a cidade do amanhã: arquitetura moderna e habitação em hans

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A CIDADE DO AMANHÃ: arquitetura moderna e habitação em hans scharoun e grupo opbouw RIO DE JANEIRO - 2013 TESE DE DOUTORADO EM URBANISMO I PROURB - FAU/ UFRJ ALUNA: MARA OLIVEIRA ESKINAZI ORIENTADOR: PROFA. DRA. LUCIANA DA SILVA ANDRADE (FAU/ UFRJ) CO-ORIENTADOR: PROFA. DRA. GABI DOLFF-BONEKÄMPER (TU BERLIN)

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A C I D A D E D O A M A N H :

arquitetura moderna e habitao em hans scharoun e grupo opbouw

RIO DE JANEIRO - 2013

TESE DE DOUTORADO EM URBANISMO I PROURB - FAU/ UFRJ

ALUNA: MARA OLIVEIRA ESKINAZI

ORIENTADOR:PROFA. DRA. LUCIANA DA SILVA ANDRADE (FAU/ UFRJ)

CO-ORIENTADOR:PROFA. DRA. GABI DOLFF-BONEKMPER (TU BERLIN)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

PROURB - PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM URBANISMO

TESE DE DOUTORADO EM URBANISMO

ALUNA: MARA OLIVEIRA ESKINAZI

ORIENTADOR:PROFA. DRA. LUCIANA DA SILVA ANDRADE (FAU/ UFRJ)

CO-ORIENTADOR:PROFA. DRA. GABI DOLFF-BONEKMPER (TU BERLIN)

A C I D A D E D O A M A N H :arquitetura moderna e habitao em hans scharoun e grupo opbouw

RIO DE JANEIRO - 2013

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Eskinazi, Mara Oliveira. A Cidade do Amanh: arquitetura moderna e habitao em Hans Scharoun e grupo Opbouw/ Mara Oliveira Eskinazi. - Rio de Janeiro: UFRJ/ FAU, 2013. xii, 317f. Il.; 21cm.

Orientador: Luciana da Silva Andrade. Co-orientador: Gabi Dolff-Bonekmper. Tese (Doutorado em Urbanismo) - UFRJ/ PROURB/ Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Programa de Ps-Graduao em Urbanismo, 2013. Referncias Bibliogrficas: p. 310-317.

1. Cidades. 2. Habitao. 3. Arquitetura moderna. I. Andrade, Luciana da Silva. II. Dolff-Bonekmper, Gabi. III. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Ps-Graduao em Urbanismo. IV. Ttulo.

CDD 711.4

iiiTese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Urbanismo (PROURB) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Urbanismo.Aprovada por:

Rio de Janeiro, 28 de Maio de 2013.

A CIDADE DO AMANH:arquitetura moderna e habitao em hans scharoun e grupo opbouw

MARA OLIVEIRA ESKINAZI

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AGRADECIMENTOS

Ao longo desses mais de quatro anos de envolvimento com o doutorado, muitas pessoas e instituies contriburam de diversos modos para a elaborao deste trabalho. Agradeo Luciana da Silva Andrade, pelo apoio, colaborao e pela generosa orientao ao longo de todo o doutorado; Gabi Dolff-Bonekmper, pela co-orientao na TU Berlin; ao CNPq e ao DAAD, pela oportunidade de pesquisa no exterior; aos professores Cladia Cabral, Jos Barki, Maria Cristina Cabral e Ruth Verde Zein, pelas importantes contribuies, sugestes, e consultas informais, em diferentes fases do trabalho, e Carlos Feferman, pelas sugestes de bibliografia; professora Denise Pinheiro Machado, pelo apoio no PROURB e na direo da FAU; Keila Arajo Silva e Norma Cirilo pelo apoio no PROURB e no DARF; s bolsistas de iniciao cientfica do grupo Cidade, Habitao e Educao, Isadora Tenrio de Arajo e Liana Loreto Magalhes, pelo competente auxlio; aos amigos e colegas de PROURB Andressa Martinez, Denise Nunes, Fabola Ribeiro, Joy Till, Maria Elisa Feghali e Sergio Fagerlande, pela troca de ideias e pelo sempre agradvel convvio na FAU e fora dela; aos inicialmente colegas e hoje em dia amigos Ana Slade, Flvia de Faria, Hermano Freitas, Ldia Quieto Viana e Pedro Engel Penter, pelo prazer do convvio e do trabalho conjunto; aos berliner-freunden Carina Corra, Clara Cerqueira, Eva Pfannes, Fernanda Almeida, Gracielle Farah, Lylla Abreu, Hanna Ghler, Jens e Valeska Brinkman e Beate Salazar, pelo apoio fundamental no perodo de doutorado sanduche em Berlim; s amigas presentes nesta e em outras etapas da vida Chris Apovian, Fernanda Weiler, Marianna Senderowicz e Roberta Timponi, por estarem sempre ao lado; Luna e ao Victor; aos meus pais Davit e Maria Celina, responsveis direta e indiretamente por preencher a minha vida com arquitetura desde muito cedo, pelo permanente estmulo e carinho; e ao Raphael, companheiro de vida, pelo amor, cuidado e carinho no dia-a-dia.

Dedico esta tese para V Lila, pelo carinho, pelo cuidado e pelo estmulo, desde sempre.

O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - Brasil.

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... we need to ask ourselves if our methods lead us

to simplified representations of history,

or if they allow us to get closer to some

of the complexities of a multifaceted history.

(PEDRET, Annie. Representing history or describing historical reality?: the universal and the individual in the 1950. Conferncia: Universal vs. Individual: The Architecture of the 1960. Chicago: Illinois Institute of Technology, 2002, p. 1)

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RESUMO ABSTRACT

Considerando o sentido e o alcance singular do tema da habitao para a arquitetura moderna e para o sculo XX, a tese busca discutir a Cidade do Amanh, aquela construda nos anos 1950 a partir dos grandes dficits habitacionais e das demandas urgentes de diversas ordens que se seguiram com o fim da II Guerra Mundial. A partir da anlise e reinterpretao de propostas residenciais modernas desenvolvidas por Hans Scharoun para Berlim e pelos membros do grupo Opbouw para Rotterdam, se pretende desnudar algumas das contradies da arquitetura moderna com a cidade, expondo os dilemas, as complexidades, as riquezas inesperadas e as tentativas no consolidadas da ideia de cidade moderna. A reviso do legado de ideias e de estratgias de projeto deixados pela arquitetura produzida no segundo ps-guerra permite-nos caracteriz-lo como um perodo marcado, simultaneamente, por aspectos de reviso e de continuidade com os princpios de projeto herdados das vanguardas modernas. A partir disso, a investigao se baseia no exame e na comparao das relaes tipomorfolgicas que se estabelecem entre as unidades habitacionais, os edifcios, o tecido urbano e os espaos pblicos nesses dois recortes projetuais, como meio de identificar os recursos empregados por esses arquitetos para estruturao da forma urbana. Para tanto, se partir de um questionamento a alguns dos principais pontos de crtica direcionados a esses projetos como o predomnio da homogeneidade e a ausncia de diversidade e de dilogo com o entorno e com os espaos pblicos. A anlise de projetos habitacionais de arquitetos to distintos, com trajetrias, obras e expresses plsticas igualmente to diferentes, mostra, por um lado, que eles tm, acima de tudo, muito em comum. Isso porque eles esto, na realidade, construindo modelos semelhantes de cidade e de sociedade. Por outro lado, o estudo mostra tambm que esses projetos lidaram, nos anos 1950, com questes que se mantm at hoje pertinentes e atuais, podendo fornecer uma contribuio efetiva para o enfrentamento do problema habitacional e para a melhoria da qualidade do ambiente construdo nas reas residenciais das cidades brasileiras.

Considering the meaning and the unique importance of the theme of dwelling for the modern architecture and for the XX century , this thesis discusses the "City of Tomorrow", which was built from the 50`s on because of the huge habitation deficit and different demands that followed the end of the World War II. Based on the analysis and reinterpretation of modern residential proposals developed by Hans Scharoun for Berlin and by the members of the Opbouw group for Rotterdam, we try to expose some of the contradictions of modern architecture with the city, showing the dilemmas, the complexities, the unexpected richness and the non-consolidated attempts of the idea of modern city. The review of the legacy of ideas and project strategies of the architecture developed in the second post-war allow us to qualify it as a period characterized, simultaneously, for its attempts of continuity and review of the project principles inherited by the modern vanguards. From this the investigation is based on the examination and comparison of the typomorphological relations that are established between the dwellings, the buildings, the urban fabric, and the public spaces in this two choices of project, as a means to identify the resources used by this architects to structure the urban form. For that, we will start with a series of questions related to some of the main criticisms directed to these projects - such as the overall homogeneity, and the absence of diversity and communication with the surroundings and the public spaces. The analysis of residential projects from architects that are so different from one another, with their different trajectories, works and plastic expressions show, on one hand, that they have, above all, much in common. That happens because they are actually building very similar city and society models. On the other hand, the study shows that these projects also dealt, in the 1950`s, with problems that are still relevant and current, providing an effective contribution to the built environment of the residential areas of brazilian cities.

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SUMRIO

PARTE II: QUATRO PROPOSTAS RESIDENCIAIS MODERNAS.............93 4. HANS SCHAROUN EM BERLIM........................................................98 4.1. ALEMANHA E BERLIM.........................................................98 4.2. HANS SCHAROUN..............................................................108 4.3. CLULAS HABITACIONAIS DE FRIEDRICHSHAIN.................131 4.4. CHARLOTTENBURG NORD...............................................151 5. GRUPO OPBOUW EM ROTTERDAM...............................................178 5.1. HOLANDA E ROTTERDAM..................................................178 5.2. GRUPO OPBOUW..............................................................186 5.3. PENDRECHT......................................................................207 5.4. ALEXANDERPOLDER..........................................................219

CONCLUSES.................................................................................265 6. CONCLUSES................................................................................267 6.1. SOBRE AS OBRAS: ALGUMAS DIFERENAS E MUITAS SEMELHANAS........................................................................267 6.2.SOBRE O LEGADO DAS OBRAS: ALGUMAS RECONSDIERAES E MUITAS LIES......................................................................273

ANEXOS.........................................................................................283 7. QUADROS COMPARATIVOS...........................................................285 7.1. QUADRO 1: CONJUNTOS HABITACIONAIS NA ALEMANHA.285 7.2. QUADRO 2: CONJUNTOS HABITACIONAIS NA HOLANDA....290

DOCUMENTAO..........................................................................295 8. LISTA DE ILUSTRAES...................................................................297 9. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................310

INTRODUO..................................................................................01 1. ARQUITETURA MODERNA E HABITAO NO SEGUNDO PS- GUERRA: REVISO E CONTINUIDADE.................................................03 1.1. DO QUE TRATA A TESE.......................................................03 1.2.RAZES PARA REVER AS OBRAS..........................................12 1.3.OBJETIVOS...........................................................................21 1.4. HIPTESE............................................................................25 1.5. PERCURSO TERICO-METODOLGICO...............................26 1.6. ESTRUTURA DA TESE..........................................................34

PARTE I: A CIDADE DO AMANH.....................................................37 2. OS ANOS 1950s..............................................................................44 2.1. O UNIVERSAL E O INDIVIDUAL..............................................44 2.2. O PAPEL DO CIAM NO SEGUNDO PS-GUERRA.....................50 2.3. O CIAM 9 E A CARTA DO HABITAT...........................................58 2.4. A DISSOLUO E O FIM......................................................69 3. O TECIDO HABITACIONAL COMO FORMA URBANA.........................74 3.1. ABERTURA E DESINTEGRAO DO QUARTEIRO..............74 3.2. O TIPO E A VARIEDADE TIPOLGICA..................................78 3.3. O TIPO COMO ELEMENTO ESTRUTURADOR DA FORMA URBANA.......................................................................84 3.4. RELAO COM O ENTORNO, MORFOLOGIA, TIPOMORFOLOGIA....................................................................86

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INTRODUO

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1. ARQUITETURA MODERNA E HABITAO NO SEGUNDO PS-GUERRA: REVISO E CONTINUIDADE

1.1. DO QUE TRATA A TESEAo dogmatismo que se alastra nas propostas urbanas da fase pioneira do Movimento Moderno, hoje opomos a multiplicidade da cidade, considerando-a como um saldo positivo das transformaes produzidas ao longo deste sculo. Aspiramos a uma cidade capaz de englobar muitas situaes diferenciadas, uma cidade que possa expressar a variedade, a articulada heterogeneidade, e, em definitivo, a riqueza da vida urbana. Mas acreditamos que, em grande medida, a cidade moderna no se construiu e que s existe, como virtualidade, na soma das aportaes que configuram a cultura urbana do sculo XX. (...) O interesse por resgatar e ordenar as ideias, os esquemas e as propostas modernas para a residncia nos permite seguir pensando a cidade moderna como aspirao e como expectativa.1

Compartilhando das aspiraes de Mart Ars por resgatar e ordenar as ideias e as propostas modernas para a residncia, esta tese2 se concentra nos temas arquitetura moderna3 e habitao como forma de discutir a ideia de cidade

1 MART ARS, Carlos. Las formas de la residncia em la ciudad moderna. Vivienda y ciudad em la Europa de entreguerras. Barcelona: Edicions UPC, 2000, p. 48. Traduo livre da autora.2 A pesquisa que resultou nessa tese foi desenvolvida junto ao grupo de pesquisa Cidade, Habitao e Educao CiHabE, que atua no Programa de Ps-graduao em Urbanismo (PROURB), na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. O grupo coordenado pela profa. dra. Luciana da Silva Andrade e visa discutir a (re)produo da habitao no contexto da cidade, a partir de pelo menos trs perspectivas: da prpria moradia, da cidade e da educao. A pesquisa contou com a participao e o auxlio das bolsistas do grupo Isadora Tenrio de Arajo e Liana Loreto Magalhes. 3 De incio, se faz necessrio apontar algumas distines entre os termos modernismo, moderno, Movimento Moderno ou ainda Estilo Internacional, e como eles sero aqui adotados. Na historiografia europeia, modernismo caracteriza as correntes da segunda metade do sculo XIX, enquanto que moderno caracteriza aquelas do sculo XX. Para Robert Stern, o modernismo teria comeado na metade do sculo XVIII, enquanto o chamado Movimento Moderno seria sua mais forte fase purista. (Em: MALLGRAVE, Harry Francis; GOODMAN, David. An Introduction to Architectural Theory: 1968 to the Present. Londres: Wiley-Blackwell, 2011, p. 52). No Brasil, usualmente no h distino entre os termos modernismo e moderno, a no ser aquela j bastante difundida defendida por Lcio Costa: Depois de uma coisa, vem outra; ser moderno conhecendo a fundo o passado ser atual e prospectivo. Assim, cabe distinguir entre moderno e modernista, a fim de evitar designaes inadequadas. A arquitetura dita moderna, tanto aqui como alhures, resultou de um processo com razes profundas, legtimas e, portanto, nada tem a ver com certas obras de feio afetada e equvoca estas sim, modernistas. (Em: COSTA,

moderna do segundo ps-guerra. A partir disso, e com nfase em questes projetuais, sugerimos considerar uma reinterpretao e um enfrentamento crtico mais rigoroso de parte da produo realizada nesse perodo, permitindo valoriz-la como modelos de materializao de fragmentos de cidade moderna que retm interesse e valor. Essa reinterpretao ser levada a cabo a partir do enfrentamento de alguns dos principais pontos da crtica consolidada direcionados a esses projetos como o predomnio da homogeneidade e a ausncia de diversidade e de dilogo com o entorno e com os espaos pblicos. Procuraremos, portanto, desnudar, por meio da habitao, algumas das contradies da arquitetura com a cidade moderna, e, a partir disso, revelar parte de sua obscurecida complexidade. Partiremos de um modo de ver a cidade que busca conexes estreitas entre a forma da cidade e sua arquitetura, e entendendo-a, como coloca Carlos Mart Ars, como uma estrutura complexa, apta a englobar situaes diversificadas e a expressar a variedade e a heterogeneidade da vida urbana.4

Lcio. Registro de uma vivncia. So Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 116). J no contexto Europeu e Norte-Americano, o termo Movimento Moderno bastante difundido, como se pode averiguar nos textos de uma srie de autores como Alan Colquhoun, Carlos Mart Ars, John Robert Gold, Josep Maria Montaner, J. M. Richards, Sarah Williams Goldhagen, entre outros. No entanto, Hlio Pion aponta para a superficialidade do termo Movimento, por denotar, segundo ele, algo mais fugaz, como os tantos episdios que se sucederam tentando transplantar o anterior e balizaram a histria da arte e da arquitetura ao longo do sculo XX, com sentido e orientao imprecisos, sustentado pelo mito da mudana perptua: A denominao Movimento Moderno responde, enfim, a um modo vago e impreciso de referir-se a algo irreal, que ao ser assim chamado se converte na aluso nostlgica a um episdio ao qual a histria deu por encerrado quarenta anos atrs. (...) Outra coisa a arquitetura moderna, isto , o modo de conceber especfico que, a partir das vanguardas construtivas neoplasticismo, suprematismo, purismo culmina uma ideia de forma cujas bases tericas se originam na esttica kantiana e se desenvolvem ao longo do sculo XIX na obra dos tericos da arte formalista. (Em: PION, Helio. Teoria do Projeto. Porto Alegre: Livraria do Arquiteto, 2006, p. 32-33). Considerando essas distines, sero adotados aqui preferencialmente os termos moderno ou arquitetura moderna. Quando presente em citaes, os termos Movimento Moderno ou Estilo Internacional sero preservados, mas somente nesses casos. 4 MART ARS, 2000, op. cit.

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O Durante as ltimas quatro ou cinco dcadas, severas crticas foram

direcionadas aos projetos habitacionais modernos, em especial queles cujas caractersticas so fortemente relacionadas com aspectos de padronizao, que ajudaram a (re)construir a paisagem, aps a II Guerra, no s de diversas cidades europeias, mas tambm de cidades norte- ou latino-americanas.5 O grande volume de edificaes, especialmente de cunho habitacional, surgido nos primeiros anos de reconstruo aps a II Guerra, teria servido como propulsor para a consolidao e a hegemonia da arquitetura moderna, que tem origem nos anos 1920 na Alemanha, Holanda, Frana, Rssia e EUA como uma resposta arquitetnica e urbanstica aos problemas sociais e urbanos advindos com o processo de industrializao e o consequente crescimento das cidades e institucionaliza-se com os primeiros CIAMs, Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, especialmente conectados ao tema da habitao. Ou seja, as iniciativas dos anos 1920 e 1930 situam-se num ponto de partida, prximas ao momento de inaugurao do CIAM e da fundao de novos repertrios que careciam ainda de validao cultural e poltica. Por outro lado, a produo habitacional estabelecida no mbito do segundo ps-guerra se situa numa outra ponta, num momento em que a arquitetura e o urbanismo modernos so j uma tradio largamente divulgada e consolidada, mas que comeam a ser questionados.

Este momento subsequente, compreendido entre as primeiras iniciativas

5 Alm da perda de controle e da reduo da qualidade da arquitetura, questes diretamente relacionadas com o grande volume de construes, diversos outros fatores deram origem, com maior ou menor frequncia, para tais criticas. A separao dos diferentes elementos funcionais da cidade, a homogeneidade e a descontinuidade com a trama urbana, a perda de sentido que relaciona-se com questes como o tamanho e o isolamento dos elementos urbanos , a eliminao do espao urbano perceptvel e a adoo de espaos urbanos ilimitados e abstratos, o predomnio da habitao verticalizada que remete a uma continuidade na conexo da arquitetura moderna com a habitao social e a prioridade dada circulao de automveis so alguns exemplos. De acordo com Alan Coulqhuon, todas essas so questes localizadas no cerne do problema da arquitetura moderna. Em: COLQUHOUN, Alan. Arquitetura moderna y cambio histrico. Ensayos 1962-1976. Barcelona: Gustavo Gilli, 1978, p. 104.

Fig. 01 - Cidade vertical, Ludwig Hilberseimer, 1924.[Fonte: MART ARS, Carlos. Las formas de la residncia em la ciudad moderna. Vivienda y ciudad em la Europa de entreguerras. Barcelona: Edicions UPC, 2000, p. 27]

Fig. 02 - Plan Voisin, Le Corbusier, 1925.[Fonte: Wikimedia Commons]

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Ode reconstruo de cidades abaladas pela II Guerra Mundial at o fim dos

anos 1950 e incio dos 1960, ficou marcado por industrializao crescente, crescimento econmico vultuoso e por acentuada prosperidade.6 Muitos novos empregos foram criados, e esse aumento no nmero de empregos alterou profundamente a estrutura de trabalho e a sociedade. Esse perodo coincide com aquele da dissoluo do CIAM e da concomitante emergncia de um grupo de arquitetos europeus, vinculados ao Team 10, que comea a se empenhar na reviso dos princpios cannicos da arquitetura moderna, especialmente por meio da questo habitacional. Esse perodo ficou marcado na histria como um momento de transio, em que a arquitetura moderna comea a estar no alvo de numerosas crticas ou, de acordo com Sarah Williams Goldhagen, 7 como um interregno8 entre uma decadente arquitetura moderna e uma florescente chamada ps-moderna.9

6 Para uma mais detalhada contextualizao sobre as condies do ps-guerra na Europa, ver: JUDT, Tony. Ps-Guerra: Uma histria da Europa desde 1945. So Paulo: Editora Objetiva, 2008. 7 GOLDHAGEN, Sarah Williams; LEGAULT, Rjean. Anxious Modernisms. Experimentation in Postwar Architectural Culture. Montreal: Canadian Centre for Architecture, 2000, p. 11.8 Os termos vcuo ou interregno foram encontrados fazendo referncia ao perodo compreendido entre os anos 1950 e 1960 em algumas publicaes. Entre elas, podemos citar: OCKMAN, Joan. Architecture culture 1943-1968: a documentary anthology. Nova York: Rizzoli, 1993; GHIRARDO, Diane. Architecture after modernism. Nova York: Thames and Hudson, 1996; GOLDHAGEN, Sarah Williams e LEGAULT, Rjean. Anxious Modernisms. Experimentation in Postwar Architectural Culture. Montreal: Canadian Centre for Architecture, 2000; e, no mbito brasileiro, em CABRAL, Cludia Piant Costa. Grupo Archigram, 1961-1974. Uma fbula da tcnica. Barcelona: UPC, Tese de Doutorado, 2001. 9 O termo arquitetura ps-moderna est sendo aqui empregado para designar a produo arquitetnica vinculada ao perodo compreendido entre os anos sessenta e as duas dcadas seguintes e que tratou de questionar os limites do programa moderno. No entanto, visto que esse rtulo passou a resumir um conglomerado, nem sempre coerente, de posicionamentos tericos e crticos que aconteceram ao longo dessas trs dcadas, adquirindo distintos sentidos e referncias, uma vez que abarca, em uma mesma definio, programas tericos e artsticos de ndole muito diversificada, o termo ser aqui adotado com ressalvas, por isso entre aspas. Se ao fim do sculo aplicarmos posmodernidade seu prprio remdio de produto de poca, sua mesma conscincia de esgotamento, s pareceria restar-nos, pois, a duvidosa utilidade de um rtulo que nomeia um gesto de crtica ou rechao. (...) A modernidade um processo (no

Fig. 03 - Cochran Gardens, Minoru Yamasaki, St. Louis, EUA, 1952.[Fonte: http://preservationresearch.com/2009/09/cochran-gardens-replacement-complete/]

Fig. 04 - Edifcios Grindel, Bernhard Hermkes, Hamburgo, Alemanha, 1949-1956.[Fonte: DOLFF-BONEKMPER, Gabi e SCHMIDT, Franziska. Das Hansaviertel - Internationale Nachkriegsmoderne in Berlin. Berlim: Verlag Bauwesen, 1999, p. 20]

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O Na Europa do ps 1945, que apresentava parte dos seus territrios ocidentais

e orientais arrasados, enquanto a primeira questo colocada dizia respeito sobrevivncia, a segunda referia-se garantia de um teto sobre a cabea da populao ou seja, a nfase deveria ser mais na prosa do que na poesia, mais nas normas do que nas ideias originais. 10 Nessa conjuntura, o paradigma central para a produo arquitetnica, amplamente baseado numa massiva produo habitacional, foi consideravelmente modificado quando comparado com a situao anterior. Acompanhando o desenvolvimento das tcnicas de manejo com as questes urbanas e com as polticas habitacionais, desponta uma correspondente extrapolao dos princpios de projeto relacionados habitao, devido, principalmente, a caractersticas especiais do contexto de reconstruo de cidades abaladas pela guerra, como a alta demanda habitacional e a urgncia em reconstruo. Obras individuais de arquitetos como Le Corbusier, Alvar Aalto, John Utzon ou Arne Jacobsen se destacaram num pano de fundo de edifcios modernos relativamente neutros que forneceram solues para uma srie de problemas imperativos, como os de higiene e abrigo, mas que muitas vezes foram realizados em ritmo de urgncia, com oramentos reduzidos e em grandes escalas, originando uma produo em parte regida por frmulas mais abstratas e menos atentas aos detalhes e s particularidades das circunstncias locais.11 Prova dessa intensificao na produo que, nos anos subsequentes a II Guerra Mundial, as taxas de produo anual alcanaram valores prximos ao dobro do entre-guerras.12

um progresso) inacabado que seria necessrio diferenciar cuidadosamente do acmulo de imagens que se apressaram em retratar, corrigir ou dominar. (THIEBAUT, Carlos. La mal llamada postmodernidad (o las contradanzas de lo moderno). Un rtulo confundente y cuatro problemas. Em: VALERIANO, Bozal. Historia de las ideas estticas y de las teorias artsticas contemporneas. Volume II. Madrid: Visor, 1996, p. 311-327. Traduo livre da autora.)10 CURTIS, William J. R. Modern architecture since 1900. Londres: Phaidon, 1999, p. 471.11 CURTIS, 1999, op. cit., p. 471.12 ROWE, Peter G. Modernity and Housing. Cambridge: The MIT Press, 1993, p. 218.

Figs. 05 e 06 - Vista area e implantao de Pruitt Igoe, Minoru Yamasaki, St. Louis, EUA, 1950-1954.[Fonte: http://www.archdaily.com]

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OOu seja, as reconstrues massivas do ps-guerra13, ao mesmo tempo que

possibilitaram a consolidao da frmula ensaiada de modo pioneiro nos anos 1920, tambm acabaram por estabelecer o modelo de cidade ideal homognea e monofuncional como soluo cannica ao problema da moradia moderna nos anos 1950. Ademais, em funo da conjuntura da poca, esse mesmo modelo acabou sendo repetido muitas vezes acrtica e acomodadamente. Tudo isso, somado a interpretaes simplificadoras de parte da complexa produo do perodo, pode ter levado ao naufrgio conceitos importantes da arquitetura moderna, que, ao serem empregados e disseminados de forma acrtica, levaram parte da boa arquitetura moderna produzida nos anos 1950, justa ou injustamente, ao seu descrdito e esgotamento - como diz Carlos Mart Ars:

Deste modo se consolida uma frmula, j ensaiada nos anos vinte e que, ao longo dos trinta, se impe como soluo cannica ao problema da vivenda moderna. A repetio acrtica e acomodada desta frmula, especialmente nos anos posteriores II Guerra Mundial, acabou por conduzi-la ao seu descrdito e esgotamento.14

No entanto, um olhar mais aproximado para algumas das materializaes das propostas residenciais modernas realizadas no mbito do ps-guerra que foram, exceo de Braslia, de um modo geral, extremamente fragmentrias, resumindo-se a bairros, trechos de bairros ou conjuntos habitacionais mostra que nem todos os projetos construdos no perodo seguem o padro

13 A industrializao da construo, cujo desenvolvimento e modernizao manifesta-se no ps-guerra na forma dos grandes conjuntos habitacionais construdos principalmente nos subrbios das cidades, torna-se a forma favorita de construir no perodo e atuou como soluo para as questes habitacionais em pases como Alemanha, Holanda, Frana, Inglaterra, Estados Unidos e tambm nos pases escandinavos. No entanto, no caso da Alemanha em especial, a produo do ps-guerra foi bastante diferente quando comparada a Alemanha Ocidental e a Oriental. Os pases do bloco do leste impuseram a grande barra habitacional construda com elementos pr-fabricados principalmente como uma doutrina poltica, e no s como uma questo tecnolgica, como foi o caso no oeste.14 MART ARS, 2000, op. cit., p. 37. Traduo livre da autora.

Fig. 07 - Demolio de Pruitt-Igoe, em 16 de maro de 1972.[Fonte: Wikimedia Commons]

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O homogneo com blocos idnticos e repetidos de zoneamento monofuncional

da cidade ideal pretendida pelo receiturio urbanstico sancionado por Sert e pelo CIAM em Can Our Cities Survive? (1942) e por Le Corbusier em Urbanismo (1925) ou em sua verso da Carta de Atenas (1943), nem esto de acordo com todo o conjunto normativo do CIAM.

Alm disso, algumas construes arquitetnicas levadas a cabo no perodo mostraram apresentar relaes significativamente mais complexas do ponto de vista espacial, compositivo e programtico na configurao do seu ambiente construdo e na articulao dos seus componentes fsico-funcionais urbanos do que aquelas pelas quais foram comumente retratadas. Isso permite supor que redues e generalismos possam ter obscurecido parcela importante dessa produo e dificultado a compreenso de um legado de ideias e de instrumentos operativos que so caros herana histrica da arquitetura moderna.

Assim, considerando, por um lado, que a arquitetura moderna foi reabilitada nos ltimos anos, mas a cidade moderna no; e, por outro, o papel central que a questo da habitao desempenha no projeto moderno,15 o foco principal da

15 Esse papel central manifestado no perodo do entre-guerras, no interior do prprio CIAM, em suas quatro primeiras edies, onde os temas Habitao Social e Cidade Funcional foram eleitos como fundamentais para criar uma ideia de continuidade entre os sucessivos Congressos. Minuciosos estudos foram promovidos sobre a clula habitacional, seu arranjo em unidades ou blocos, e, por fim, chegando na concepo de cidade funcional. Essas discusses refletiam a ideia de que a organizao do espao moderno iniciava na resoluo da clula habitacional para alcanar o arranjo adequado em termos da cidade. Alm disso, o papel central desempenhado pela habitao no contexto da arquitetura moderna tambm manifesta-se por meio da Carta de Atenas, documento e manifesto urbanstico que contem uma lista de normas e princpios que o projeto urbanstico moderno deveria apresentar, produzido durante o IV CIAM, realizado em Atenas, e publicado somente em 1942 por Le Corbusier e Jos Luis Sert:Terceira Parte Concluses. Pontos de doutrina:88 - O nmero inicial do urbanismo uma clula habitacional (uma moradia) e sua insero num grupo formando uma unidade habitacional de propores adequadas. 89 - a partir dessa unidade-moradia que se estabelecero no espao urbano as relaes entre a habitao,

Fig. 08 - Churchill Gardens, Philip Powell e Hidalgo Moya, Londres, 1947-53.[Fonte: DOLFF-BONEKMPER, SCHMIDT, 1999, op. cit., p. 21]

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Opesquisa concentra-se em discutir a cidade moderna dos anos 1950, partindo

da anlise e da reconsiderao de alguns episdios particulares relacionados a projetos habitacionais que abarcam parte da diversidade e da complexidade do perodo, como forma de compreender as ideias de reviso e continuidade do quadro que caracteriza o ps-guerra, momento em que se produzem essas iniciativas habitacionais. nessa confluncia que se pretende problematizar questes tericas e projetuais que influenciam tanto o entendimento histrico do legado moderno, quanto a situao arquitetnica presente. No entanto, no foco da pesquisa promover uma reconstruo do perodo baseada em fatos ou na montagem de uma histria cronolgica das iniciativas arquitetnicas de produo habitacional mais ou menos significativas inseridas no recorte temporal e projetual aqui proposto.

Segundo esta perspectiva, e focando em iniciativas habitacionais localizadas no perodo compreendido entre o fim da II Guerra Mundial (1945) e a construo do Muro de Berlim (1961), tomaremos como estudo de caso a anlise comparativa de fragmentos de cidade moderna (arquiteturas projetadas ou construdas) por meio de conjuntos habitacionais projetados pelo arquiteto Hans Scharoun para Berlim, na Alemanha, e pelo grupo Opbouw que teve entre seus membros, Jacob Berend Bakema, Johannes Van den Broek, Lotte Stam-Beese, Mart Stam e Willem van Tijen, entre outros para Rotterdam, na Holanda. Na obra de Scharoun, sero analisados os projetos para as

os locais de trabalho e as instalaes consagradas s horas livres. (Em: Carta de Atenas (1933). Assembleia do CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, novembro de 1933. Disponvel em , acessado em 15 de abril de 2011).J nos anos 1950, a discusso que caracteriza o perodo volta-se novamente para a questo da habitao, girando em torno do Habitat, assunto fundamental para a consolidao do Team 10 e para a emergncia dos indcios da crise do funcionalismo no perodo. O Team 10 propunha que as discusses sobre arquitetura e habitao fossem apoiadas nas inter-relaes humanas no espao, e ressaltava a importncia da incorporao desses espaos complementares s unidades de habitao como elementos fundamentais para a constituio da sociabilidade e para a manuteno dos valores culturais essncias do homem.

clulas habitacionais de Friedrichshain (pequena parte construda, porm com modificaes) e para Charlottenburg Nord (construdo); na do grupo Opbouw, sero objeto de estudo os projetos para Pendrecht (construdo) e para Alexanderpolder (no-construdo). A escolha fundamenta-se no papel de destaque desempenhado por ambos os pases no nascimento e no desenvolvimento da arquitetura moderna no contexto europeu, e na importncia e abrangncia da atuao desses arquitetos, principalmente por meio de projetos de cunho habitacional, no contexto de reconstruo de Berlim e Rotterdam. Ambas as cidades foram gravemente arrasadas pelos bombardeios da II Guerra Mundial e exploraram a oportunidade advinda com a necessidade de reconstruo com a implementao de uma srie de projetos relacionados com a habitao coletiva.

A investigao se basear no exame e na comparao das relaes tipomorfolgicas16 que se estabelecem entre as unidades habitacionais, os edifcios, o tecido urbano e os espaos pblicos nesses dois recortes projetuais, como meio de identificar os recursos empregados para estruturao da forma urbana. Para tanto, se partir de um questionamento das criticas mais simplificadoras direcionadas essa produo. Essa perspectiva de abordagem d sequncia pesquisa desenvolvida ao longo do curso de mestrado, que centrou-se no estabelecimento de uma reflexo crtica e analtica da Interbau (Internationale Bauausstellung) 1957 em Berlim, primeira Exposio Internacional de Arquitetura ocorrida aps a II Guerra Mundial, que exemplificou o que de melhor a arquitetura e o urbanismo modernos ofereciam em termos de habitao social.17 Sob o lema Die Stadt von Morgen (A

16 O conceito de tipomorfologia est desenvolvido e explicitado no Captulo 3.4. Ele foi aqui adotado como forma de entender a relao entre a tipologia arquitetnica e a morfologia urbana e suas implicaes para a anlise das estruturas dos fragmentos de cidade moderna que so aqui objeto de estudo. 17 A pesquisa foi realizada entre 2005 e 2008 junto ao Programa de Pesquisa e Ps Graduao em Arquitetura (PROPAR) da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), sob a orientao da professora Dra. Cludia Piant Costa Cabral, e resultou na dissertao A Interbau 1957 em Berlim diferentes formas de

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O cidade do amanh), a Interbau reconstruiu o Hansaviertel, bairro oitocentista

de localizao central em Berlim e arrasado com os bombardeios da II Guerra Mundial, produzindo uma grande variedade de tipos habitacionais, que acabaram por expressar uma gama de diferentes possibilidades de habitar na cidade moderna. A iniciativa tambm promoveu uma mescla de habitaes com outras atividades tradicionais presentes na vida urbana, como comrcio, escola, teatro, museu, biblioteca e igrejas, manifestando, com isso, alm da variedade tipolgica, tambm uma expressiva diversidade funcional. Alm disso, tambm o traado virio adotado no Hansaviertel foi baseado no modelo da antiga malha urbana do bairro, e mesmo no havendo homologia direta entre a configurao da rua e a da edificao, a regra no quarteiro tradicional edificado perimetralmente, sobra coordenao entre o projeto dos edifcios e o projeto dos espaos abertos.

Assim, mesmo que, em diversos aspectos, o projeto de reconstruo do Hansaviertel tenha se pautado no modelo de cidade ideal pretendido pela arquitetura moderna, a mescla de tipos e de funes e o modo como os diferentes tipos relacionam-se com a morfologia urbana, esto coordenados com os espaos abertos e auxiliam na estruturao da forma urbana acaba, de certa forma, por contestar o zoneamento monofuncional ditado pela Carta de Atenas18 e a viso generalista de que a cidade moderna consiste em uma

habitar na cidade moderna, defendida em 2008, e no livro Interbau Berlim 1957 Hansaviertel: a cidade do amanh, publicado em 2011 pela Ponteio Edies. 18 Segunda Parte Estado Atual Critico das Cidades. Habitao Observaes:15 - Essa distribuio parcial da habitao sancionada pelo uso e por disposies idlicas que se consideram justificadas: o zoneamento.18 - arbitrria a distribuio das construes de uso coletivo dependente da habitao.Terceira Parte Concluses. Pontos de doutrina:77 As chaves do urbanismo esto nas quatro funes: habitar, trabalhar, recrear-se (nas horas livres), circular.78 - Os planos determinaro a estrutura de cada um dos setores atribudos s quatro funes-chave, e eles fixaro suas respectivas localizaes no conjunto. (Em: Carta de Atenas, 1933, op. cit.)

Fig. 09 - Hansaviertel, em Berlim, Alemanha, 1957.[Fonte: Bezirksamt Tiergarten von Berlin. Das Hansaviertel 1957-1993. Konzepte, Bedeutung, probleme. Berlin: Verwaltungsdruckerei, 1993, p. 41]

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Orepetio mecnica e acrtica de blocos habitacionais idnticos sem relao

com o entorno ou com os espaos abertos sua volta. Ou seja, a pesquisa demonstrou que a Interbau apresenta uma srie de diferenas com relao s vises mais simplificadoras do urbanismo das vanguardas modernas. Assim, ela tambm evidenciou que no necessrio que uma proposta esteja de acordo com todo o conjunto normativo dos CIAMs para que seja valorizada como um modelo bem sucedido de materializao de um fragmento de cidade moderna.

Essas constataes acabaram por questionar dois aspectos j consolidados da crtica arquitetura e ao urbanismo produzidos pela cultura moderna no perodo que sucedeu ao fim da II Guerra, debate para o qual a presente tese pretende contribuir. Enquanto o primeiro questiona a perspectiva de que os projetos habitacionais modernos partiriam de uma simples reproduo de regras mecnicas de repetio, cujo nico resultado possvel seria a homogeneizao simplificadora, o segundo questiona a ideia de que os projetos modernos no levariam em conta os dilogos que se estabelecem entre as esferas da unidade habitacional, do edifcio e dos espaos abertos criados sua volta, partindo do pressuposto de que, na cidade moderna,19 essas relaes no podem ser entendidas sob a mesma lgica presente na cidade tradicional20 de identificao de continuidades ou homologias. Ambos

19 A cidade moderna ou cidade funcional tem a edificao isolada em altura como figura e o espao aberto contnuo, de acessibilidade no controlada, coletivo escala da cidade, como fundo. Ela apresenta especializao funcional de suas estruturas fsicas e territrios, bem como segregao espacial entre diferentes tipos de atividades e fluxos no territrio urbano em grande escala. Ao mesmo tempo, favorece a baixa ocupao do solo e o tratamento independente do projeto virio, do espao edificvel e do espao aberto, possibilitando a coletivizao total dos espaos abertos. O espao privado o interior da edificao, enquanto os espaos pblicos so os espaos abertos na escala da cidade. 20 O termo cidade tradicional aqui empregado para identificar a cidade pr-moderna que existiu no Ocidente at o incio da Revoluo Industrial, ou a cidade figurativa, como definido por Comas (COMAS, Carlos Eduardo. Cidade Funcional X Cidade Figurativa. Revista Oculum Revista Universitria de Arquitetura,

aspectos apresentam em comum o fato de, de certa forma, contestarem alguns ideais modernos estabelecidos pela Carta de Atenas, e, deste modo, ao questionarem os limites impostos pela Carta ao enfrentamento da complexa realidade do tema da habitao moderna, tornaram-se fundamentais para a reviso a ser empreendida.

1.2. RAZES PARA REVER AS OBRAS No incio do sculo XX, a habitao adquire um papel central para a arquitetura e o urbanismo, podendo a relao entre a arquitetura moderna e a habitao ser descrita como uma estreita relao de origem.21 A partir do reconhecimento do especial significado que a questo da habitao exerce para o desenvolvimento da arquitetura e do urbanismo modernos ao longo do sculo XX, destacam-se dois momentos no tempo que, com maior frequncia, tem servido de base para as discusses sobre o assunto. O primeiro concentra-se no entre-guerras, no intervalo compreendido entre os anos 1920 e 1930,

Urbanismo e Cultura, vol. 4, 1993). Seus componentes se definem pelas caractersticas morfolgicas. Subdividida em bairros e estruturada em ruas, praas e quarteires, os limites desses componentes da cidade tradicional ou figurativa so planos construdos, em regra contnuos e alinhados, resultantes da justaposio das fachadas dos prdios. A imagem resultante a que identifica espaos abertos discretos entre ruas e praas como figura e o tecido construdo contnuo como fundo. H interdependncia entre o projeto da rua, da edificao e do espao aberto no interior do quarteiro, e uma grande diversidade de estatutos dos espaos abertos. O espao privado configurado pelo quarteiro composto de edificaes, enquanto os espaos pblicos so formados pelas ruas e praas.21 A partir do incio do sculo XX, uma notvel quantidade de moradias comea a ser construda rapidamente, e a baixo custo, como forma de tentar resolver uma situao deficitria cujas origens remontam a diversas causas: exploso demogrfica e populacional nas cidades, dficits habitacionais ocasionados pela I Guerra Mundial, insalubridade das moradias populares como as Mietkasernen e os cortios, crise econmica de 1929, entre outros. Ao longo do sculo, essa carncia de alojamentos agravou-se pelas destruies da II Guerra Mundial, e ampliou-se em seguida com o movimento de migrao rural para os grandes centros urbanos que acompanha a radical transformao da agricultura e da indstria at o fim dos anos 1960. Em: HALL, Peter. Cidades do Amanh. So Paulo: Editora Perspectiva, 1995.

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O perodo que coincide com o eufrico e prtico momento de emergncia e

desenvolvimento da arquitetura moderna, e que colheu os frutos da produo das vanguardas modernas, identificadas com uma progressiva confiana no futuro; novos materiais, novas tcnicas de fabricao e de construo, novas relaes sociais, ou, no mnimo, suas promessas, significaram novas formas para uma nova poca. Esse momento coincide tambm com a segunda revoluo industrial e a nfase na produo em massa, que trouxe questes como a operacionalizao eficiente, a organizao e a estandardizao no s na arquitetura e no urbanismo, mas em todos os campos da vida.22

Nesse perodo, diversos conjuntos habitacionais foram construdos nas cidades europeias, tanto a partir das demandas decorrentes dos dficits habitacionais provocados pela I Guerra Mundial, quanto das demandas oriundas dos graves problemas habitacionais, como falta de higiene, ventilao e iluminao adequadas, problemas presentes no final do sculo XIX em uma srie de cidades europeias. Com presena marcante especialmente em cidades como Berlim, Rotterdam e Frankfurt, essas aglomeraes, construdas sobretudo nas periferias urbanas, foram peas fundamentais para o processo de afirmao da arquitetura moderna. atravs da difuso destes projetos que a frmula ensaiada de modo pioneiro nos anos 1920 e que, ao longo dos 1930 se imps como soluo cannica ao problema da moradia moderna, se consolida.

tambm a partir desse momento que se pode comear a falar na ocorrncia de uma inverso de valores na cidade moderna em relao ao que objeto e o que textura, reforando o entendimento do carter inovador que tem a habitao para a arquitetura moderna na primeira metade do sculo XX. A produo em massa na arquitetura, que foi encabeada pela habitao, permitiu-a ser vista sob uma nova tica, em que a repetio dos elementos construtivos era desejada, na medida em que estava em consonncia com

22 ROWE, 1993, op. cit., p. 71-73.

a esttica e com as necessidades da indstria. Assim, na cidade moderna, o protagonismo passa a ser exercido pela sua textura, constituda pela habitao, que torna-se com isso o elemento gerador da forma urbana, e no pelos seus objetos excepcionais:

Para fazer justia ao papel central que tem a questo da habitao no projeto moderno, e entender o carter realmente inovador desse papel, preciso dar-se conta de um deslocamento. Por primeira vez, retira-se a ateno do monumento, do singular, do que excepcional, como era at ento a tradio da arquitetura, para conceder ateno justamente ao que comum, igual para todos, repetitivo e massivo, que at ento havia recebido uma ateno pequena ou nula por parte da histria da arquitetura, descontados os reformadores sociais do sculo XIX. Ao eleger a moradia como questo central o tecido constitutivo da cidade moderna que passa a ter protagonismo, e no suas situaes de exceo.23

Enquanto isso, um segundo momento, localizado entre os anos 1970 e 1980, que coincide com um perodo de maiores instabilidades e incertezas, e com uma proclamada condio ps-moderna, buscava dar respostas a questes que supostamente haviam sido deixadas em aberto pelas vanguardas modernas, como a relao com o contexto local e com os distintos pontos de vista culturais. Esse momento tambm coincidiu com o surgimento de novos arranjos tecnolgicos que apagaram a rigidez original da segunda revoluo industrial, e levaram para uma maior flexibilidade organizacional e para uma produo e consumo mais individualizados. Como resultado, se viu em alguns casos uma busca por outras ordens expressivas e espaciais localizadas principalmente na histria, conjugando imagens de pocas passadas, repletas de referncias iconogrficas neoclssicas.24 Destaca-se, nesse perodo, a iniciativa da IBA 1987, realizada em Berlim, que reconstruiu reas centrais da

23 CABRAL, Cludia Piant Costa. Do Weissenhofsiedlung ao Hansaviertel, a arquitetura moderna e a cidade pensadas desde a habitao. Prefcio de: ESKINAZI, Mara Oliveira. Interbau Berlim 1957 Hansaviertel: a cidade do amanh. Rio de Janeiro: Ponteio Edies, 2011.24 ROWE, 1993, op. cit., p. 71-73.

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Ocidade a partir de um reconhecimento da importncia da continuidade para

com seu tecido histrico tradicional.25

Entretanto, o perodo compreendido entre esses dois momentos, caracterizado especialmente pelas iniciativas de construo habitacional localizadas aps a II Guerra, permanece at hoje com menor destaque. um perodo pleno de contradies, pois caracteriza-se, simultaneamente, como o pice da arquitetura moderna, mas tambm como o momento em que este mesmo movimento comea a estar no alvo de diversas crticas. 26

Nesse perodo, a questo da habitao est de acordo com as discusses em curso no entorno das atividades do CIAM, mas tambm da destacada atuao do Team 10 no perodo. O Team 10, grupo de jovens arquitetos27 que emergiu do CIAM e que tem participao ativa nos Congressos, comea a surgir no CIAM 9, mas se consolida efetivamente durante o CIAM 10, realizado em 1956 em Dubrovnik, quando, liderados por Alison e Peter Smithson, John Voelcker, Jacob B. Bakema e Aldo van Eyck, propem a extino do CIAM. Seu nome se deve ao fato de o grupo ter sido encarregado, durante o CIAM 9, em 1953, de organizar a dcima edio do Congresso. O CIAM 9 acabou em conflitos com representantes da antiga gerao, como Le Corbusier, Gropius e Giedion. Mas

25 Sobre a IBA 1987, ver PASSARO, Las Bronstein. Fragmentos de uma crtica: revisando a IBA de Berlim. Tese de doutorado. Barcelona: UPC, 2002.26 A presente pesquisa se soma pesquisa Arquitetura na segunda era da mquina: projeto, arte e experimentao nos anos sessenta, desenvolvida pela profa. Cludia Piant Costa Cabral junto ao PROPAR/ UFRGS, que procura analisar o contexto dos anos 1960 no cenrio arquitetnico internacional, tratando de compreender a produo desse perodo no a partir da pergunta simplificadora se seriam estas arquiteturas a apoteose do modernismo ou o princpio do ps-modernismo, mas entendendo o perodo como dotado de complexidade e consistncia terica singular, j que sua produo, ao mesmo tempo que se articula com a modernidade, tambm incorpora a possibilidade de discutir criticamente seus postulados. Em: CABRAL, Cludia Piant Costa. Arquitetura na segunda era da mquina: projeto, arte e experimentao nos anos sessenta. Projeto de Pesquisa. Porto Alegre: PROPAR/ UFRGS, 2005.27 O Team 10 inclua entre seus membros nomes como Aldo van Eyck, Jacob Berend Bakema, Alison and Peter Smithson, Giancarlo de Carlo Georges Candilis e Shadrach Woods.

o Team 10 j existia efetivamente como grupo intelectual desde 1954, e assim permaneceu por aproximadamente 30 anos, at o incio dos anos 1980. Seus membros clamavam por um novo humanismo na construo do ambiente, e pelo fim do zoneamento setorial e da separao entre habitao, trabalho, lazer e transporte, e outras doutrinas funcionalistas determinsticas do CIAM, propagando, ao contrrio, uma interconexo entre a casa, a rua, o bairro e a cidade. Contudo, sua primeira fase de atuao, concentrada entre 1954 e 1959, ou seja, temporalmente paralela ao foco desta pesquisa, caracteriza-se ainda por uma ligao do grupo com as atividades do CIAM. justamente nesse perodo que a discusso volta-se novamente para a habitao, aparecendo especialmente por meio da Carta do Habitat, ponto essencial para a consolidao do Team 10.28 As novas ideias do Team 10 e suas crticas velha guarda por fim levaram dissoluo do CIAM enquanto organizao, e os membros do Team 10 comearam a desenvolver seus projetos e reunies organizadas independentemente at a morte de Bakema, em 1981.

neste contexto de desenvolvimento da tradio moderna, localizado temporalmente ao redor dos anos 1950, que a presente investigao se insere, tratando de consider-lo, contrariando o que dizem as principais narrativas, no como um interregno ou um perodo de vcuo entre a arquitetura moderna e a chamada ps-moderna, mas sim como um momento marcado por uma intensa e rica produo. 29 Esse perodo configura-se tambm como o

28 BARONE, Ana Cludia Castilho. Team 10: arquitetura como critica. So Paulo: Annablume, 2002, p. 61-64.29 As narrativas em questo so as que fomentam a aceitao de que a arquitetura moderna teria morrido durante os anos do imediato ps-guerra, a partir de crticas internas que apontaram problemas e falhas intrnsecos aos princpios de fundao da arquitetura moderna. Segundo Sarah Willians Goldhagen (GOLDHAGEN; LEGAULT, 2000, p. 12), essas narrativas deixam de lado uma segunda histria, a de um envolvente e poderoso modernismo. Exemplos dessas narrativas, escritas por arquitetos ou mesmo por profissionais de outras reas que foram abandonando os princpios modernos comeam a aparecer em publicaes escritas aproximadamente na mesma poca em que Alison Smithson publica o Team 10 Primer, de 1962. Entre eles, podemos citar: Jane Jacobs que, em Death and Life of Great American Cities

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O antecessor imediato dos maiores questionamentos realizados sobre a cidade

moderna, e pode ser considerado como aquele em que as principais crticas comearam a ser semeadas e, portanto, que as posies comeam a precisar ser validadas.

Este tambm um momento de produo vasta e, com isso, intensamente plural. A amplitude da produo proporcionada pelas circunstncias do perodo de reconstruo gerou um leque amplo de solues, e os arquitetos, mesmo que trabalhando sob um pano de fundo comum, baseados em um mesmo conjunto de temas fundamentais, adotaram posies diferentes, gerando respostas e projetos de edifcios significativamente diversos uns dos outros.

Ainda que alguns autores j tenham comeado a demonstrar que o leque plural de operaes presentes no ps-guerra no s uma caracterstica do perodo, como um fator determinante para o entendimento do legado moderno e para o desenvolvimento da cultura arquitetnica moderna at os dias de hoje, ainda no se pode afirmar que esta seja uma noo totalmente consolidada.

Sarah Willians Goldhagen,30 referencial a partir do qual foram encontrados

faz sucessivas crticas urbansticas e sociais cidade moderna que resultaram na demolio de muitos conjuntos habitacionais, sinalizando o surgimento da arquitetura chamada ps-moderna tal qual foi desenvolvida nos anos 1970; Robert Venturi que, em Complexidade e Contradio em Arquitetura, escrito em 1962 mas publicado somente em 1966, sugere que os arquitetos substituam a linguagem moralmente puritana da arquitetura moderna ortodoxa e sua bvia unidade por complexidade e bagunada vitalidade; Christian Norberg-Schulz que, em Intentions in Architecture, de 1963, sugere uma nova e integrada teoria ambiental na qual a vida cotidiana adquire sentido a partir de relaes de continuidade cultural e histrica; e Bernard Rudofsky, que, em Architecture without Architects, d significado para a arquitetura vernacular, entre outros. Todos esses trabalhos relacionam as formas urbanas com foras sociais e contrape as ortodoxias da arquitetura moderna reconhecendo a necessidade de mudanas sociais. 30 GOLDHAGEN, Sarah Williams; LEGAULT, Rjean. Anxious Modernisms. Experimentation in Postwar

os pressupostos tericos para o desenvolvimento dessa pesquisa, uma das principais divulgadoras desse entendimento atualmente. Ela monta um quadro extremamente plural passando por Michel cochard, Georges Candilis, o grupo africano ATBAT, Alison e Peter Smithson, Richard Neutra, Cedric Price, Eero Saarinen, os projetos para reconstruo de Berlim (incluindo o Kollektivplan de Hans Scharoun), Paul Rudolph, Bernard Rudofsky, a atuao da Situacionista Internacional, Jacob Berend Bakema, at os metabolistas japoneses , mas que contudo no completo. Goldhagen tambm demonstra que, apesar da diversidade de prticas individuais e das diferenas nos contextos onde os discursos foram originados, o que emerge mesmo assim ainda um quadro coerente. Isso porque as diferentes revises feitas da arquitetura moderna surgiram de um engajamento com os mesmos princpios modernos (a cultura de massas, a industrializao, a liberdade, o retorno ao essencial, etc.) e estavam baseadas em preocupaes oriundas das mudanas sociais, culturais, polticas e econmicas em que a sociedade como um todo atravessava no perodo aps a II Guerra Mundial.31

Ainda considerando obras publicadas recentemente, outros autores somam-se a Goldhagen.

Joan Ockman32 constri, ainda na dcada de 1990, uma antologia traando a evoluo da arquitetura moderna a partir de meados da II Guerra Mundial at as revoltas estudantis de maio de 1968; contudo, apesar dos ensaios reunidos destacarem a riqueza e a pluralidade da cultura arquitetnica no ps-guerra, Ockman ainda trata esse perodo como um interregno entre uma arquitetura moderna e uma ps-moderna.

Architectural Culture. Montreal: Canadian Centre for Architecture, 2000.31 GOLDHAGEN; LEGAULT, 2000, op. cit., p. 14.32 OCKMAN, Joan. Architecture Culture 1943-1968: A Documentary Anthology. Nova York: Rizzoli, 1993.

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OColin St. John Wilson33 analisa, dois anos aps, obras de diferentes arquitetos

como Alvar Aalto, Hans Scharoun, Hugo Hring e Frank Llloyd Wright, no s com o intuito de contribuir para o fortalecimento da existncia de um quadro plural de operaes no interior da arquitetura moderna, mas tambm para se colocar avesso ao entendimento da arquitetura moderna como movimento histrico monoltico e completo, que se encerrou no passado. Ao contrrio, Wilson argumenta em favor de uma tradio contnua ou de um, por ele chamado, projeto incompleto, caracterizado como um movimento resistente rgida ortodoxia do CIAM e oposto reduo da arquitetura moderna a um esquema de frmulas indiferentes s necessidades humanas.

John Robert Gold34, ao invs de ver a cidade produzida pela arquitetura moderna com lentes de convergncia ao redor de posicionamentos e crenas monolticas, reconceitualiza a sua histria com o objetivo de revelar complexidade e diversidade desordenadas; para ele, as novas histrias sobre o perodo repousam na premissa de que existiram muitas outras histrias da arquitetura moderna, e no somente uma. Alm disso, para Gold, contribuiu para esse quadro o fato de terem emergido grupos diferentes em pocas e em locais diferentes alm do j alargado e diversificado contexto cultural e poltico da Europa e dos EUA.

(...) por exemplo, fazendo um ativo esforo para reconceitualizar o Movimento Moderno, talvez como Movimentos Modernos, onde a unidade bsica do modernismo poderia ser encontrada? 35

E, quase uma dcada mais tarde, Jean-Lucien Bonillo, Claude Massu e

33 WILSON, Colin St. John (1995). The Other Tradition of Modern Architecture. The Uncompleted Project. Londres: Black Dog Publishing, 2007.34 GOLD, John Robert. The experience of modernism. Modern architects and the future city 1928-1953. Londres: The University Press Cambridge, 1997.35 GOLD, John Robert. The practice of modernism. Modern architects and urban transformation 1954-1972. Londres: The University Press Cambridge, 2007, p. 289. Traduo livre da autora.

Daniel Pinson36 defendem, em coletnea de ensaios organizada por eles,37 o entendimento de que o mais complexo perodo da histria da arquitetura moderna sucedeu no entorno do CIAM 9, dedicado justamente questo do habitat. Eles mostram que o modelo de habitao nica e universal, apoiado at ento pelas grandes figuras da arquitetura moderna, no resiste nem s confrontaes do perodo do ps-guerra, e nem s com outras culturas; isso porque, entre outros, foi um perodo marcado pelas iniciativas de reconstruo e, consequentemente, pela descoberta da diversidade de possibilidades de expresso das culturas do habitat. Inseridos no contexto do CIAM 9, os ensaios abordam as condies de desenvolvimento do CIAM 9 e situam a contribuio dos diferentes protagonistas ento atuantes como Alvar Aalto, Ernesto Natan Rogers, o empirismo escandinavo e o caso da Dinamarca, as grelhas de reidentificao urbana de Alison e Peter Smithson, Georges Candilis, Aldo van Eyck, Giancarlo de Carlo, Roland Simounet, entre outros. Assim, mostram a diversidade e a complexidade das questes prticas e tericas presentes no interior do CIAM, e se posicionam, em um encontro marcado por um momento de crise, entre o mito que anunciava o nascimento do Team 10 e a realidade mais sutil da comunicao entre Le Corbusier e os jovens, ou seja, entre a crtica sincera e a fascinao declarada.

Desse modo, mesmo que seja possvel afirmar que j existe um conjunto de autores e importantes ensaios que apontem nessa direo, como os cinco acima citados, o quadro ainda pequeno, e suporta ampliaes.

A presena simultnea de arquitetos de diferentes geraes atuando no

36 BONILLO, Jean-Lucien; MASSU, Claude; PINSON, Daniel. La Modernit critique. Autour du CIAM 9 dAix-en-Provence. Paris: Imbernon, 2006.37 A coletnea de ensaios La Modernit critique. Autour du CIAM 9 dAix-en-Provence foi publicada como resultado do colquio internacional Autour du CIAM 9 dAix-en-Provence: du projet dune charte de lhabitat la reformulation de la modernit, realizado em Aix-en-Provence em outubro de 2003 na Maison Mditerranenne des Sciences de lHomme e organizado pelos mesmos autores.

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O perodo outro fator que contribuiu para esse quadro plural. Estavam

trabalhando no ps-guerra tanto arquitetos pertencentes primeira e segunda gerao, quanto os da terceira.38 No entanto, apesar da diversidade de geraes, de abordagens e da multiplicidade de operaes presentes, os arquitetos que atuaram nos anos do ps-guerra apresentam tambm um conjunto de algumas caractersticas comuns. Tendo, em sua maioria, nascido no primeiro quarto do sculo XX, sua juventude ou incio de vida adulta foi profundamente marcada pela II Guerra Mundial. Seus vocabulrios foram estabelecidos no contexto do incio de um propagado declnio da arquitetura moderna, e, com isso, eles passaram a olhar para a obra dos mestres em uma busca pessoal por uma arquitetura de maior vigor e complexidade. Assim, assumiam uma paradoxal posio: ao mesmo tempo em que respeitavam e se influenciavam por alguns dos princpios de projeto da arquitetura moderna, no os defendiam ortodoxamente. Ou seja, sua postura foi caracterizada por uma constante tenso entre a fidelidade velha guarda, a necessidade de cristalizar uma situao de mudana e, ao mesmo tempo, o desejo por uma linguagem prpria de expresso.39

nessa dupla condio que os arquitetos da terceira gerao de que fala Giedion, bem como aqueles que seguem atuantes dentro da primeira e segunda gerao que os precederam, precisaram redefinir os caminhos por onde continuar a nova tradio. De um lado, a situao era diferente daquela dos vinte, dominada pelas necessidades de organizao do Movimento Moderno, pela divulgao do primeiro conjunto importante de realizaes, pelo trabalho de convencimento social em torno ao interesse dessas iniciativas e ao papel que se espera obter para a arquitetura moderna na constituio da sociedade. Grosso modo, pode-se dizer que a partir do segundo ps-guerra h mais posies a defender do que portas a serem arrombadas.40

38 MONTANER, Josep Maria. Depois do Movimento Moderno. Arquitetura da segunda metade do sculo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2001, p. 36.39 CURTIS, 1999, op. cit., p. 547.40 CABRAL, 2011, op. cit., p. 29.

Portanto, o interesse por estudar projetos habitacionais realizados no contexto do segundo ps-guerra reside no entendimento de que esse perodo, visto sua intensa, rica e plural produo, foi fundamental mais para a renovao do que para o abandono da arquitetura moderna.41 Essa mudana de postura com relao aos pressupostos mais rgidos das vanguardas iniciais vem, entre outros e como acima explicitado, do afastamento da necessidade de arrombar portas, e da necessidade de redefinir os caminhos a serem seguidos. Considerando essa condio, adotaremos, assim, como recorte temporal, o intervalo de tempo compreendido entre os anos de 1945 e 1961, reconhecendo como marco inicial o fim da II Guerra Mundial, e como marco final a construo do Muro de Berlim perodo crucial para o entendimento da condio presente no campo da arquitetura e no urbanismo.

Dentro deste quadro temporal, tem significativa relevncia, sob a tica da produo habitacional, as iniciativas empreendidas pela Alemanha e pela Holanda pases que exerceram um papel de vanguarda na consolidao da arquitetura moderna especialmente por meio de um significativo volume de projetos para conjuntos habitacionais , e em especial nas cidades de Berlim e Rotterdam e seus arredores; ambas cidades apresentam em comum o fato de terem se tornado frteis campos de experimentao no campo da habitao j desde o entre-guerras, e esta condio tem continuidade aps a II Guerra por terem sido imensamente arrasadas com o conflito. Paralelamente, cabe lembrar que as arquiteturas produzidas em ambas as cidades destacam-se no contexto europeu e internacional no s no perodo do ps-guerra, onde situa-se o enfoque deste trabalho, mas tambm anteriormente, nos anos 1920 e 1930, quando as ideias traduzidas no perodo de reconstruo que sucedeu a II Guerra Mundial foram inicialmente testadas e consolidadas, principalmente tambm a partir de projetos relacionados com a habitao. Olharemos a

41 GOLDHAGEN; LEGAULT, 2000, op. cit., p. 11.

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Oseguir, portanto, para alguns dos motivos, relacionados a caractersticas

do desenvolvimento urbano e arquitetnico, produo habitacional e ao contexto de ambas as cidades em seus respectivos pases, como forma de entender sua escolha como estudos de caso nessa pesquisa.

Berlim testemunhou, desde o fim do sculo XIX e ao longo de todo o XX, uma sucesso de eventos importantes relacionados habitao que levaram Alan Colquhoun42 a utilizar a cidade como exemplo para discutir o espao urbano nos termos das ideologias da vanguarda do sculo XX em comparao s noes revisionistas surgidas na dcada de 1980.43 Sua escolha, que vai tambm ao encontro da posio de Reyner Banham, justifica-se por Berlim ter sido palco, ao longo da segunda metade do ltimo sculo, por meio da Guerra Fria, de um conflito ideolgico, mas tambm de uma produo criativa no campo da arquitetura e do urbanismo particularmente intensos devido a circunstncias econmicas e polticas especiais pelas quais a cidade passou. Acrescente-se a isso o fato de Berlim tambm ter sido, ao longo sculo XX, cenrio para muitos dos acontecimentos da histria mundial e l estar presente, portanto, o Zeitgeist, ou o clima intelectual e cultural da poca. Assim, no s os projetos para habitao coletiva construdos em Berlim mostram-se relevantes para os objetivos desta pesquisa, como tambm pode-se afirmar que a gnese do espao urbano moderno est claramente ilustrada atravs dos desdobramentos da habitao social na Berlim do sculo

42 Neste ensaio, Alan Colquhoun utiliza o exemplo do espao construdo de Berlim e sua morfologia para discutir o espao urbano no sculo XX comparando as ideologias das vanguardas modernas com as noes revisionistas deflagradas pela crtica ps-moderna. Ao ilustrar a evoluo e as transformaes no espao urbano da cidade ao longo do ltimo sculo a partir das iniciativas relacionadas habitao social, Colquhoun acaba por reforar o entendimento do papel fundamental desempenhado pela habitao para a arquitetura nesse perodo. (COLQUHOUN, Alan. Conceitos de espao urbano no sculo XX. Em: COLQUHOUN, Alan (1989). Modernidade e tradio clssica. Ensaios sobre arquitetura. So Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 209-219)43 COLQUHOUN, 1989, op. cit, p. 209.

XX. Berlim surge, portanto, nesse trabalho, como um pretexto, como um culo atravs do qual podemos explorar a problemtica da habitao social e da arquitetura e do urbanismo modernos.

Essa uma razo porque os esforos para entender a histria e a identidade de Berlim merecem ateno internacional. A concentrao de memrias incmodas, destruio fsica, e projetos de renovao fez dos berlinenses, apesar de relutantemente, lderes internacionais na explorao de conexes entre forma urbana, preservao histrica e identidade nacional. 44

Por sua vez, assim como a Alemanha, a Holanda, e em especial a cidade de Rotterdam, tem uma histria particularmente longa conectada questo da habitao coletiva para as classes trabalhadoras. Atualmente, o pas conta com uma populao de 15 milhes de pessoas e um estoque habitacional de 6 milhes de unidades, dois teros dos quais construdos aps a II Guerra Mundial, aproveitando-se de um perodo de crescimento econmico e expanso populacional decorrente do ps-guerra.45 Um dos ingredientes que particulariza a situao holandesa e, ao mesmo tempo, a aproxima da situao alem, que sua produo habitacional foi em grande parte financiada por subsdios governamentais e foi realizada com o apoio de instituies de economia mista como associaes habitacionais. E apesar de que, recentemente, o governo tem dedicado esforos para reduzir os investimentos e abrir caminho para as foras do mercado, a situao habitacional na Holanda s pode ser entendida sob a tica da interveno estatal e da infraestrutura institucional, que so historicamente entrelaadas com um crescente interesse dos arquitetos na questo habitacional.

Essa intensa prtica vinculada habitao, ancorada tanto na Alemanha

44 LADD, Brian. The Ghosts of Berlin. Confronting German history in the urban landscape. Chicago: The University of Chicago Press, 1997, p. 4. Traduo livre da autora.45 DIJK, Hans van. Housing in Netherlands. Em: Collective Housing in Holland. Traditions and Trends. Revista Process Architecture, setembro de 1993, p. 5.

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O quanto na Holanda, mostra que os resultados das polticas habitacionais

de Berlim e Rotterdam concentradas no perodo do ps-guerra, mas que remetem a uma tradio mais ampla, poderiam guardar uma produo dotada de complexidade histrica e consistncia singular, seja do ponto de vista da prtica projetual, seja da teoria. A escolha, portanto, dessas duas cidades como sedes dos estudos de caso a serem analisados nesta pesquisa no foi, deste modo, acidental, e est embasada na tradio alem e holandesa com a habitao coletiva, que tem em Berlim e Rotterdam dois de seus principais alicerces. Voltar o foco de anlise para a produo arquitetnica, projetual e terica, relacionada com algumas iniciativas habitacionais empreendidas nessas duas cidades, possibilitar explorar de forma abrangente a noo de cidade moderna dos anos 1950 em sua complexidade.

Nesse contexto temporal e local, destaca-se por seu alcance, consistncia e importncia nos respectivos mbitos municipais a produo habitacional empreendida por Hans Scharoun para Berlim e pelo grupo Opbouw, com destaque para a participao dos membros Jacob Berend Bakema, Johannes van den Broek e Lotte Stam-Beese, nos projetos para Rotterdam e arredores. O destaque e a comparao dessas obras fundamenta-se no entendimento de que caracterizam-se como duas das muitas correntes da arquitetura moderna cujos projetos originam-se da chamada primazia da funo, mas que em seu desenvolvimento chegaram a resultados bastante diversos.46 A verificao do papel desempenhado por esses dois modos de pensar a habitao e a cidade dos anos 1950, que, apesar de serem contemporneos entre si, apresentam uma srie de diferenas e particularidades, tem como objetivo a constituio

46 Apesar de todas as dificuldades com o termo Funcionalismo, internacionalmente difundido, ele ser adotado nessa pesquisa. No entanto, tanto na Alemanha como na Holanda, muitos arquitetos o substituem pelos termos Neues Bauen ou Nieuwe Bouwen, pois consideravam Funcionalismo ou Nova Objetividade termos muito restritos questo da funo, somente um dos muitos aspectos do processo de projeto. E foi exatamente a reduo de toda a questo da arquitetura moderna ao modo funcionalista que serviu de alavanca para o questionamento da validade dos CIAM durante os anos 1950.

de um abrangente espectro da diversidade e da pluralidade da produo do perodo.

Tanto para Scharoun e o grupo Opbouw como para muitos dos arquitetos atuantes no perodo, a habitao era considerada um dos encargos mais importantes da sua poca. Marcante tambm para essa gerao da qual eles fazem parte o fato de que tanto Scharoun quanto os primeiros membros do Opbouw so arquitetos que consolidaram sua obra nos anos 1930, mas que puderam traduzir suas ideias durante os anos 1950, no perodo de reconstruo, ou seja, os exemplares em foco no constituem-se experincias fundadoras, mas so essenciais, pois recolhem e desenvolvem a tradio moderna, cada um a seu modo. Alm disso, marcante o fato de Scharoun ter tido uma atuao completamente desligada e independente do debate terico que ocorria no interior do CIAM, enquanto Bakema, Van den Broek e Stam-Beese tiveram participao ativa nos congressos o que mostra que o CIAM no era o nico palco possvel de atuao na poca.

Cabe tambm ressaltar que tanto Scharoun quanto Van den Broek e Bakema tm uma participao destacada no projeto para o Hansaviertel em Berlim, fato que os relaciona com a pesquisa desenvolvida no mbito do curso de mestrado sobre a Interbau 1957 em Berlim,47 e refora os laos de continuidade a serem estabelecidos entre a pesquisa anterior e a atual. Scharoun foi coordenador do setor de Construes de Berlim entre 1945 e 1946, e sob a sua direo desenvolvido o projeto para o Kollektivplan. O concurso urbanstico para reconstruo do Hansaviertel acontece em 1953, tendo inicialmente Scharoun como membro do jri. Porm, como seu assistente Sergius Ruegenberg encontrava-se entre os 98 participantes do concurso, Scharoun abandona sua posio no jri. A proposta vencedora do concurso de autoria de Gerhard

47 ESKINAZI, Mara Oliveira. A Interbau 1957 em Berlim diferentes formas de habitar na cidade moderna. Porto Alegre: PROPAR/ UFRGS, 2008.

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OJobst e Willy Kreuer, e apresenta lminas de diferentes alturas dispostas de

forma no ortogonal. Com o deslocamento das barras, o desalinhamento dos edifcios frente s ruas constante, no se veem linhas paralelas ou ngulos retos, e desaparecem todas as tramas pr-existentes ortogonais. Isto permite sugerir que a presena, mesmo que temporria, de Hans Scharoun no jri, tenha influenciado a escolha por um projeto que privilegiasse composies geomtricas de traado no ortogonal, com uma estrutura de parcelamento implcita. Contudo, entre o final de 1954 e fevereiro de 1955, o plano toma outro caminho, sendo ento desenvolvido sob a direo de Otto Bartning, mas tendo sempre o plano de Jobst e Kreuer como base. A partir da sugesto de Bakema,48 foi realizada uma reorganizao espacial dos edifcios que, originalmente concebidos a partir de uma composio no ortogonal, passaram a encontrar-se organizados ortogonalmente. Assim, sob a influncia de Bakema, a articulao no ortogonal do agrupamento central de barras de oito a dez pavimentos foi abandonada em favor de uma composio com predomnio do ngulo reto. Aps, em fevereiro de 1955, Scharoun e o grupo Der Ring ainda desenvolvem uma proposta alternativa para o Hansaviertel, que remete proposta enviada para o concurso de 1953 desenvolvida por Thiele e Wittig e tambm quela de seu assistente, Sergius Ruegenberg. Com isso, algumas das reconsideraes feitas por Bartning levam em conta a proposta de Scharoun junto ao grupo Der Ring.49

Alm disso, Scharoun e Bakema tambm fazem projetos de edifcios para o Hansaviertel. Scharoun projeta inicialmente um restaurante, e aps um conjunto de casas unifamiliares de dois pavimentos, ambos no construdos. No lugar do grupo de casas de Scharoun, foi construda a Akademie der Knste, projetada por Werner Dttmann. Bakema, alm da decisiva participao nas mudanas de rumo no projeto urbanstico, constri junto com Van den

48 GEIST; KRVERS, 2001, op. cit., p. 376-377.49 GEIST; KRVERS; RAUSCH, 1993, op. cit., p. 108 e 109.

Broek uma torre de 16 pavimentos, localizada em meio srie de cinco torres altas, que destaca-se do conjunto especialmente devido complexa soluo adotada para a articulao dos apartamentos em distintos nveis e representa uma importante inovao com relao ao modelo corbusiano da Unidade de Habitao.

Por fim, mas no menos importante, considerando todas as questes acima levantadas, a importncia de estudar parte da obra produzida por Hans Scharoun para Berlim e pelo grupo Opbouw para Rotterdam nos anos cinquenta reside no entendimento de que esses projetos lidaram, naquela poca, com questes que podem ser consideradas extremamente pertinentes para o aumento da qualidade da produo habitacional massiva no Brasil. Projetos como os levados a cabo pelo BNH50 a partir dos anos 1960, ou ainda os vinculados ao programa Minha Casa Minha Vida nos dias de hoje, apresentam grandes deficincias justamente em pontos considerados centrais nos debates e na produo prtica levada a cabo pelos arquitetos atuantes nos anos 1950 na Europa, como o caso de Hans Scharoun ou dos arquitetos vinculados ao grupo Opbouw, ou ainda muitos outros que produziram nesse mesmo perodo. Conforme veremos ao longo dos prximos captulos, uma srie de questes como a tarefa de agregar as noes de universal e individual; a ideia de que o entendimento sobre o ambiente construdo converge atravs da noo de identidade; a criao de elementos de transio e de escalas de associao na configurao do espao urbano; a criao de habitaes que tenham as relaes sociais como ponto de partida, possibilitando a construo de ambientes construdos e espaos abertos variados do ponto de vista tipolgico, espacial, hierrquico e social; o estabelecimento de relaes

50 Para uma anlise detalhada sobre os conjuntos de habitao coletiva produzidos pelo BNH (Banco Nacional de Habitao) entre 1964 e 1968 no Brasil, ver: SANVITTO, Maria Luiza Adams. Habitao coletiva econmica na arquitetura moderna brasileira entre 1964 e 1986. Tese de Doutorado. Porto Alegre: PROPAR/ UFRGS, 2010.

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O entre os edifcios e os espaos abertos sua volta e seu entorno; a produo

de habitaes singulares, agrupadas em tipos de edifcios tambm singulares, que se distanciem da uniformidade e do modelo homogneo de produo em massa; a busca por variao nos tipos de apartamentos como ponto de partida para a configurao dos edifcios, possibilitando mistura social e a convivncia de tipos e padres de famlias distintos; o emprego do tipo e de uma mistura de tipos habitacionais como ferramenta de projeto e como recursos para a estruturao da forma urbana, com o fim de configurar uma paisagem heterognea e variada, acrescentando riqueza formal e compositiva aos conjuntos que foram discutidas e experimentadas exausto e consideradas fundamentais por esse grupo, podem servir de lio para o desenvolvimento da produo habitacional brasileira.

Cabe ainda salientar que no se pretende aqui traar anlises completas e detalhadas dos conjuntos habitacionais escolhidos, todos j exaustivamente estudados e analisados em diversos momentos por diversos autores, mas sim utiliz-los como pretexto ou pano de fundo para olhar para a cidade moderna a partir de aspectos relacionados com alguns dos principais pontos de crtica empreendidos a esses projetos, e, a partir disso, entender que lies essa produo europeia pode fornecer para a prtica habitacional contempornea no Brasil.

Esta abordagem faz com que o assunto esteja de acordo no somente com o debate vigente no perodo, que tem suas discusses voltadas para a habitao e para as necessidades oriundas de um perodo de reconstruo, mas tenha tambm uma pertinncia nos dias de hoje. A procura por desmistificar e desnudar as contradies da arquitetura moderna com a cidade tende a rebater-se no s sobre a compreenso histrica da herana moderna, mas tambm sobre a condio da arquitetura contempornea, e est de acordo com o srio esforo em curso no s no Brasil, mas tambm em mbito

Fig. 10 - BNH, conjunto habitacional Humberto de Alencar Castelo Branco, Santos, So Paulo, 1964.[Fonte: www.falasantos.com.br]

Fig. 11 - BNH, conjunto habitacional Dale Coutinho, 1979.[Fonte: http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos227b.htm]

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Ointernacional, de reconhecer os valores da arquitetura moderna, entre outros,

atravs dos seminrios do Docomomo Brasil e do Docomomo Internacional. 51

1.3. OBJETIVOS Um dos efeitos que se pode esperar da publicao desse livro ajudar a combater as interpretaes da arquitetura moderna ainda baseadas em um positivismo reducionista, calcadas de modo mais ou menos consciente em explicaes meramente tecnolgicas, sociolgicas e econmicas. Tambm valioso o exemplo de uma abordagem da arquitetura, seja moderna, ps-moderna ou contempornea, que vai alm da simples constatao e aceitao da pluralidade arquitetnica, e considera que as diferentes vertentes, com suas respectivas tradies, exigem ou, ao menos, recomendam enfrentamentos crticos rigorosos.52

A explicao de Roberto Conduru sobre os efeitos esperados com a publicao da edio em portugus da tradicional coletnea de ensaios de Alan Colquhoun53 vai ao encontro do principal objetivo desta pesquisa. De um modo geral, no s na Alemanha e na Holanda, mas tambm no restante da Europa e no cenrio arquitetnico internacional, as propostas residenciais modernas apresentaram-se inicialmente como solues globalizadoras e excludentes entre si, uma vez que eram, em parte dos casos, constitudas por sries de blocos padronizados, homogneos e uniformes.54 No entanto, um

51 No mbito nacional, em 2011 foi realizado o 9o Seminrio Docomomo Brasil, em Braslia, com o tema Interdisciplinaridade e Experincias em Documentao e Preservao do Patrimnio Recente, e o prximo seminrio est previsto para acontecer em 2013 na cidade de Curitiba. No mbito internacional, em 2009 foi realizada a 11a International Docomomo Conference, na Cidade do Mxico, com o tema Living in the Urban Modernity, e em 2012 a 12a International Docomomo Conference ter lugar em Espoo, na Finlndia, sob o tema The Survival of Modern from Coffee Cup to Plan. 52 CONDURU, Roberto. Prefcio de COLQUHOUN, Alan (1989). Modernidade e tradio clssica. Ensaios sobre arquitetura. So Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 13.53 COLQUHOUN, 1989, op. cit., p. 13.54 Conforme veremos no Captulo 1.1, Gropius defende, em Bauhaus: Novarquitetura, que, embora os projetos devessem empregar componentes padronizados, fabricados em srie, a uniformizao dos

Fig. 12 - Conjunto residencial construdo por meio do programa Minha Casa Minha Vida, Residencial Casas do Parque, Campinas, 2012.[Fonte: http://blog.planalto.gov.br]

Fig. 13 - Conjunto residencial construdo por meio do programa Minha Casa Minha Vida.[Fonte: www.cimentoitambe.com.br]

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O olhar mais aproximado, ou ainda um enfrentamento crtico mais rigoroso,

como recomenda Roberto Conduru, do variado espectro de iniciativas produzidas no perodo de reconstruo, a partir da anlise das duas diferentes vertentes aqui apresentadas, que tem uma srie de diferenas com relao s vises mais simplificadoras do urbanismo moderno, demonstra que no necessrio estar de acordo com todo o conjunto normativo do CIAM para que essas construes arquitetnicas e projetuais sejam valorizadas como propostas bem sucedidas de materializao de fragmentos de cidade moderna, que retm interesse e valor.

O que busco, portanto, como principal objetivo, desnudar algumas das contradies da arquitetura moderna com a cidade, expondo os dilemas, as complexidades, as riquezas inesperadas e as tentativas no consolidadas da ideia de cidade moderna. Para tanto, procurarei separar as interpretaes mais simplistas a respeito da produo do perodo do ps-guerra daquelas propostas que tem valor para o legado da cultura moderna e, consequentemente, para o entendimento da condio arquitetnica contempornea.

Contudo, no se trata de discutir, como destacam Rowe e Koetter, o quanto a cidade tradicional, em termos absolutos, boa ou ruim, relevante ou irrelevante, ou o quanto est ou no em sintonia com o Zeitgeist o esprito da poca;55 nem uma questo de demonstrar os bvios e j conhecidos problemas da cidade moderna. Tambm no o caso de procurar estabelecer comparaes entre a cidade tradicional e a moderna, numa busca por identificar qual modelo seria melhor ou pior, ou mais ou menos adequado. E, por ltimo, igualmente no objetivo da pesquisa desmontar juzos de valor, pois essa seria uma tarefa por demais complexa e que ultrapassa o alcance

elementos construtivos no estabelece limites arquitetura, podendo ter como resultado projetos e estruturas formais bastante diversos. 55 ROWE, Colin. KOETTER, Fred. Collage City. Cambridge: MIT Press, 1978, p. 65.

dessa investigao.

Porm, alm do objetivo principal acima exposto, tambm possvel destacarmos alguns objetivos especficos, ou secundrios, almejados com a pesquisa. Entre eles, podemos citar:

1. A partir da anlise dos projetos habitacionais escolhidos como estudos de caso, discutir alguns pontos cruciais da arquitetura do ps-guerra, focando a ateno em discursos e obras que tiveram um impacto crtico e contnuo na cultura arquitetnica, e propor um pano de fundo onde localizar e remapear o desenvolvimento da arquitetura moderna aps esse perodo de reconstruo. Esse olhar abarca tanto obras mais ligadas ao mainstream representado pelo CIAM, como o caso do grupo Opbouw na Holanda, quanto outras que tenham se desenvolvido de modo mais destacado com relao s correntes principais. Nesse segundo ponto, ganham destaque os projetos desenvolvidos por Hans Scharoun, pois o conhecimento mais aprofundado sobre a atuao de arquitetos modernos no cannicos, como o seu caso, acabou por desafiar alguns limites que convencionalmente delimitaram a arquitetura moderna. Isso vem ao encontro do que prope autores como Peter Blundell Jones (que se dedica a estudar a obra de arquitetos como Hans Scharoun e Hugo Hring), Neil Levine (que tem estudos sobre Frank Llyoid Wright), ou ainda Colin St. John Wilson (que analisa obras de Hans Scharoun, Hugo Hring, Frank Lloyd Wright e Alvar Aalto), que sugerem a existncia de uma outra tradio na arquitetura moderna. 56

2. Mostrar que os conjuntos habitacionais aqui estudados so uma pequena poro de um contexto plural de operaes caracterizado por uma produo intensa e numerosa, empreendida por um grande nmero de diferentes arquitetos, que geraram espaos de cunho tambm plural e variado, capazes de englobar situaes diferenciadas do ponto de vista projetual

56 GOLDHAGEN; LEGAULT, 2000, op. cit., p. 301-302.

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Oe compositivo. No entanto, cabe ressaltar que a ideia da presena de

variedade e de um quadro plural est presente na pesquisa, deste modo, em dois mbitos diferentes. Um, mais generalista, diz respeito ao contexto da produo empreendida no perodo, e procura reforar a ideia, j colocada por alguns autores, como vimos acima,57 contudo ainda no efetivamente consolidada no campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo, de que os arquitetos atuantes no ps-guerra, por mais que estivessem trabalhando frequentemente sob um conjunto semelhante de temas fundamentais, tiveram como resultado projetos diferentes que representam ao mesmo tempo posies diferentes entre eles. Ou seja, so consequncia de um contexto extremamente plural, que revela que o discurso dito consensual propagado pelas vanguardas modernas a respeito da mquina e da produo industrializada pode ter reduzido a arquitetura moderna a somente um entre seus muitos elementos.58 O outro mbito, e sobre o qual esta pesquisa se debrua com maior intensidade, localiza-se no domnio especfico dos projetos em estudo, no que diz respeito presena de uma diversidade de tipos habitacionais, que conformam espaos pblicos tambm diversificados ao seu redor contrariando a ideia oriunda das narrativas dominantes de que os conjuntos habitacionais do ps-guerra produziram somente espaos homogneos do ponto de vista tipolgico e espacial, montonos do ponto de vista compositivo e formal, e monofunicionais. As anlises dos projetos dos conjuntos habitacionais em estudo mostram que essa viso hegemnica no est totalmente de acordo com os princpios adotados na produo do ps-guerra e pode ter reduzido, com generalismos e simplificaes, o modo de olhar para essas obras. Considerando essas duas perspectivas de abordagem, tambm se pretende mostrar que a diversidade tipolgica e espacial

57 Sarah Willians Goldhagen, Joan Ockman, Colin St. John Wilson, John Robert Gold, Jean-Lucien Bonillo, Claude Massu e Daniel Pinson.58 GOLDHAGEN; LEGAULT, 2000, op. cit., p. 320.

encontrada nos exemplos em anlise tem paralelo com a pluralidade presente no seio do debate da agenda da prpria arquitetura moderna no perodo.

3. Considerando a ideia de que a cidade moderna dos anos 1950 pode agregar caractersticas como a diversidade tipolgica e funcional, assim como pode relacionar-se com os espaos abertos que cria e com o tecido urbano do entorno em que se implanta, verificar se esses aspectos, geralmente tidos como pontos j consolidados na crtica arquitetura moderna, e j encontrados no Hansaviertel, so reincidentes em outras iniciativas produzidas no mesmo perodo. Esta constatao ou contribuir para auxiliar na modificao da presente compreenso da herana moderna, ou para se entender o Hansaviertel realmente como exceo neste sentido, j que foi construdo sob a tica de uma Exposio Internacional de Arquitetura, e realizado sob uma srie de condies especiais que o diferem da produo corriqueira do perodo.

4. Auxiliar a reforar a ideia de o quanto, tambm na cultura moderna, a arquitetura dos edifcios e, consequentemente, o tipo empregado, esto conectados forma urbana, ao tecido existente e ao planejamento do bairro ou da cidade. De acordo com Giedion:

Os arquitetos hoje em dia esto perfeitamente conscientes de que o futuro da arquitetura est inseparavelmente conectado com o planejamento urbano. Uma bela casa isolada ou um edifcio multifamiliar isolado realizam muito pouco. Tudo depende de uma organizao de vida unificada. As inter-relaes entre casa, cidade e pais, ou residncia, trabalho e lazer, no pod