceres.

No interior destas, homens de negócio, trajados com “smartismo”192, evidenciam a prosperidade da

atividade. Começa a escurecer. As portas das lojas são fechadas e o movimento desaparece. É como se a

escuridão tragasse de uma só vez o barulho, o movimento, as pessoas. O Porto da noite é um outro Porto.

Ás vezes, alguma sombra sugere a presença de alguém, mas quem se atreve a perambular em lugar tão

escuro e silencioso? Um ladrão? Um vagabundo? Ou um louco? Os postes de iluminação não passam de

enfeite dos tempos modernos, já que, desde que foram instalados, nunca funcionaram plenamente193 —

se bem que, nas principais ruas do primeiro distrito, a famosa iluminação elétrica mal dá conta de

188 “O viajante que partia de Corumbá, com destino à Capital da Província, encontrava como alternativa de

empresa a Cia. Lloyd Brasileiro [...] Normalmente, a duração dessas viagens era de seis a sete dias, podendo levar até doze, caso o Rio Cuiabá apresentasse baixo volume de água.” In: REYNALDO, Ney Iared. Comércio e navegação no rio Paraguai (1870-1940). Cuiabá: Editora UFMT, 2004. p. 109.

189 Ofício do Inspetor de higiene Dr. Dormevil José dos Santos Malhado ao Presidente do Estado de Mato Grosso, em que informa a existência de dois casos de varíola em Corumbá. 07/12/1891. Caixa - 1891 - Maço: Inspetoria de Higiene. Fundo: Saúde/ APMT.

190 No final do século XIX e início do XX, as ruas do primeiro distrito de Cuiabá receberam o calçamento de pedra cristal. Lata 1911. APMT.

191 Pequeno comércio varejista, existente até hoje em Cuiabá, sobretudo nos bairros mais antigos, onde se podem encontrar produtos variados.

192 Expressão inglesa utilizada para atribuir elegância ao vestuário. 193 As reclamações sobre a falta de iluminação nos arredores de Cuiabá aparecem com freqüência nos periódicos

locais da época, a exemplo da nota publicada na edição do dia 5/5/1910, pelo Jornal O Comércio, que diz o seguinte: “a falta de iluminação tornam-nas (as ruas) intransitáveis a noite, a menos que o transeunte não se arrisque a uma queda”. Microfilme Jornal O Comércio - Rolo 60. NDIHR/UFMT.

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79

iluminar mais do que um metro além do poste. Alguém já sugeriu o retorno da iluminação a óleo de

peixe, mas dizem que quem pensa assim não quer o progresso. O silêncio do lugar só é quebrado pelo

barulho irritante dos mosquitos, que parecem reinar absolutos nas margens do rio em época de cheia.

Aliás, muito mosquito acaba sendo um bom aviso para a navegação: sinal de que o rio continua enchendo.

O único movimento que ainda persiste no Porto da noite é o do paquete. O Chefe de Polícia e o médico

encerram, satisfeitos, o trabalho, afinal não há ninguém doente, e se despedem do Comandante. A

embarcação está liberada, finalmente os passageiros poderão pisar em terra firme... Um alívio para

quem retorna para casa, para os que vieram a negócios ou ainda para aqueles que vêm embalados pelo

sonho de progresso, de fazer fortuna na terra que tudo dá e onde só faltam braços...

∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗

Homem de ciência, é só ciência.

Nada o consterna fora da ciência.

Simão Bacamarte, 1882194

Não eram apenas pessoas e mercadorias que desembarcavam no cais do Porto de

Cuiabá, em fins dos oitocentos, após a famigerada Guerra do Paraguai. Das embarcações,

chegavam modas de todos os tipos e gostos. Desde aquelas que podiam ser vistas em dias de

festa nos trajes apurados das moças, senhoras, rapazes e homens; ou nos detalhes das novas

edificações: uma escada, um guarda-corpo de ferro trabalhado, um belo lustre, ou até algum

móvel; ou ainda nos azeites e outras iguarias que chegavam do Velho Mundo e forneciam

certa sofisticação aos jantares e almoços das famílias abastadas, em dia de comemoração. Mas

é outra a moda de que nos interessa tratar. A moda que aportou também em Cuiabá era a

ciência.

Falo em moda, porque a ciência não chegava em formato de teses ou artigos; ela

vinha mesmo na forma fast food, pronta para o consumo, embalada em manuais e conselhos,

rapidamente publicados nos inúmeros periódicos locais, aparentando uma aplicabilidade

194 Citado em SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças.

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80

imediata, uma aceitação sem reservas, ou ainda uma ânsia de ficar em dia com mais um signo

do progresso. Decididamente, a ciência estava chegando a Cuiabá.

Segundo Lilia Schwarcz,

[...] no caso brasileiro, a sciencia que chega ao país em finais do século não é tanto uma ciência de tipo experimental [...] O que aqui se consome são modelos evolucionistas e social-darwinistas originalmente popularizados enquanto justificativas teóricas de práticas imperialistas de dominação195.

É ainda Schwarcz que complementa:

Nas grandes cidades a entrada desse ideário cientificista difuso se faz sentir diretamente a partir da adoção de grandes programas de higienização e saneamento. Tratava-se de trazer uma nova racionalidade científica para os abarrotados centros urbanos, implementar projetos de cunho eugênico que pretendiam eliminar a doença, separar a loucura e a pobreza196.

Mas que práticas saneadoras e higienizadoras foram adotadas em Cuiabá na primeira

República? De que forma essas práticas estavam articuladas com o projeto civilizatório?

Sobre quais idéias essas práticas estavam alicerçadas? Quando a loucura ou o louco passa a

ser um problema médico psiquiátrico? Quais as condições de possibilidades históricas disso?

Quais foram os dispositivos discursivos e não discursivos adotados?

É sobre essas questões que iremos tratar neste capítulo, que está dividido em duas

partes. Na primeira, abordaremos as práticas de higienização e saneamento adotadas na

capital, sobretudo aquelas que tratam das endemias, contidas nos relatórios, mensagens,

ofícios, atestados e alguns periódicos. A problemática da loucura, por sua vez, será tratada na

segunda parte.

195 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. (1870-

1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 30. 196 Ibid., p. 34.

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81

Em Cuiabá, o programa de higienização e saneamento foi adotado com certa

dificuldade e muitas resistências, considerando-se que nem toda “novidade” foi bem recebida

pelos cuiabanos. Nada que se compare, é claro, ao episódio de repúdio à vacinação no Rio de

Janeiro, no início do século XX, que ficou conhecido como Revolta da Vacina197.

A preocupação sanitária, em fins do século XIX, muda de direção. Desloca-se o

olhar das famosas epidemias — os chamados “dramas temporários da morte multiplicada” —

para o problema da morbidade, ou ainda para o problema das endemias, conceituada por

Foucault como

[...] a forma, a natureza, a extensão, a duração, a intensidade de doenças reinantes numa população. Doenças mais ou menos difíceis de extirpar e que não são encaradas como as epidemias, a título de causas de mortes mais freqüentes, mas como fatores permanentes — e é assim que as tratam — de subtração das forças, diminuição do tempo de trabalho, baixa de energia, custos econômicos, tanto por causa da produção não realizada quanto dos tratamentos que podem custar. Em suma, a doença como fenômeno de população198.

Trata-se, nesse momento, do aparecimento de uma nova tecnologia de poder, não

mais centrada no corpo ou no corpo individual, como foi o caso da técnica de poder

disciplinar. Essa nova tecnologia não exclui a técnica disciplinar — sobre a qual já tratamos

no capítulo anterior —, mas a embute por várias razões, sobretudo porque a nova tecnologia é

“de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por

instrumentos totalmente diferentes”199. Essa nova técnica de poder não-disciplinar se aplica à

vida dos homens, à multiplicidade dos homens, não do homem-corpo, como foi o caso da

disciplina, mas do corpo espécie, sujeito a todo tipo de processos próprios da vida, como o

nascimento, a morte, a doença etc. Ou, se preferirem, não se trata mais da anatomopolítica do 197 Cf., a respeito da Revolta da Vacina, SEVCENCKO, Nicolau. A Revolta da vacina. Mentes insanas em

corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 1993. 198 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 290-291. 199 Ibid., p. 289.

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corpo humano, como tinha sido na Europa, em fins do século XVIII, mas, sim, de uma

biopolítica da espécie humana. Tecnologia esta que foi denominada por Foucault como

biopoder.

Natalidade, mortalidade, longevidade, juntamente com os problemas políticos e

econômicos, são, provavelmente, segundo Foucault, os primeiros objetos de saber e os

primeiros alvos de controle dessa biopolítica.

Nessa perspectiva, as medições estatísticas adquirem extrema relevância200 — daí,

mais uma vez, a importância do recenseamento urbano de Cuiabá em 1890 —, mas não

apenas elas: o mapeamento dos nascimentos, os atestados médicos que informam sobre o

estado de saúde dos trabalhadores civis e militares, as inspeções de higiene. E, ainda, o

registro de enfermidades, a detecção de anomalias diversas. É também sobre esse conjunto de

fenômenos que vemos a intervenção da biopolítica.

O leque de endemias existentes em Cuiabá no período compreendido entre 1890 e

1929, e que as autoridades pretendiam eliminar, era consideravelmente variado: a temida

varíola, a sífilis, a febre amarela, a tuberculose, a ancilostomíase, a gripe, entre outras. Essas

endemias vão exigir do Estado

[...] a introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior de higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da informação, de normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de medicalização da população201.

200 Isso não significa que, em Mato Grosso, o serviço de estatística estivesse funcionando plenamente. A esse

respeito, o Governador Pedro Celestino, em 1909, propôs a criação de uma seção especial de estatística a cargo do Tesouro do Estado, sob o seguinte argumento: “O subsídio que a estatística presta a economia política, e sem a qual não pode haver sistematização segura do comércio, industria e da higiene”. Disponível em < www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

201 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 291.

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Nos “combates” a tantos males, os médicos desempenharam um papel fundamental,

e, paulatinamente, foram sendo inseridos nos programas de saneamento adotados pelo

Governo do Estado, através da Inspetoria de Higiene Pública202. Mas a medicina não atuava

de forma autônoma; volta e meia os médicos requeriam o auxílio do chefe de polícia para

exercer sua atividade, a exemplo das inspeções sanitárias nas embarcações oriundas de

Corumbá e de outros lugares, principalmente quando havia suspeita de doença.

Mas não somente as endemias, a natalidade, as incapacidades biológicas diversas e a

mortalidade serão visadas pelo biopoder, que as elegerá como seu primeiro campo de saber e

domínio, já que muitos outros virão, no decorrer do século XX. A preocupação se voltará,

também, para as relações entre a espécie humana e o seu meio,

[...] sejam os efeitos brutos do meio geográfico, climático, hidrográfico: os problemas, por exemplo, dos pântanos, das epidemias ligadas a existência dos pântanos durante toda a primeira metade do século XIX. E, igualmente, o problema desse meio, na medida em que não é um meio natural e em que repercute na população; um meio que foi criado por ela. Será essencialmente, o problema da cidade203.

No conjunto desses domínios sobre os quais a biopolítica vai extrair seu saber e

definir o campo de intervenção de seu poder, Foucault observa algumas coisas importantes. A

primeira é o aparecimento de um novo elemento — a população — como problema a um só

tempo científico e político. A segunda é a natureza dos fenômenos, posto que estes

repercutirão na economia e na política e só se tornam pertinentes no nível da massa. E a

terceira coisa importante, segundo Foucault, é a implantação, pela biopolítica, de mecanismos

que têm certo número de funções muito diferentes que eram dos mecanismos disciplinares.

202 A Lei nº 18 de 09/11/1892 estabeleceu o serviço de higiene pública a cargo de um Inspetor Geral e de

Delegados, nos municípios de Mato Grosso. Indicador das Leis e decretos do Estado de Mato Grosso. (1890-1935). APMT.

203 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 292.

Page 94: A Cidade e a Loucura

84

Inserem-se aí as previsões, as medições estatísticas, as medições globais, usadas não para

mudar um determinado fenômeno ou um indivíduo, mas, sim, intervindo naquilo que são as

determinações desses fenômenos no que ele tem de global, diminuindo a morbidade e

prolongando o tempo de vida das populações, por meio do estabelecimento de mecanismos

reguladores globais, em que pese sobre os indivíduos, não uma disciplina, mas uma

regulamentação. Essa nova tecnologia política não se volta mais, como a disciplina, apenas

para o corpo, mas também para a vida; uma tecnologia onde os corpos são recolocados nos

processos biológicos do conjunto.

No aspecto sanitário, a capital mato-grossense era um caldeirão de problemas,

principalmente se considerarmos a teoria dos miasmas204, tão em voga à época. Nos relatórios

produzidos pela Inspetoria de Higiene, as críticas versam, em sua maioria, sobre o grande

número de buracos de tamanhos variados que “atravessam certas ruas desta cidade”, sobre a

recusa de parte da população em seguir o conselho do Inspetor de desinfetar as “águas

servidas e putrefatas antes de terem saída para a rua”205 e, ainda, sobre a aparência, ou a falta

de higiene visível no espaço público da cidade. Aliás, a sujeira era outro item que constava

das reclamações dos Inspetores de Higiene, que considerava:

[...] o serviço de asseio e limpeza da Capital é quase nulo, porque além de ser costume antigo do povo mandar depositar nas margens do córrego da Prainha e na maior parte das travessas todo lixo que diariamente junta em suas casa, a própria carroça contratada com a Intendência para esse fim, deposita também nas mesmas margens da Prainha um pouco adiante do quartel da polícia quanto de imundície apanha nas ruas.

Ora, atravessando este córrego toda a extensão da cidade e achando-se suas margens sempre imundas certamente as exalações que dali se desprendem tornam-se [...] prejudiciais a salubridade pública, havendo, portanto, urgência em mandar limpá-las e não mais permitir que se deposite lixo nessas passagens, a fim de evitar novas visitas de febres diversas e de epidemias que possam aparecer e desenvolver-se repentinamente.

204 Emanação mefítica oriunda de animais ou plantas em decomposição. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de

Holanda. Dicionário da língua portuguesa. p. 920-921. 205 Relatório da Inspetoria de Higiene Pública. Cuiabá, 5 de Outubro de 1897. Caixa: 1897. Fundo : Saúde.

Maço: Inspetoria de Higiene Pública. APMT.

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85

Convém pois afastar do centro da cidade todos os focos de miasmas deletérias que viciam a atmosfera, proibindo-se a criação de porcos dentro da cidade206.

Nos relatórios, além das queixas contínuas sobre o estado sanitário da cidade, o

hábito das pessoas de lançarem às ruas as águas servidas, o lixo e os animais mortos; as

críticas voltam-se para a má localização do matadouro, para os animais soltos pelas ruas, as

edificações mal ventiladas e a ocupação espacial da cidade. Nesse aspecto, os médicos atuam,

até a primeira metade da década de 1920, quase como urbanistas, redesenhando o espaço

citadino e as ideais condições dos seus equipamentos. Nos ofícios, por sua vez, temos uma

maior riqueza de detalhes a esse respeito, se comparados aos relatórios, como o que tratou da

construção do Matadouro Público, onde o Dr. Dormevil José dos Santos Malhado traz ao

Presidente do Estado a seguinte recomendação:

São condições indispensáveis para estabelecer Matadouro: Edificá-los o mais distante possível dos centros populosos ou mesmo fora da cidade, isolá-los e colocá-los em uma posição elevada, cercá-lo de altos muros e estes de árvores que, pelo seu crescimento façam uma espécie de barreira infranqueável aos miasmas que possam desenvolver-se, dar-lhes bastante ar e provê-los de água em abundância para fazer-se grandes e freqüentes lavagens.

O Matadouro inaugurado nesta Capital está longe de satisfazer as citadas condições, podendo por isso tornar-se um foco de infecção para os habitantes da rua do Conde d’Eu, do Beco Quente e para os que fazem o seu comércio na circunvizinhança do vale. Em vista do exposto peço a V. Excia para determinar, com urgência, a mudança de Matadouro para além da casa do Acampamento Couto de Magalhães, próximo as barrancas do rio ou outro qualquer ponto que ofereça iguais ou superiores vantagens, pois assim se prevenirão grandes males, que, necessariamente, provirão de uma alteração na saúde pública207.

206 Relatório da Inspetoria de Higiene Pública. Fundo Saúde. Caixa 1898. Maço: Inspetoria de Higiene Pública.

APMT. 207 Ofício do Inspetor de Higiene Dr. Dormevil J. dos S. Malhado ao Presidente do Estado. Cuiabá, 10 de

Dezembro, 1891. Fundo: Saúde. Caixa: 1891. APMT.

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Na relação homem e seu meio, temos assim uma grande lista de problemas a serem

resolvidos, ou pelo menos mitigados, como o reordenamento do espaço urbano, obras de

saneamento, serviço regular de coleta de lixo, abertura e alargamentos de ruas, construções de

novos equipamentos, como o Mercado Municipal, entre outros. Na regulamentação sobre as

populações frente às endemias, as medidas compreenderam desde campanhas educativas,

distribuição de medicamentos, exames médicos até medidas impositivas que “afetavam” o

corpo do indivíduo, como foi o caso da vacinação obrigatória.

A varíola, no final do século XIX, ainda provocava muitas mortes, mas, ao que tudo

indica, a prática periódica de vacinação e revacinação, além do isolamento e desinfecção dos

domicílios onde a doença fosse detectada, teve como resultado o desaparecimento gradual da

doença. A última epidemia de varíola, no período 1890–1929, ocorreu no governo de

Generoso P. L. de S. Ponce, em 1907, e atingiu os municípios de Corumbá, Cáceres,

Livramento Diamantino, Brotas, além da capital. Nesta cidade, criou-se um hospital208, nas

dependências da Santa Casa de Misericórdia, onde os doentes foram submetidos aos cuidados

dos médicos civis e militares. Instalava-se assim, na capital, uma espécie de operação de

guerra — a cidade ideal: a cidade em estado de peste — por meio de sua divisão em diversas

zonas e a designação de comissões de saúde (uma para cada zona), que tinham a incumbência

de identificar os doentes e transferir os indigentes para o hospital. O fim da epidemia também

foi o fim desse hospital de isolamento209.

Sobre a vacinação da população urbana, vejamos o que informou o Dr. José Marques

em relação ao ano de 1897:

208 A denominação hospital foi utilizada pelo Presidente do Estado de Mato Grosso, Generoso Ponce,

provavelmente para distinguir esse local, onde os infectados pela varíola receberiam atendimento médico, das demais dependências da Santa Casa de Misericórdia, cuja administração estava a cargo de irmãs religiosas e que tinha muito mais um caráter assistencialista do que médico-terapêutico.

209 Mensagem do Presidente de Estado Generoso P. L. de S. Ponce à Assembléia Legislativa. 1908. Disponível em <http//www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

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O povo geralmente falando não está convencido da grande utilidade da vacina, e só a procura nos casos extremos como aconteceu ultimamente, quando alguns indivíduos levianos trataram de espalhar que havia varíola em uma das casas da Boa Morte: assim é que, atemorizados com o boato, começou o povo a afluir em maior número a procura de vacina210.

O medo da morte, prenunciada pela notícia de casos de varíola e da corrida à

vacinação, era compreensível, afinal, a epidemia de 1867 ainda estava fresca na memória da

maioria da população cuiabana. Notícia de varíola, fosse ela boato ou não, significava risco de

morte, mas era apenas sob essas condições que a “população” procurava a vacina, o que a

transformava em ação isolada e pontual, totalmente desvinculada de outras práticas, ainda que

o serviço de vacinação funcionasse com regularidade, todas as quintas-feiras, sem

interrupção211.

A vacina ou linfa vacínica utilizada em Cuiabá era, majoritariamente, oriunda do

Instituto Vacínico do Rio de Janeiro, mas inúmeras foram as reclamações do Inspetor de Mato

Grosso a respeito da má qualidade da vacina. A esse respeito, a denúncia formulada pelo

Inspetor de Higiene, Dr. José Marques da Silva Bastos, baseava-se tanto na demora no

transporte da mesma, quanto na data de sua fabricação212. O Diretor do Instituto Vacínico

Municipal do Distrito Federal, Barão de Pedro Afonso, todavia, rejeitou prontamente a

denúncia:

Tenho a dizer-vos que a nossa vacina continua a ser preparada e distribuída com o máximo cuidado, dando resultados excelentes por toda a parte. Conquanto acredite que haja alguma outra causa para o insucesso apontado, entretanto vamos ter especial cuidado remetendo para Mato Grosso vacina preparada no mesmo dia ou na véspera da saída do Vapor213.

210 Relatório da Inspetoria de Higiene Pública. Caixa 1897. Fundo Saúde. APMT. 211 Ofício do Dr. Dormevil José dos Santos Malhado ao Presidente do Estado. Cuiabá, 7 de Dezembro de 1891.

Fundo: Saúde. Caixa: 1891. Maço: Inspetoria de Higiene. APMT. 212 Ofício do Inspetor de Higiene Dr. José Marques da S. Bastos ao presidente do estado. Cuiabá, 12 de Maio de

1896. Fundo: Saúde. Maço: Inspetoria de Higiene. Caixa: 1896. APMT. 213 Oficio nº 508 do Diretor Geral da Secretaria de Justiça e Negócios Interiores Barão de Pedro Afonso ao

Presidente do Estado de Mato Grosso. Fundo: Saúde. Maço: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Caixa: 1896. APMT.

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Apesar das promessas do Barão, o problema se manteve inalterado por um bom

tempo, se considerarmos que, em 1904, o Inspetor de Higiene de Mato Grosso não só criticou

a péssima qualidade da vacina produzida no Rio de Janeiro, como também recomendou ao

Presidente do Estado a aquisição de tubos de linfa vacínica do Rio Grande do Sul, da

Argentina e do Paraguai214.

Para proceder à vacinação, o saber médico agenciará outros dispositivos, sobretudo

aqueles que mantêm uma relação mais estreita com determinados setores da população, como

é o caso das escolas. A matrícula dos alunos na capital de Mato Grosso passa a ser

condicionada à emissão de atestados assinados pelos professores informando se o aluno foi ou

não vacinado, e se era, ou não, portador de moléstia contagiosa215. Mas, aos poucos, essa

medida caiu em desuso e só voltou a ser aplicada em 1923, como reprimenda do poder

público aos estudantes da capital que relutaram em ser vacinados, em 1922216. É certo que

essa não foi a primeira vez que os estudantes se rebelaram contra a vacinação. Em 1918, o

Inspetor de Higiene Dr. Mario Corrêa recorreu ao Secretário do Interior, Justiça e Fazenda,

Dr. Benito Esteves, para que este tomasse alguma providência contra as alunas do 4º e 5º ano

da Escola Modelo, que se mostraram refratárias à vacina. Desconhecemos, entretanto, qual a

providência tomada pelo Secretário217.

Quanto aos funcionários civis da União, estes passam a ter a respectiva saúde

examinada pelo Inspetor de Higiene, a partir de 1896, por determinação do Ministério do

Interior, Justiça e Negócios Interiores218, e é para a Inspetoria de Higiene que são

encaminhados os atestados médicos juntamente com os pedidos de licença de saúde 214 Ofício nº 6 do Inspetor de Higiene Dr. José Marques da S. Bastos ao Presidente do Estado Cel. Antonio Paes

de Barros. Cuiabá, 28 de Junho de 1904. Fundo: Saúde. Maço: Inspetoria de higiene. Caixa: 1904. APMT. 215 No Maço: Instrução Pública. Caixa 1892. Há inúmeros atestados de alunos solicitando matricula nas escolas

da capital, assinados pelos professores e encaminhados ao Inspetor escolar. APMT. 216 Mensagem do Presidente de Estado Pedro Celestino Corrêa da Costa. Ano: 1923. Disponível em

<http//wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>. 217 Ofício nº 77 de 16/8/1918. Livro de Registro de Ofícios da Inspetoria de Higiene. Livro II. APMT. 218 Ofício nº 5. Cuiabá, 28 de Novembro de 1896. Fundo: Saúde. Caixa: 1896. APMT.

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temporária ou afastamento definitivo dos funcionários. As doenças que constam

majoritariamente nesses atestados são incômodos nervosos, hemorróidas, anemia, tuberculose

pulmonar, epilepsia (considerada doença incurável e transmissível) e alcoolismo219.

Mapas de mortalidade, com detalhamento sobre causa mortis, passam a ser

confeccionados com regularidade a partir da década de 1910 e constam da maioria das

mensagens presidenciais, mas, antes mesmo de ocorrer a sua produção, é comum

encontrarmos, nas referidas mensagens, o registro do aparecimento de alguma endemia ou

epidemia na capital e também nos municípios do interior, como também as medidas adotadas

pelo Poder Público, principalmente em caso de epidemia.

As doenças causadoras dos maiores índices de morte do período (1890–1929)

sofreram algumas variações. No final do século XIX, ainda era a varíola, enquanto no século

XX, cede-se lugar às afecções do aparelho digestivo e à peste branca220. Não que a incidência

de tuberculose em Cuiabá fosse muito alta221, como em São Paulo ou no Rio de Janeiro222,

mas um caso isolado que fosse era motivo de preocupação tanto dos governantes como das

autoridades sanitárias; afinal o que estava em jogo era a vida da população.

E se a morte ceifava a vida de uma só vez, as endemias possuíam uma ação lenta, mas

devastadora, roubando as forças e diminuindo a capacidade de produção. Destas, a

ancilostomíase foi a que se multiplicou com maior voracidade em Cuiabá e nas cidades do

interior. Esse tipo de verminose era popularmente conhecido como “opilação”, e produziu,

nessas localidades, nas primeiras décadas do século XX, um grande número de opilados, que

219 Os atestados médicos estão arquivados nas inúmeras caixas do Fundo Saúde. APMT. 220 Peste branca: assim que era tratada a tuberculose na Primeira República. 221 À exceção do ano de 1925. Segundo o Governador Dr. Mario Corrêa da Costa, “a tuberculose pulmonar é a

maior devastadora humana, fazendo mais vítimas do que a verminose, a gripe, o alcoolismo e a sífilis reunidas”. In: Mensagem de Presidente de Província – MT. Disponível em <http//wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>.

222 Segundo Lilia Schwarcz, “de 1868 a 1914, tinha ocasionado 11.666 óbitos, número que transformava o Rio de Janeiro na cidade com maior incidência de casos de tuberculose em nível mundial”. In: O espetáculo das Raças. p. 225.

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levavam a injusta pecha de preguiçosos. Como diria Monteiro Lobato: o mato-grossense não

era preguiçoso; era, sim, doente, o que exigia do Estado a adoção de algumas medidas.

O cuidado com a vida ou, como observou Foucault, o fazer viver – deixar morrer, no

qual se inscreve essa nova tecnologia de poder, o biopoder, que tem essa capacidade de

regulamentação, pode ser visualizado em Cuiabá por meio do conjunto de medidas de

higienização e saneamento adotado pelo Poder Público e também pelos discursos proferidos

por alguns de seus governantes na Assembléia Legislativa, de cujos trechos selecionamos

dois, proferidos em 1901 e 1902, pelo Governador Antonio Pedro Alves de Barros, que

consideramos exemplares:

[...] a vida humana representa por toda parte um capital precioso, confiado à guarda dos governos e que esse capital sobe de preço naqueles Estados, como o nosso, onde a população é escassa e o seu aumento é difícil conseguir por meio da imigração. [...] Jules Rochard, no Congresso de Haia em 1884, afirmou: 1º Toda despesa feita em nome da higiene é economia; 2º Nada é mais dispendioso que a moléstia, a não ser a própria morte; 3º Para as sociedades não há desperdício mais ruinoso do que da vida humana. (1901).

Como obtempera um distinto autor de direito administrativo, é tão atrasado o ponto de vista de Rosseau como o de Spencer, um com a estipulação de seu contrato e outro com a sua aplicação da lei da luta pela existência, quando concluem ambos pela necessidade de abandonar o indivíduo ao seu próprio destino, limitando-se ao Estado o papel de juiz do campo no grande torneio da vida político-social para recolher os mortos e cumprimentar os vitoriosos. Os próprios países onde mais predomina o espírito do individualismo é nomeadamente a Inglaterra que é o tipo clássico do liberalismo mais intransigente, ali estão todos, sem exceção de um só, a alargar cada vez mais a esfera do poder político em todos os negócios da comunhão.223

Os Relatórios dos Inspetores de Higiene, por sua vez, atuavam como uma espécie de

eco dos governadores e forneciam munição a estes, tanto por meio da descrição detalhada do

estado sanitário da capital, principal foco de problemas a ser resolvido nos princípios da

223 Mensagem do Governador Antonio Pedro Alves Barros dirigida à Assembléia Legislativa em 1902.

Disponível em <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

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República em Mato Grosso, como pelo pedido de atenção à saúde, por parte dos

parlamentares mato-grossenses, reivindicando aumento de verbas.

É da maior utilidade que, sem medir nem pesar sacrifícios, os homens do Estado encarem os preceitos e leis higiênicas como um dever social do maior alcance para com a humanidade, proporcionando-lhe todos os meios favoráveis à saúde, convendo portanto que se afastem para longe do centro desta cidade todos os focos de miasmas deletérios que possam produzir afecções ou moléstias de mau caráter.224

São nos ofícios e atestados médicos, muito mais do que em relatórios e mensagens

governamentais, que a prática do saber médico vai se mostrar cotidianamente, revelando as

faces encobertas da cidade, daquilo que este saber pretende sanear, higienizar, eliminar,

separar e regulamentar.

A desinfecção dos domicílios ocupados por alguma pessoa doente era uma medida

adotada desde o final do século XIX. Se, até então, em caso de epidemia, procedia-se à

queima de roupas e utensílios do doente para evitar a propagação da doença225, a partir de

1913, a desinfecção dos recintos, ocupados por infectados, será praticada com maior

regularidade, após a contratação, pela Inspetoria de Higiene, de um capataz e dois

serventes226.

224 Relatório da Inspetoria de higiene Pública. Cuiabá, 5 de Outubro de 1897. Fundo : Saúde. Caixa 1897.

APMT. 225 Neste caso, a doença era a temida varíola. A ultima epidemia que se tem registro na capital mato-grossense,

data do ano de 1907. As vítimas fatais que esta produziu foram sepultadas no cemitério Cai Cai, por ordem do Governador. Ofício do Hospital Provisório do Isolamento ao Presidente do Estado Cel. Pedro leite Osório. Caixa 1907. Fundo Saúde. APMT.

226 Ofício n.º 39 de 08/07/1913 do Inspetor de Higiene Dr. Marinho Rego onde o mesmo comunica ao Governador de Mato Grosso a designação de um capataz e de dois serventes para o serviço de desinfecção. Livro de Registro de Ofícios expedido pela Inspetoria de Higiene. Livro I. APMT.

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Na atenção às ruas, os pedidos dos inspetores dirigidos ao intendente da capital

giram em torno do fechamento de buracos227, do cuidado com as águas servidas e o lixo228.

Alguns ofícios são curiosos, como o que comunica ao intendente da capital a separação de

estricnina para a extinção de cães229.

Além das endemias, dos hábitos considerados atrasados e/ou nocivos à saúde e da

falta de higiene da população, outra questão que afligia os médicos, nos anos 10 do século

XX, era o charlatanismo. Era uma época em que os médicos e farmacêuticos brasileiros

estavam estabelecendo a autoridade do seu saber, argumentando que somente o médico

poderia curar a população doente e que remédio bom era aquele vendido em farmácias

autorizadas pela Inspetoria de Higiene.

A atividade dos charlatães também era considerado um grande problema (ou perigo),

porque o combate a essas práticas clandestinas exigia rapidez nas ações de reprimenda e o

charlatão era um tipo de criminoso que tinha, como uma de suas características, a mobilidade.

Theophilo Rodolfo de Carvalho foi, durante três anos, uma pedra no sapato da

Inspetoria de Higiene e dos médicos e farmacêuticos cuiabanos. Proprietário de um comércio

de drogas medicinais (produtor e vendedor de remédios denominados Disenteria, Opilação e

Peitoral da Vida) e trabalhando sem autorização das autoridades sanitárias na Rua Joaquim

Murtinho, foi acusado de charlatanismo, intimado e multado várias vezes, entre os anos 1915

e 1918. Em 1917, comunicaram a instalação de seu comércio na cidade de Poconé, mas, no

227 Ofício nº 132 de 05/05/1916. Do Inspetor de Higiene ao Intendente da Capital, em que solicita providências

no sentido de obstruir um bueiro existente na Rua Ricardo Franco “dando passagem, não só a imundície como também a matéria fecal”. Livro II de registro de Ofício da Inspetoria de Higiene. APMT.

228 Ofício n.º 49 de 17/04/1917. Do Inspetor de Higiene interino Dr. Caio Corrêa ao Intendente Geral da Capital. “...havendo verificado pessoalmente, que, na rua da Emancipação junto a ponte denominada do “Mundéo” e também da que fica em frente da Travessa do Palácio, se deposita lixo, com manifesta transgressão das regras de Higiene e atendendo a que as duas referidas pontes se acham localizadas na parte mais central da cidade, venho solicitar de V. Excia., as necessárias providências no sentido de ser coibido semelhante abuso...”. Livro II. APMT.

229 Ofício n.º 114 de 20/12/1913, em que o Inspetor de Higiene informa ao Intendente da capital que preservou “cento e cinqüenta doses de strychinina a sete meio centigramas destinado a extinção de cães”. Livro II. De registro de Ofícios da Inspetoria de Higiene. APMT.

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mesmo ano, Theophilo voltaria à cena cuiabana. Seu nome só deixou de aparecer nos ofícios

da Inspetoria de Higiene em 1918, quando o caso foi parar nas mãos da polícia230.

O cuidado com a saúde da população, por sua vez, prescindirá de estratégias

diversificadas. Destas, podemos citar tanto aquelas que ficaram circunscritas a um número

reduzido de pessoas — o incentivo dos intendentes municipais concedido aos munícipes para

a construção de habitações higiênicas231, a distribuição de medicamentos homeopáticos aos

pobres232 e a aquisição de medicamentos alopatas — como também as estratégias de maior

alcance: nesse caso estão incluídos a distribuição de folhetos às famílias das cidades e a

publicação de conselhos de saúde nos jornais locais, em especial na capital. Esses “conselhos”

eram importados de outros lugares; provavelmente vinham do Rio de Janeiro, não só por ser a

capital federal, mas também por sediar a Faculdade de Medicina, cuja política de prevenção,

portanto, de combate às doenças, distinguia-se daquela adotada pelos médicos baianos, que

consideravam que o doente é que estava em questão233. Dos inúmeros conselhos publicados,

Os Dez Mandamentos da Saúde é um dos que abarcam a maior variedade de temas, como

podemos observar:

I. Deves dormir sete a oito horas por noite, tendo um repouso perfeito e uma vida sexual moderada;

II. Deves ser cuidadoso com a tua alimentação de modo que sejam os alimentos puros bem preparados, tomados a horas certas em quantidade suficientes, mas sem exageros

230 Ofícios n.º 28, 51, 55 de 1915; n.º 105, 110, de 1916; n 03, 38, 57, de 1917 e nº 50 e 92, de 1918. No ano de

1916, existem vários ofícios, multas, intimação, apreensão de drogas de Theophilo Rodolfo de Carvalho, que se apresentava como farmacêutico diplomado, apesar de as averiguações comprovarem que ele não era titulado. Livros I e II de Registro de Ofícios da Inspetoria de Higiene. APMT.

231 Resolução n.º 76 de 29/11/1911. Regulamenta por meio de sete artigos a isenção de impostos e a doação de terrenos, para os cidadãos que construírem habitações higiênicas. Lata 1911/D. APMT.

232 Resolução nº 85 de 21/12/1912. Concede “ao cidadão João F. de C. Caldas, o auxilio anual de [...] para a compra de medicamentos homeopáticos que o mesmo senhor vem filantropicamente distribuindo desde muito tempo à população desprovida de recursos, desta capital”. Lata 1912/B. APMT.

233 A respeito da criação das faculdades de medicina no Brasil e as correntes teóricas das faculdades de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, ver o trabalho de Lilia Moritz SCHWARCZ. O espetáculo das raças.

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III. Deves morar em casa bem arejada; em que se evite as poeiras, substituindo o espanador e as vassouras por dispositivos que limpem sem levantar poeira, certo de que uma casa pobre e asseada é melhor para a saúde que uma casa sem asseio;

IV. Deves dormir com a janela do quarto aberta para se dar o renovamento do ar e sua movimentação, não deixando no quarto as roupas usadas, não entrando nele com as botinas sujas de terra e outras coisas existente nas ruas, não cuspindo, nem escarrando no chão;

V. Não deves ter em sua casa cães, gatos, baratas, percevejos, moscas, mosquitos, pulgas e ratos. Usados dos processos aconselhados para acabar com os mosquitos, com as moscas, percevejos e com as pulgas;

VI. Deves cuidar da latrina da tua casa em ordem a estar ela sempre limpa e com água corrente, sendo útil nela por desinfetantes;

VII. Deves evacuar em latrina e não deves andar descalço, pois assim consegue evitar a ancylostomose;

VIII. Deves ter cuidado com a água que bebes, em ordem de serem as caixas lavadas em quinze dias, devendo ser filtradas ou fervidas em épocas de epidemias de febre tifóide e de disenteria;

IX. Deves ter cuidado com as doenças contagiosas evitando-se estar em comum com os doentes vacinando-se e revacinando-se para evitar a varíola, sempre que houver mortandade de ratos em casa, não ficando perto de um tuberculoso que fala, não se expondo a apanhar doenças venéreas, para o que, em ultimo caso, deves usar dos conselhos ministrados pelos dispensários respectivos, não abusando e nem usando de bebidas alcoólicas, não entregando a excesso e nem ao uso de cocaína, ópio e éter e não fazendo as refeições sem lavar as mãos;

X. Deves tomar banho todos os dias, ter uma vida moderada sem afronta as intempéries e observar os mandamentos acima referidos, com o uso dos quais terás boa saúde e forte a descendência. Em suma: ama a higiene sob todas as coisas e a saúde do seu próximo como se fosse a tua própria234.

Nesta espécie de síntese dos conselhos, como podemos designar Os dez

Mandamentos da Saúde, se considerarmos a variedade dos temas e práticas abordados, a

sexualidade aparece também como questão, ou ainda, como observou Foucault, como um

outro domínio do biopoder que, no século XIX, adquire grande importância. Tal importância,

ainda segundo Foucault, prende-se a várias razões, especialmente, “de um lado, a sexualidade,

enquanto comportamento exatamente corporal”, que implica num controle disciplinar de

vigilância permanente (separação de pessoas por sexo no interior da cadeia, escolas e

234 Jornal O Mato Grosso. Edição n.º 1.816, de 22/10/1922. Cuiabá. APMT

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hospitais) e de outro, pelos “seus efeitos procriadores, em processos biológicos amplos que

concernem não mais ao corpo do indivíduo, mas a esse elemento, a essa unidade múltipla

constituída pela população”235.

Corpo e população; disciplina e regulamentação. É na encruzilhada dessas questões

que encontramos a sexualidade, e é sobre os efeitos procriadores decorrentes dela, que vemos

emergir no Brasil, no início do século XX, a produção de discursos que alertam sobre o perigo

da degenerescência — teoria formulada primeiramente por Morel, na França do século XIX,

segundo as palavras de Foucault:

[...] fundamentada no princípio da transmissibilidade da tara chamada hereditária, foi o núcleo do saber médico sobre a loucura e a anormalidade na segunda metade do século XIX. Muito cedo adotada pela medicina legal, ela teve efeitos consideráveis sobre as doutrinas e as práticas eugênicas e não deixou de influenciar toda uma literatura, toda uma criminologia e toda uma antropologia236.

Em 1918, a publicação do artigo Do Conceito de Eugenia no Habitat Brasileiro, de

autoria do Prof. Dr. João Henrique, na revista semanal Brazil Médico237, evidenciava a

preocupação, em voga, da área médica, com as deficiências gerais da população, defendendo

os princípios da eugenia, que tinha como objetivo, segundo o autor,

Conhecer as causas explicativas da decadência ou levantamento das raças, visando a perfectibilidade da espécie humana, não só no que respeita o físico como o intelectual. Os métodos tem por objetivo o cruzamento dos sãos, procurando educar o instinto sexual. Impedir a reprodução dos defeituosos que transmitem taras aos descendentes. Fazer exames preventivos pelos quais se determina a sífilis, a tuberculose e o alcoolismo, trindade provocadora da degeneração. Nesses termos a eugenia não é outra coisa senão o esforço para obter uma raça pura e forte 238.

235 FOUCAUL, Michel. Em defesa da sociedade. p. 300. 236 Ibid., p. 301. 237 Revista semanal vinculada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, publicada pela primeira vez em 1887.

Sobre as tendências da publicação, cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças, a partir da p. 218. 238 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. p. 231.

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Esse tipo de doutrina dividia opiniões no interior da área médica, já que havia, de um

lado, aqueles que defendiam a noção de contágio e, de outro, os que acreditavam na idéia de

infecção, como escreveu Schwarcz:

[...] nota-se aí mesmo que de forma breve, uma tentativa de adaptação dessas noções à realidade local: nesse caso aponta-se a correlação entre imigração e a entrada de moléstias estranhas ao nosso habitat, vinculando assim a doença a determinadas raças imigrantes239.

Por outro lado, estas idéias, ainda segundo Schwarcz, coadunavam com

reivindicações políticas dos acadêmicos da Faculdade de Direito de São Paulo, que buscavam

impedir a entrada no país de imigrantes asiáticos e africanos. Esses jovens intelectuais

acreditavam ser necessário orientar os políticos na seleção das “boas raças”, o que na prática

significava “muita orientação a ser dada”, considerando o grande número de imigrantes que

entrou no país, em fins do século XIX e início do século XX.

Essa postura, a do estabelecimento de uma seleção de raças, nada mais é do que o

retrato do funcionamento do racismo, compreendido aqui não da forma simples e tradicional

do ódio ou desprezo de uma raça por outra, mas, sim, como nos indica Foucault, como

mecanismo do Estado para efetivação do biopoder. Foucault diz que é o racismo,

primeiramente, o mecanismo que opera o corte “entre o que deve viver e o que deve morrer,

[é] uma maneira de defasar no interior da população uns grupos em relação aos outros”. Tem

ainda uma segunda função, exemplificada por Foucault com a frase lapidar: “quanto mais

você matar, mais você fará morrer”, que não pode ser compreendida como uma relação

guerreira, mas de uma maneira que é inteiramente nova e que é compatível com o exercício

do biopoder, já que é uma relação biológica. Nas palavras de Foucault, “A morte do outro, a

239 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. p. 231.

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morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal) é o que vai deixar a

vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura”240.

É sobre as causas da degenerescência em Mato Grosso que, em 1913, o inspetor de

Higiene Pública Dr. Estevão A. Corrêa da Costa vai alertar:

O paludismo, a moléstia de Chagas e várias outras infecções merecem combate [...].

Essas infecções, que muito deprimem o organismo, são a causa do abestardamento da raça que se nota em algumas localidades do Estado, onde os degenerados abundam.

E sem chegar ao extremo dos incapazes físicos e mentais, aos quais o Estado pode e deve dar assistência, há a multidão numerosa dos enfraquecidos, vencidos na luta pela vida, e que levam a pecha de ociosos quando apenas são doentes, representando, como os primeiros elementos de progresso do Estado, que serão perdidos, não sendo tratados241.

Fazer viver, deixar morrer...

É um dever do Estado, ou ainda, é um direito sobre a vida que só o Estado moderno

possui, na mesma medida, ou com o mesmo poder, que anteriormente o soberano dispunha

sobre a morte. Curar enfermidades, intervir nos fenômenos, nem tanto para modificá-los, mas

para regular a sua intensidade. É sobre a vida que o Estado, por meio da articulação

disciplina–regulamentação, vai atuar. E nesse caso, tirar a vida, segundo Foucault,

[...] só é admissível, no sistema de biopoder, se tende não à vitória sobre os adversários políticos, mas a eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado à eliminação do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação da própria espécie ou da raça. A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. Quando vocês têm uma sociedade de normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos em toda superfície e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só

240 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 305. 241 Relatório Anual da Inspetoria de Higiene Pública, relativo ao ano de 1912. Fundo Saúde. Caixa 1913. APMT.

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pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo242.

Tirar a vida aqui, diz Foucault, não é pura e simplesmente assassínio direto, mas tudo

aquilo que pode ser assassínio indireto, como “o fato de expor a morte, de multiplicar para

alguns o risco de morte, ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição,

etc.”243.

Temos aí, um momento em que ganha força um racismo onde se estabelece uma

estreita relação entre a teoria biológica do século XIX — o evolucionismo — e o discurso do

poder. O evolucionismo, ao qual se refere Foucault, é entendido no sentido lato, como o

conjunto de noções como “hierarquia das espécies sobre a árvore comum da evolução, luta

pela vida entre as espécies, seleção que elimina os menos adaptados”, e que se tornou, em

poucos anos do século XIX, uma maneira de pensar várias coisas, dentre as quais, o fenômeno

da loucura, a partir do momento em que era preciso tornar possível, num mecanismo de

biopoder, isolar e trancafiar o louco.

Mas quem é que fará da loucura o seu domínio?

Na Europa, em fins do século XVIII e início do XIX, surge em cena a psiquiatria,

que começa a se constituir como um ramo especializado da higiene pública. Como observou

Foucault:

Antes de ser uma especialidade da medicina, a psiquiatria se institucionalizou como domínio particular da proteção social, contra todos os perigos que o fato da doença, ou de tudo o que se possa assimilar direta ou indiretamente à doença, pode acarretar à sociedade. Foi como precaução social, foi como higiene do corpo social inteiro que a psiquiatria se institucionalizou244.

242 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 306. 243 Id. 244 FOUCAULT, Michel. Os anormais. p. 148.

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E para poder existir como saber, a psiquiatria teve de proceder a duas codificações

simultâneas. A primeira, a codificação da loucura como doença. Assim, todos os erros, os

distúrbios, as manias, os desvios, as ilusões poderiam ser definidos como patológicos por

meio de um conjunto de procedimentos de análise (registros, observações, nosografia, fichas

clínicas etc.), permitindo realizar uma aproximação entre essa higiene pública ou essa

precaução social com o saber médico. A segunda, necessária na constituição desse saber, foi a

codificação da loucura como perigo, ou como portadora de perigos, conforme diz Foucault:

a psiquiatria, por um lado fez funcionar toda uma parte da higiene pública como medicina e, por outro, fez o saber, a prevenção e a eventual cura da doença mental funcionarem como precaução social, absolutamente necessária para se evitar um certo número de perigos fundamentais decorrentes da existência mesma da loucura245.

Na Europa, essa dupla codificação vai ter, como salientou Foucault, uma história

longuíssima, no decorrer de todo o século XIX. A psiquiatria, por sua vez, atinge o seu ponto

forte com o encontro dessas duas codificações, que se desdobrarão em um só e mesmo tipo de

discurso, de análise e de conceitos, resultando na consideração da loucura como doença e

como perigo.

A loucura, classificada como monomania suicida, monomania homicida, passa a ser

perigo social já codificado, que se torna doença de domínio exclusivo da ciência médica,

relacionada à higiene pública: a psiquiatria. A partir de meados do século XIX, ainda na

Europa, temos a noção de degeneração que vai ser diferente da noção de monomania. A

degeneração implica no isolamento, no estabelecimento de um recorte, já que configura uma

zona de perigo social e que receberá um estatuto de doença. Foucault considera que o século

245 FOUCAUL, Michel. Os anormais. p. 149.

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XIX é o período forte da psiquiatria e é o período onde esses conceitos fracos foram

formulados.

É possível ver a fraqueza dos conceitos, tanto quanto o fortalecimento da psiquiatria,

nos atestados médicos emitidos em Cuiabá, em fins do século XIX e início do XX. O atestado

emitido em 1904, pelo Dr. José Marques da S. Bastos, médico da Polícia Militar diz:

Atesto que o corneteiro da 1ª Companhia do Batalhão de Polícia Militar deste Estado de nome Isaias Rodrigues de Oliveira está sofrendo de repetidos acessos de epilepsia, moléstia contagiosa que o torna incapaz do serviço ativo sendo da maior conveniência que seja dispensado do serviço ativo em vista do seu sofrimento246.

Um outro episódio parece evidenciar ainda mais essa fraca formulação conceitual.

Foi quando o escrivão dos Feitos da Fazenda, Lourenço Justiniano de Oliveira, adoeceu

gravemente, segundo relatou sua esposa Joana Antunes de Oliveira, em requerimento dirigido

ao Presidente do Estado, em 1911, onde a mesma solicitou licença médica para seu marido247.

Vários atestados médicos foram produzidos pelo Inspetor de Higiene Dr. José Marques da

Silva Bastos, a partir deste requerimento. Curiosamente, temos, para a mesma pessoa, vários

diagnósticos, tais como: perturbação nervosa, nevralgia cerebral e sofrimento das faculdades

mentais.

Outra questão se sobrepôs, em grau de importância, a essas codificações gerais da

loucura, colocada e demonstrada, insistentemente, pela psiquiatria: o caráter perigoso do

louco. Na constituição do saber/poder da psiquiatria, ao passar a exercer o domínio sobre a

higiene pública e a proteção social, sua ambição é encontrar “os segredos dos crimes que

podem habitar toda loucura, ou então o núcleo da loucura que deve habitar todos os

indivíduos que podem ser perigosos para a sociedade”, como observou Foucault. 246 Fundo Saúde. Caixa 1904 - Maço: Batalhão de Polícia Militar. APMT. 247 Requerimento de 12/6/1911. Maço: Fazenda Nacional. Caixa: 1911. Fundo: Saúde. APMT.

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101

É nesse quadro que a psiquiatria procedeu a duas grandes operações, uma dentro do

manicômio e outra fora dele. No interior do manicômio, a psiquiatria realiza o papel de

detecção de qualquer perigo possível inscrito na loucura. Fora do manicômio, ocorre um

processo semelhante, já que a psiquiatria também irá detectar o perigo que a loucura traz

consigo248, mesmo quando é uma loucura suave, mesmo quando é inofensiva, mesmo quando

é mal perceptível. Aí reside a grandeza e a cientificidade da psiquiatria; é nessa capacidade e

autoridade que tem de justificar-se como intervenção científica e autoritária, uma vez que ela

pode identificar o perigo onde ninguém mais o percebe, e somente ela tem esta

competência/poder, por tratar-se de um conhecimento médico.

É por essa razão que José da Cruz Ferreira, Balbino Antunes Maciel, Joana de tal e

alguns outros, serão recolhidos à cadeia pública de Cuiabá. Porque são loucos, logo, são

perigosos, ainda que sua loucura seja do tipo suave.

Nesse período, ainda não havia em Cuiabá nenhum alienista, porém, a grande

maioria dos médicos que residia na capital mato-grossense teve sua formação na Bahia ou no

Rio de Janeiro, e, em fins do século XIX, Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, e Nina

Rodrigues, na Bahia, foram, senão os únicos, os maiores disseminadores das teorias

psiquiátricas elaboradas na Europa.

No Rio de Janeiro, a atuação de Juliano Moreira no Hospício Nacional constituiu um

marco na psiquiatria, segundo alguns estudiosos das políticas de saúde mental no Brasil249,

não só pela introdução de tratamentos médicos aos loucos que ali eram recolhidos desde a

inauguração da instituição — época em que o único tratamento dispensado aos internos era o

248 A prerrogativa do saber psiquiátrico, na detecção da loucura perigosa, também vai ser o argumento utilizado

pelos psiquiatras frente aos juristas com relação aos criminosos que cometem algum crime sem motivo. No Arquivo Público de Mato Grosso, existem processos crimes exemplares, especialmente no arquivo do Tribunal da Relação, mas neste trabalho optamos por não utilizar essas fontes, por entender que implicaria em procedermos também a outras análises.

249 Cf., a esse respeito, o trabalho de Heitor REZENDE, Políticas públicas de saúde no Brasil.

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tratamento moral —, como também na elaboração de circulares e protocolos de internamento,

que foram remetidos a todas capitais do país, como esta circular de 1896:

O art. 70 do Regulamento da Assistência médico-legal de alienados, anexo ao Decreto n.º 1559 de 7 de outubro de 1893 e de que vos envio um exemplar impresso, faculta aos Estados remeter enfermos para o Hospício Nacional de alienados, a fim de serem aí recolhidos e tratados, mediante uma diária de $200 em relação a cada um, salvo o caso de contrato celebrado com autorização do governo.

A exemplo do que fez o Estado do Rio de Janeiro, e de acordo com a disposição do citado artigo na parte concernente ao contrato, sugiro-vos o alvitre de contratar esse Governo com o Diretor da Assistência a remessa de um número dado de enfermos para o Hospital Nacional de Alienados obrigando-se a uma contribuição, que será fixada no aludido documento e pago semestralmente.

Desta forma, haverá vantagem não só para o serviço público, como para os infelizes que precisarem dos benefícios que aquela instituição é destinada a prestar, pois terá o Governo mais um elemento para o cálculo da receita provável da Assistência e ficará a administração desse Estado dispondo no referido estabelecimento de certo número de lugares, que poderão ser aproveitados, às primeiras manifestações da moléstia, sem a demora resultante das prévias diligências a que ora se procede em cada caso particular. Saúde e Fraternidade250.

A internação no Hospício Nacional, no final do século XIX, não se dava mais como

na época da sua inauguração (1852), ou seja, aberta para abrigar todos os loucos do Império e

subvencionada pelo imperador251; a partir dessa data, passa então a restringir a gratuidade

apenas aos alienados pobres da cidade do Rio de Janeiro; quanto aos demais insanos providos

de recursos, estes passaram a ter condicionada sua internação mediante o pagamento de diária

por parte do interno, através de sua família, ou a celebração de contrato entre a instituição e os

governos estaduais. Esta determinação, ao que parece, funcionou como uma espécie de

obstáculo para que ocorresse a transferência de alienados de Mato Grosso para o Rio de

250 Circular n.º 370 do Ministério do Interior ao Presidente do Estado. Rio de Janeiro. 1896. Fundo Saúde.

APMT. 251 ELIA, Francisco Carlos da Fonseca. Doença mental e Cidade: O Hospício de Pedro II. Fundação Casa de Rio

Barbosa. Ministério da Cultura: Rio de Janeiro, 1996.

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Janeiro, salvo dois casos isolados localizados nas fontes consultadas por nós252, cujas diárias,

em um dos casos, provavelmente foram pagas pela família do doente, através do

acautelamento dos bens deste, por determinação judicial, como foi o caso seguinte:

Tendo chegado ao conhecimento deste Juízo que acha-se sofrendo de suas faculdades intelectuais o Tenente Coronel reformado do exército Horácio Vieira de Souza residente nesta Cidade, que daqui partiu em princípio do mês de Agosto do ano passado, tendo seguido para essa Capital, de onde por ordem do Comando do Distrito Militar fora remetido para a Capital Federal com destino ao Hospício Nacional de Alienados e convivendo acautelar alguns bens que ele aqui possui; mas sendo atualmente difícil a este Juízo proceder o necessário exame médico na pessoa do referido Tenente Coronel para poder iniciar o competente exame de interdição, tenho a honra de solicitar-vos as necessárias providências a fim de exigir-se daquele Comando uma informação constante de quaisquer papéis, termo ou auto porventura ali existes a respeito do estado de desarranjo mental do dito Tenente Coronel, e remeter-se a este Juízo para o aludido fim..253.

Quanto aos praças do exército, diagnosticados como alienados, esses deveriam ter

um encaminhamento diferenciado dos militares de alta patente, conforme preconizavam as

determinações contidas no Decreto n.º 806 de 29 de julho de 1892, a saber:

As praças do exército que forem recolhidos ao Hospício Nacional de Alienados deverão ser transferidas para o Asilo dos Inválidos da Pátria, ao qual ficarão pertencendo até que restabelecidas, tenham de regressar aos respectivos corpos. A. de 5 de Maio de 1897 ao ajudante General 254.

No caso de Cuiabá, entretanto, não encontramos um único documento que mencione

a transferência, para o Rio de Janeiro, de algum praça do exército de Mato Grosso.

Geralmente, ele era simplesmente desligado das fileiras do batalhão, a exemplo do que

252 Em 1921, o Tribunal da Relação concedeu habeas corpus a Antonio Bernardino de Souza e determinou a

remoção do paciente da cadeia pública de Cáceres para o Hospício Nacional dos Alienados do Rio de Janeiro. Não foi possível localizar o seu processo crime. Caixa 1921. Fundo: Saúde. APMT

253 Ofício do Juiz de Direito Vilela de Oliveira Marcondes de Cáceres ao Vice-Presidente do Estado de Mato Grosso Coronel Antonio Cezario de Figueiredo, em 14 de fevereiro de 1898. Caixa 1898 – Maço: Juízo de Direito. APMT.

254 Fundo Saúde. Caixa 1898 – Maço: Conselho de Guerra. APMT.

Page 114: A Cidade e a Loucura

104

ocorreu com o corneteiro Isaias, por determinação do médico da corporação, registrada no

mesmo atestado em que se diagnosticava a sua doença.

Mas é na educação, ou melhor, no interior dos estabelecimentos de ensino público e

privado da capital, que podemos observar a utilização concomitante das tecnologias de poder

disciplinar e de regulamentação, ou o biopoder. Em 1918, a Assembléia Legislativa aprovou

uma portaria que instituiu o serviço de inspeção médico-sanitária, valendo-se dos seguintes

argumentos:

Considerando que a inspeção médico-escolar tem dado bons resultados desde a sua primeira organização, na Bélgica, em 1874 sendo de notar que neste país, as crianças, quando necessitam, recebem também, na escola, alguns medicamentos, o que seria muito desejável que se fizesse entre nós;

Considerando que essa instituição é um dos meios componentes de regeneração e revigoramento de nossa raça de que é preciso, sem tardança, tratar e tal como está encarada no presente projeto não onera os cofres públicos;

Considerando que não basta instruir e educar o homem, mas que é imprescindível, a bem dos interesses da Nação torná-lo forte e sadio para sua maior eficiência [...]

A seguir, alguns de seus artigos:

Art. 1º - Fica instituído o serviço anual de inspeção médico-sanitária nos estabelecimentos de ensino primário, secundário, públicos e particulares.

§ Único - Essa inspeção será feita:

I- Na Capital por um ou mais facultativos nomeados pelo Governo sob proposta do Inspetor de Higiene que a presidirá.

[...]

Artigo 2º - A inspeção compreenderá:

I- O exame do prédio escolar e suas dependências sob o ponto de vista higiênico.

II- O exame do material escolar.

III- A verificação do estado de saúde dos professores, alunos e empregados.

[...]

Page 115: A Cidade e a Loucura

105

Artigo 5º - Diagnosticada a morphéa, tuberculose pulmonar aberta, ou qualquer outra moléstia contagiosa, e a alienação mental, em período de incurabilidade, serão concedidos ao professor ou empregado enfermo os favores de que trata o art. 151 do Regulamento baixado com o Decreto n. 265 de 22 de Outubro de 1910, si não tiverem direito à aposentadoria e contarem bons serviços ao Estado.

[...]

Art. 8º - Os alunos que estiverem afetados de moléstias infecto-contagiosas ou repugnantes serão retirados da escola, temporária ou definitivamente a juízo do medico.

Art. 9º - Os professores são obrigados sob pena de multa de 50$000 a 100$000, a levarem sem demora ao conhecimento do Governo o aparecimento de um caso de moléstia contagiosa ou repugnante no seu estabelecimento de ensino.

Art. 10º - O professor ou empregado julgado na inspeção, incapaz, por motivo de moléstia contagiosa ou alienação mental, para o exercício do magistério poderá requerer ao Governo nova inspeção médica por facultativos que não tenham tomado parte na primeira.

Art. 11º - Além da inspeção médico-sanitária anual de que trata a presente lei, o Governo poderá determinar outras sempre que as autoridades escolares ou qualquer interessado lhe comunique a existência de moléstia contagiosa nos estabelecimentos de ensino.

[...]

Art. 14º - O Poder Executivo fica autorizado a baixar as instruções necessárias à boa execução desta lei255.

O mero afastamento, temporário ou definitivo, dos diagnosticados como alienados

mentais — alunos, professores e funcionários das unidades escolares —, foi a medida adotada

em Cuiabá, enquanto não houve um lugar destinado especialmente para esse fim. Afinal de

contas, nesse caso, enviar qualquer um destes para a cadeia pública ou para a Santa Casa de

Misericórdia seria capitalizar inimigos políticos, já que, para os adversários, tal decisão

poderia ser vista como a transposição para a realidade de uma atitude que só a literatura

ousou256. Aliás, o encarceramento de alienados na cadeia pública da capital era, como as

coisas de alcova, assunto que as autoridades só comentavam no âmbito local.

255 Parecer nº 16 da Assembléia Legislativa, que institui o serviço de inspeção médico-sanitária nos

estabelecimentos de ensino. Maço: Assembléia Legislativa. Caixa 1918. Fundo: Saúde. APMT. 256 Seguir o exemplo de Simão Bacamarte, o alienista de Machado de Assis e criador da Casa Verde de Itaguaí,

era algo que não encheria de orgulho nenhuma autoridade.

Page 116: A Cidade e a Loucura

106

Em 1905, o Inspetor de Higiene Pública Dr. José Marques da Silva Bastos

encaminhou ofício ao Presidente do Estado Cel. Antonio Paes de Barros, em que “esclarecia”

a conduta do Poder Público em relação aos portadores de alienação, e informou o seguinte:

Tenho a honra de acusar o recebimento do ofício n.º 5 de 31 do mês de janeiro próximo findo que por ordem de V. Excia me foi dirigido pelo Sr Secretario do Estado, conjuntamente com a cópia do telegrama do exmo Sr Ministro do Interior pedindo informações.

Respondendo, cumpre-me o rigoroso dever de informar a V. Excia que, neste Estado, nunca houve asilo de alienados, sendo porém recolhidos ao hospital de Caridade desta Capital, em épocas (transactas), alguns casos raros de alienação mental, sem tendências para aumento: casos de histeria e epilepsia também custam a aparecer, notando-se um ou outro caso de praças dos Batalhões tanto do Exército como da Polícia257.

O plano de instalação de um hospício em Cuiabá, pela construção de um pavilhão ou

asilo de alienados, era tema, volta e meia introduzido nos discursos de alguns governantes,

médicos e chefes de polícia, que “estavam em dia” com as novidades da ciência, mas sem que

nenhuma medida fosse colocada em prática. Esta, só começou a ser esboçada em 1911, no

governo de Pedro Celestino Corrêa da Costa que, em discurso à Assembléia Legislativa,

anunciou:

O Hospital da Santa Casa, subvencionado pelo Estado, e o de São João dos Lázaros, são os únicos estabelecimentos de caridade que temos, destinados ao tratamento de indigentes e alienados. Nenhum dele porém, preenche satisfatoriamente os seus fins humanitários, pela impossibilidade absoluta de prove-los de uma direção interna dedicada econômica e que se desvele pelos doentes, fiscalizando o serviço dos enfermeiros e tudo o mais que entende com o relativo bem estar daqueles.

A Santa Casa não comporta a assistência aos alienados, que exigem acomodações adequadas e tratamento diferente dos ministrados nas enfermarias comuns.

Atento o número já avultado desses infelizes, muitos dos quais suscetíveis de cura, existentes nesta capital e nos municípios do interior, faz-se precisa a construção de um hospício de alienados, que poderá ser anexo a Santa Casa, em local apropriado de vasta área, que serve de quintal àquela casa.

257 Ofício n.º 3 do Inspetor de Higiene Pública Dr. José Marques da Silva Bastos ao Presidente Coronel Antonio

Paes de Barros. Caixa 1905 – Maço: Inspetoria de Higiene. Fundo: Saúde. APMT.

Page 117: A Cidade e a Loucura

107

Cumprido ao Estado velar por todas classes sociais, me convenço de que decretarei verba especial para esse fim de modo a poderem ser socorridos os doentes de enfermidades mentais, como a caridade e a sociedade reclamam258

Em 1913, não havia nenhum sinal de Pavilhão de Alienados, apenas uma Resolução

da Assembléia Legislativa autorizando ao Poder Executivo o repasse de verbas para as obras

do Pavilhão de Cirurgia, que estava sendo construído em terreno anexo à Santa Casa de

Misericórdia259. Mas a notícia das obras do Pavilhão de Alienados nos chega em 1915, por um

pedido de parecer do Tesouro do Estado, solicitando “a abertura de crédito de 30:0000$000

para cumprimento da resolução Legislativa n.º 676 de [...] 1914, visto já estar quase concluída

a construção do Pavilhão de Alienados”260. O Chefe de Polícia, em seu Relatório Anual, louva

a notícia e critica a prática de recolher os loucos na cadeia, por ele considerada “abusiva,

desumana, indigna, portanto, das alevantadas tendências da moderna civilização e contrária ao

altruísmo e aos conselhos emanados pelos mais exímios cultores da psiquiatria”261.

Contudo, ainda não seria dessa vez que Cuiabá anunciaria aos doutores da psiquiatria

que a capital mato-grossense já possuía um hospício ou coisa parecida. As famosas obras de

1915 novamente acabaram tendo uma outra destinação. Dessa vez, funcionaria no espaço

recém-construído uma enfermaria infantil.

Década de 1920. Prossegue o cotidiano da capital mato-grossense com um calendário

marcado ora pelos tempos de chuva, ora pela seca; ora pelo frenesi das festas religiosas com

toda a programação pertinente — esmolas, procissões, leilões e touradas —, ora pela agitação,

fofocas e conchavos em épocas de eleições: disputas, alternância no poder de grupos rivais, etc.

258 Mensagem proferida pelo Governador Pedro Celestino Corrêa da Costa à Assembléia Legislativa em 1911.

Disponível em <wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>. 259 Resolução nº 624 de 1913. Maço: Assembléia Legislativa. Fundo: Saúde. APMT 260 Ofício do Tesouro do Estado de Mato Grosso. Maço: Tesouro do Estado. Caixa 1915. Fundo: Saúde. APMT. 261 Relatório Anual da Chefatura de Polícia referente ao ano de 1914. Caixa 1915- Maço Chefatura de Policia.

Fundo: Saúde. APMT.

Page 118: A Cidade e a Loucura

108

Na fisionomia da cidade, algumas coisas haviam mudado desde 1890: o Jardim

Alencastro, já com o gradil de ferro instalado em seu entorno262, tornou-se o espaço público

mais freqüentado pela sociedade cuiabana, lugar onde as famílias se encontravam, casais se

conheciam, namoravam e noivavam, podendo apreciar, aos domingos, a execução de peças

musicais pela Banda de Música Municipal263 e que tinham sua segurança garantida por dois

guardas municipais, uniformizados e armados de sabre264. Mas havia também outras opções

de lazer nas cercanias do Jardim Alencastro, para aqueles que podiam pagar: a programação

do “Teatro” Amor e Arte, vizinho do Mercado Municipal, na rua Joaquim Murtinho265, ou

ainda, assistir, no Cine Parisien, aos filmes Mulher Corsária; Última Aventura; Cawboy, o

Valentão; Violeta; ou Mentira, entre outros. Os famosos filmes mudos, que saíam das

máquinas de fazer cinema movidas a energia elétrica, chegaram à capital após a instalação,

em 1919, do primeiro gerador movido a vapor, na antiga hidráulica, no Porto Geral, às

margens do rio Cuiabá266.

Essas mudanças iam acontecendo gradualmente e, pelas razões mais diversas,

coadunavam com o projeto de construção da nação e com o desejo de progresso. Assim foi

em 1919, por ocasião das comemorações alusivas ao bicentenário de fundação de Cuiabá, a

importante instalação, em Cuiabá, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e da

Academia Mato-Grossense de Letras, afinal, nesse projeto de gestação de uma civilização,

como salientou Pechman, os intelectuais e letrados desempenharam um papel fundamental na

262 Ofício do Intendente Municipal de Cuiabá Avelino de Siqueira, 1911. Lata 1911/D. APMT. 263 Resolução n.º 93. Autorização para a criação de uma Banda de Música Municipal. Lata 1912/B. APMT. 264 Resolução nº 103. Intendência Geral do Município de Cuiabá. Lata 1912/B. APMT. 265 Resolução nº 75 de 1911. Autorização para a construção de dois edifícios, um para o Mercado Público e outro

para o Teatro Municipal. Lata 1911/D. APMT. Vale ressaltar, porém, que não houve construção do teatro, mas, ainda assim, até o final da década de 1930, funcionou um teatro num barracão de zinco da sociedade anônima Amor e Arte. In: ALENCASTRO, Anibal. Anos dourados dos nossos cinemas. Antigas salas de projeções de Mato Grosso. Edição Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso: Cuiabá, 1996.

266 ALENCASTRO, Anibal. Anos dourados dos nossos cinemas (...)

Page 119: A Cidade e a Loucura

109

construção e legitimação de uma história nacional, com todos os heróis possíveis de se

inventar.

Inúmeros prédios públicos, por sua vez, receberam melhoramentos para os festejos

do bicentenário. A Santa Casa de Misericórdia, que novamente se encontrava sob a direção

das freiras religiosas, para alegria do Governador Dom Aquino Corrêa, teve a fachada da

edificação reformada, ainda que nenhuma reforma como esta alterasse o quadro nosológico da

capital. A tuberculose, nesse mesmo ano, foi a principal causa de morte dos cuiabanos,

seguida das infecções do aparelho digestivo e respiratório. Mas havia um outro problema:

grande parte dos óbitos tinha causa ignorada, já que a emissão de atestados podia ser feita por

qualquer pessoa, com anuência do chefe de polícia, por falta de médico legista. Esse problema

seria resolvido, pelo menos na capital, por meio da Lei n.º 810, que fixou os vencimentos para

a contratação de um médico legista e que, também, tratou de outras coisas, como a expedição

de um novo Regulamento Policial, a criação do serviço de identificação e estatística da

chefatura de polícia, a determinação da construção de uma Colônia Correcional, anexa ao

Campo de Demonstração, e também a construção de um pavilhão de alienados, anexo à Santa

Casa de Misericórdia267.

No ano seguinte, mais precisamente no dia oito de abril de 1920, foi lançada a pedra

fundamental de construção do Pavilhão de Alienados, anexo à Santa Casa de Misericórdia,

conforme declarou o Governador Dom Aquino, em sua mensagem proferida à Assembléia

Legislativa, ainda em 1920, “para melhorar e completar alguns serviços afeitos à Polícia”. Na

mesma ocasião, defendeu, diante dos parlamentares mato-grossenses, a criação de um

Gabinete Médico Legal e de um necrotério, para assegurar eficácia aos serviços do médico

legista, ou a permissão da Santa Casa para usar o necrotério da instituição.

267 Mensagem de Presidentes de Província do Estado de Mato Grosso. 1920. Disponível em:

<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

Page 120: A Cidade e a Loucura

110

Nas ruas, ambulantes, transeuntes, carroças prosseguiam nos respectivos caminhos,

desviando de buracos, de cachorros... Os automóveis268, por sua vez, podiam dar-se ao luxo

de percursos mais longos e em menor espaço de tempo, rumo ao Porto, à espera de algum

vapor, ou para as bandas do Coxipó, para admirar a bela ponte de ferro sobre o rio do mesmo

nome.

Para as escolas da capital, novos mobiliários foram sendo adquiridos, cuidando para

que fossem os mais adequados, os mais modernos, os mais higiênicos, já que toda esta

aquisição passava pelo crivo do Inspetor de Higiene Dr. Alberto Novis269 que, como médico e

Inspetor de Higiene do Estado, dispunha de saber e autoridade para opinar sobre esse e

também outros assuntos relacionados à higiene, ao saneamento e às doenças, quaisquer que

fossem elas.

Mas não apenas novos mobiliários eram introduzidos nas escolas da capital. Folhetos

explicativos sobre a ancilostomíase e outras endemias eram distribuídos aos professores que,

por sua vez, deveriam disseminar esses saberes entre os alunos. Era a ciência fazendo escola.

Em 1921, passado o tempo de festas, outro cenário emerge nas mensagens de

governantes, definindo prioridades e adiando projetos em andamento. As obras de construção

do Pavilhão de Alienados foram paralisadas, segundo Dom Aquino, em função da “crise

financeira, que determinou a suspensão das obras do novo e grandioso pavilhão dos alienados,

já em adiantada construção num dos flancos da Santa Casa”. Na falta de estabelecimento

268 Segundo Anibal Alencastro, o primeiro automóvel de Cuiabá foi vendido em 1919 pela empresa dos Irmãos

Dorsa. 269 “Estudando detidamente o desenho do mobiliário escolar que me foi apresentado para dar informação sob o

ponto de vista higiênico, cabe-me o dever de discordar da disposição do encosto dos bancos obrigando o aluno a uma posição de flexão forçado da coluna vertebral, o que não deixa de ser uma atitude viciosa podendo causar deformação da mesma e aconselho, pois a dar esse encosto uma ligeira inclinação para traz de acordo com o modelo adotado em Zurique pelos ilustres professores Hermam Meyer e Hormer e estampado no tratado de higiene de Julio Amaral, 3ª edição, a página 1043, fig. 240 que a meu ver satisfaz inteiramente as condições de integridade anatômica e fisiológica”. In: Ofício n.º 33 de 28/05/1920 - Do Inspetor de Higiene Dr. Alberto Novis ao Secretario do Interior, Justiça e Fazenda. Livro II de registro de Ofícios expedidos pela Inspetoria de Higiene. APMT.

Page 121: A Cidade e a Loucura

111

apropriado, a cadeia pública da capital continuava mantendo, entre os seus encarcerados,

“dezenove alienados indigentes270”, incluindo também mulheres. Em 1921, o chefe de polícia

informou ao presidente do Estado a existência, na cadeia, de quatro mulheres “atacadas de

alienação mental, visto não haver estabelecimento hospitalar destinado para esse fim”271 e, na

Santa Casa de Misericórdia, no endereço da “Travessa das Laranjeiras, em um dos quartos da

qual achava-se recolhida uma demente, [...] contíguo a esta casinha foi construído outro

quartinho onde , por carência de compartimento melhor, acha-se recolhido outra demente”272.

Decididamente, a construção do Pavilhão de Alienados, anexo à Santa Casa, obra

tantas vezes mencionada e subvencionada pelo Poder Público, ao que tudo indica, continuou

adiada, nos anos subseqüentes. A grande maioria dos alienados, por sua vez, continuava sendo

recolhida à cadeia pública da capital, e é sobre as condições deste lugar, que, em 1926, o

então Governador Mario Corrêa da Costa, discorrerá:

É de pena a impressão da primeira visita que fiz a esse estabelecimento. A cadeia pública da Capital, apresenta hábitos primitivos, não existindo a mais elementar higiene. Os presos não tem cama para dormir, sendo que as poucas que ali estão acham-se todas desmanteladas, com estrados em frangalhos, sem colchões, sem travesseiros e sem lençóis. As prisões não tem luz, nem ar, conservando-se freqüentemente fétidas, porquanto a defecção dos presos é feita dentro das próprias celas, em latas vazias de querosene. [...] Na mesma cadeia, por falta de um asilo de alienados, pois ainda está em construção o pavilhão que para esse fim o Governo mandou fazer em terreno contíguo a Santa Casa de Misericórdia, acham-se recolhidos vários dementes, inclusive mulheres que vivem no mais completo descuido273.

Além das péssimas condições da cadeia, da demora na construção do pavilhão de

alienados, o que implicava no encarceramento dos alienados e dementes, a questão da ordem

270 Mensagem de Presidente de Província de Mato Grosso. 1921. Disponível em

<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>. 271 Ofício do Chefe de Polícia Albano Antunes de Oliveira. Caixa 1921. Fundo: Saúde. APMT. 272 Relatório Beneficente da Santa Casa de Misericórdia. Cuiabá, 1923. 273 Mensagem do Presidente de Província. 1926. Disponível em <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

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na cidade, segundo o Governador Mario Corrêa, esbarrava num outro problema: a

inexistência de uma Colônia Correcional Agrícola, para recolhimento dos vadios de ambos os

sexos, maiores de quatorze anos, apesar de ter sua criação autorizada desde 1895274.

No ano seguinte, de todos os problemas acima mencionados, pelo menos um parecia

que seria resolvido, o do encarceramento dos alienados na cadeia pública da capital,

considerando que as obras estavam chegando ao fim, conforme declarou o Governador Mario

Corrêa da Costa:

Prosseguem-se as obras do Hospício275 dos Alienados contratadas com o Senhor Taborelli por 99:999$000, o qual se acha em fase de acabamento.

O prédio consta de duas seções, sendo uma destinada aos homens e outra às mulheres.

Para corrigir falhas existentes no projeto primitivo foi o governo forçado a mandar executar obras em acréscimo, como a modificação da fachada, colocação de grades, servindo de parapeito aos compartimentos abertos276.

A essa época, os jardins da cidade e o Palácio da Instrução, construção imponente,

localizada ao lado da Igreja Matriz, receberam novos melhoramentos. No Palácio da

Instrução, o antigo muro de arrimo foi substituído por balaústres de alvenaria e fez-se a

instalação de ladrilhos de cimento no pátio externo. A Praça da República ganhou canteiros e

jardins e alguns ornamentos, compondo dessa forma, na opinião do Governador Mario Corrêa

da Costa, um conjunto harmonioso. Ainda segundo Mario Corrêa, o Jardim Alencastro,

274 Mensagem de Presidente de Província. 1926. Disponível em: <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>. 275 A utilização da palavra hospício em lugar de pavilhão não significa, ainda neste caso, alguma mudança

efetiva com relação ao local designado para o recolhimento dos alienados da capital, apesar de não podermos ignorar que a instalação de grades serviria para garantir o aprisionamento dos alienados, contudo, a designação hospício parece indicar a simpatia do médico e Governador Mario Corrêa à introdução das novas teorias psiquiátricas que circulavam no país no mesmo período, sobre as quais já trataremos.

276 Mensagem do Governador Mario Corrêa proferida à Assembléia Legislativa em 1927. Disponível em: <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.

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113

“apresenta atualmente um aspecto que ajudado pela magnífica e poderosa iluminação elétrica

impressiona bem e o coloca em situação igual às melhores praças dos grandes centros277”.

E se os melhoramentos dos equipamentos públicos citadinos colocaram a capital de

Mato Grosso em “pé de igualdade” com as grandes cidades do país, a conclusão das obras do

pavilhão de alienados, por sua vez, fez com que Cuiabá ficasse em dia com uma das últimas

novidades da ciência, já que a existência de um local especialmente construído para

recolhimento dos insanos, era sinal de progresso, de civilização. Mas, ao término da

construção, o Governo decidiu que os alienados da cadeia ocupariam apenas uma parte do

pavilhão, que foi dividido e destinado a outro fim, sob o argumento de que:

O prédio construído para a colocação de alienados não apresentava uma disposição apropriada ao fim que se destinava, prestando-se mais ao estabelecimento de enfermarias.

Assim, resolvi [o Governador Mario Corrêa da Costa] fazer algumas modificações, adaptando-o a um hospital para mulheres e crianças278.

Nas primeiras décadas do século XX, o debate no campo da psiquiatria no Brasil

sobre outras formas de tratamento dos doentes mentais afastava-se cada vez mais do chamado

tratamento moral, praticado tanto na Europa, em fins do século XVIII, como no Brasil, mais

precisamente daquele praticado no Hospício Nacional do Rio de Janeiro, durante a gestão de

Teixeira Brandão, conforme acusou Lopes Rodrigues. Rodrigues sustentava que a psiquiatria

verdadeiramente científica não fez sua entrada no hospital e na assistência pública com a

simples tomada do poder pelos médicos. Segundo Heitor Rezende, para Rodrigues,

[...] o pensamento universal deste campo do saber patejava neste estuário levadiço das degenerações de Morel e Magnan, continuava a se estagnar a denominada psiquiatria francesa e todo pensamento psiquiátrico nacional

277 Mensagem de Presidente de Província. 1928. Disponível em: <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>. 278 Id.

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114

não se arejava fora das cercanias da ‘idiotia adquirida’, da ‘melancolia’ e do ‘delírio crônico de evolução sistemática’279.

Com a nomeação de Juliano Moreira para a direção do Hospício Nacional — decisão

tomada pelo Presidente Rodrigues Alves, em 1903 —, a chamada psiquiatria científica se

materializou, já que, segundo Rezende, Moreira “fez do microscópio o olho da razão, da

pesquisa o fulcro de sua mágica oficina, do escalpelo o silogismo, da lâmina a dialética [...]

em vez do livro, o doente”280. Data da mesma época, a nomeação de Oswaldo Cruz à frente da

direção dos serviços de saúde pública. Assim, a Saúde Pública e a Psiquiatria deram-se as

mãos na “tarefa comum de sanear a cidade, remover a imundície e a morrinha, os focos de

infecção que eram os cortiços, os focos de desordem que eram os sem-trabalho maltrapilhos a

infestar as cercanias do porto e as ruas do centro da cidade281”, ainda que nessa tarefa tenha

cabido à psiquiatria um papel “complementar, secundário, menos espetacular para os registros

da história, o de recolher as sobras humanas no processo de saneamento, encerrá-las no asilo e

tentar, se possível, recuperá-las de algum modo282”.

Dos tratamentos utilizados na época, Rezende observa que apenas a praxiterapia e o

chamado open-door podem ser considerados como de valor terapêutico. Esses dois tipos de

tratamento consistiam, basicamente, na introdução dos pacientes a algum tipo de trabalho,

“em instituições fechadas ou em ambientes abertos, onde se pretendia reproduzir a vida de

uma comunidade rural”283.

Não que isso fosse uma novidade, afinal Pinel, um século antes, em visita feita a um

hospício de indigentes onde os doentes deviam trabalhar, comparou esse lugar e esses

pacientes ao ambiente onde eram internados os abastados, e observou que, no primeiro caso, 279 REZENDE, Heitor. Políticas de saúde mental no Brasil (...). p. 43. 280 Ibid., p. 44. 281 Ibid., p. 45. 282 Id. 283 Ibid., p. 46.

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115

os pacientes lhe pareceram mais tranqüilos, o que levou Pinel a concluir pelo valor terapêutico

do trabalho284.

Ainda é Rezende que afirma que, no Brasil, a adesão à política de construção de

colônias agrícolas se deu tanto por exclusão das outras estratégias terapêuticas — cujos

resultados eram duvidosos — como por ter encontrado “ambiente político e ideológico

propício ao seu florescimento”, uma vez que “as necessidades do incipiente capitalismo

brasileiro tinham, nas concepções e atividades em relação ao trabalho, prevalecentes desde o

tempo da colônia, um sério obstáculo”285.

Em 1930, Cuiabá ainda era o mesmo caldeirão de problemas no que diz respeito

tanto à ocupação do espaço urbano286, quanto ao seu quadro nosológico, mudando apenas a

ordem das doenças causadoras de mortalidade, já que a tuberculose, nesse ano, alcançou o

primeiro lugar, seguida das infecções do abdômen e as respiratórias. Quanto ao Estado, o

Governador de Mato Grosso, Anibal de Toledo, manteve junto aos parlamentares estaduais as

mesmas reclamações de governantes que o antecederam, como o problema da baixa densidade

demográfica do Estado e a necessidade de o Governo estimular a produção agrícola. Com

relação aos alienados, por sua vez, a idéia de implantação de colônias agrícolas se coadunava

com a decantada vocação agrária brasileira, seguindo, talvez, o discurso de Júlio Prestes, no

mesmo ano, que afirmou: “O fazendeiro é o tipo representativo da nacionalidade e a fazenda é

284 REZENDE, Heitor. Políticas de saúde mental no Brasil (...). p. 47. 285 Id. 286 Ao assumir o Governo, Anibal de Toledo deparou-se com a possibilidade de mudança da cadeia pública da

capital do segundo distrito para um edifício, cujas obras estavam em fase de conclusão, localizado na Praça da República. O Governador, no entanto, não concordou com a mudança e utilizou como argumento tanto as objeções feitas pelos cuiabanos, como o modelo adotado em outras capitais do país, que instalava esse tipo de instituição nos arredores da cidade, e não na sua porção central. In: Mensagem de Presidente de Província. 1930. Disponível em<www.crl uchicago.edu.info/brazil>.

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116

ainda o lar brasileiro por excelência, onde o trabalho se casa com a doçura da vida e a

honestidade dos costumes completa a felicidade287”.

Diante de tal quadro, novos atores serão inseridos para dar cabo de solucionar tais

problemas, conforme declarou Anibal de Toledo:

Os grandes problemas de Mato Grosso são, entretanto, mais de engenharia do que da medicina. É a instalação dos serviços de esgotos, é a canalização das águas pluviais, é o abastecimento de água potável filtrada, é o aterro de charcos e lagoas e águas paradas que permeiam e circundam muitas de suas cidades e vilas, é a canalização do córrego da Prainha, é enfim essa série imensa de obras de engenharia sanitária, cuja necessidade está aos olhos de todo mundo...288”.

A adoção de uma nova terapêutica — que a medicina psiquiátrica se encarregou,

portanto, de disseminar por meio da fundação de hospícios-colônias, como o do Juqueri,

instalado em São Paulo, por Franco da Rocha —, conjugada com a introdução de um novo

campo de saber para ordenar o espaço citadino e regulamentar as práticas de sua população, o

do engenheiro, prenunciando o que viria depois destes — os urbanistas, como observou

Pechman —, possibilitou as condições para a desativação definitiva do Pavilhão dos

Alienados anexo à Santa Casa de Misericórdia em Cuiabá e a inauguração de um novo

endereço da loucura: o Asilo dos Alienados.

O Asilo dos Alienados foi fundado em 1931289, quando foram para lá transferidos

todos os alienados da cadeia pública290. Sua localização, na saída de Cuiabá, e a topografia do

terreno, próximo às margens do Rio Coxipó, “quase” nos remetem a outros tempos. Tempo

em que uma grande nau ia navegando ao longo de águas calmas, levando sua carga insana.

287 REZENDE, Heitor. Políticas de saúde mental no Brasil (...). p. 48. 288 Mensagem de Presidente de Província. 1930. Disponível em <wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>. 289 Relatório do Departamento de Saúde do Estado de Mato Grosso. 1945. APMT. 290 Isso não significa que a prática policial de recolher os loucos na cadeia tenha cessado com a inauguração do

Hospício de Cuiabá.

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117

Mas, estes são outros tempos e, ao contrário da Nau dos Loucos, a cidade desse tempo não

escorraçará mais seus loucos. Ela os aprisionou...

∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗ ∗

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118

CONCLUSÃO

Algumas questões estimularam a produção deste trabalho e atravessaram todo o

percurso realizado com a utilização de escalas cujas variações, penso eu, ainda que não

cubram toda a superfície do tema — afinal, não se pretendeu aqui fazer a história de um

período e, sim, de um problema (e aqui, valho-me dos textos de Michel Foucault, em especial

A Poeira e a Nuvem, onde o autor explicita a diferença entre ambos) —, pelo menos revelam,

desencobrem, estimulam, indicam caminhos outros para se pensar a problemática da loucura e

a cidade.

Destas questões, retomo pelo menos uma delas, ainda que sumariamente, nesta

conclusão: a formulação da loucura como um problema urbano em Cuiabá, em fins do século

XIX e primeiras décadas do século XX, inscrita em práticas que se constituem como

tecnologias de poder. Disciplina, normatização, biopoder...

Esses conceitos, formulados por Michel Foucault, pouco a pouco iam brotando nas

inúmeras fontes consultadas no decorrer da pesquisa empírica, algumas das quais

apresentadas ao longo dos três capítulos, em decorrência das minhas escolhas, com todos os

erros ou acertos aí implicados, seja por julgá-las mais apropriadas, mais interessantes ou por

instalarem inúmeros pontos de dúvida. Paul Veyne já havia observado que, quando nos

deparamos com algo que mexe com as nossas certezas, podemos desconfiar: aí deve haver

algo interessante.

Dentre as fontes, o recenseamento urbano de Cuiabá de 1890 adquiriu, grande

importância, principalmente para a construção do primeiro capítulo, já que nele eu podia ver

uma espécie de radiografia da cidade, com alguns dos estriamentos existentes, considerados,

Page 129: A Cidade e a Loucura

119

naquele contexto, como as suas principais fissuras. O recenseamento funcionou como guia, e,

como flâneuse imaginária, conduzi-me por alguns dos trajetos percorridos pelo recenseador

José Barnabé de Mesquita e comitiva. Nesse caminho, visitei lugares da cidade, mas este não

foi um simples caminhar por ruas, travessas, praças e largos. A comitiva, ou o mapa por ela

produzido, proporcionou-me mais do que andar pela cidade, mais do que seguir seus passos

pelas ruas de Cuiabá. Com os recenseadores, uma a uma, vi abrirem-se as portas de todas as

casas e casebres da cidade, talvez sem a menor cerimônia, afinal, eles — os recenseadores —

não eram pessoas quaisquer: eram funcionários públicos, dispunham da autoridade conferida

pelo Estado para, por exemplo, entrar na casa das pessoas, interrogá-las/observá-las e

classificá-las segundo diversas categorias, na maioria das vezes indicando juízo de valor, e,

desse modo, exteriorizando (para felicidade do historiador) algumas das idéias veiculadas no

período.

Fonte preciosa que possibilita inúmeras reflexões — considerando a variedade de

temas nela contidos —, para este trabalho, indicou que a loucura em Cuiabá, a partir de 1890,

passou a ter nome, idade, endereço, estado civil, raça etc..., codificada como alienação mental,

demência e idiotia, todos esses inscritos na categoria: defeitos físicos.

Mas a eleição dos critérios utilizados no censo de 1890 apontava, também, para o

que estava em jogo naquele momento: a construção da nação, e a cidade adquire aí grande

importância, já que foi o lugar escolhido para veicular essa idéia. Todavia, a cidade que se

tem em fins do século XIX, no Brasil, é marcada pela rusticidade e pela “quase” ausência de

delimitações entre o ambiente rural e urbano. Outro problema se apresenta neste sentido: o

das populações da cidade. Era preciso civilizar esta população, torná-la cidadã, distanciando-a

o máximo possível da imagem de atraso, de rusticidade, estabelecendo, dessa forma, as

diferenças entre o ambiente urbano e o rural, entre o homem da cidade e o homem do campo.

Page 130: A Cidade e a Loucura

120

Tarefa difícil esta de construir uma nação num país onde havia tanto “atraso”,

segundo os governantes e outras autoridades da época, na comparação que se fazia, sobretudo,

com a Inglaterra e a França — as grandes referências do Brasil em fins dos oitocentos, para

designar avanços, desde o final do período colonial. Tarefa difícil também esta de civilizar um

povo, com tantas práticas arraigadas, tantos vícios, conforme os “conhecedores” da lei e da

disciplina; tantos maus hábitos, segundo os preceitos da higiene e da ciência. E já que não

havia ainda uma nação, nem cidade que pudesse ser assim designada, muito menos o povo

desejado, era imperativo construí-los.

Lançando mão de teorias científicas em voga e experimentos diversos, inúmeras

medidas foram tomadas para a realização deste ambicioso projeto. Adotaram-se tecnologias

de poder de disciplinarização, estabelecendo, assim, o Estado de polícia, como denominou

Foucault, o conjunto de práticas de interdição e vigilância permanente sobre os indivíduos. E

foi sobre isso que os relatórios, ofícios, entre outras tipologias documentais da Chefatura de

Polícia de Mato Grosso, nos foram revelando, tirando as camadas encobertas da cidade,

tornando visível aquilo que ela própria queria esconder. Resistentes ao estabelecimento dessa

nova ordem, os loucos, pouco a pouco, são encarcerados, isolados e retirados da cena urbana.

Se, em alguns casos (talvez os primeiros), isso se deu com certa cerimônia, em outros,

possivelmente não, já que muitos dos alienados encarcerados na cadeia pública da capital nem

registro sobre os motivos do seu recolhimento mereceram: estavam presos e pronto; por ora,

isso bastava.

Mas a constituição do louco como problema urbano, ou ainda, a percepção do louco

como um perigo social iminente, vai alicerçar-se em outras bases, quando entram em cena o

projeto de construção da nação e a constituição de uma população civilizada. Para realização

de tamanho projeto, o Estado lança mão da ciência, pela utilização tanto das disciplinas

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121

quanto de outras tecnologias de poder, não mais voltada apenas para o indivíduo ou para o

detalhe. População, relação homem e ambiente — ambiente compreendido como produzido

pela ação humana —, endemias, sexualidade e raça são os temas dos quais a nova tecnologia

de poder utilizada, o biopoder, vai ocupar-se.

Mais do que uma simples dicotomia entre normal e anormal, a loucura é aquilo que

subverte a ordem, a regulamentação que o Estado, por meio das tecnologias de poder em uso,

estabelece. Subvertendo, subvertido, espelho distorcido da imagem na qual o homem quer se

ver, a loucura sai dos campos da desrazão e é classificada, codificada e aprisionada. Não

faltará quem a queira ter como seu domínio, para fazer dela o seu objeto. Assim, um novo

campo de saber é constituído para lidar com isso que, dizem, escapa à compreensão, como os

demais conjuntos de coisas imediatamente explicáveis. E se uma ciência é, com esse fim,

inventada — a psiquiatria —, seu objeto, a loucura, para e por ela é reinventada. Engana-se,

entretanto, quem pensa que esta invenção tenha significado o fim do aprisionamento dos

loucos na cadeia da capital, nem mesmo no momento imediatamente posterior ao da

inauguração do Asilo dos Alienados — que se deu pouco mais de vinte anos depois da

primeira tentativa, em 1915, de se criar um lugar especialmente destinado aos loucos —, nem

na atualidade.

Alienação mental, idiotismo, demência, psicoses, manias, neuroses, distúrbios... A

lista só faz aumentar, e temos, ao longo do século XX e início do século XXI, a invenção de

novos endereços da loucura, que não é mais loucura e, sim, doença mental, como também,

novas formas de aprisionamento e tratamento.

Hospício, hospital-dia, residências terapêuticas, eletrochoque, valium, haldol,

tryptanol, rohypnol e todas as rimas possíveis, existentes e que ainda virão a existir. Triste...

tudo muito triste, mas havia aqueles que escaparam e ainda há quem escape, na atualidade,

Page 132: A Cidade e a Loucura

122

que não se deixa nem se deixou submeter, pelo menos até ser, de alguma nova maneira,

capturado...

Um homem nu rodopia, gira, salta, abaixa, levanta, corre, ri, até gargalha.

Movimentos rápidos, frenéticos, ágeis, inesperados, eletrizantes, descontínuos... Tudo nele é

inesperado... Parece evocar alegria e liberdade... Parece até uma festa... Seu riso é pura festa...

Parece até que ele dança...

Essa imagem veiculada no noticiário de uma emissora de televisão local, em janeiro

de 2004, informa tratar-se de um insano que ziguezagueou nu por entre carros, em uma das

avenidas mais movimentadas da capital. Entre o escárnio e o assombro, os comentaristas

contemporâneos enaltecem as ações do policial que conduz o homem ao interior do carro, sem

saber para onde levá-lo. Nesse caso, talvez o louco, problema do início do século XXI nos

centros urbanos, ainda mantenha alguma proximidade com o louco do final do século XIX e

início do XX, afinal eis ainda a polícia se ocupando deles, mas a proximidade pára aí. Desde

então, muita coisa já mudou e continua mudando.

Na década de 60 do século XX, teve início na Itália um movimento pela luta

antimanicomial, movimento construído por estudiosos e profissionais da área de saúde mental

e que extrapolou as fronteiras, tanto as geopolíticas como as do pensamento. E é nessa

perspectiva que podemos pensar nas grandes mudanças que se vêm operando desde então. No

belíssimo texto Um Desejo de Asas, Peter Pál Pelbart fala de anjos, da infelicidade dos anjos

de Win Wenders e do devir anjo, mas fala também da grande idéia elaborada por Félix

Guatarri, que propõe que a heterogeneidade precisa ser construída e, para se fazer isso, nas

palavras do próprio Pelbart, significa que não basta “reconhecer o direito às diferenças

identitárias, com essa tolerância neoliberal tão em voga, mas caberia intensificar as

diferenciações, incitá-las, criá-las, produzi-las”, e prossegue afirmando ser essa umas das

Page 133: A Cidade e a Loucura

123

coisas mais fascinantes e difíceis de se fazer no trabalho com os psicóticos (e, penso eu, que o

mesmo fascínio e dificuldade estão inscritos também no nosso olhar em relação aos

psicóticos); dificuldade e fascínio, ainda segundo Pelbart,

[...] de multiplicar formas de conexão, de linguagens, de abordagens de entendimento. Pluridimensionar o campo. Recusar a homogeneização sutil mas despótica ‘em que incorremos, às vezes sem querer, nos dispositivos que montamos quando os subordinamos a um modelo único, ou a uma dimensão predominante. Aceitar esse paradoxo de que quando um dispositivo está dando certo demais é que ele já não serve mais, que quando um grupo está demasiadamente bem sucedido alguma processualidade foi emperrada, que quando entendemos muito bem é porque deixamos de entender um bocado, que quando estamos muito sãos é porque já estamos muito neuróticos291.

Em 2003, a Secretaria Municipal de Saúde de Cuiabá divulgou a notícia da

instalação, na capital, de residências terapêuticas e a transferência, para estas casas, dos

pacientes crônicos dos hospitais psiquiátricos Adauto Botelho e Neuropsiquiátrico. Na mesma

época, foi anunciada pela imprensa local a extinção dos leitos credenciados pelo Sistema

Único de Saúde, para atendimento de pacientes psiquiátricos do Neuro. Na ocasião, um

telejornal pôs no ar o depoimento de uma psicóloga que, quase chorando, lamentava o

descredenciamento, e comentou algo assim: “Olhe que tristeza ver isso tudo vazio”.

Não dá para ficar indiferente a episódios dessa natureza. Foi ainda Pelbart que, num

encontro sobre doença mental292, alertou que a desospitalização dos doentes mentais não

garantia o fim dos manicômios e mais, que era, e ainda é, necessário desmontar os

manicômios mentais. Grande desafio proposto por Pelbart, este de derrubar certezas e

desnaturalizar algo que está cristalizado. E foi estimulada por esse desafio que decidi estudar

291 PELBART, Peter Pál. Um desejo de asas. In: A nau do tempo rei. 7 Ensaios sobre o Tempo da Loucura. Rio

de Janeiro: Imago, 1993. p. 23. 292 PELBART, Peter Pál. Manicômio mental – a outra face da clausura. Texto apresentado no encontro em São

Paulo, em 18/05/1989, e organizado pelo Plenário de Trabalhadores em Saúde Mental, em comemoração ao Dia da Luta Antimanicomial. In: Saúde e loucura 2. Direção de Antonio Lancetti. Hucitec: São Paulo, 1990.

Page 134: A Cidade e a Loucura

124

a problemática da loucura em face da questão urbana, afinal toda cidade tem os seus outros,

os seus doidos, que, quando soltos pelas ruas, servem de chacota para as crianças e também

são usados pelos adultos para amedrontar a meninada em tom ameaçador: Lá vem o doido!

Além do mais, a temática da loucura levou muito tempo para que recebesse

tratamento acadêmico por parte da historiografia. Antes de nós, historiadores, os escritores já

haviam enveredado por este tema das mais diversas formas e isto explica as razões pelas quais

eu tenha me aproximado tanto de obras literárias e tenha feito delas o meu local de visitação

constante.

Assim, este trabalho vem com a “ambição” de tentar demonstrar que todo

estranhamento do nosso olhar em relação ao fim dos manicômios — a Rádio Tantã de Santos,

aos grupos teatrais como o Ueinzz do pessoal de A Casa de São Paulo e coordenado por Peter

Pál Pelbart, as residências terapêuticas em Cuiabá (com grandes inscrições sobre os seus

moradores pintadas em seus muros) e tantos outros — é um estranhamento que foi construído

histórica e culturalmente. O recorte temporal (1890–1928), por sua vez, deu-se igualmente

pela influência da intenção explicitada anteriormente e dos resultados da pesquisa empírica, e

porque também (aqui imitando Pechman e sua posição com relação aos urbanistas) não tenho

estômago para adentrar nenhum hospício. Mas...

O pulso ainda pulsa

O pulso ainda pulsa

Peste bubônica, câncer, pneumonia

Raiva, rubéola, tuberculose, anemia

Rancor, cisticercose, caxumba, difteria

Encefalite, faringite, gripe, leucemia

O pulso ainda pulsa (pulsa)

O pulso ainda pulsa (pulsa)

Page 135: A Cidade e a Loucura

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Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia

Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia

Úlcera, trombose, coqueluche, hipocondria

Sífilis, ciúmes, asma, cleptomania

E o corpo ainda é pouco

E o corpo ainda é pouco

Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia

Hérnia, pediculose, tétano, hipocrisia

Brucelose, febre tifóide, arteriosclerose, miopia

Catapora, culpa, cárie, cãibra, lepra, afasia

O pulso ainda pulsa

O corpo ainda é pouco

Ainda pulsa

Titãs - O Pulso293

293 Disponível em <http://www.letras.mus.br>.

Page 136: A Cidade e a Loucura

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