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A cidade como espaço educativo Ano XVIII boletim 03 - Abril de 2008

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A cidade como espaço educativo

Ano XVIII boletim 03 - Abril de 2008

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SUMÁRIO

A CIDADE COMO ESPAÇO EDUCATIVO

Proposta pedagógica ......................................................................................................................... 03

Paulo Rogério M. Sily

PGM 1 – Cidade e cidadania ….......................................................................................... 07

Paulo Rogério M. Sily

PGM 2 – Patrimônio e memória ….................................................................................... 15

Carmen Lúcia Vidal Pérez

PGM 3 – Centro e periferia ............................................................................................. 27

Inês Barbosa de Oliveira

PGM 4 – Urbano e rural …................................................................................................. 32

Marcus Dezemone

PGM 5 – Pluralidade e diversidade …............................................................................. 42

Carla Ramos

A CIDADE COMO ESPAÇO EDUCATIVO 2 .

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PROPOSTA PEDAGÓGICAPROPOSTA PEDAGÓGICAA CIDADE COMO ESPAÇO EDUCATIVO

Paulo Rogério Marques Silly1

Percorrer ruas, becos e avenidas; subir e descer morros e ladeiras; visitar praças, passeios

públicos, fortes, igrejas, feiras populares... Essas são algumas atividades que nos permitem

conhecer mais e melhor a cidade: seu patrimônio, sua história, seu desenvolvimento e

construção, através dos tempos e no espaço que ocupa.

Tendo em vista que a cidade é constituída, também, pelo seu patrimônio imaterial, podemos,

ainda, através dessas atividades, conhecer as culturas produzidas, no cotidiano, por todos

aqueles e aquelas que habitam, visitam, circulam, enfim, que produzem suas sobrevivências,

atuando, interagindo, aprendendo e ensinando a arte de viver, ao longo de suas histórias.

Para além dessas considerações, no campo da educação, possibilitar que o aluno seja

construtor do conhecimento, ter a pesquisa como princípio educativo e buscar integrar as

diferentes áreas do saber são algumas das condições para a realização de uma pedagogia de

emancipação, em que o educando possa melhor compreender sua condição histórica, perceber

sua importância como agente transformador da sociedade de seu tempo e tornar-se mais

consciente de sua condição de cidadão.

Como nos ensina o mestre Paulo Freire (1977), uma das perspectivas da educação deve ser a

da emancipação humana:

“A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da

dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo,

assim, também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens.”

A CIDADE COMO ESPAÇO EDUCATIVO 3 .

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Tomando como base essas considerações, a proposta dessa série é, em última instância,

desafiar os professores a promoverem atividades pedagógicas, com seus alunos, em espaços

urbanos, compreendendo as cidades como laboratórios de pesquisa, observação e

investigação. Atividades que poderão permitir, a todos que delas participam: desenvolver

olhares múltiplos, interdisciplinares, sobre a história; conhecer e valorizar a cultura material e

imaterial produzida nos mais diversos espaços que formam as cidades; (re)ver conceitos e

valores referentes à cidade, a seus habitantes, espaços e culturas; reconhecerem-se como

sujeitos e cidadãos, responsáveis pela produção e preservação do patrimônio, da história e da

cultura de seu tempo.

Nessas atividades, tempo, espaço e cultura tornam-se categorias relevantes, mais presentes,

com as quais os visitantes – alunos e professores – convivem, permitindo-lhes desenvolver

mais cuidadosamente a observação e a indagação, aguçadas pela curiosidade e pelo interesse

no ambiente.

Os professores devem proceder como motivadores da curiosidade dos alunos, apresentando-

lhes dados sobre a história, patrimônio e cultura, previamente selecionados, que estimulem

um olhar investigativo e plural sobre os objetos que serão experimentados, preparando-os

para o levantamento e a investigação das fontes e dos fatos, através da interação entre textos e

contextos, entre significados e representações.

Nesta série, pretendemos que o debate pedagógico a ser empreendido seja feito à luz das

novas teorias e abordagens culturais, das diferentes disciplinas das Ciências Sociais, somado

aos relatos de experiências, com atividades desenvolvidas por professores e seus alunos, como

formas de fornecer subsídios aos professores, para além dos seus conhecimentos acumulados,

e estimulá-los ao planejamento de atividades pedagógicas subsidiadas por pesquisas em

campo.

A CIDADE COMO ESPAÇO EDUCATIVO 4 .

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Temas que serão discutidos na série A cidade como espaço educativo, que será apresentada no programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA/SEED/MEC de 7 a 11 de abril de 2008:

PGM 1 – Cidade e cidadania

Neste primeiro programa, pretende-se enfocar os conceitos de cidade e de cidadania,

buscando suas relações em seus aspectos históricos, culturais e sociais, contextualizando-os,

apresentando suas variantes, em diferentes tempos e espaços. A proposta é a de produzir

informação e promover o debate, de modo a permitir a reflexão sobre a formação e o

exercício da cidadania em diferentes espaços urbanos, em tempos atuais.

PGM 2 – Patrimônio e memória

A proposta do segundo programa é ressaltar a importância de pesquisar e conhecer, através da

memória social, o patrimônio histórico, artístico e cultural das cidades, principalmente

aquelas em que vivemos, para sua maior valorização e preservação, permitindo rever valores e

conceitos. O patrimônio – material e imaterial – deverá ser enfocado como produto social,

inerente à história e à cultura próprias daqueles que o produzem, em diferentes espaços e

comunidades urbanas. Para isso, relatos e memórias de indivíduos, grupos e comunidades

deverão ser considerados como fontes de informação, preservação e resistência cultural.

PGM 3 – Centro e periferia

Neste terceiro programa, as propostas são: discutir os conceitos de “centro” e de “periferia”,

no espaço urbano, a partir do debate acerca dos fatores históricos, sociais e culturais que os

determinam e caracterizam; valorizar as produções culturais realizadas nesses espaços

urbanos, seus agentes sociais e suas formas de organização e de reprodução social; perceber

as interações entre esses espaços, através de suas produções e manifestações culturais,

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rompendo fronteiras e preconceitos, ampliando o conhecimento sobre suas formas de ser e de

existir.

PGM 4 – Urbano e rural

Neste quarto programa, pretendemos realçar as relações existentes entre o “urbano” e o

“rural”, com destaque para os fenômenos sociais e as manifestações culturais presentes em

ambos os espaços, cada vez mais presentes na vida cotidiana dessas populações, em função

dos crescentes deslocamentos humanos e do transporte cultural, ocorridos de um meio para o

outro, gerando novas formas de organização e cultura.

PGM 5 – Pluralidade e diversidade

No último programa da série, pretendemos destacar a pluralidade e a diversidade étnica e

cultural da sociedade em que vivemos; debater sobre o respeito à alteridade, como princípio

educativo, para uma vida em sociedade mais ética, solidária e cidadã; apresentar experiências

vivenciadas em comunidade, em que práticas de solidariedade, de respeito às diferenças e ao

outro fazem parte de sua história.

BIBLIOGRAFIA

DEMO, P. Pesquisa: Princípio Científico e Educativo. 9ª ed. São Paulo: Cortez,

2002.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

PINSKY, J. e Pinsky. C. B. (orgs.). História da Cidadania. 3a. ed. São Paulo: Contexto, 2005.

Notas:

Professor de História do Colégio Pedro II e Doutorando em Educação, na UERJ. Consultor desta série.

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PROGRAMA 1PROGRAMA 1

CIDADE E CIDADANIA

A cidade como espaço de formação da cidadaniaA cidade como espaço de formação da cidadaniaPaulo Rogério M. Sily1

Cidade e cidadania são conceitos socialmente construídos ao longo da história da

humanidade, a partir da formação dos primeiros núcleos urbanos, na Antigüidade2. Desde

então, nas sociedades urbanas organizadas, o conceito de cidadania tem adquirido diferentes

significados, correspondendo às múltiplas formas de o indivíduo ser e estar em sociedade.

Neste programa, pretendemos enfocar os conceitos de cidade e de cidadania, buscando suas

relações em seus aspectos históricos, culturais e sociais, contextualizando-os, apresentando

suas variantes, em diferentes tempos e espaços. Por fim, a proposta é a de produzir

informação e promover o debate, que permita refletir sobre a formação e o exercício da

cidadania em diferentes espaços sociais, em tempos atuais.

Cidades: origens e desenvolvimento

Tornou-se comum, nos estudos do Ocidente, considerar a origem das cidades a partir das

sociedades grega e romana, tendo em suas cidades-estado a principal referência. Apesar da

grande contribuição que esses povos e suas organizações sociais deram para a sociedade e

para a cultura ocidental, é importante considerar que, em etapa anterior a elas, as civilizações

orientais, tanto na Ásia como na África, já possuíam núcleos urbanos organizados e bastante

desenvolvidos, tomando como exemplo as cidades construídas por egípcios, chineses,

indianos e povos da região da Mesopotâmia.

Cabe destacar que as sociedades grega e romana, através do intercâmbio com esses povos,

incorporaram muito de seus conhecimentos, hábitos e costumes. Assim, é importante

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considerar que a formação da cultura ocidental, apesar do grande legado greco-romano, tem

também expressiva influência cultural das sociedades orientais.

No século XV, com a chegada dos europeus à América, grandes cidades construídas pelos

incas, maias e astecas foram reveladas ao Velho Mundo. Núcleos urbanos como

Tenochtitlán3, no México atual, Chichén Itza e Tikai, na península de Yucatán, reuniam

milhares de habitantes, componentes de grandes impérios.

Grande parte da população mundial vive hoje em áreas urbanas. Esse fenômeno de

urbanização crescente no mundo tem como referência histórica o processo de industrialização

desenvolvido a partir do século XVIII, na Europa, com a Revolução Industrial, e a afirmação

do sistema capitalista de produção. Desde então, em diferentes áreas do planeta,

principalmente nos países que, em algum momento de sua história, sofreram com o processo

de industrialização, grandes centros urbanos foram formados, vivendo neles uma numerosa e

excessiva população, convivendo com inúmeros problemas sociais.

No Brasil, até meados do século XX, a maioria da população vivia em áreas rurais. A partir da

década de 1950, com a implantação de inúmeras indústrias estrangeiras no país e uma política

governamental de industrialização acelerada, houve um crescimento desordenado nos

principais centros urbanos brasileiros, resultando em megacidades, principalmente na Região

Sudeste do país, a saber: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Esse “inchamento” das

cidades foi resultado, principalmente, do grande êxodo rural, fenômeno social até hoje

presente em nossa sociedade.

Algumas considerações sobre cidadania

A palavra cidadania – seus significados e implicações –, desde as mais remotas origens na

Antigüidade Clássica greco-romana, refere-se às relações existentes entre os indivíduos e a

sociedade. Em geral, essas relações são reguladas por um poder central através de regras,

regulamentos, direitos e deveres estabelecidos entre os indivíduos e entre estes e o Estado,

variando de acordo com as condições históricas, sociais e culturais de cada sociedade.

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Assim, não podemos dizer que existe um conceito de cidadania que possa ser definido como

padrão, na medida em que cidadania é uma construção histórica que varia no tempo e no

espaço, que é mutável, na medida em que as sociedades estão em permanente transformação e

construção.

Cabe aqui, como uma possibilidade de definir o conceito de cidadania, citar as considerações

de Norberto Luiz Guarinello:

“(...) cidadania implica sentimento comunitário, processos de inclusão de uma população, um conjunto de direitos civis, políticos e econômicos e significa também, inevitavelmente, a exclusão do outro. Todo cidadão é membro de uma comunidade, como quer que esta se organize, e esse pertencimento, que é fonte de obrigações, permite-lhe também reivindicar direitos, buscar alterar as relações no interior da comunidade, tentar redefinir seus princípios, sua identidade simbólica, redistribuir os bens comunitários. A essência da cidadania, se pudéssemos defini-la, residiria precisamente nesse caráter público, impessoal, nesse meio neutro no qual se confrontam, nos limites de uma comunidade, situações sociais, aspirações, desejos e interesses conflitantes” (Guarinello, 2005, p. 46).

Durante a Antigüidade, nas cidades-estado gregas e romanas, na Polis e na Civitas,

respectivamente, a cidadania, inicialmente, esteve restrita a pequenos grupos de proprietários

de terras que detinham o poder político, com direitos e deveres estabelecidos, participando das

decisões políticas que diziam respeito a toda a comunidade, votando e ocupando cargos

públicos, dentre outros direitos.

Entre as cidades-estado gregas, independentes entre si, havia diferenças entre as condições de

cidadania, no que diz respeito aos direitos e deveres do cidadão (aquele que habita a cidade).

A maioria dos habitantes da polis – estrangeiros domiciliados, mulheres e escravos – estava

excluída da condição de cidadão. Também os grupos e comunidades submetidos por

conquista militar pela comunidade cidadã, que deram origem às colônias gregas, espalhadas

pela Europa mediterrânea, eram considerados não-cidadãos.

Conflitos sociais entre os grupos dominantes e os excluídos do direito de cidadania marcaram

a história dessas sociedades ao longo de suas histórias, podendo ser consideradas, como

fontes de diferenciação interna nas cidades-estado gregas, a condição de exclusão das

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mulheres; a predominância política dos mais idosos sobre os mais jovens, mesmo sendo esses

os componentes das forças militares das cidades-estado; a propriedade da terra, principal meio

de produção e nas relações de trabalho no interior da comunidade.

No império romano (século I a.C. ao V d.C.) não foi diferente. As lutas dos excluídos da

condição de cidadania, principalmente a luta dos povos dominados, por independência

política ou por inclusão, após muitos conflitos, resultaram em extensão da cidadania a todo o

império, mantendo a exclusão de todo o contingente de escravos da condição de cidadão.

A Modernidade, iniciada com o Renascimento (século XIV ao XVI), pode ser considerada

como um período de crise do sistema feudal, até então vigente na Europa Ocidental4, e de

afirmação do capitalismo, como forma predominante de produção, e de seus valores e

concepção de mundo.

No Renascimento, as concepções de cidadania da Antigüidade foram retomadas e

ressignificadas por filósofos e pensadores, principalmente nas cidades-estado da Itália, como

em Florença e Milão, assim como em universidades européias, com destaque para a de

Salamanca, na Espanha. Negando as concepções medievais baseadas no teocentrismo, em

defesa do individualismo, buscando compreender o homem em suas relações com a natureza,

os renascentistas fundaram uma nova forma de pensar o mundo, baseada na lógica e na razão,

afirmando o saber científico.

O Iluminismo (século XVIII), as Revoluções burguesas do século XVII, na Inglaterra e do

século XVIII, na França, assim como o processo de independência política que resultou na

formação da primeira nação americana, no século XVIII – Estados Unidos da América –

contribuíram para consolidar a concepção liberal de cidadania, baseada nos direitos naturais

do homem: vida, liberdade e propriedade. Inicia-se uma Era dos Direitos, em que o cidadão

passa a ter igualdade jurídica, sendo a lei soberana sobre a nação.

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A partir do século XIX, com a formação do Estado-Nação, o conceito de cidadania passou a

identificar-se com a noção de nacionalidade. O sentimento de pertencimento de um indivíduo

passou a ser para com a nação onde nasceu e foram formadas suas noções de cidadania.

A partir de então, a concepção de cidadania, predominante no mundo ocidental e capitalista,

cristalizou-se, prioritariamente, em relações verticalizadas, entre o indivíduo e o Estado, tendo

sido negligenciadas as relações horizontais, de indivíduo para indivíduo, de um para o outro,

baseadas na solidariedade.

Nesse sentido, a regulação compreendida como controle e dominação do mais forte – classes

e grupos hegemônicos – sobre os mais fracos – excluídos do poder e de direitos – prevalece

sobre a concepção de regulação como limitação do poder do mais forte, permitindo uma

maior igualdade social, respeitando o plural e o diverso, presentes na sociedade.

Mas quem é cidadão?

O direito à cidadania sempre foi uma conquista daqueles que por ela lutaram! Desde a Grécia

e Roma antigas, até os dias atuais, a luta por direitos civis, políticos e sociais, pelo

reconhecimento do “outro” como cidadão, tem sido motivo de muitos conflitos atuais.

Em todo o mundo, independentemente da posição que um determinado país ocupa no cenário

político-econômico mundial, existem cidadãos e não-cidadãos. As lutas sociais por inclusão

têm sido algumas das principais marcas de nosso tempo, principalmente nas áreas periféricas,

onde a desigualdade social é grande e a cidadania não existe para grande parte da população,

como no caso do Brasil.

Movimentos sociais organizados por diferentes grupos e segmentos da sociedade brasileira

têm se mobilizado em nome da cidadania, reivindicando seus direitos como cidadãos. As lutas

travadas pelas organizações dos “Sem-Teto”, dos “Sem Terra”, de negros, de homossexuais e

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de portadores de necessidades especiais, entre outras, revelam o quanto, ainda, a cidadania

está longe de ser uma realidade para todos os brasileiros.

Educação e Cidadania

O conceito de cidadania, para além de sua dimensão objetiva – a lei –, sendo também

subjetivo, é construído e apreendido, de forma consciente ou não, através de nossas relações

sociais cotidianas, em nossas práticas, em todos os espaços da sociedade e dimensões da vida

social, nos quais atuamos e vivemos, sendo a escola, para aqueles que a freqüentam ou

freqüentaram, um dos lugares sociais de sua formação.

É, portanto, um conceito que se adquire pela educação. Educação aqui compreendida, como

em Paulo Freire, como ato permanente e inerente à convivência humana, que acontece na

troca de informações entre humanos, em nossas vivências, em sociedade, no cotidiano, onde,

a todo o momento, educamos, informamos, ensinamos e somos educados, aprendemos e

apreendemos com o “outro”.

Nesse sentido, educar para a cidadania é tarefa de todos nós, em todos os espaços sociais em

que atuamos e vivemos, buscando, a partir de ações individuais e coletivas, formar

subjetividades cidadãs, ou seja, indivíduos que possuam consciência de seus deveres e direitos

para com a sociedade, com seu próximo, o “outro”; que os reivindicam e divulgam para todos

os demais da sociedade da qual fazem parte; que se mobilizam em sua defesa e buscam

praticá-los em suas atividades cotidianas, contribuindo para práticas de emancipação e de

democratização das relações entre os indivíduos em sociedade, que podem e devem ser

potencializadas.

A cidade como espaço educativo e de formação da cidadania

Percorrer ruas, becos e avenidas; subir e descer morros e ladeiras; visitar praças, passeios

públicos, fortes, igrejas, feiras populares são possíveis atividades que permitem conhecermos

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mais e melhor a cidade: seu patrimônio, sua história, seu desenvolvimento e construção,

através dos tempos e no espaço que ocupa.

Sendo a cidade constituída, também, pelo seu patrimônio imaterial, podemos, ainda, através

dessas atividades, conhecer as culturas produzidas, no cotidiano, por todos aqueles e aquelas

que habitam, visitam, circulam, enfim, que produzem suas sobrevivências, atuando,

interagindo, aprendendo e ensinando a arte de viver, ao longo de suas histórias.

Para além dessas considerações, no campo da educação, fazer do aluno construtor do

conhecimento, ter a pesquisa como princípio educativo e buscar integrar as diferentes áreas do

saber são algumas das condições para a realização de uma pedagogia de emancipação, em que

o educando possa melhor compreender sua condição histórica, perceber sua importância como

agente transformador da sociedade de seu tempo, tornar-se mais consciente de sua condição

de cidadão.

Bibliografia

CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 2ª ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2002.

DUARTE, R.G. A cidade, que lugar é esse? Coleção Geografia em Revista. São Paulo:

Editora do Brasil, 2003.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

GUARINELLO, N. L. “Cidade-estado na Antigüidade Clássica”. In: Pinsky, J. e

Pinsky, C.B. História da Cidadania. 3a edição. São Paulo: Ed. Contexto, 2005.

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MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar Editores,

1967.

MONDAINI, M. “O Respeito aos Direitos dos Indivíduos”. In: Pinsky, J. e Pinsky, C.

B. História da Cidadania. 3a ed. São Paulo: Ed. Contexto, 2005.

OLIVEIRA, I. B. Currículos praticados. Entre a regulação e emancipação. 2a. edição.

Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

____________. Boaventura & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

CORTEZ, H. “Cartas ao Rei e Rainha da Espanha”. In. TODOROV, T. A Conquista da

América: a questão do outro. 2a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Notas:

Professor de História do Colégio Pedro II e Doutorando em Educação, na UERJ. Consultor desta série

2 De acordo com a periodização tradicional da história da humanidade, a Antigüidade corresponde ao período compreendido entre o quarto milênio antes de Cristo (4.000 a.C.) e o século V d.C., caracterizado pela formação das primeiras grandes civilizações no Oriente e no Ocidente.

3 A cidade de Tenochtitlán, pertencente ao Império Asteca, era um dos maiores núcleos urbanos do mundo, à época da conquista da América pelos espanhóis, com 300 mil habitantes. Segundo os depoimentos do conquistador Hernan Cortez: “Só posso dizer que na Espanha não há nada de comparável...”; “Essa cidade (a do México) é a coisa mais bela do mundo” (CORTEZ, 1999, p. 153).

4 O sistema feudal foi predominante na Europa Ocidental do século V ao

século XV da era cristã.

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PROGRAMA 2

PATRIMÔNIO E MEMÓRIA

Carmen Lúcia Vidal Pérez1

A educação é um processo de recriação e não de repetição, portanto, é desinibidora e não

restritiva. O destino do homem é o de ser sujeito de sua ação, criando e recriando o mundo.

Uma educação comprometida com a liberdade é uma educação que, de fato, desenvolve este

ímpeto ontológico de criar. Criar, refletir, investigar, transformar são ações especificamente

humanas. As relações do homem com o mundo são relações criativas: cotidianamente o

homem recria pelos aconteceres o seu espaço de viver. Portanto, uma educação voltada para a

prática da liberdade deve centrar-se na experiência vivida.

Aprender a ler e escrever é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo; compreender seu

contexto, localizar-se no espaço social mais amplo. Portanto, tomar a cidade como um espaço

educativo norteador da prática pedagógica é possibilitar ao educando (crianças e/ou adultos)

refazer a leitura do mundo que o rodeia, ampliando sua compreensão do universo

sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido a partir do

(re)conhecimento dos chamados “bens de pedra e cal” – seu patrimônio material – e de um

amplo e diversificado acervo de expressões culturais, tais como festas, danças, músicas,

técnicas, saberes e fazeres – seu patrimônio imaterial.

As cidades educam e cada vez mais é necessária “uma aldeia para educar uma criança” 2,

como nos ensina o provérbio africano. Nesse sentido, a cidade como espaço educativo é um

dispositivo de promoção e fortalecimento da cidadania, que possibilita aos professores e

alunos melhor compreenderem suas identidades culturais e se apropriarem do patrimônio

pessoal e coletivo de seu país, de sua cidade, de seu grupo social.

Por patrimônio material refiro-me aos monumentos, aos chamados “bens de pedra e cal”:

igrejas, chafarizes e conjuntos urbanos representativos de estilos arquitetônicos específicos.

Por patrimônio imaterial estou me referindo a um amplo e diversificado acervo de expressões

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culturais, tais como: festas, rituais, danças, mitos, lendas, músicas, saberes, técnicas e fazeres

diversificados presentes na cidade.

O estudo da memória e do patrimônio incorporado à prática pedagógica e ao conhecimento

veiculado no cotidiano da escola assinala o desenvolvimento de uma política cultural a favor

da promoção da cidadania, pela produção de novos significados, que apontam para outras

formas de ler-reconhecer a cidade e seu patrimônio. A leitura do mundo pelos sujeitos

escolares inicia-se na paisagem da cidade, buscando decifrar, na texturologia citadina, o

patrimônio material e imaterial em que estão imersos. Patrimônio este que muitas vezes não é

percebido, não é valorizado, nem preservado, porque não é (re)conhecido.

Oficinas da memória: narrativa de uma experiência de investigação-formação

Apresento, a seguir, movimentos do processo de uma parceria constituída entre a escola

básica e duas universidades públicas3. A narrativa que se segue refere-se a uma experiência

(com)partilhada com as professoras da rede pública municipal da cidade de São Gonçalo do

Amarante – RJ4. O relato dessa prática, longe de querer se afirmar como um modelo a ser

reproduzido em outros contextos formativos, fundamenta-se na concepção freireana5 de que

toda formação é projeto e utopia, porque busca, na prática, por intermédio das experiências e

no mundo das contingências, uma formação que possibilite aos professores e professoras

realizarem as diferentes dimensões (afetivas, éticas, estéticas, políticas, epistemológicas, etc.)

da docência.

Dando corporeidade a esse referencial teórico-metodológico foram produzidas, em parceria

com as professoras do Ensino Fundamental do município de São Gonçalo do Amarante – RJ,

“oficinas da memória”: espaço de narração e produção de conhecimento. Estimular as

professoras a contar a própria história possibilitou a construção de um outro olhar sobre a

cidade gonçalense: um olhar investigativo, que desnaturaliza o já conhecido, exercita a

curiosidade epistemológica (Freire, 1996) e provoca a ampliação do conhecimento sobre os

processos histórico-sociais inscritos na formação da cidade.

A CIDADE COMO ESPAÇO EDUCATIVO 16 .

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Foram realizadas, ao longo do ano de 2005, sete “oficinas da memória”, planejadas e

desenvolvidas numa perspectiva transversal de conhecimento, favorecendo o diálogo entre as

temáticas e oferecendo material para novas reflexões. As oficinas se organizaram a partir das

seguintes temáticas:

Oficina 1 - Nomes e Lugares - Trata-se de uma oficina introdutória ao estudo do patrimônio

material e imaterial da cidade, desenvolvida em dois momentos: uma exploração inicial

acerca dos saberes dos participantes sobre a história da cidade a partir de seus bairros e, a

seguir, uma discussão conceitual sobre as temáticas da educação e da alfabetização

patrimonial.

Oficina 2- Lugares da memória - Trata-se de uma oficina introdutória às temáticas da

memória, história, cultura e identidade, desenvolvida em três momentos: um levantamento

sobre as informações recolhidas pelos participantes sobre os lugares de memória da cidade –

os bairros – seguida de uma discussão conceitual e, por último, em grupos, produção de

material didático que favorecesse a apropriação, na escola, dos conceitos trabalhados.

Oficina 3 - Caminhos do patrimônio - A oficina girou em torno do inventário do patrimônio

material e imaterial da cidade como um todo e de cada bairro especificamente. A oficina

dividiu-se em três momentos: (i) pesquisa do patrimônio, “causos” e histórias dos diferentes

bairros; (ii) organização do arquivo dos dados coletados, através do Caderno de Inventário

(iii) produção de material didático, buscando explorar/ampliar o conhecimento do patrimônio

local.

Oficina 4 - Contadores e catadores de histórias - A oficina girou em torno do inventário do

patrimônio imaterial, enfocando histórias e “causos” da cidade. Dividiu-se em três momentos:

uma leitura dramatizada como introdução para a apresentação dos conceitos de narração,

narrativa e produção do conhecimento e comunidades narrativas; uma produção textual em

grupos, seguida de aprofundamento dos conceitos trabalhados.

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Oficina 5 - Um baú de memórias: relações intergeracionais na escola - A oficina discutiu

as relações intergeracionais a partir das reflexões sobre as memórias de velhos, crianças e

jovens. Dividiu-se em três momentos: a leitura do livro infantil Guilherme Augusto de Araújo

Fernandes; um convite para que as cursistas compartilhassem suas memórias e montassem um

coisário e uma reflexão sobre os conceitos trabalhados: memórias familiares e relações

intergeracionais.

Oficina 6 - Imagens do patrimônio: a cidade que se revela/oculta nas lentes fotográficas -

A oficina girou em torno do uso da fotografia como um objeto da memória e como fonte de

pesquisa. Num primeiro momento, foram apresentadas várias fotografias de lugares da cidade,

com vistas ao levantamento de hipóteses sobre a localização das mesmas. Em seguida, a partir

de uma reflexão teórica sobre as diferentes contribuições da fotografia na investigação e

compreensão da realidade, foi proposta uma leitura das imagens apresentadas.

Oficina 7 - A aula-passeio: A cidade como um livro de espaço - A aula-passeio foi uma

atividade que teve como objetivo adensar o estudo sobre o patrimônio material da cidade,

desenvolvida em quatro momentos: a motivação, a preparação, a ação e a comunicação. A

atividade constou de uma excursão a dois patrimônios históricos da cidade de São Gonçalo:

Fazenda Colubandê e Igreja da Praia da Luz.

CINCO NOTAS SOBRE MEMÓRIA E PATRIMÔNIO

As notas a seguir referem-se a algumas das discussões teórico-práticas realizadas ao longo do

desenvolvimento das oficinas da memória, provocadas pelos depoimentos recolhidos pelas

professoras em suas pesquisas e pelas questões que estas suscitavam.

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NOTA 1: Memória e Esquecimento

A memória da gente é falha, a idade vai chegando... Eu tenho fotos e documentos. Mas

será que vou me lembrar de tudo? Posso convidar mais pessoas que participaram dessa

história de luta? (Jesus Abreu)

A sabedoria contida na resposta do Sr. Jesus Abreu, antigo morador da comunidade, ao

convite feito pelas pesquisadoras para relembrar a história local, nos instiga a começar nossa

conversa sobre Memória e Patrimônio. O depoimento deste morador nos alerta para a ameaça

de perdemos a capacidade de nos recordar das lutas e desafios vividos no ontem, ou seja, a

perda de nossa memória coletiva é real em um mundo que vive a tempestade do progresso.

Por outro lado o Sr. Jesus nos dá pistas de como podemos lutar contra a perda da memória e

de como recuperar a história vivida coletivamente. Não ceder ao esquecimento que quer

apoderar-se de nós é a grande lição que esse senhor nos dá. Buscar a história de um grupo, de

uma comunidade, de um país, junto aos sujeitos que a viveram e construíram sonhos de

futuro, é produzir um novo olhar sobre a história. Um olhar capaz de enxergar, nas narrativas

dos sujeitos ordinários (comuns), uma outra versão dos acontecimentos, um olhar que

legitima uma história vista de baixo, um olhar ansioso por explorar as experiências históricas

daqueles homens e mulheres “cuja existência é tão freqüentemente ignorada, tacitamente

aceita ou mencionada apenas de passagem na principal corrente da história”, como nos

aponta Sharpe (apud BURKER, 1992). Nesse sentido, o desafio de conhecer junto com as

professores e os alunos os chamados bens de pedra e cal, bem como o acervo de expressões

culturais – festas, rituais, saberes e fazeres de uma localidade (cidade e/ou comunidade) –

buscando refletir sobre as possibilidades político-epistemológicas desses patrimônios no

mundo da escola, representa uma potente resposta ao convite do Sr. Jesus para participar da

luta da memória contra o esquecimento.

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NOTA 2: O Jogo da Memória

Faça o jogo da memória contando toda sua história, todos querem ouvir, você tem muito a dizer. É importante crer no que você sonhou um dia, não importa quando, não importa mesmo quando. Você descobriu que o mundo é somente um quebra-cabeça...

Será que as lembranças de cada sujeito individual, suas memórias ou recordações das

experiências vividas fazem parte da História de um povo? As pesquisas no campo da Nova

História têm mostrado que reconhecer os sujeitos comuns e os grupos sociais como

narradores da própria história possibilita que memórias, lembranças, experiências

subterrâneas venham à tona, por vezes desvelando zonas de sombra encobertas pela história

oficial. Tomando a memória como campo de investigação e produção de conhecimento, essas

pesquisas também afirmam que mesmo a memória mais individual é social, à medida que seus

pontos de referência têm como base a visão social de um grupo. Toda lembrança é uma

reconstrução do passado a partir dos olhos e dos valores atuais de um coletivo. Sabemos, em

nossa vida cotidiana, que ao trabalharmos com memória trabalhamos também com o

esquecimento. Lembrando o ditado africano: “enquanto os leões não começarem a escrever a

própria história, a história continuará a ser a história dos caçadores”, poderíamos

questionar: na luta de leões e caçadores, que versão da história tem caído no esquecimento?

Que versão da história tem sido lembrada? Lembrar e esquecer, processos essenciais para a

sobrevivência humana, contudo, não são processos naturais, estão inscritos num tempoespaço

histórico atravessado por lutas e tensões. Nas sociedades contemporâneas, já denominadas

como sociedades do esquecimento, a experiência da memória não é mais espontânea, natural,

mas sim determinada, em grande parte, por mecanismos impostos do exterior para o interior.

Halbwachs (1990) alerta para a existência de uma crise da memória diante das várias

memórias coletivas da modernidade. A velocidade que caracteriza nosso tempo favorece a

curta existência de grupos sociais que nascem, crescem e morrem tão rapidamente que não

conseguem fazer da própria história instrumento de reflexão e aprendizagens. Daí o apelo

para a construção de lugares de memórias, que possibilitem a conservação, a discussão e a

socialização das memórias individuais e coletivas.

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NOTA 3: Lugares de Memórias

Contar é tão dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas

coisas passadas de fazer balance, de se remexerem dos lugares... (Guimarães Rosa)

Como nos fala Guimarães Rosa, as memórias se remexem dos lugares, não se deixam

aprisionar, embora as sociedades, desde sempre, tenham produzido lugares da memória que

guardam a história a ser contada. Socialmente falando, é nos lugares de memórias – museus,

escolas, universidades, sindicatos, fundações culturais, ruínas, conjuntos arquitetônicos,

agremiações, clubes, arquivos, centros de documentação – onde se cruzam memórias

individuais e coletivas, familiares e institucionais, sindicais e patronais, estatais e da

sociedade civil, etc., que se materializam e se conservam as memórias de um povo. Além

disso, como nos ensina Pierre Nora (1993), os lugares da memória também podem ser

imateriais, tais como os sabores da comida baiana, o ritmo dos tambores africanos, a bandeira

do divino, a mulher “memória” de uma comunidade, os saberes do uso medicinal da flora dos

povos da floresta amazônica, etc. Como afirma Mary Del Priori6, a representação que um

povo faz de si mesmo pode ser reconstruída por suas memórias: uma bandeira, uma igreja, um

sabor são dispositivos memorialísticos a partir dos quais o povo se reconhece. Contudo, não

basta apenas constatar quais são os lugares da memória, mas conhecer e problematizar como

tais lugares vão sendo (e são) definidos nos diferentes contextos sociais. A definição e

conservação dos lugares da memória são sempre permeadas por relações de poder,

envolvendo tensões e conflitos. De um modo geral, valorizam-se as obras e as práticas

culturais materiais e imateriais das classes ou ideologias dominantes, obscurecendo-se o valor

das obras das classes subalternizadas e suas práticas culturais materiais e imateriais. Nesse

sentido, não podemos desprezar o aspecto ideológico que envolve a definição, a proteção e a

conservação dos lugares da memória.

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NOTA 4: Patrimônio e Memória

Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de partida (Galeano).

O estudo e a investigação sobre o patrimônio local são como um sopro do vento da memória.

Patrimônio está entre as palavras que usamos com mais freqüência em nosso cotidiano:

patrimônios econômicos, financeiros, imobiliários ou culturais, arquitetônicos, históricos,

artísticos, ecológicos, etc. A noção de patrimônio traz, em seu bojo, a idéia de propriedade.

Etimologicamente, patrimônio deriva de patrius e este de pater e de monium, que segundo o

direito romano significa o poder masculino, pátrio, a herança cultural paterna. A partir do

século XVI, com a formação dos Estados Nacionais no Ocidente, patrimônio passa a ser

considerado também como herança cultural de um país e de seu povo. No sentido jurídico, a

idéia de patrimônio refere-se a um complexo de bens, materiais ou não, direitos, ações,

propriedades, enfim, tudo o que pertença a uma pessoa, a um grupo ou empresa e que seja

passível de valorização econômica. A partir do século XVIII, com a Revolução Francesa, o

significado de patrimônio estendeu-se do privado, ou seja, bens de uma pessoa ou de um

grupo – por exemplo, a nobreza francesa –, para o conjunto dos cidadãos de um país. Produz-

se assim o conceito de bem comum e de que alguns bens formam a riqueza material e moral

do conjunto da nação. É no contexto revolucionário francês que o conceito de patrimônio

ganha maior substancialidade, passando a significar um bem coletivo, associado a um

sentimento de identidade nacional. Modernamente, o conceito de patrimônio passa a remeter-

se à questão da memória e da formação identitária de um povo. Assim, passa-se a considerar a

herança cultural de um povo como seu patrimônio material e imaterial. Porém, na

contemporaneidade, o sentido de patrimônio se amplia, passando a ser considerado não

apenas um bem que se herda, mas um bem constitutivo da consciência de um grupo, de um

determinado segmento social. Nesse sentido, o patrimônio de um povo é campo de disputas e

de negociações, relacionando-se intrinsecamente à memória social. Se, na modernidade, o

campo do patrimônio firmou-se com base num Estado Nacional, comprometido com a

concepção de que a nação tinha um passado e que era preciso preservá-la do esquecimento, na

contemporaneidade, o campo do patrimônio organiza-se de maneira prospectiva em relação

ao futuro e como instrumento de promoção da cidadania.

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NOTA 5: Cidade, Patrimônio e História Local

O trabalho da obra é criação de sua própria memória justamente porque a obra não está

lá nem aqui, mas em ambos... (Marilena Chauí)

Marilena Chauí (1992) nos ajuda a compreender as tensões entre as memórias e as histórias

que configuram a história local. Tavares (2004) define a história local como espaço da

totalidade social, tensionada pela confluência dos processos macro e microssociais, partindo

do pressuposto de que, num período de globalização, cada vez mais o mundo se constitui

numa articulação entre a história local, nacional e a mundial. Nesse sentido, nas ciências

humanas e na educação, em particular, o problema da delimitação do local emerge como uma

necessidade diante do esmagador processo de globalização, que hoje se realiza de forma

muito mais acelerada do que em outros momentos da história nacional e mundial. No atual

contexto, é possível, ainda, pensar e investigar o local enquanto singularidade e totalidade

social? O local é uma noção que se desfaz e se despersonaliza diante da perversa tendência ao

homogêneo num mundo globalizado? Ou o local poderia ganhar uma outra dimensão

explicativa da realidade, como, por exemplo, enquanto densidade comunicacional, informal e

técnica, como sugere Milton Santos? Para José e Souza Martins, a história local é a história da

particularidade, embora se determine pelos componentes universais da história. Isto é, embora

na escala local raramente sejam visíveis as formas e os conteúdos dos grandes processos

históricos, esses processos se materializam na vida cotidiana. Assim sendo, é preciso

considerar que a história tem uma dimensão social que emerge no cotidiano das pessoas, nos

seus modos de vida, nas suas práticas culturais, nas relações sociais, no modo pelo qual vivem

e dão sentido ao local, ao município, ao bairro, à escola, enfim, à cidade e seus territórios

praticados, é um espaço educativo, portador de uma história cotidianamente escrita e reescrita.

Tomar o local como ponto de partida e chegada é vê-lo como lugar principal da democracia

que, sem dicotomizar com o global, o nacional, torna-se uma relação interativa com esses

níveis provocada pela possibilidade da mobilidade e da intencionalidade das ações humanas.

Tais ações, nesse sentido variam desde uma inserção mais fortemente ligada à localidade até a

um estilo de vida sociocultural que, passando pelo local, utiliza-se de outros canais para

organizar as relações com o mundo. Tomar a cidade (e o local) como ponto de partida e

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chegada de práticas pedagógicas fundadas na relação Memória-Patrimônio é dar conseqüência

às palavras do poeta Fernando Pessoa, quando afirma que para seres universal canta tua

aldeia.

Sugestões de filmes sobre Patrimônio e Memória

Animação

Brichos. Direção: Daniela Munhoz, 2006, Brasil.

Retratos e borboletas. Direção:Yanko Del Pino, 1998, Brasil.

Comédias

Carlota Joaquina, Princesa do Brasil. Direção: Carla Camurati, 1994, Brasil.

Macunaíma. Direção: Joaquim Pedro de Andrade, 1969, Brasil.

Drama

A guerra dos botões. Direção: Yves Robert, 1961, França.

Batismo de sangue. Direção: Helvécio Ratton, 2006, Brasil.

Coronel Delmiro Gouveia. Direção: Geraldo Sarno, 1978, Brasil.

Hiroshima meu amor (Hiroshima mon amour). Direção: Alain Resnais, 1959, França.

Memórias póstumas de Brás Cubas. Direção. André Klotzel, 2001, Brasil.

Narradores de Javé. Direção: Eliane Caffé, 2004, Brasil.

Documentários

Clandestina felicidade. Direção: Beto Normal, Marcelo Gomes, 1998, Brasil.

Expedição em busca dos dinossauros. Direção: João Carlos Nogueira, Leonardo J. Edde, Maurizio D'Atri, 2003, Brasil.

O risco: Lucio Costa e a utopia moderna. Direção: Geraldo Motta Filho, 2003.

Portas da cidade. Direção: Alexandre Carvalho, 2004, Brasil.

Porto da minha infância. Direção: Manoel de Oliveira, 2001, Portugal.

Rio de memórias. Direção: José Inácio Parente. 1987, Brasil.

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NOTAS:

Doutora em Educação pela USP. Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF.

2 Provérbio citado por TAVARES, Por que o local? In: FIGUEIREDO, Haydée da Graça Ferreira et al. (orgs.) Vozes da Educação: 500 anos de Brasil. Rio de Janeiro, UERJ, DEPEXT, 2004. p. 01.

3 A esse respeito ver ARAÚJO, Mairce, PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal e TAVARES, Maria Tereza Goudard, Alfabetização, memória e patrimônio: um estudo sobre as possibilidades educativas da cidade de São Gonçalo e a formação de professor@s. Relatório de Pesquisa. Brasília, CNPq, 2007. p. 13.

4 A esse respeito, ver PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal e TAVARES, Maria Tereza Goudard. “OFICINA DA MEMÓRIA”: Alfabetização Patrimonial e Formação de Professor@s em São Gonçalo. Trabalho Apresentado no I Encontro Regional de História da Educação do Estado do Rio de Janeiro. Niterói, UFF, 2007. p.24.

5 FREIRE, Paulo. A educação como prática da liberdade. 8ª. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1978.p. 34.

6 A esse respeito ver DEL PRIORI, Mary e HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Memória, patrimônio e identidade. In: SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLA www.tvbrasil.com.br/salto

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PROGRAMA 3

CENTRO E PERIFERIA

A cidade como espaço educativo: processos de periferização eA cidade como espaço educativo: processos de periferização e centralização culturalcentralização cultural

Inês Barbosa de Oliveira1

Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença (Mia Couto).

Gosto de pensar que essa frase em epígrafe, de Mia Couto, só poderia ter sido escrita por um

autor com origem na chamada “periferia” do mundo. A felicidade indolente e sem motivo

desse narrador parece só ser possível em espaços nos quais as regras e os padrões de

consumo, de trabalho e de modos de viver que a civilização “moderna”, criada e legitimada

nos chamados países centrais, impõe ao mundo não são os únicos. De acordo com esses

padrões e regras, a preguiça e a tranqüilidade desse “dolce farniente” estariam associadas à

incapacidade para o exercício da vida madura, civilizada e responsável, que exige outras

qualidades.

Convivemos todos, e não de hoje, com a idéia de que o “bom”, o “certo”, o “superior” é

aquilo que emana dos centros, sejam eles culturais, sociais ou econômicos. Ao longo da

história, as supostamente universalistas “tradições” eurocêntricas – brancas, ocidentais,

aristocrático-burguesas, “modernas” – têm legitimado sua superioridade social, e a dominação

que dela deriva, por meio de direitos auto-outorgados de estabelecer o bonito e o feio, o certo

e o errado, o civilizado e o selvagem, o central e o periférico, o global e o local,

Porém, na vida cotidiana, nem só de dominação ou em função dela se vive, como afirma a

epígrafe deste texto. Os povos, cidadãos e grupos sociais periferizados respondem, recriam

mundos, reinventam essas relações por meio da afirmação de outros saberes, culturas e

valores. Ou seja, a partir dos contatos com as normas e valores ditos centrais, as populações

periferizadas inventam (Certeau, 1994) desdobramentos transformadores, ampliam e

modificam padrões e colocam no mundo modus vivendi próprios que, apesar de relegados à

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condição de periféricos, habitam nossa vida cotidiana, criam e ensinam saberes que o

autodenominado centro não possui.

A reflexão que desenvolvo aqui se fundamenta na idéia de que a vida cotidiana nos diferentes

espaços/tempos sociais é habitada por crenças, valores, conceitos e produções culturais

oriundos dos modos como se dá, cotidianamente, a interação “centro-periferia” que, ao

mesmo tempo em que obedece às normas definidas pelos grupos dominantes, também é plena

de “respostas da vítima” (Martins, 1993), ou seja, de modos de ser e de estar no mundo

criados e definidos pelos grupos subalternizados. Entendo que essas operações de

incorporação e transformação cultural são produtos de processos cotidianos de aprendizagem,

nos quais os sujeitos tornados periféricos, em virtude das relações de poder por meio das

quais se classificam como “centro”, recriam o mundo e tornam-se centro de suas existências –

estética, social e política – ao negarem a norma e ingressarem no campo de seus desejos e

possibilidades, assumindo sua voz como norma alternativa à dominação.

Venho afirmando, em textos, palestras e conversas, que todos nós começamos nossa

aprendizagem quando nascemos, e só a terminamos quando morremos. Nesse processo,

aprendemos formas de estar no mundo compatíveis com o meio sociocultural no qual estamos

inseridos, ou seja, tornamo-nos membros da nossa comunidade de entorno, aprendendo,

assumindo e recriando seus modos de estar no mundo, seus valores fundadores, dentre os

quais aparecem os estéticos e culturais, bem como os políticos e sociais. Percebemos, mesmo

quando crianças, em inúmeras circunstâncias, a presença de pequenos gestos e

comportamentos que se identificam com os papéis cultural e socialmente definidos (Oliveira,

2001). Processos e mecanismos que não sabemos descrever ou explicar, mas que formam o

que pensamos, sentimos, fazemos e sabemos sobre os mais diversos temas, que contribuem

para nossas relações com o mundo à nossa volta, definindo nossas ações sobre ele. Ou seja, os

processos de inserção no “nosso” universo cultural são feitos de valores e saberes partilhados

que, muitas vezes, surgem em oposição a valores e saberes de outras culturas, ou são fruto de

processos de interação e transformação culturais, não necessariamente produzidos a partir da

dominação cultural.

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Por outro lado, vivemos, também, uma história política e cultural de transformação de

diferenças em desigualdades, característica da cultura burguesa ocidental, central.

Percebemos, portanto, processos de aprendizagem que criam preconceitos e hierarquizam

sujeitos e culturas, valorizando os princípios fundadores de umas em detrimento de outras,

produzindo, por outro lado e simultaneamente, processos de adaptação e modificação que

permitem aos supostamente inferiores / periféricos inserirem-se socialmente, apesar da força

com que algumas dessas desigualdades se manifestam em nosso cotidiano.

Creio que a diversidade cultural das cidades assume, nesse contexto de hierarquização centro-

periferia, um importante sentido político, o de existências negadas por um Ocidente/Centro

que se legitima como tal pela construção discursiva da diferença enquanto desigualdade,

como evidencia Boaventura de Sousa Santos (2006). Esse autor aponta o fato de a

globalização ser composta por diferentes processos, sendo um deles o de criação de

“localismos globalizados” (Santos, 2003), ou seja, de imposição generalizada de um

determinado padrão tão local quanto qualquer outro e tornado “global” por meio das relações

de poder. Afirma, também, quando se refere à relação entre descobridor e descoberto (Santos,

2002), que a definição de quem assume cada papel depende mais do poder de cada lado na

descoberta mútua, do que de qualquer outro critério. Com essas duas idéias, Boaventura deixa

claro que a idéia de centro e de periferia não tem base geográfica nem científica, é apenas e

tão somente definida pelo poder de que desfrutam os grupos que habitam uns ou outros

espaços.

Vivemos, assim, nas cidades, em espaços/tempos de contradições e de pluralidade, marcados

pelas tensões entre o que está posto cotidianamente como óbvio – diversidade cultural como

marca das interações humanas – e um outro óbvio dos espaços/tempos instituídos – o

desrespeito à diversidade, próprio do sistema social de dominação no qual vivemos, e do

pensamento hegemônico que o legitima. É necessário sair de uma universalidade/centralidade

idealizada e excludente para ingressar na localidade de muitos (ou de nenhum) centros

possíveis, dos quais emanam vida, culturas, movimentos, porque no cotidiano da vida nas

cidades o que existe é um permanente diálogo entre múltiplas culturas que

coexistem/convivem. Esse diálogo se constitui como possibilidade real de tessitura de

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conhecimentos sobre a diversidade cultural, que vai além da dominação e da hegemonia de

uma cultura qualquer sobre outras. Também é necessário e possível superar uma dimensão da

vida nas cidades que promove a exclusão e que trata como “outros” os que não se enquadram

nos modelos estabelecidos pelo chamado Centro. Para tal, é fundamental que em nossa

formação exista admiração pela existência desses “outros” e o desejo de com eles interagir.

Compreender que, para o “outro”, o “outro” somos nós, para não ficarmos como o bêbado da

piada de Guimarães Rosa que, ao perguntar a uma pessoa que passava onde era o outro lado e

receber a resposta, ilustrada pelo dedo indicador, “É lá”, mostra toda a sua perplexidade

dizendo: “Ué, eu estava lá e uma pessoa me disse que o outro lado era aqui”.

Não há dois lados, mas inúmeros e infinitos lados, infinidade que reveste de uma certa

impossibilidade a tarefa de que sejam traçadas fronteiras rígidas e formais, seja entre culturas,

seja entre centro e periferia, seja entre pessoas. Assim como há múltiplas formas de

expressão, infindáveis maneiras de compreensão, incomensuráveis modos de viver, e outras

infinitas relações possíveis. Tanta gente, tantas experiências e tantos pontos de vista – de

escuta, de sentidos e de sentimentos – que se fazem presentes nas cidades e na nossa vida!

Felizmente.

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Janeiro: DP&A, 2002. p. 19-36.

Nota:

Professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutorado em Sciences et Théories de L'éducation pela Université de Sciences Humaines de Strasbourg (1993) e pós-doutorado pela Universidade de Coimbra (2002).

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PROGRAMA 4

URBANO E RURAL

Urbano e rural: notas para uma abordagem na escolaUrbano e rural: notas para uma abordagem na escola

Marcus Dezemone1

Num período histórico relativamente curto, quando se compara com outros países, o Brasil

transformou-se num país predominantemente urbano. Em 1940, segundo o IBGE, 31% da

população brasileira viviam em cidades; quarenta anos depois esse percentual saltava para

68%. Berço da Revolução Industrial e cenário da urbanização mais acelerada e traumática da

Europa, a Inglaterra demorou mais de um século para alcançar esse mesmo percentual de

distribuição demográfica. Quando se compara a população urbana brasileira com a mundial,

percebe-se mais nitidamente a intensidade do processo: em 2007, menos da metade da

população do planeta morava em cidades contra mais de 80% dos brasileiros que residiam em

aglomerados urbanos. Isto inclui o Brasil num pequeno grupo – de menos de 30 países – que

possui elevadíssimos percentuais de urbanização2.

Esse vertiginoso processo de concentração urbana oferece para docentes de todo país

inúmeras oportunidades para a realização de projetos pedagógicos com alunos da Educação

Básica. Tomando como eixo norteador as relações entre urbano e rural, é possível trabalhar a

cidade como um espaço profícuo à observação e à investigação de professores e alunos.

Segundo o geógrafo Ronaldo Goulart Duarte,

(...) a paisagem da cidade, seu aspecto visível (prédios, ruas, santuários, etc.), é uma expressão de algo invisível, isto é, a forma de viver e a organização da sociedade que ali habita. É por isso que muitos cientistas consideram a cidade uma forma de escrita3.

O objetivo desse texto é fornecer alguns apontamentos que possam contribuir para decifrar

aspectos dessa “escrita” e compreender esse “texto” que é a cidade.

As visões urbanas sobre o campo e sua gente

Ainda hoje as interpretações sobre o mundo rural – o campo e os camponeses – são

permeadas por preconceitos urbanos, compartilhados por inúmeros intelectuais. As raízes

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dessas posturas estão fincadas no pensamento ilustrado do século XVIII. O Iluminismo,

gerado numa sociedade de Antigo Regime, portanto ciosa de suas diferenças sociais, culturais

e políticas, desenvolveu uma visão pejorativa do campesinato, na qual o camponês não teria

condições de possuir opiniões próprias e de participar da vida política. Apesar de ser um

movimento apresentado como símbolo do avanço da razão, da ciência e da defesa da

liberdade de expressão, o Iluminismo reiterou algumas das diferenciações no âmbito do

Antigo Regime, reafirmando a superioridade das elites letradas “civilizadas” das cidades

diante de camponeses considerados “selvagens” que apresentavam uma racionalidade distinta,

muitas vezes incompreendida4.

Ao longo do século XIX, um conjunto de análises enfatizou, em menor ou maior intensidade,

o conservadorismo e o reacionarismo, numa aversão à mudança e à transformação social que

seriam típicas do campo e dos camponeses. No Brasil de fins do século XIX, a nascente

República brasileira, tributária do pensamento ilustrado e do cientificismo, procurou

apresentar-se como o regime que asseguraria a manutenção da ordem e alcançaria o

progresso. Mais do que lema dos positivistas incluído no remodelado pavilhão nacional, a

idéia de modernização do país recebeu o apoio e a adesão dos propagandistas do novo regime,

que viam a República como a “revolução” nacional. Assim se consagrava a primeira visão

marcante na República sobre o homem do campo: o lugar das trevas, do obscurantismo,

cenário de movimentos milenaristas, como atestam as representações sobre Canudos (1893-

1897), Contestado (1912-1916) e Juazeiro (1917), nas quais os camponeses eram retratados

como selvagens, bárbaros, degenerados e fanáticos. No cangaço do Nordeste, associado a

Lampião (1897-1938), os camponeses eram vistos como bandidos5.

Foi no curso da década de 1950 que a percepção sobre o campo se alterou, sobretudo nos

segmentos urbanos intelectualizados de esquerda. A difusão do livro do jornalista Rui Facó,

Cangaceiros e Fanáticos de 1963, baseado em dois artigos publicados em fins dos anos 1950,

na esteira do sucesso da Revolução Chinesa (1949) e da Revolução Cubana (1959), contribuiu

para percepção de um caráter revolucionário latente no campo. No extremo oposto, havia o

eco da passividade e da ingenuidade de Jeca Tatu (1924), personagem de Monteiro Lobato. É

nesse momento de percepções conflitantes que as cidades, grosso modo, foram “invadidas”

pelos camponeses, basicamente, de duas formas. A primeira, por aqueles que buscavam

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inserção no meio urbano com as migrações; a segunda, por aqueles que se mobilizavam

politicamente para permanecer no campo, manifestando-se nas cidades6.

A presença do rural no urbano

A urbanização acelerada no Brasil pode ser explicada por uma pluralidade de elementos,

dentre os quais se costuma considerar preponderante a industrialização concentrada na Região

Sudeste, fator de atração de fluxos migratórios intensificados a partir de fins da década de

1950 – a primeira das duas formas de “invasão” das cidades pelos camponeses7.

Da forma abrupta em que se desenvolveu, a urbanização resultou numa série de problemas

visíveis nas cidades grandes, assinalados de forma recorrente pela mídia como o inchaço

urbano, a periferização, a favelização, o aumento do desemprego, da violência e da

criminalidade. Com a preocupação de minimizar ou resolver tais questões, um intenso debate

público tem sido travado. Um ponto recorrente que aparece nessa discussão é o de apontar,

entre as causas de tais males, uma peculiar relação entre o urbano e o rural: os principais

problemas das cidades teriam sido em conseqüência, quase que exclusivamente, das

condições sociais do campo que produziram um intenso êxodo rural. O livro Vidas Secas, de

Graciliano Ramos (1938), e a tela Os retirantes, de Candido Portinari (1944), ajudaram, por

seu uso e difusão, a moldar esse imaginário nas cidades. Se de fato o êxodo rural contribuiu

para tais questões que afligem as cidades, ele não pode ser considerado o fator preponderante

para problemas tão complexos. Num outro sentido, essa interpretação acaba por reduzir e

simplificar a relevância do rural na formação do urbano, eclipsando outras relações que

poderiam ser delineadas.

É interessante constatar que a lógica dos fluxos migratórios nordestinos, os principais entre

1940 e 1980, embutia o desejo do retorno ao campo após a acumulação de recursos na cidade.

Essa visão foi revelada argutamente na idéia de que o sul era o caminho do roçado, ou seja,

do retorno em melhores condições ao modo de vida camponês, após uma “passagem” na

cidade. Embora na maior parte das vezes esse retorno não se concretizasse, enquanto

expectativa, ele configurava um elemento decisivo para a opção do deslocamento8. O filme

Central do Brasil (1997) apresenta essa intenção do retorno ao campo, revelada pelo pai do

menino Josué, personagem do jovem Vinicius de Oliveira.

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Os fluxos migratórios levaram para o espaço urbano todo um contingente populacional que

ajudou a construí-lo tanto na sua dimensão concreta, material, quanto na sua dimensão

simbólica. A construção de Brasília por trabalhadores do Norte e Nordeste, apelidados de

“candangos”, é um caso bem conhecido: mesmo não previsto em seu plano urbanístico, o

grande contingente de trabalhadores permaneceu na região, em sua periferia, formando as

cidades-satélites, onde desenvolveram uma série de práticas culturais que remetiam às suas

origens rurais. O instigante documentário Conterrâneos Velhos de Guerra (1992) revela uma

faceta da construção da capital federal centrada na trajetória dos candangos.

Portando valores, visões de mundo, representações sociais e práticas culturais, a geração que

chegou às cidades nos anos 1940 e 1950, nascida e socializada no campo, ao morar nas

cidades, passou por um processo de mudança cultural com a nova dinâmica que a vida urbana

impunha. A própria palavra “morar” possui no mundo rural um significado diferente daquele

empregado no meio urbano. Enquanto nas cidades morar assume o sentido quase exclusivo de

“residir”, “habitar”, no campo, morar significa “residir e trabalhar” no mesmo local. É dessa

forma que a palavra é empregada pelos “moradores” dos engenhos da zona da mata

pernambucana e pelos “colonos” do sudeste cafeeiro9.

As práticas culturais rurais ganharam materialidade nas cidades em diversos espaços públicos

como ruas, praças e igrejas. Tempos sociais específicos, bem marcados, com símbolos que

remetiam à vida rural, tomaram forma, com destaque para as festas religiosas, consagradas a

santos católicos, como, por exemplo, as festas juninas.

Entre as manifestações mais comuns, destacam-se as feiras, reveladoramente chamadas de

“típicas”, com trajes, brincadeiras, músicas, danças e comidas consideradas representantes

legítimas do que seria uma cultura rural “autêntica”. No Rio de Janeiro, o bairro de São

Cristóvão abriga uma das feiras mais conhecidas, a Feira de São Cristóvão, popularmente

apelidada de “Feira dos Paraíbas”. Sua trajetória sexagenária revela as dificuldades e os

percalços dos próprios nordestinos em sua afirmação no meio urbano: o maior Nordeste fora

do Nordeste, com muita cultura da região.

Tudo começou em 1945, quando os caminhões pau-de-arara, vindos de vários estados do

Nordeste, chegavam ao Campo de São Cristóvão trazendo retirantes nordestinos para

trabalhar na construção civil, onde já tinham vaga garantida.

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O encontro dos recém-chegados com parentes e outros conterrâneos era animado com música

e comida nordestinas, dando origem à Feira de São Cristóvão. Durante 58 anos, a tradicional

Feira permaneceu no Campo de São Cristóvão, debaixo das árvores. Em 2003, as barracas

foram transferidas para dentro do antigo Pavilhão, que foi reformado pela Prefeitura do Rio e

transformado no Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Hoje, a Feira de

São Cristóvão tem boa infra-estrutura de limpeza e segurança, com banheiros públicos e

estacionamento10.

Mesmo com toda essa presença rural, ainda persiste a noção de que o rural sucumbiu em face

do urbano. Isto talvez resida na multiplicidade de maneiras que marcaram essa presença do

urbano no espaço rural, absorvendo-o, inclusive, materialmente, sobretudo em grandes

metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, que incorporaram à cidade áreas consideradas

rurais. Foi esse o caso do “sertão carioca” dos anos 1950, região que corresponde hoje aos

bairros que integram Jacarepaguá e a área de maior especulação imobiliária da cidade, a Barra

da Tijuca. “Sertão” era a palavra utilizada desde o período colonial para designar o interior, o

campo e o mundo rural.

Não foi apenas o rural que penetrou no urbano, redefinindo-se. O contrário também

aconteceu. O incremento dos meios de transporte no pós-1956, com as rodovias para a

nascente indústria automobilística, encurtou a duração das viagens, em certo sentido

facilitando-as, ao aparentemente diminuir as distâncias, promovendo uma maior circulação de

pessoas e bens. Contudo, foi o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa – com a

popularização do rádio a partir das décadas de 1940 e da televisão na década de 1960 – que

contribuiu para difundir representações da vida urbana e igualmente da vida rural em todo

território nacional. Ao romper com o isolamento, elas permitiram toda uma circularidade de

idéias11. A música popular, o cinema, os programas televisivos, com destaque para as

telenovelas, produziram visões no campo do que seria a vida na cidade e no mundo urbano,

mas também espalharam na cidade o que seria considerado próprio e típico do campo e do

mundo rural12. Muito populares nos anos 1940 e 1950, as chanchadas foram representativas

dessas transformações. Elas retratavam, de forma simples, bem-humorada, a maneira de viver

das populações rurais que estavam migrando para as cidades, originando as camadas

populares urbanas.

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Nessa conjuntura, as cidades emergiam como espaço privilegiado para as manifestações

camponesas que consagravam a reforma agrária não apenas como a reivindicação principal

desse grupo, mas pela visão de que ela era necessária ao progresso da nação como um todo,

ao considerar o latifúndio um óbice ao desenvolvimento nacional. Configurava-se aí a

segunda forma de “invasão” camponesa da cidade: as demandas dos movimentos camponeses

receberiam maior visibilidade se manifestadas no espaço urbano, entendido como lócus de

poder e sede das instituições com capacidade de intervenção no mundo rural. Entre diversas

ações, destacaram-se as ocupações de terras no campo e de prédios públicos nas cidades, já

nos anos 1960, que deixaram registros nas notícias de jornais da época13.

Uma ponte entre as mobilizações da década de 1960 e aquelas dos anos 1980 que

repercutiram nas cidades foi estabelecida em 1984, pelo cineasta Eduardo Coutinho, com o

premiado Cabra marcado para morrer. Tratava-se, na verdade, de dois filmes em um,

produzidos com cerca de duas décadas de diferença, com linguagens cinematográficas

distintas, com narrativas e enredos diversos que se cruzavam na trajetória de sua personagem

central, Elizabete Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa no Sapé,

assassinado na Paraíba, em 1962. Cabra Marcado para morrer ligava o período de forte

mobilização popular, quebrada pela conjuntura autoritária, de repressão política, iniciada pelo

golpe de 1964 – que forçou a interrupção do filme – ao quadro da abertura que levou ao fim

do regime militar. A abertura permitiu a retomada da produção cinematográfica interrompida,

num momento de emergência de um novo ator do campo nas cidades, o MST14.

Considerações finais

A industrialização e a urbanização brasileiras não efetuaram um rompimento e um

afastamento definitivo entre campo e cidade. Pelo contrário, as relações se intensificaram,

estabelecendo situações em que populações rurais se dedicam a atividades urbanas e

populações urbanas a atividades rurais, como no caso dos bóias-frias. Alguns autores chegam

a falar num “rurbano” ou num “novo rural” para explicar tais mudanças15. De qualquer modo,

a presença do mundo rural na cidade e as relações entre urbano e rural podem ser percebidas

de inúmeras maneiras.

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Pensar a própria cidade como um texto, uma forma de escrita que se modifica ao longo do

tempo, contribuiria para desnaturalizar as visões sobre as cidades, suas marcas visíveis e

invisíveis e as relações sociais nelas protagonizadas, deixando de tomá-las como dados,

realidades prontas e acabadas sobre as quais não seria permitida nenhuma relativização,

passando a percebê-las como resultado das ações de atores sociais e de processos históricos.

Mais do que isso, ajudaria na construção de uma concepção de história na qual os grandes

heróis, as massas anônimas e os processos estruturais inescapáveis dariam lugar ao cotidiano

e à experiência de pessoas comuns que participaram e vivenciaram processos tão recentes, em

alguns casos conhecidas e próximas dos alunos, valorizando com isso seus conhecimentos e

trajetórias familiares.

Auxilia no sucesso de abordagens pedagógicas desse tipo a alta probabilidade de que crianças

e adolescentes em idade escolar nos centros urbanos tenham hoje – mesmo quando

desconhecem – algum vínculo geracional com indivíduos que viveram no mundo rural ou

foram sociabilizados com elementos rurais. Até nos casos de ascendência estrangeira, os

principais grupos que migraram para o Brasil em fins do século XIX e começo do XX tinham

origem majoritariamente rural. Há ainda outras redes de sociabilidade, como amigos e

vizinhos que poderiam possuir algum tipo de passagem no meio rural, ou em regiões da

própria cidade consideradas no passado como rurais.

Sugestões de leituras:

DEZEMONE, Marcus. Memória Camponesa: conflitos e identidades em terras de café. Fazenda

Santo Inácio – Trajano de Morais – RJ (1888-1987). Dissertação de Mestrado. Niterói:

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2004.

DUARTE, Ronaldo Goulart. A cidade, que lugar é esse? São Paulo: Editora do Brasil, 2003.

GARCIA, Afrânio e PALMEIRA, Moacir. “Rastros de Casas Grandes e de Senzalas:

transformações sociais no mundo rural brasileiro”. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge e

PINHEIRO, Paulo Sérgio (orgs.). Brasil: Um século de Transformações. 1ª ed. São Paulo: Cia.

das Letras, 2001.

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GRYNSZPAN, Mario. “Da Barbárie à Terra Prometida: o campo e as lutas sociais na história

da República”. In: GOMES, Angela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves e ALBERTI,

Verena (org.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

LINHARES, Maria Yedda e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Terra Prometida. Rio

de Janeiro: Campus, 1999.

Filmes sugeridos:

Cabra marcado para morrer. Direção: Eduardo Coutinho, 1984, 120 min.

Terra para Rose. Direção: Tetê de Moraes, 1987, 84 min.

Conterrâneos Velhos de Guerra. Direção: Vladimir de Carvalho. Brasil, 1992.

Documentário, 153 min

Central do Brasil. Direção Walter Salles, 1997, 112 min.

Guerra de Canudos. Direção Sergio Rezende, 1997, 169 min.

O Sonho de Rose - 10 anos depois. Direção: Tetê de Moraes, 2000, 92 min.

O vale. Direção: João Moreira Salles, 2000, 52 min.

Zé Pureza: a trajetória de famílias na luta pela terra. Direção: Marcelo Ernandez, 2005.

Sementes em trincheiras. Direção: Marcelo Ernandez, 2006.

Notas:

1Historiador e Professor do Colégio Pedro II e do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro. Doutorando em História - PPGH-UFF.

2 Ver SMITH, Dan. Atlas da Situação Mundial. São Paulo: Companhia. Editora Nacional, 2007, p. 28-29. Sobre o processo de urbanização no mundo, CLARK, David. Introdução à geografia urbana. São Paulo: Difel, 1985.

3 DUARTE, Ronaldo Goulart. A cidade que lugar é esse? São Paulo: Editora do Brasil, 2003, p. 22.

4 Para um balanço das principais interpretações sobre o campo e os camponeses do Iluminismo até o século XX, ver DEZEMONE, Marcus. “Revoluções Camponesas no século XX”. In: TEIXEIDA DA SILVA, Francisco

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Carlos (org.) O Século Sombrio. Rio de Janeiro: Campus/ Elsevier, 2004. p. 71-110.

5 As diferentes representações sobre as mobilizações camponesas ao longo da história republicana podem ser encontradas em GRYNSZPAN, Mario. “Da Barbárie à Terra Prometida: o campo e as lutas sociais na história da República”. In: GOMES, Angela de Castro et al. A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

6 Seria adequado mesmo falar de uma “descoberta” do campo pelas esquerdas. Para essa perspectiva, ver, “As esquerdas e a descoberta do campo brasileiro: Ligas camponesas, comunistas e católicos (1950-1964)”. In: FERREIRA, Jorge e AARÃO REIS, Daniel (orgs.) As Esquerdas no Brasil. Nacionalismo e reformismo radical (1945-1964), volume 2. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007. p. 209-236.

7 Ver BERQUÓ, Elza. “Evolução demográfica”. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge e PINHEIRO, Paulo Sérgio (orgs.). Brasil: Um século de Transformações. 1ª ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 14-37.

8 Ver GARCIA JR, Afrânio. O sul: caminho do roçado. São Paulo: Marco Zero/ UnB/ CNPq, 1990.

9 Ver DEZEMONE, Marcus. Memória Camponesa: conflitos e identidades em terras de café. Fazenda Santo Inácio – Trajano de Morais – RJ (1888-1987). Dissertação de Mestrado. Niterói: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2004. p.80.

10 Ver http://www.feiradesaocristovao.org.br/, disponível em 08/02/2008.

11 Um dos mais instigantes exemplos dessa circularidade talvez seja o da forte memória positiva de Vargas entre a população do campo, apesar da historiografia tradicional considerá-la excluída dos benefícios da legislação social. Ver, nesse sentido, DEZEMONE, Marcus. “Os impactos da Era Vargas no mundo rural: leis, direitos e memória” In: Perseu. História, Memória e Política: Revista do Centro de Estudos Sergio Buarque de Holanda. São Paulo, Editora da Fundação Perseu Abramo, Ano 1, n. 1, 2008.

12 Para as visões sobre o campo e o imaginário do mundo rural nas cidades LINHARES, Maria Yedda e TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Terra Prometida. Rio de Janeiro, Campus, 1999, p. 160-163.

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13 Veja-se o relato de José Pureza, liderança camponesa no estado do Rio de Janeiro: PUREZA, José. Memória camponesa, organizado por Eliane Cantarino O’Dwyer. Rio de Janeiro: Ed. Marco Zero, 1982. Dois documentários dirigidos por Marcelo Ernandez, Zé Pureza: a trajetória de famílias na luta pela terra (2005) e Sementes em Trincheiras (2006) tratam dessas ações no campo fluminense.

14 Sobre o MST e a estratégia de ocupação de fazendas e prédios públicos como forma de pressionar a intervenção e tomada de posição do Estado, no contexto da redemocratização, ver o caso da fazenda Anôni acompanhado pela cineasta Tetê de Moraes no documentário Terra para Rose (1987). Em O Sonho de Rose (2000) a diretora retornou à fazenda ocupada pelo movimento nos anos 1980 e desapropriada para mapear as mudanças e melhorias na vida dos assentados e da região.

15 ALENTEJANO, Paulo R. R. Reforma agrária, território e desenvolvimento no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tese de doutorado, CPDA/UFRRJ, 2003.

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PROGRAMA 5PROGRAMA 5

PLURALIDADE E DIVERSIDADE

Carla Ramos1

Uma pequena história ou quando significados e sensações estão juntos

Gosto da idéia de que as palavras têm sentido e muitas delas carregam sensações2.

Primeiramente, vamos ao significado: Diversidade: qualidade daquilo que é diverso,

diferente, variado; Pluralidade: fato de existir uma grande quantidade, de não ser o único;

multiplicidade, diversidade3.

E, para debater estes conceitos, reporto-me a uma pequena história. Em outubro de 2005, um

homem com aproximadamente 60 anos pára o seu carro numa rua da tranqüila cidade de

Malmo, sul da Suécia, e inicia uma discussão fervorosa com um grupo de jovens estudantes.

Os gritos começam a chamar a atenção dos vizinhos que abrem as janelas para olhar o que

estava acontecendo. Eu e a minha amiga, na época radicada naquele país, saímos apressadas

para a rua, na tentativa de entender o motivo daquele inusitado acontecimento. Quando

chegamos bem perto, um carro de polícia tinha acabado de estacionar. O homem,

visivelmente transtornado, afirmava que aqueles jovens “só podiam ser estrangeiros”, “só

podiam ser árabes” “porque não sabiam e nem respeitavam as regras de trânsito”. Ao passo

que os estudantes, um deles mais exaltado, respondeu que os seus pais eram “chilenos”, e que

ele era “sueco”! A briga durou cerca de duas horas e terminou com os policiais

contemporizando a situação, os vizinhos fechando silenciosamente as janelas, o homem indo

embora e os estudantes dispersando-se pelo caminho.

A razão deste sério desentendimento foi uma suposta infração do código de trânsito cometida

por um daqueles jovens, quando andava de bicicleta. As regras para o tráfego em vias suecas

são rígidas e dizem respeito também às pessoas que utilizam a bicicleta como meio de

transporte diário. Mas qual seria a importância deste evento para pensarmos a noção de

diversidade e pluralidade? Além de nos dar uma pequena mostra das relações sociais daquele

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país, o conflito nos permite observar, por exemplo, como percepções de ordem moral e racial,

tal qual atribuir comportamentos desviantes a grupos estigmatizados socialmente – neste caso:

“árabes” e “estrangeiros” – fazem parte do repertório do nosso mundo contemporâneo, tão

marcado pelo fenômeno da imigração e de um regime de verdades, de um sistema de

representações – por que não dizer? – ainda tributário do colonialismo4.

Todos os dias somos bombardeados com imagens, capturadas por agências de notícias

internacionais, que trazem o mundo para dentro das nossas casas via telejornais, jornais

impressos, revistas, internet e outras mídias. No entanto, cabe perguntar: como o mundo está

sendo representado? Como as “pessoas” aparecem? De que modo os lugares são retratados?

Podemos observar, por exemplo, uma notícia bastante conhecida por todos nós: o conflito

envolvendo israelenses e palestinos. Na maioria das reportagens, os palestinos são mostrados

como hordas de homens barbudos, que correm de um lado para outro, aos berros, carregando

corpos de companheiros vitimados no confronto. As suas mulheres vestem exóticos trajes

cobrindo a cabeça e rosto e perambulam como fantasmas pelas mesmas ruas, ruas devastadas;

uma paisagem inóspita, digna dos filmes de ficção científica hollywoodianos. Na África, que

vale sublinhar, não é um país, mas um continente, o que em geral é mostrado são epidemias,

mortes, guerras, fome, desespero e brutalidade. Diante disso, cabe perguntar: quem são estes

“árabes palestinos” e quem são estes “africanos”? Eles sequer têm uma língua porque não têm

voz; não têm família, porque vivem aos bandos e raramente são mostrados seus núcleos

familiares. O que resta deste diferente, senão a sua diferença estereotipada pela mídia? E a

pluralidade de vozes, de visões de mundo, de pensamentos, de ideologias, de corpos, de

histórias, de História? Tudo é facilmente suplantado diante do fast food diário de onde

retiramos punhados de narrativas estereotipadas sobre o Outro5.

Ainda sob este aspecto, o filme do diretor canadense Paul Haggis, Crash: no limite, mostra a

população da cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos, na iminência de um colapso

causado por um excesso de, digamos, diversidade e pluralidade, e pela conseqüente

impossibilidade de convívio e comunicação em tal contexto. Neste caso, a emergência das

diferenças e do fundamentalismo das identidades guetorizadas com nuanças essencialistas

desarticularam o aparato das regras de convívio social que, idealmente, serviria a todos da

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mesma maneira. A partir de então, qualquer desentendimento passou a ser motivo para

acusações de cunho racial, todo problema é interpretado como de fundo étnico, todos os

desencontros são causados por barreiras lingüísticas ou de costumes/tradições particulares e as

instituições operam de maneira a privilegiar grupos religiosos, castas, etc. Estes são

momentos profundamente dolorosos e traumáticos para todo e qualquer grupamento humano.

Não obstante este cenário pouco atraente, os personagens permaneciam ligados; todos

estavam implicados nos rumos da trama, nos rumos daquela sociedade; os laços, mesmo

esgarçados, sobreviviam e apontavam para algumas saídas e uma delas foi o afeto. O afeto

foi/é um dispositivo capaz de reordenar, por exemplo, contextos marcados por dinâmicas

violentas de conflito e cisão, como aconteceu na África do Sul, no pós-apartheid6.

Dinâmicas de cisão e de reconstrução

Alguns autores apontam, e eu me identifico com esta perspectiva, que estamos em meio a um

turbilhão de mudanças que atingem, em cheio, os padrões de identidade que conhecemos na

chamada modernidade tardia7. De acordo com isso, teríamos o seguinte quadro interpretativo:

temos o mundo social e os indivíduos que, por sua vez, se ligam ao primeiro por um conjunto

de referências e estas podem ser culturais, por exemplo. Tais referências atuam

“estabilizando” os indivíduos em seus contextos. O meu objetivo neste texto é fazer um

exercício de reflexão acerca da noção de diversidade e pluralidade num mundo em

movimento, não é demais lembrar, onde as tradicionais fontes de representações culturais, de

significados, como o Estado-Nação, deixam de ser hegemônicos. As conseqüências são

variadas e é preciso um esforço de investigação amplo e extenso para dar conta de mapeá-las.

No entanto, é importante seguir algumas pistas que podem nos levar na direção destas

mudanças na ordem das identidades culturais: se por um lado os padrões de identificação

tradicionais do Estado-Nação perderam força no embate com a diversidade e a pluralidade

reivindicadas pelos grupos que antes estavam silenciados sob o plácido manto “nacional”, de

outro lado, acompanhamos o ressurgimento de um nacionalismo de tipo étnico/racial e

fundamentalista religioso.

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Há, no mundo contemporâneo, um crescente avanço de uma direita racista, cuja plataforma

política está fortemente organizada contra os “novos negros” que, segundo seu julgamento,

maculam e ameaçam a cultura e a civilização ocidental, quais sejam: os imigrantes. Países

como a Dinamarca, a Suécia e a Suíça, enfrentaram, em suas eleições majoritárias, uma

acirrada disputa por eleitores, que envolveu discursos essencialistas em prol da perseguição e

do ódio contra os imigrantes. Tal fato foi traduzido em políticas públicas de controle maior

das fronteiras, aumento das restrições para a entrada no país e extrema vigilância e punição

das “ovelhas negras” (Black sheeps, expressão utilizada pela propaganda do partido de direita

na Suíça, o Swiss People’s Party, SPV). Lamentavelmente, este projeto político, algumas

vezes mais ou menos explícito, saiu vencedor e ganha cada vez mais terreno. Ao lado disto, é

possível acompanhar a disseminação do nacionalismo baseado em ortodoxias religiosas –

fundamentalistas – que buscam a todo custo restabelecer entidades políticas e Estados que

estejam submetidos a doutrinas religiosas.

Diante deste quadro, quem sabe, então, poderíamos resgatar a tese de Gramsci, e trabalhar a

partir do entendimento de que o mundo das disputas políticas é o palco para a conquista de

mentes e corações para esta ou aquela ideologia. A diversidade e a pluralidade, como valores

para serem celebrados, não nascem por geração espontânea, não são algo genético, alguma

coisa inevitável. Pelo contrário, são ideologias, forjadas, lapidadas, escolhidas e levadas a

cabo por obra e engenharia humana, dos grupos sociais, portanto, são históricos8! O Brasil,

por exemplo, no século XIX, foi condenado pela ciência européia eugenista a poucos anos de

sobrevivência como nação; isto porque era escandaloso verificar as variações de cores e tipos

de pessoas que conviviam nas cidades do antigo Império Português. “Escandaloso” é uma boa

palavra para resumir o sentimento de estranhamento e horror declarado por renomados

cientistas e políticos franceses e ingleses depois de um pequeno passeio pelas ruas do Rio de

Janeiro. Não tínhamos saída! Estávamos fadados ao fim por causa de um povo/raça fraco e

doentio; um contingente de homens e mulheres resultante de assombrosos intercursos sexuais

entre negros, brancos e índios. Uma população cuja força havia se enfraquecido

biologicamente, havia se tornado impura, sem chances de vida.

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Sobrevivemos a isso? Alcançamos o século XXI! Mas de que maneira nos livramos desta

sentença de morte e alcançamos a condição de “País do Futuro” 9? Que engenharia social foi

responsável por este acontecimento? Vou ressaltar, de maneira bastante sintética, apenas uma

dimensão desta luta por um contra-argumento bastante representativo: foram muitos anos de

intensa produção intelectual por estas terras e pelo mundo afora até que a tese das diferenças

culturais conseguisse um campo maior de hegemonia, em prejuízo do biologismo, da hipótese

segundo a qual a humanidade devia as suas diferenças às divisões raciais que classificavam os

grupos humanos de acordo com a sua localização numa linha evolutiva10. O Brasil começou a

ganhar fôlego e horizonte a partir da celebração da mistura – genética e cultural – do povo que

por estas terras está11. Misturar, mesclar, sincretizar, tornar híbrido tanto pessoas quanto

tradições culturais: a celebração destas possibilidades precisa ser inventada.

A cidade como espaço a ser permanentemente conquistado

Visto isso, podemos pensar a respeito do papel da cidade neste grande panorama que

acabamos de desenhar. A cidade é o lugar onde estes embates se dão, ela é moldada, ela está

organizada, ela reflete e é refletida nestes encontros promovidos sob a égide da diversidade e

da pluralidade; em suma, a cidade é um ente pulsante neste jogo. A geofísica, as fronteiras, a

arquitetura, o seu desenho sociopolítico: a cidade é chão e abstração. Quando emigram, as

pessoas levam consigo as suas cidades. Com elas viajam hábitos, cheiros, gostos, festas,

paisagens, sotaques característicos, etc. Neste sentido, a cidade está inscrita em nossos corpos.

Dessa maneira, quão desnorteador deve ser o desaparecimento súbito de uma cidade que

sucumbe à guerra... Dá para imaginar o quanto de agonia está disseminada entre milhares de

pessoas que vivem há anos nos campos de refugiados espalhados pelo planeta, que vivem

neste vácuo, neste espaço provisório que teima em não permitir que elas deitem raízes? Mas a

cidade também é raivosa e, muitas vezes, dá as costas aos sujeitos. E quando isso acontece, os

movimentos sociais – os coletivos organizados – precisam retomá-la à força. Por isso, será

necessário apropriar-se do patrimônio da cidade, de sua pedra e cal, da sua intangibilidade

para depois colocar no plural a História e, por fim, afirmar como é diversa a cidade que antes

se fez arredia.

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A cidade precisa ser constantemente capturada por seus cidadãos, afinal de contas, são eles

que lhe imprimem sentido. A educação formal e a não-formal nos dão instrumentos mais

eficazes para colocar em prática este intenso processo de reelaboração das “histórias locais”

sem perder de vista os “projetos globais” 12. Quando olhamos ao nosso redor, quando

descobrimos e organizamos as histórias sobre o lugar onde nascemos, o bairro onde vivemos,

a cidade em que transitamos, estamos refazendo a paisagem, apresentando nossas vozes e

nossas percepções sobre aquele espaço. É como me explicou um jovem participante do grupo

“Reperiferia”, do Rio de Janeiro, dizendo que “Reperiferia” significa repensar a periferia;

pensar novamente alguns lugares da cidade que já estiveram submetidos ao olhar de outras

pessoas, muitas vezes descoladas daquela realidade. A idéia é recolocar-se na cidade a partir

de um entendimento amplo dos procedimentos de construção de sua geopolítica e das

dinâmicas culturais e sociais que algumas vezes nos separam, e em outras refazem laços

afetivos que imaginávamos não mais existir.

Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

CUNHA, Olivia M. Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da

(in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,

2002.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998.

GORDIMER, Nadine. Engate. Rio de Janeiro: Companhia das Letras.

HALL, Stuart. A Identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A

Editora, 2006.

Dicionário HOUAISS. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

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LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: Raça e Ciência I. São Paulo:

Unesco/Editora Perspectiva, 1970.

MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade.

Rio de Janeiro: Fiocruz/ CCBB, 1996.

MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais. Colonialidade, saberes

subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: HB/Ed. UFMG, 2003.

ZWEIG, Stefan. Brasil um país do Futuro. Porto Alegre: L&PM, 2006.

Notas:

Mestre em Sociologia e Antropologia pela UFRJ/PPGSA e Analista Educacional do Salto para o Futuro.

2 Bauman, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual (cf. Bibliografia).

3 Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001.

4 No Brasil padecemos do mal causado pela discriminação racial, de gênero, religiosa, de classe, motivada pela opção sexual, etc. Estas atitudes atingem e traumatizam milhares de pessoas todos os dias em nosso país.

5 Só precisamos olhar ao nosso redor e prestar mais atenção nas nossas atitudes cotidianas para perceber as práticas discriminatórias, os nossos preconceitos e a dificuldade explícita de conviver com a diferença.

6 Esta “saída” foi habilidosamente apresentada num romance da autora sul-africana Nadine Gordimer chamado: Engate.

7 Não vou me estender aos pormenores do debate. Para tanto, sugiro o precioso e inspirador livro do autor jamaicano Stuart Hall: A identidade cultural na pós-modernidade.

8 Uma leitura interessante é o artigo de Claude Lévi-Strauss chamado Raça e História.

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9 Para saber mais, indico a leitura do clássico livro de Stefan Zweig: Brasil um país do futuro.

10 Sobre este tema, as minhas fontes para estas questões costumam ser os livros: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire; Raça, Ciência e Sociedade, organizado por Marcos Chor Maio e Ricardo dos Santos Ventura; Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro, da antropóloga Olívia Cunha.

11 Ver Gilberto Freyre: Casa Grande e Senzala (1933).

12Fiz esta referência inspirada por um pensador argentino que vale a pena ser lido, Walter Mignolo. O livro em questão tem o título: Histórias Locais, Projetos Globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. (2003).

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Presidente da RepúblicaLuís Inácio Lula da Silva

Ministro da EducaçãoFernando Haddad

Secretário de Educação a DistânciaCarlos Eduardo Bielschowsky

TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO

Diretor de Produção de Conteúdos e Formação em Educação a DistânciaDemerval Bruzzi

Coordenador-geral da TV EscolaÉrico da Silveira

Coordenadora-geral de Capacitação e Formação em Educação a DistânciaSimone Medeiros

Supervisora PedagógicaRosa Helena Mendonça

Acompanhamento PedagógicoCarla Ramos

Coordenação de Utilização e Avaliação Mônica Mufarrej Copidesque e RevisãoMagda Frediani Martins

Diagramação e EditoraçãoEquipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TVE Brasil Gerência de Criação e Produção de Arte

Consultor especialmente convidadoPaulo Rogério Marques Silly

E-mail: [email protected] page: www.tvbrasil.org.br/salto Rua da Relação, 18, 4o andar - Centro.CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)Abril de 2008

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