a cidadania como projecto educacional: uma abordagem … · ao longo da história, mesmo nos...
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Joslia Mafalda Ribeiro da Fonseca
A CIDADANIA COMO PROJECTO EDUCACIONAL:
Uma Abordagem Reflexiva e Reconstrutiva
Universidade dos Aores
Joslia Mafalda Ribeiro da Fonseca
A CIDADANIA COMO PROJECTO EDUCACIONAL:
Uma Abordagem Reflexiva e Reconstrutiva
Tese apresentada Universidade dos
Aores para cumprimento dos requisitos
necessrios obteno do grau de doutor
em Educao, na especialidade de Filosofia
da Educao, realizada sob a orientao da
Professora Doutora Maria do Cu Patro
Neves, Professora Catedrtica da
Universidade dos Aores, e da Professora
Doutora Maria Lusa Garcia Alonso,
Professora Associada do Instituto de
Educao da Universidade do Minho.
Universidade dos Aores
Angra do Herosmo
2011
Agradecimentos
professora doutora Maria do Cu Patro-Neves e
professora doutora Lusa Alonso pela disponibilidade,
dedicao que investiram no meu processo de formao;
pela amizade e incentivo dado; e por serem um importante
pilar no meu desenvolvimento pessoal e profissional.
Escola Bsica Integrada, e muito em especial aos
professores participantes que colaboraram nesta
investigao-aco, sem os quais no teria sido possvel
construir este conhecimento praxeolgico em cidadania.
Ana Tomas de Almeida, Isabel Candeias, ao
Francisco Sousa e Raquel Dinis pelo apoio dado.
Aos meus pais e ao meu irmo pelo carinho, dedicao,
confiana e encorajamento que me ofereceram.
RESUMO
O presente trabalho de investigao tem como finalidade compreender o sentido e
o lugar da educao para a cidadania no currculo da escola actual e contribuir para que
este processo educativo se torne um pilar estruturante na formao dos alunos enquanto
pessoas. Na sociedade do sculo XXI, a educao para a cidadania no pode
continuar arreigada a um processo de instruo cvica que se revela inadequado para
formar as pessoas enquanto cidados activos e responsveis.
No referencial terico que sustenta este trabalho, entende-se a educao para a
cidadania como um processo educativo global e integrado, fundamentado numa tica da
responsabilidade, que visa a promoo da formao do cidado enquanto unicidade
dinmica do eu, na sua dimenso singular e na sua dimenso comunitria.
Tendo em considerao as exigncias da educao para a cidadania na sociedade
actual, achamos pertinente envolver a escola e os professores num trabalho de
investigao-aco colaborativa, que lhes permitisse analisar e reflectir como
concebiam e desenvolviam o processo educativo para a cidadania e potenciasse a
inovao das suas teorias prticas neste domnio.
Participou neste trabalho de investigao uma comunidade de aprendizagem,
constituda pela investigadora principal e por dez professores de dois conselhos de
turma, um do 8 e outro do 9 ano de escolaridade, de uma Escola Bsica Integrada da
Ilha Terceira.
O desenvolvimento do processo de investigao-aco colaborativa organizou-se
em vrios ciclos e fases, e sustentou-se prioritariamente numa aco de formao
reflexiva e contextualizada, em modalidade de oficina, na qual os professores
apreenderam novas perspectivas de educao, cidadania, desenvolvimento curricular e
profissional, que concretizaram num projecto curricular integrado para a cidadania, nos
seus conselhos de turma. No decorrer do processo foram adoptados diferentes
procedimentos de recolha e anlise de dados: entrevistas exploratrias e questionrio
diagnstico e final; diversos instrumentos de registo; dirio do investigador; relatrios
da oficina de formao; entrevistas de seguimento em grupo, que possibilitaram a
monitorizao das mudanas produzidas pelos professores no processo educativo para a
cidadania e no seu desenvolvimento pessoal e profissional.
No final deste estudo, verificmos que os professores participantes evidenciaram
transformaes significativas na forma como concebem e desenvolvem a educao para
a cidadania, associando-a a uma tica da responsabilidade e desenvolvendo este
processo educativo de forma intencional e integrada.
ABSTRACT
This research project aims at understanding the meaning and the role of
citizenship education in the curriculum nowadays. In addition, I expect that it
contributes to the consolidation of citizenship as a pillar of the education of students as
persons. In the 21st century, citizenship education cannot be limited to instruction on
civics, because such approach is insufficient if one wants to educate active and
responsible citizens.
In the light of the theoretical framework of this study, citizenship education is
defined as a global and integrated process, based on an ethics of responsibility, which
aims at educating the citizen by taking the dynamic unity of the self into consideration,
both at the individual and at the community level.
Considering the demands of citizenship education in the contemporary society, it
is important to engage teachers in collaborative action research projects, which allow
them to (1) reflect on their approaches to citizenship education and (2) foster innovation
of their practice in that domain.
Accordingly, I have led a learning community, which included ten teachers of an
elementary school from Terceira Island, as well as two class councils one from the
eighth and one from the ninth grade.
The action research process was supported by a workshop, aimed at enhancing the
participants awareness of new perspectives on education, citizenship, curriculum
development and professional development, which they embedded in an integrated
curricular project with their class councils. Besides reflecting on that practice with the
team, I collected data through different procedures: exploratory interviews; a diagnostic
and a final questionnaire; a researchers journal; workshop reports; and follow-up group
interviews, which allowed for the monitoring of the changes produced by the teachers in
their approaches to citizenship education and in their own professional development.
By the end of this study, I had collected evidence of significant changes in the
participants approaches to citizenship education, which became increasingly
intentional, integrated and justified on the basis of an ethics of responsibility.
ndices
VII
ndice Geral
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania ................................... 1
Captulo I - Sentidos de Educar .................................................................................. 11
Captulo II - Educar Hoje ............................................................................................ 40
2.1 Educar construir a Pessoa: que Pessoa?...................................................... 42
2.1.1. A Pessoa na sua dimenso singular............................................................... 42
2.1.2. A Pessoa na sua dimenso comunitria ............................................................ 52
2.1.3. O Cidado ......................................................................................................... 61
2.2 Construir a pessoa educar para os valores: que Valores?............................... 69
2.2.1. Os valores como constitutivos da pessoa ......................................................... 69
2.2.1. A educao de valores versus a educao para valores ................................... 90
Captulo III - A Educao para a Cidadania como tica da Responsabilidade ... 100
3.1. Sentido(s) de Cidadania ................................................................................. 102
3.1.1. Perspectiva histrica da dimenso tico-poltica da cidadania ....................... 102
3.1.2. Noo de Cidadania Activa: perspectivas e alcance ................................... 115
3.2. A Responsabilidade como imperativo tico da Educao para a Cidadania ..... 123
3.2.1. Sentido(s) de Responsabilidade ...................................................................... 123
3.2.2. Responsabilidade e Formao Pessoal ........................................................... 133
3.2.3. Responsabilidade e Formao Cvica ............................................................. 137
3.2.4. Promoo da Cidadania atravs de uma tica da Responsabilidade .............. 145
Captulo IV - Educao e Cidadania na Escola e no Currculo ............................. 154
4.1. Sentidos de cidadania na Escola Portuguesa ..................................................... 156
4.2. O Currculo como o pilar de desenvolvimento da Educao para a Cidadania na
Escola ....................................................................................................................... 172
4.3. Currculo Integrado, Projecto Curricular e Educao para a Cidadania ............ 187
4.4. A Educao para a Cidadania no desenvolvimento curricular e profissional ... 196
Captulo V - Perspectivas e Prticas de Educao para a Cidadania na Escola .. 205
5.1. O Contexto da Investigao ............................................................................... 210
5.2. Questes e Objectivos da Investigao ............................................................. 212
5.3. Percurso Metodolgico ...................................................................................... 214
VIII
5.3.1. Metodologia de investigao .......................................................................... 214
5.3.2. A equipa de investigao ................................................................................ 221
5.3.3. As fases e tcnicas de investigao ................................................................ 230
5.3.4. Quadro de anlise de dados ............................................................................ 242
5.4. Relatrio de Investigao entre o processo e os resultados ............................ 248
Contributos para um Percurso de Cidadania ...................................................... 385
Bibliografia .................................................................................................................. 402
IX
Anexos
Anexo I - Protocolos
Anexo II - Entrevistas s directoras de turma
Anexo III - Questionrios realizados na investigao
Anexo IV - Reunies dos conselhos
Anexo V - Oficina de Formao
Anexo VI - Encontro
Anexo VII - Relatrios da Oficina
Anexo VIII - Entrevistas em grande grupo
X
ndices das Figuras
Figura I - Fluxograma dos ciclos de investigao ....................................................... 230
Figura II - Referencial da Educao para a cidadania, produzido pelos professores
Matilde, Joo, Joana e Constana ................................................................................. 330
XI
ndice Quadros
Quadro I - Ciclos e Fases da Investigao .................................................................. 231
Quadro II - Sistema de Categorias .............................................................................. 244
Quadro III - Finalidades da educao para a cidadania .............................................. 271
Quadro IV - Intencionalidade na educao para a cidadania - Concepes ............... 272
Quadro V - Intencionalidade na educao para a cidadania - Prtica ......................... 272
Quadro VI - Planificao da educao para a cidadania ............................................. 273
Quadro VII - Abordagens utilizadas na educao para a cidadania - Concepes..... 273
Quadro VIII - Abordagem utilizada na educao para a cidadania - Prtica ............. 274
Quadro IX - Participao dos alunos, professores e comunidade na educao para a
cidadania - Concepes ................................................................................................ 275
Quadro X - Participao dos alunos, professores e comunidade na educao para a
cidadania Prticas ...................................................................................................... 276
Quadro XI - Formas de trabalho docentes na educao para a cidadania ................... 277
Quadro XII - Estratgias utilizadas no desenvolvimento da educao para a cidadania
Concepes ................................................................................................................... 278
Quadro XIII - Estratgias utilizadas no desenvolvimento da educao para a cidadania
Prticas ...................................................................................................................... 278
Quadro XIV - Avaliao Concepes ...................................................................... 279
Quadro XV - Avaliao Prtica ............................................................................... 280
Quadro XVI - Finalidades da educao para a cidadania ........................................... 351
Quadro XVII - Intencionalidade Concepes .......................................................... 352
Quadro XVIII - Intencionalidade Prticas ............................................................... 353
Quadro XIX - Abordagem Concepes ................................................................... 355
Quadro XX - Abordagens Prticas ........................................................................... 356
Quadro XXI - Estratgias de Ensino Concepes ................................................... 357
Quadro XXII - Estratgias de Ensino Prtica .......................................................... 358
XII
Quadro XXIII - Avaliao Concepes .................................................................. 358
Quadro XXIV - Avaliao Prticas ......................................................................... 359
Quadro XXV - Formas de trabalho docente................................................................ 360
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania
3
A escola, enquanto instituio social educativa, tem a funo de formar o homem
para que este se desenvolva singular e comunitariamente. Isto , a escola tem, na sua
essncia, a misso de educar para a cidadania.
Na Grcia Antiga, bero da cidadania, possvel identificar a relao intrnseca
entre esta e a Paideia. Esta ltima diz respeito formao do cidado de acordo com a
identidade do povo grego. Na cultura grega, o cidado era educado para que praticasse a
virtude cvica, isto , para que conhecesse o bem e pudesse deliberar na vida poltica da
polis, com sageza, tendo em vista o bem-comum de toda a cidade-Estado.
Ao longo da histria, mesmo nos perodos em se vivem momentos de represso
social e poltica, a educao para a cidadania esteve presente nos sistemas educativos
das escolas, se bem que perspectivada e utilizada como veculo de transmisso de
propaganda do regime poltico em vigor.
Nos regimes democrticos, as questes da cidadania continuam a estar presentes
nos sistemas educativos. O prprio processo de democratizao do ensino uma forma
de o projecto educativo assegurar a igualdade de todos os cidados no acesso ao
conhecimento e cultura, para lhes garantir que sejam membros activos na sua
sociedade.
Na ltima dcada do sculo XX e incio do sculo XXI, a educao para a
cidadania assume um lugar de destaque nas polticas educativas europeias e
portuguesas.
Na verdade, entendemos que possvel afirmar que em nenhum perodo da
histria se abordou tanto as questes da cidadania no domnio educativo como
actualmente. As razes desta abordagem intensiva podem ser duas: 1) o facto de, desde
a dcada de oitenta do sculo XX, a sociedade contempornea viver mergulhada numa
crise de valores (Lipovetsky, 1989), habitada por um homem light (Rojas, 1994),
narcsico, permissivo e consumista. Esta sociedade est tambm fortemente marcada
pelo poder tecnolgico e econmico, que pode tornar-se desenfreado e colocar em
perigo a vida e a dignidade humana; 2) a questo de actualmente vivermos num mundo
globalizado, que pressupe novas formas de ser e conviver com os outros.
O cidado do sculo XXI tem no s de conhecer muito bem os princpios e
valores que sustentam a sua cultura e que fazem parte da sua identidade enquanto
membro de uma determinada sociedade, como tem de desenvolver competncias ticas
que lhe permitam interagir e dialogar com a diversidade axiolgica e cultural,
estabelecendo consensos em prol da paz e do bem-comum. Este cidado tambm tem de
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania
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estar preparado para se reconhecer como um elemento comunitrio interventivo,
responsvel e solidrio.
O contexto sociocultural dos finais do sculo XX e incios do sculo XXI reclama
um novo conceito de cidadania. Os cidados so aqueles que se reconhecem e assumem
como membros livres, comprometidos com a sua comunidade e que, por isso mesmo,
respondem face s suas necessidades e exigncias. Trata-se de um conceito de cidadania
que enfatiza a dimenso tica da responsabilidade, no sentido em que privilegia tanto o
ser para si mesmo como o ser para e com os outros. De acordo com o que refere o
Frum da Educao para a Cidadania, este processo educativo pressupe o
[] horizonte de uma cultura humanista e valores fundamentais para a individualidade e a
sua experincia em comunidade. Prope-se uma educao e uma formao transformadoras
e comprometidas com os valores da igualdade, da democracia [] baseados em processos
activos, participativos, de dilogo. (2008, p. 17)
Verifica-se que existe a preocupao de a educao para a cidadania preparar os
alunos para o seu desenvolvimento como pessoas, tanto na sua dimenso singular como
na sua dimenso comunitria.
Numa primeira instncia, podemos questionar o ineditismo desta preocupao,
uma vez que educar a pessoa na sua dimenso singular e comunitria deve ser o
principal fundamento de todo o processo educativo, sobretudo das sociedades
democrticas contemporneas que preconizam a liberdade, a igualdade de direitos entre
todas as pessoas e a justia social. Assim sendo, qual o objectivo da grande nfase
atribuda educao para a cidadania nos finais do sculo XX e incios do sculo XXI?
Consideramos que o privilegiar da educao para a cidadania no currculo
portugus se justifica em funo da necessidade de a escola estar preparada e formar os
jovens para saberem responder aos desafios da sociedade democrtica global do sculo
XXI. Entendemos tambm que, para responder a esses desafios, o processo educativo
para a cidadania deve assumir uma vertente cada vez mais tica e fundamentar-se no
princpio tico da responsabilidade.
Ao cidado do sculo XXI no basta identificar-se como membro, com direitos e
deveres, numa determinada comunidade. O cidado actual necessita de reconhecer-se
como membro integrante, activo, que, mais do que identificar-se como um ser livre,
tem, de facto, de exercer essa liberdade, cumprir os seus deveres. Ele necessita de
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania
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compreender que na relao dialgica com os outros e com a sociedade que constri a
sua identidade.
O cidado do sculo XXI tem de se afirmar como um ser responsvel por si e pela
sua sociedade. Ele tem de se perspectivar como um ser que responde solidariamente s
vulnerabilidades dos co-cidados, s necessidades e s exigncias da vida em
comunidade. Entenda-se, neste contexto, a comunidade no apenas no sentido restrito,
daquela que lhe prxima, mas no sentido global, aquela distendida no espao, que
resulta da interligao de diferentes locais e regies do planeta e, consequentemente, de
diferentes contextos sociais, que se estrutura num tecido de relaes sociais e humanas
escala mundial.
A educao para a cidadania no sculo XXI tem, decisivamente, de assentar numa
tica da responsabilidade, para que o processo educativo faculte aos alunos a
compreenso da cidadania como um elemento constitutivo da sua identidade, e no
apenas como um conjunto de leis e normas que eles tm de conhecer e cumprir
coercivamente.
Deste modo, defendemos que fundamentar a educao para a cidadania numa
tica da responsabilidade constitui um elemento necessrio na formao dos alunos
como cidados activos.
A expresso cidadania activa tornou-se recorrente nos documentos e na
bibliografia do domnio educativo divulgada no incio deste sculo, como constitui
exemplo o Relatrio Saberes Bsicos de todos os Cidados no Sculo XXI, publicado
pelo Conselho Nacional de Educao, em 2004.
Nas actuais sociedades democrticas, a designao cidadania activa no deixa
de ser controversa, na medida em que ser cidado em democracia pressupe,
impreterivelmente, ser um membro interventivo, que participa nas tomadas de deciso
da sua comunidade.
A nfase que alguns especialistas em educao atribuem ao desenvolvimento da
cidadania activa justifica-se, provavelmente, por cidado do sculo XXI ser
considerado um ser socialmente aptico/passivo. Este aspecto pode ser indicativo de
que existem problemas na educao para a cidadania que tem sido promovida at agora
pelas escolas.
Atendendo a todo este conjunto de factores, entendemos ser pertinente
desenvolver um trabalho de investigao sobre o tema da educao para a cidadania e a
sua fundamentao na tica da responsabilidade.
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania
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As grandes finalidades deste estudo consistem em reflectir sobre o sentido e o
lugar que a educao para a cidadania ocupa na escola actual, sobre a importncia da
cidadania no processo de personalizao humana, sobre o sentido tico da
responsabilidade como uma componente intrnseca da educao para a cidadania;
compreender como que os professores concebem e desenvolvem o processo educativo,
que valores lhe associam e como perspectivam a sua responsabilidade neste domnio; e,
por ltimo, envolver a escola num trabalho de investigao-aco colaborativa que
propicie a pesquisa, a prtica e a reflexo sobre a tica da responsabilidade na educao
para a cidadania e os caminhos para o seu desenvolvimento.
A promoo de um processo educativo para a cidadania consubstanciado numa
tica da responsabilidade exige alteraes na forma como o professor concebe a
cidadania, organiza e gere o currculo neste domnio. importante que o professor se
reconhea como cidado activo, no s da aldeia global que o mundo, mas tambm
da sua escola, e que faa desta uma instituio verdadeiramente cidad. Isto , que todos
os professores trabalhem colaborativamente, reflictam criticamente sobre o currculo e
sobre as suas prticas, de modo a deliberarem e organizarem um processo educativo
contextualizado, que favorea aprendizagens significativas para os alunos.
Neste sentido, consideramos que a metodologia de trabalho que mais se adequa
aos propsitos deste estudo a investigao-aco colaborativa. Este tipo de
metodologia de investigao, ao envolver e comprometer todos os participantes
(investigadora principal e professores participantes) no diagnstico dos seus problemas
e necessidades, na procura de solues viveis, e ao acentuar a colaborao e a partilha
do conhecimento entre eles, favorece o desenvolvimento da democracia. Defendemos
assim, que a investigao-aco [] contribui para o progresso social, promove o
progresso da cidadania (Silva, 1990, p. 33).
O nosso projecto de investigao-aco colaborativa seguiu os passos especficos
desta metodologia: houve momentos de diagnstico, em que se auscultou os professores
sobre os seus interesses, necessidades e dificuldades no mbito da educao para a
cidadania; atendendo s necessidades diagnosticadas e ao que consideramos dever ser
um processo de educao para a cidadania, fundamentado numa tica da
responsabilidade, elabormos um plano de formao que fosse ao encontro das reais
preocupaes dos professores. A aco de formao foi organizada de modo a que os
professores, pela abordagem de novos conceitos e perspectivas de educao para a
cidadania e de currculo e pela anlise, confrontao e reflexo das suas concepes e
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania
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prticas, reconstrussem o seu conhecimento e inovassem a sua praxis educativa no
mbito da cidadania; acompanhamento e monitorizao das mudanas/inovaes dos
professores na educao para a cidadania.
O plano formativo, assim como todo o trabalho de investigao, sustentaram-se
num consistente quadro terico que pretende responder aos objectivos iniciais do estudo
e que se foi complexificando e enriquecendo em funo das questes, interrogaes e
problemas surgidos com o desenrolar do processo de investigao-aco colaborativa.
Como caracterstico desta metodologia, todo o processo investigativo construiu-
se numa relao dialgica entre a teoria e a prtica, na qual ambas se complementam e
se enriquecem mutuamente. Ao longo da redaco da tese, procurmos que esta relao
dialgica, prpria da praxis educativa, se tornasse perceptvel.
A dissertao encontra-se organizada em cinco grandes captulos: sentido(s) de
educar; educar hoje; a educao para a cidadania como tica da responsabilidade;
educao e cidadania na escola e no currculo; perspectivas e prticas de educao para
a cidadania.
Defendemos que o desenvolvimento de uma investigao-aco colaborativa
sobre educao para a cidadania pressupe uma anlise e uma reflexo sobre em que
consiste educar, desenvolvida no Captulo I, Sentido(s) de educar.
Para a construo deste processo hermenutico sobre o que a educao contribui
decisivamente uma abordagem sobre o sentido etimolgico e conceptual que o vocbulo
tem assumido ao longo dos diversos perodos histricos. Este percurso histrico
permitir-nos- compreender o verdadeiro significado da educao para o sculo XXI.
Educar Hoje, temtica abordada no Captulo II, consiste num processo de
formao global da pessoa. A que dimenso da pessoa se dirige o processo
educativo actual? sua dimenso singular, como identidade nica e irrepetvel? sua
dimenso comunitria como membro integrante de uma determinada comunidade? Ou
pessoa enquanto unicidade dinmica do eu na sua dimenso singular e comunitria, isto
, ao cidado?
Educar a pessoa/cidado , na verdade, educar para valores. A relao que existe
entre educao e valores co-originria e fundante. Como referimos, educar consiste
em formar a pessoa, em transmitir conhecimentos, valores e desenvolver
competncias para que esta se reconhea como um valor, como um fim em si mesmo
e construa o seu projecto existencial num processo de mediao com o seu contexto
sociocultural.
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania
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A educao para valores assume, neste contexto, grande pertinncia, na medida
em que vai permitir que o homem seja formado no sentido de garantir que, na
sociedade, sejam criadas todas as condies que favoream o processo de
personalizao de todos os cidados.
Para que a educao possa, de facto, preparar a pessoa para viver em sociedade
e fazer desta vivncia uma parte integrante do seu desenvolvimento singular e
comunitrio, quais so os valores que devem nortear o processo educativo? E que tipo
de educao axiolgica deve ser promovida: uma educao de ou uma educao para
valores?
Atendendo aos j referidos desafios ticos e axiolgicos que a sociedade actual
coloca ao cidado, a educao para a cidadania do sculo XXI deve assentar num
processo educativo para valores, consubstanciado numa tica da responsabilidade.
Actualmente, torna-se imperativo perspectivar A educao para a cidadania como
uma tica da responsabilidade, problemtica desenvolvida no Captulo III. Entenda-se,
neste contexto, a responsabilidade tanto no seu significado clssico, como imputao,
como no sentido contemporneo de tica da responsabilidade, de resposta presena do
outro.
A responsabilidade afirma-se, no sculo XXI, como um valor essencial na
formao dos cidados, tanto na sua dimenso singular como na sua dimenso
comunitria.
Na verdade, reconhecemos que a responsabilidade se constitui como um
elemento-chave na formao pessoal e cvica dos alunos: na formao pessoal, no
sentido em que atravs das suas aces e no assumir destas que o homem vai
constituindo a sua identidade, vai construindo o seu projecto existencial; na formao
cvica, na medida em que a pessoa um ser relacional que se constri no tecido das
relaes intersubjectivas. Deste modo, importante que cada eu responda no s s suas
necessidades e solicitaes, mas tambm s dos outros, para que todos juntos criem, na
sociedade, condies favorveis realizao do projecto existencial de cada um.
Atendendo importncia que o valor da responsabilidade assume no
desenvolvimento da dimenso singular e comunitria do cidado, torna-se relevante
reflectir sobre como que o currculo pode representar um processo educativo promotor
da educao para a cidadania consubstanciada numa tica da responsabilidade.
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania
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Do mesmo modo, pertinente compreender como perspectivada a Educao e
cidadania na escola e no currculo, em anlise no Captulo IV, tanto sob o ponto de
vista do sistema educativo como do ponto de vista do processo curricular.
A compreenso do sentido actual da cidadania na escola exige que se proceda a
uma breve reflexo histrica da evoluo deste conceito no contexto educativo da
realidade portuguesa. nesta reflexo que possvel identificar com clareza o sentido
da educao para a cidadania na escola do sculo XXI e as inovaes conceptuais e
curriculares que so sugeridas.
O currculo, entendido desde a sua raiz etimolgica currere, como caminho, pista
de corrida que se percorre na escola para alcanar a educao, constitui-se como um
pilar fundamental na promoo da educao para a cidadania. A forma como se concebe
o currculo, sob a perspectiva tcnica, prtica e crtica, potencia diferentes formaes do
cidado.
No contexto das sociedades democrticas globais actuais, a postura do professor
face ao currculo dever ser a de um prtico reflexivo, um intelectual transformador,
capaz de analisar e reflectir criticamente o currculo, o seu contexto escolar e, em
funo destas leituras, traar um plano de aco que v ao encontro das necessidades
dos seus alunos, que os prepare para serem cidados responsveis.
Os professores necessitam de transformar a sua escola numa instituio cidad.
Para tal, necessrio um novo conceito de formao formao contnua
contextualizada , na qual os professores desenvolvam competncias de investigao e
reflexo, aprendam a trabalhar colaborativamente e a ser gestores crticos do currculo
numa escola cidad.
Perspectivas e prticas de educao para a cidadania, temtica abordada no
Captulo V, relata todo o processo de investigao-aco colaborativa que
desenvolvemos na escola com os professores, com o objectivo de estes melhorarem e
inovarem as suas prticas educativas no mbito da cidadania.
A prossecuo deste projecto investigativo implica a tomada de um conjunto de
procedimentos e decises, tais como: a caracterizao do contexto educativo, a
elencagem do conjunto de objectivos e questes que orientam a investigao, o
delineamento do percurso metodolgico e a identificao das diferentes fases deste
processo.
Todo o conhecimento construdo neste processo investigativo apresentado e
reflectido no relatrio da investigao. Atendendo a que este projecto se tratou de
Justificao de um Caminho em Educao para a Cidadania
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investigao-aco colaborativa e que esta se desenvolve num processo cclico de
observao-planificao-aco-reflexo, a construo do conhecimento ocorreu de
forma contnua e obedeceu a este esquema cclico e praxeolgico. Cada momento de
recolha de dados foi sujeito a um processo de anlise e interpretao, que nos permitiu
planificar e/ou replanificar a aco nos ciclos de investigao posteriores, pelo que a
estrutura do Captulo V no obedece nomenclatura clssica: uma parte dedicada
apresentao dos dados e outra sua interpretao.
O relatrio de investigao apresenta um conhecimento que se construiu e
reconstruiu numa relao permanentemente dialgica, entre o saber do nosso
enquadramento terico e um saber terico-prtico, que se foi reconceptualizando nas
observaes, intervenes e discusses que tivemos com os participantes na
investigao.
Em sntese, podemos afirmar que este trabalho um projecto de investigao cuja
intencionalidade consiste em reflectir sobre a cidadania como projecto educacional:
uma abordagem reflexiva e reconstrutiva, uma vez que pretendemos, em conjunto com
os professores participantes neste estudo, favorecer a (re)construo e a
(re)conceptualizao de novos processos de educao para a cidadania, de forma a que
esta se consubstancie numa tica da responsabilidade e promova o desenvolvimento de
cidados activos e responsveis.
Para este processo de reflexo e (re)conceptualizao contribui a problematizao
filosfica dos principais conceitos associados educao para a cidadania e ao seu
desenvolvimento curricular. Trata-se de uma problematizao filosfica que se constri
dialecticamente, na medida em que, numa primeira instncia, serve de base e orienta o
intensivo trabalho de investigao-aco colaborativo a realizar com os professores e,
numa segunda instncia, se complexifica com as necessidades investigativas que este
trabalho sugere.
Nas etapas cclicas de investigao-aco, pela confrontao das suas concepes,
valores e prticas e pela construo de novos conceitos, os professores participantes
(re)constroem o seu conhecimento praxeolgico e pelas exigncias que so colocadas
por este processo a investigadora principal tambm o faz.
Assim, todo este projecto de investigao consiste numa reconstruo dialctica e
interactiva do conhecimento sobre o que um projecto educacional em cidadania, na
qual se reflecte sobre a promoo da educao para a cidadania e sobre a formao de
professores neste mbito.
Captulo I
Sentidos de Educar
Captulo I Sentidos de Educar
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Aceder ao sentido pleno do conceito de educao no uma tarefa fcil, pois
muitos so os termos que lhe so prximos e, consequentemente, muitos so os
significados que lhe so atribudos. A complexidade e polissemia do conceito podem ser
compreendidas com base em duas ordens de razes. A primeira, a raiz etimolgica do
termo os vocbulos latinos ducere e e-ducere que admite associar o conceito a um
conjunto de palavras sinnimas, como seja crescer, criar, nutrir, desenvolver. O
crescimento, a nutrio e o desenvolvimento, evocados pela palavra educao, dizem
respeito tanto dimenso fsica, como s dimenses intelectual e espiritual do homem.
A segunda ordem de razes refere-se evoluo histrica e conceptual da palavra
educar. Ao longo dos tempos, de acordo com o contexto social e ideolgico de cada
perodo, a educao tem-se assumido como um processo de humanizao e de
socializao, sendo, por isso, concebida como sinnimo de instruo, de cultura e/ou de
formao.
Cumprindo o objectivo a que nos propomos neste captulo, e que o de explicitar
de forma clara e coerente as diferentes acepes do conceito de educao, comeamos
por analisar e reflectir sobre o sentido etimolgico do termo. Como do conhecimento
comum, a palavra educar tem a sua raiz etimolgica no vocbulo latino ducere, que
significa alimentar, nutrir para deixar crescer, e no termo e-ducere, que designa
conduzir para fora de, fazer sair. Qualquer um dos vocbulos indica-nos que, na origem
da palavra educar, est a preocupao e a necessidade de crescimento. De que
crescimento se trata porm, bio-fisiolgico, psicolgico, espiritual/cultural?
No termo latino, ducere, a palavra educar parece assumir um sentido biolgico,
que reala a necessidade que cada ser vivo tem de se alimentar para que possa crescer e
ganhar foras (fsicas ou intelectuais) que o ajudem a viver e a ultrapassar as
adversidades que a vida e o mundo lhe impem, para que seja possvel a preservao da
sua espcie. Na realidade, e seguindo a linha de orientao de Oliver Reboul (2000),
pode considerar-se que o vocbulo ducere remete para a concepo da educao como
um acto de criao. Entenda-se, neste domnio, criar como a tarefa familiar de
alimentar, de cuidar fsica e afectivamente da criana, de transmitir as primeiras
palavras, as formas mais rudimentares de se comportar e saber viver com os outros. A
educao , desta forma, concebida como um acto familiar espontneo, cujo principal
objectivo consiste em garantir todos os meios de subsistncia fsica e afectiva das
geraes mais novas.
Captulo I Sentidos de Educar
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No acto de criao, entendido neste domnio como cuidar, a famlia, como forma
de garantir a subsistncia fsica e psico-afectiva das crianas, tambm lhes ensina
modos de ser, estar e agir. Estes modos reportam-se, quer s condies fsicas, como
sejam o ensino de formas de alimentao, higiene e alerta para os perigos, quer
abordagem dos primeiros valores, maneiras de se comportar em famlia e em sociedade.
Em sntese, legtimo afirmar que o timo ducere evoca a educao como um
processo simples que est associado ao facto de as famlias criarem/cuidarem e
ensinarem as geraes mais novas no saber institudo. Este tipo de educao no pode
ser entendido luz da forma como Olivier Reboul (2000) o define, como um acto
educativo intencional desenvolvido numa instituio prpria com fins e mtodos
delineados para o efeito, mas como um processo espontneo desenvolvido pela famlia,
tendo em vista garantir os requisitos mnimos de sobrevivncia fsica, psico-afectiva e
social da criana.
Na verdade, o vocbulo latino ducere expressa o sentido mais restrito da
educao. A acesso ao sentido mais pleno e complexo de educao, tal como hoje se
conhece, pressupe a associao deste termo latino, ducere, com o outro timo latino, e-
ducere, que tambm est na origem do verbo educar.
O termo e-ducere indica a necessidade de percorrer um itinerrio que nos leva de
um lugar para outro em que ainda no estamos, ir para onde ainda no se est, ser o que
ainda no se ; , na realidade, mudar. Neste domnio, a mudana entendida como um
processo de desenvolvimento. Entenda-se a palavra desenvolvimento a partir da
composio da palavra do prefixo de negao des e do verbo envolver, ou seja,
desenvolver significa retirar o que envolve, desocultar o que est latente no indivduo.
Desta forma, a educao pode ser concebida como o caminho de desocultao, ou seja,
como o processo que permite ao homem o desencarcerar das suas capacidades fsicas,
intelectuais e afectivas. Recorrendo linguagem aristotlica, possvel definir a
educao como um processo que possibilita a actualizao das capacidades humanas
em potncia.
Na realidade, e-ducere atribui educao um sentido espiritual, na acepo mais
ampla do termo. Num sentido muito abrangente, a palavra espiritual designa a dimenso
imaterial do ser humano, entendido no duplo sentido do termo: alma, experincia e
reflexo religiosas, trabalhadas no mbito da religio e da teologia; e como princpio
imaterial das funes superiores como pensamento intelectual (conceptual, judicativo,
Captulo I Sentidos de Educar
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discursivo), o querer deliberado, a criatividade tica, poltico-cultural e esttica, a
reflexo filosfica em geral, [] a personalidade livre. (Teixeira, 1992, pp. 238-39).
enquanto desenvolvimento da criatividade tica e da personalidade livre que
compreendemos e utilizamos o sentido espiritual da educao. Na verdade, concebemos
que a educao, na sua dimenso espiritual, diz respeito formao global da
personalidade livre do homem, por considerarmos que o querer deliberado e a
criatividade tica so intrnsecos a esta formao. Assim, o sentido de crescimento que
o vocbulo e-ducere sugere reporta-se ao desenvolvimento de capacidades intelectuais e
racionais do homem, que lhe permitem tornar-se um ser autnomo, crtico, criativo,
reflexivo, que age e vive com os outros.
Ao mesmo tempo que indica desenvolvimento, o termo latino e-ducere atribui
educao o sentido de caminho ou itinerrio a percorrer, como vimos anteriormente. O
sentido de educao como caminho conduz-nos a uma reflexo mais complexa sobre
o verdadeiro significado do que educar, que pode iniciar-se na formulao de duas
questes: onde comea e termina este caminho que o termo e-ducere evoca para a
educao? Quem o percorre?
Homem, na sua acepo universal, a resposta para estas duas questes. Na
verdade, podemos afirmar que a educao tem como ponto de partida o Homem, que se
visa promover o desenvolvimento do humano na sua globalidade. Toda a educao,
tanto na perspectiva biolgica, como nos sentidos intelectual e espiritual do conceito, ,
na sua essncia, antropolgica.
A dimenso antropolgica da educao decorre da prpria imaturidade do homem
comparativamente aos demais animais. Ao contrrio dos restantes animais, o homem
nasce organicamente inacabado e com dificuldade de adaptao ao meio ambiente. Este
trao de imaturidade biolgica da espcie humana torna o homem um ser frgil,
dependente, que necessita do outro para sobreviver. Inscreve-se nesta perspectiva a
acepo da educao como criar/cuidar, que referimos anteriormente, e que diz respeito
necessidade de ao homem serem prestados os cuidados de alimentao, higiene,
afectos, que garantam o desenvolvimento morfolgico que lhe permita sobreviver.
Assim se compreende a afirmao de Octavi Fullat (1987, p. 25), que refere que
H educao no nosso planeta terra desde que a biologia foi impotente para transmitir
atravs do cdigo gentico todas as possibilidade de sobreviver. [] A educao nasce do
divrcio [] que rompeu a sagrada unidade da natureza.
Captulo I Sentidos de Educar
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A imaturidade biolgica da espcie humana tem igualmente repercusses no
domnio do conhecimento e da conduta. O homem, ao contrrio dos demais animais,
no nasce com instintos puros. Ele um ser racional, que necessita de aprender a usar a
racionalidade, a conhecer, a deliberar. pela educao que o homem desenvolve as suas
capacidades intelectuais, tem acesso ao conhecimento e aprende a conhecer. Na
verdade, legtimo afirmar-se que, atravs do processo educativo, o homem toma
conscincia reflexiva de si, das suas capacidades, das suas fragilidades, do lugar que
ocupa no mundo e das relaes que estabelece com os outros.
A tomada de conscincia de si mesmo, da sua racionalidade, a aquisio de
conhecimento sobre o mundo e sobre os outros, permitem ao homem aceder a um maior
grau de autonomia, que o orienta no sentido da superao das suas fragilidades e na
busca incessante de uma maturidade e perfeio, que transcende longamente a dimenso
orgnica-biolgica.
Pela sua dimenso racional, o homem tambm um ser espiritual/cultural.
Entenda-se a dimenso espiritual do homem, como a define Max Scheler (1980, pp. 54-
55), como uma caracterstica especificamente do homem, que no se reduz evoluo
natural da vida, na medida em que compreende a intuio das coisas e dos fenmenos
primrios ou essncias e uma determinada classe de actos emocionais e volitivos. De
acordo com Scheler (1980), o esprito a propriedade que torna o homem livre,
independente e que o abre ao mundo. Na perspectiva scheleriana, o esprito sinnimo
de objectividade, ou seja, pela sua dimenso espiritual que o homem se abre ao
mundo, reconhece as coisas como objectos que lhe so exteriores, aos quais o homem se
encarrega de desvelar sentidos e de atribuir significados.
A dimenso espiritual do homem, entendida como o meio de lhe conferir
liberdade e poder de deliberao, concede educao um sentido antropolgico mais
complexo do que o expresso nas perspectivas biolgica e intelectual. A educao
consiste, como afirma Isabel Renaud (1996, p. 37), [] em acompanhar a emergncia
do esprito no corpo, ou seja, consiste na conscincia que cada homem toma de si e dos
limites do seu corpo no mundo que o rodeia e, em ltima instncia, da sua imperfeio.
Na dimenso espiritual, a educao visa promover o desenvolvimento da estrutura
consciente e prospectiva do homem. Isto , tem como objectivo preparar o homem para
ser gestor do seu prprio destino e para a busca incessante do especificamente
humano no homem, a capacidade de alcanar progressivamente a autonomia e o
aperfeioamento.
Captulo I Sentidos de Educar
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De acordo com Adalberto Dias de Carvalho (1992, p. 56), esta autonomia da
condio humana
[] advm precisamente da sua natureza educativa, isto , da sua plasticidade, da sua
condio de modelao e de modelar e de ser moldado em funo de projectos que, no
processo de realizao, geram novas determinaes e novos projectos: culturais [] em
funo dos condicionamentos simblicos e histricos da sua constituio e humanos []
tambm.
A plasticidade humana a que o autor se refere definida comummente, no mbito
da filosofia da educao, como educabilidade, entendida como a capacidade de
maleabilidade humana, que torna possvel ao homem preparar-se extrinsecamente para
o processo de maturao biolgica, intelectual e para a perfectibilidade espiritual. A
educabilidade , segundo A. Sanvisens (1984), bidimensional, pressupe a coexistncia
da capacidade do homem de ser educado e se educar.
A dupla dimenso da educabilidade exprime que, pela educao, o homem no
apenas educado pelos outros para desenvolver a sua racionalidade e a sua autonomia,
mas tambm, pela posse gradual desta autonomia, auto construtor e co-responsvel
pelo seu projecto de construo pessoal e identitria.
A construo do projecto antropolgico humano ocorre atravs de um processo de
mediao entre a natureza biolgica e intelectual do homem e a interaco com o meio
histrico, simblico e ideolgico em que este se situa. Esta mediao tarefa da
educao, que assume tambm, e concomitantemente com a dimenso espiritual, um
sentido cultural.
Neste contexto, compreende-se a cultura como uma construo humana, que
resulta da permanente interaco que o homem estabelece entre si, o mundo e os outros
e se exprime no conjunto de significados, smbolos e valores que emergem desse
processo de interaco.
Edward Taylor, antroplogo norte-americano do sculo XIX, na sua obra
Primitive Culture de 1871, define a cultura como [] todo o complexo que inclui o
conhecimento, as crenas, a arte, a moral, os costumes e quaisquer outros hbitos
adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade (citado por Kahn, 1975, p. 35).
A cultura , neste sentido, entendida como uma forma de organizao social, como um
conjunto de costumes e pautas de conduta que so transmitidas de gerao em gerao e
que consubstanciam a formao da identidade de um povo.
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A cultura, enquanto legado gnoseolgico, moral e axiolgico, transmitido ao
longo dos tempos de gerao em gerao, encontra na educao uma forte aliada para a
sua perpetuao e para o seu desenvolvimento. pela educao, enquanto meio que
promove o aperfeioamento espiritual humano, que o homem pode desenvolver as suas
trs capacidades culturais (Kluckholn, 1965): a de aprendizagem, de comunicao e de
transmisso dos sistemas de conduta.
pelo contacto com o meio, com as ideologias, com os valores, com as
linguagens, com as obras de arte que os exprimem e pela transmisso de condutas e
atitudes que o homem constri, por aceitao ou rejeio, o seu modo de ser. O legado
cultural sempre o ponto de partida para a explicao do que o homem e/ou do que
ele pode vir a ser.
Atravs do processo educativo, o homem torna-se um ser de cultura, numa dupla
perspectiva: conservadora e inovadora. A educao promove o processo de aculturao
que permite ao homem integrar-se e interagir na sociedade e conservar o conjunto de
conhecimentos, valores e costumes que consubstanciam a identidade de um
determinado povo. Ao mesmo tempo que promove a aprendizagem e transmite o legado
cultural, a educao, pela interpretao da linguagem e dos momentos que exprimem a
essncia de uma cultura, e pelo desenvolvimento da autonomia que lhe intrnseco, cria
as condies para que o homem seja inovador e recrie a sua cultura.
A educao consiste num processo de aperfeioamento do homem. Ou seja, a
educao pode ser concebida como o caminho que o homem percorre para apreender a
realidade e, nesta apreenso, compreender-se a si prprio, como um ser superior
natureza, que tem a capacidade de a conhecer e de a reconstruir. Neste processo de
conhecimento e reconstruo, o homem constri progressivamente a conscincia
reflexiva de si e reconhece-se como um ser insatisfeito, que busca incessantemente a sua
perfeio.
O caminho educativo no percorrido por pessoas singulares, individualmente
consideradas. A educao um processo intersubjectivo e inter-relacional, onde cada
homem inicia o outro homem na descoberta dos outros e de si mesmo.
Em sntese, legtimo afirmar-se que associada raiz etimolgica da palavra
educar s diferentes conotaes que esta assume ao longo dos tempos est sempre o
sentido da educao como processo humanizador. A educao o meio que permite
[] assegurar a construo autntica da conscincia antropolgica que, de facto,
parece que o homem tardou a adquirir. (Carvalho, 1994, p. 53). O carcter
Captulo I Sentidos de Educar
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antropolgico da educao tem assumido diferentes contornos e expresses ao longo da
histria da educao, de acordo com a concepo de homem que se perfila e com a
nfase que a educao assume em cada perodo histrico.
A primeira referncia educao como um processo eminentemente
antropolgico surge na Grcia Antiga. A cultura grega foi a primeira que reconheceu o
homem como um ser superior, dotado de uma natureza racional, capaz, portanto, de
conhecer e traar o seu percurso de vida com sabedoria. Assim se compreendem as
clebres frases de Protgoras, no sculo V a.C., o homem a medida de todas as
coisas e de Scrates, conhece-te a ti mesmo.
A frase de Protgoras exprime indubitavelmente a superioridade do homem face
aos demais seres que habitam a physis (natureza), seres irracionais, pr-determinados e
condenados a cumprir o percurso que as leis da natureza lhes impem.
A anlise mais detalhada e contextualizada desta expresso de Protgoras permite-
nos compreender, no s a concepo de homem da sofstica grega, mas tambm o
sentido e o papel que a educao desempenhava na construo deste conceito.
O perodo histrico em que viveu Protgoras (sculo V e IV a.C.) era
caracterizado por aquilo que hoje designamos por relativismo cultural: as leis, os
valores eram considerados como coisas que fluem e variam de cidade para cidade, de
indivduo para indivduo.
A afirmao do homem como medida de todas as coisas no exprime apenas a
relao do homem com os objectos, corpos materiais. A palavra grega chrmata
utilizada como sinnimo de coisa expressa, no sentido literal do termo, os bens, os
valores, as qualidades das coisas sensveis. O homem a medida de todas as coisas,
porque estas, e todas as suas qualidades, dependem da percepo e da compreenso
humana. A verdade relativa, identifica-se com a aparncia ou com a sensao que o
homem tem das coisas.
Partindo do pressuposto de que todas as coisas fluem, Protgoras concebe a
educao como meio de ensinar as leis, os valores, as atitudes e opinies que forem
teis a uma determinada cidade (polis). neste sentido que o filsofo considera que a
virtude pode ser ensinada, que as opinies podem ser modificadas: uma opinio m
pode ser transformada numa opinio boa se assim for necessrio e til.
A educao consiste, portanto, no ensinamento das virtudes, leis boas e teis
cidade (polis), permitindo a convivncia pacfica de todos os habitantes de uma
determinada cidade. Na realidade, Protgoras preconiza um conceito de educao que se
Captulo I Sentidos de Educar
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assemelha ao que actualmente se designa por processo de endoutrinao, entendido,
neste contexto, como a heternoma imposio dos conhecimentos, valores, atitudes e
normas sociais. Na teoria de Protgoras, o que importa na educao no o
conhecimento cientfico da verdade e da falsidade das concepes e das normas, mas a
sua transmisso e a aprendizagem do modo como estas atitudes e normas podem ser
reproduzidas fielmente.
No sentido oposto filosofia da educao de Protgoras, desenvolveu-se o
pensamento socrtico. A frase de Scrates conhece-te a ti mesmo a exortao para
que o homem se reconhea como um ser ignorante, que necessita incessantemente de
buscar a sabedoria. Na perspectiva socrtica, o homem tem de ser preparado para
conhecer as suas potencialidades e os seus limites. Assim, podemos afirmar que a frase
de Scrates exprime a necessidade que o homem tem de ser educado, a dimenso
antropolgica da educao, que referimos anteriormente.
Ao contrrio do que se verificou em Protgoras, a educao socrtica no se
inscreve numa perspectiva de relativismo cultural, mas de perfeccionismo humano.
A educao concebida como o meio que promove o aperfeioamento do homem. O
homem s pode conhecer-se se desenvolver a sua dimenso racional, o seu logos.
Assim, a educao tem como objectivo promover o desenvolvimento contnuo da
racionalidade humana, no sentido de permitir ao homem o conhecimento dos princpios
universais, como a Verdade, o Bem, o Justo, que esto na base das normas e das
leis da polis, e que lhe permitiram aceder ideia universal de Homem.
Scrates no ensina doutrinas ou teorias; antes, instiga o homem descoberta do
conhecimento e da verdade. neste sentido que o filsofo concebe a maiutica
como um meio privilegiado para promover o desenvolvimento do conhecimento
humano.
Na Grcia Antiga, do pensamento socrtico e ps socrtico, a educao, sob a
designao de Paideia, consiste no processo que promove a formao, o progressivo
aperfeioamento do homem. Werner Jaeger (1979, p.3), na sua obra Paideia: a
formao do homem grego, apresenta precisamente a educao como esse processo
antropolgico que conduz perfeio humana, ao sustentar que [] a educao pode
mudar a natureza fsica do Homem e as suas qualidades, elevando-lhe a capacidade a
um ser superior. Mas o esprito humano conduz progressivamente descoberta de si
prprio e cria [] formas melhores de existncia.
Captulo I Sentidos de Educar
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De acordo com esta citao, os gregos concebem a educao com uma forma de
superar os instintos e de aperfeioar a capacidade racional do homem. Atravs da
educao, o homem reconhece a ignorncia e alcana a phronsis. Esta entendida
como a verdadeira sabedoria, concebida como a capacidade de orientar a aco do
homem de acordo com os princpios universais que devem nortear toda e qualquer
aco. Demcrito, filsofo grego do sculo V a.C., concebia a phronsis como sendo
constituda por trs coisas: o discutir o bem, o dizer o bem e o fazer o bem que se deve.
Ao promover o acesso phronsis, a educao permite ao homem conhecer e agir de
acordo com a essncia de Bem e de Verdade.
Plato concebe a educao como a forma de aceder Verdade e ao Bem,
como um meio que o homem possui de compreender que o conhecimento fornecido
pelos sentidos ilusrio e aparente, no revelando a verdadeira essncia das coisas. A
Alegoria da Caverna1 representa com mincia a concepo de educao grega e a
importncia que de que esta se reveste na libertao do prisioneiro agrilhoado na
Caverna. O prisioneiro, habituado a contemplar as sombras, representa a ignorncia
humana e a necessidade que o homem tem de conhecer para se libertar e percorrer o
trajecto que conduz sada e contemplao do Sol, entendido como a Verdade, o
Bem e o Belo.
A sada do prisioneiro da Caverna no ocorre de forma imediata e solitria. Trata-
se de um processo de libertao e de caminhada progressiva, coadjuvada pelo outro
homem que j contemplou o Sol, e que instrui o prisioneiro no sentido de ele
compreender que os objectos que v projectados na parede so apenas sombras.
A anlise da Alegoria da Caverna d-nos a liberdade de entender que Plato j
indicia uma concepo de educao como caminho de interaco intersubjectivo,
realizado pelo homem na companhia do outro homem. Na verdade, consideramos que
1 No VII livro da Repblica, Plato apresenta a Alegoria da Caverna. Esta metfora descreve o modo
como o homem, atravs da luz da verdade, se pode libertar da condio de escurido e de ignorncia que
o aprisiona. No mbito gnoseolgico, a filosofia platnica concebe a existncia de dois mundos: o mundo
sensvel e mundo das ideias. O mundo sensvel diz respeito realidade que nos dada pelos sentidos e
que perecvel, ilusria, aparente. O mundo das Ideias o mundo da essncias, que so universais e
imutveis, cujo conhecimento s acessvel pela razo. O mundo das Ideias, da verdadeira essncia das
coisas, simbolizado pelo Sol. Na Alegoria da Caverna, o Sol representa, especificamente, a Ideia de
Verdade, de Bem e de Belo.
Plato defende que as coisas do mundo sensveis podem assumir Formas inteligveis se participarem
nessas formas. O autor d exemplos geomtricos e ticos que tornam esta teoria mais compreensvel. O
prato moldado pelo oleiro no , em si mesmo, perfeitamente redondo, sendo a perfeita redondeza ideal;
pode no ser encontrada no mundo, mas algo em que as coisas redondas se aproximam. As intuies
humanas no so justas em si mesmas, apenas se aproximam e participam nesse ideal. O uso do conceito
de redondo e de justia precisa impe o conhecimento destes conceitos.
Captulo I Sentidos de Educar
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legtimo afirmar a Paideia como humano processo de formao, no sentido em que o
homem inicia o outro homem a caminhar progressivamente para a sabedoria e para a
sua realizao de acordo com a ideia universal de Homem.
Aristteles define o Homem como um zoon politikon, animal poltico, portanto,
como um ser social que vive e age com os outros homens na polis. A ideia universal de
Homem a que o povo grego tem de aceder a imagem normativa da comunidade. A
Paideia grega no diz respeito educao do homem individual que visa alcanar a
perfeio, mas do homem comunitrio, do homem que alcana a phronsis, a sabedoria,
e a virtude, arete, tendo em vista o bem da comunidade; isto , o bem de todos os
homens que habitam na polis.
O homem, enquanto animal poltico, um ser que age. A aco humana tem que
ser consciente e sbia. Ou seja, tem que ser uma praxis2 estruturada pela virtude, pelo
saber de uma razo prtica. Assim sendo, a educao deve ser um processo global que
visa o indivduo como um todo, cujo desenvolvimento deve ocorrer de forma
equilibrada e harmoniosa, tendo em vista a aquisio de um saber, que colocado ao
servio do bem comunitrio.
Na realidade, possvel afirmar que, em Aristteles, a educao diz respeito
formao do carcter do homem comunitrio. A palavra carcter, no pensamento grego,
traduz-se como modo de ser, que se adquire pela aco consciente e voluntria do
homem, pela actualizao de si, pela realizao mxima da sua perfeio. A educao
consiste no processo que prepara o homem para a sua actualizao mxima, para um
modo de ser bom e justo.
Desta forma, legtimo reconhecer que, no obstante a palavra educar ter a sua
raiz etimolgica nos vocbulos latinos ducere e e-ducere, na Paideia grega que ela
encontra e estrutura o seu significado conceptual mais complexo e genuno. A Paideia
diz respeito formao do homem vivo (homem concreto que vive na polis),
virtuoso, sbio, que conhece o bem e que, pela sua aco livre, o pratica. O objectivo da
educao grega no consiste na transmisso ao homem da techn, na reproduo de
saberes instrumentais. A Paideia concebida como um processo global que visa a
construo do ser do homem de acordo com a identidade social do povo grego. Ou seja,
2
Aristteles, na obra tica a Nicomaco, faz a distino entre trs tipos de aco: praxis, poesis e tecnh.
A praxis diz respeito aco consciente e que imanente ao homem. A praxis uma aco imanente cujo
resultado transforma o agente. A poesis e a techn referem-se s aces exteriores ao homem e que esto
ligadas produo, fabricao e criao.
Captulo I Sentidos de Educar
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a Paideia tem como objectivo a construo de um modo de vida consciente e racional,
capaz de garantir a sobrevivncia e o desenvolvimento do homem, de acordo com o
ideal de homem e de sociedade que se perfilha.
Em sntese, podemos afirmar que a educao grega assume, indiscutivelmente,
uma dimenso moral e tica. O sentido moral da Paideia afirma-se na formao do
homem segundo a norma universal. O significado tico expressa-se na formao do
carcter, ethos, do homem com base nos princpios de Bem e de Virtude. A
dimenso moral e tica da Paideia foi, sem dvida, um dos grandes legados da
Antiguidade grega para o domnio da educao.
A concepo de educao como meio que permite ao homem aceder verdade, ao
bem e virtude manteve-se na Idade Mdia, ainda que assumindo novos contornos. No
obstante neste perodo se continuar a entender a razo como a via que permite a
superiorizao o homem face aos demais animais, como a forma que aquele tem de
aceder verdade e virtude, a concepo de razo assume um novo sentido. Na Idade
Mdia, a concepo da razo decorre da noo de Deus.
A razo o fim ltimo da formao pedaggica da Idade Mdia. Ainda que seja preciso
ver que ela submete duas mudanas em relao Antiguidade. Em primeiro lugar, a sua
dimenso hipottico-dedutiva v-se ultrapassada por uma justificao imediatamente
divina. [] O segundo ponto distintivo entre a Antiguidade e a Idade Mdia tem a ver com
a extenso da razo. Com a descoberta do Cristianismo, a razo [] torna-se a marca de
uma transcendncia verdadeira. Pela sua transcendncia ela est ligada a Deus (Jolibert,
1987, p. 51).
A razo , pois, considerada como a marca divina no homem. Assim sendo, a
razo entendida como o meio que possibilita ao homem aceder ao conhecimento,
virtude, que lhe permite alcanar a cidade de Deus. A razo individual humana
uma parcela da luz divina, pela qual o homem participa no sagrado (Jolibert, 1987, p.
51).
Neste sentido, a educao compreendida como o meio que permite dar sade
alma, como a forma de prepar-la para alcanar a virtude, a qual no s til para
alcanar o bem comunitrio da cidade terrena, mas tambm a vida eterna e a salvao na
cidade de Deus. Na verdade, podemos afirmar que a educao, na Idade Mdia,
enfatiza a dimenso moral da educao, herdada dos gregos, na medida em que pelo
Captulo I Sentidos de Educar
24
desenvolvimento contnuo e progressivo da razo que o homem pode permanentemente
purificar-se, procurar e realizar o Bem.
No perodo medieval, a nfase moral da educao no se exprime apenas na
procura do Bem e da Virtude, mas no novo conceito de Homem. Com o
Cristianismo, o Homem concebido como uma criatura feita imagem e semelhana de
Deus, e, enquanto tal, ele considerado como um ser com dignidade prpria. O Homem
um ser de relao com Deus e, em funo disso, a sua vida tem um valor supremo.
Desta forma, o objectivo da educao na Idade Mdia j no consistia em [] formar
o cidado para a cidade ou para a ptria, mas para ele prprio e para Deus (Gal, 2000,
p. 45).
A concepo medieval do homem como valor em si mesmo acabou por
influenciar o conceito renascentista de educao. Neste perodo, a educao adopta
novas finalidades que decorrem da perspectiva humanista e antropocntrica que, como
do conhecimento comum, caracteriza o Renascimento.
Na poca renascentista, o homem considerado como um valor em si mesmo e
como um ser inserido no mundo, numa determinada realidade histrica. Ao contrrio do
que se verificou na Idade Mdia, que ignorou completamente a dimenso histrica do
homem, o humanismo renascentista reconhece o valor do homem como ser terreno,
mundano. Deus fez o homem sua imagem e semelhana, este facto confere-lhe uma
dignidade indiscutvel, e deu-lhe liberdade, capacidade de o homem se auto-definir na
interaco constante entre a natureza e os outros homens.
esta concepo de homem, como valor prprio e ser livre que se realiza ao
longo seu percurso histrico, que consubstancia o conceito de educao no
Renascimento.
Segundo Bernard Jolibert (1987, pp. 56-57),
Nos grandes pensadores da educao do Renascimento, o homem no tira de Deus
revelado a conduta que lhe pertence ter aqui em baixo; [] ele define o seu projecto em
funo das tarefas humanas mltiplas a substituir aqui em baixo e que fazem que a
educao seja necessria felicidade de cada um.
A educao entendida, nestes termos, como o meio que permite dar ao homem
os conhecimentos necessrios para que ele possa guiar-se no mundo, mediar a relao
que tem com os outros e actuar sobre este mesmo mundo.
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O enciclopedismo, que comummente se associa ao perodo renascentista, estava,
portanto, ao servio de um novo humanismo, do homem livre que capaz de conhecer,
agir sobre a natureza, tirando em seu favor proveito dela. Neste sentido, a educao
compreendida como o meio de transmisso de saberes, a partir dos quais o homem pode
ascender sua humanidade, que, neste contexto, j no est subjugada nem vontade da
polis, nem vontade de Deus. O pensamento educativo [no Renascimento] orienta-se
para uma reflexo sobre o homem, as suas possibilidades e os seus limites com o
objectivo de valorizar o que nele propriamente humano (Jolibert, 1987, p. 57).
Esta dimenso antropocntrica da educao expressa pelo perodo renascentista
foi a grande inovao da poca. A partir dela, o sentido de educar ganha novas
orientaes, que se fizeram sentir no s neste perodo, mas nos sculos subsequentes, e
que ainda so possveis de identificar no conceito actual de educao.
Na poca das Luzes, sculo XVIII, esta dimenso humanista do Renascimento,
enquanto perspectiva que valoriza o desenvolvimento do homem em si mesmo como ser
livre, assume cada vez mais nfase. Como sobejamente conhecido, o sculo XVIII
considerado o sculo, por excelncia, da Razo, evidenciando-se um optimismo sobre
o desenvolvimento humano, entendido como um contnuo processo de aperfeioamento
racional e autnomo do homem.
pela educao que se pode desenvolver o homem como um ser comandado pela
vontade racional e pelo princpio de liberdade. Afirma Kant, na sua obra Reflexes
sobre a Educao, que O homem no se pode tornar homem seno pela educao. Ele
o que a educao faz dele (1987, p. 73).
Kant, na obra A Crtica da Razo Pura, define o homem como um racional
finito, evidenciando esta dimenso finita como a marca da imperfeio humana, que
predispe o homem para inclinaes de diversa ndole, que nem sempre se ajustam com
o Bem. Neste sentido, a educao o meio que promove o aperfeioamento humano,
no sentido do desenvolvimento progressivo da conscincia da racionalidade e da
liberdade do homem face s inclinaes, orientado para a realizao do Bem.
De acordo com a filosofia kantiana, o homem deve
[] antes de tudo desenvolver as suas disposies para o bem; a Providncia no as
colocou nele todas acabadas; so simples disposies sem a marca distintiva da moralidade.
Melhorar-se a si prprio [] desenvolver nele a moralidade isso o que deve fazer o
homem. (Kant, 1987, p. 77)
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pela educao que o homem se afirma como ser moralmente autnomo. Na
realidade, Kant concebe a educao como arte racional que permite o desenvolvimento
moral da natureza humana.
Na filosofia kantiana, a arte educativa estrutura-se em dois pilares fundamentais: a
disciplina e a instruo. Kant define a disciplina como negativa, no sentido em que ela
vai impedir que a dimenso animal do homem se sobreponha sua humanidade. A
disciplina impede que o homem, levado pelos seus impulsos animais, se afaste do seu
destino, da humanidade. [] A disciplina submete o homem s leis da humanidade e
comea por faz-lo por coaco (Kant, 1987, p. 30). A instruo entendida num
sentido positivo, na medida em que compreende os ensinamentos da conduta desejvel,
para que o homem se adapte sociedade em que se encontra. A instruo kantiana no
se refere aquisio de conhecimentos ou ao treino de competncias. No obstante
assumir, numa primeira instncia, um carcter coercivo, a instruo, na filosofia
kantiana, perspectiva o desenvolvimento da vontade racional e autnoma do homem.
Na verdade, partindo desta concepo de instruo, possvel identificar, na
filosofia kantiana, uma relao intrnseca entre instruo e cultura. Em Kant, a cultura
no se refere dimenso social e colectiva do conceito, ou seja, no compreendida
como o conjunto de signos, valores e smbolos de uma determinada comunidade, mas
reporta-se ao desenvolvimento de capacidades e faculdades racionais dos indivduos.
O filsofo distingue dois tipos de cultura: cultura fsica e a cultural moral. A
cultura fsica entendida como o exerccio da disciplina e, enquanto tal, como o meio
que conduz passividade. Esta cultura desenvolvida nos primeiros anos de vida da
criana. A cultura moral, por sua vez, apoia-se na capacidade que o homem tem de
compreender os princpios que esto na base da aco humana. A cultura moral
[] no repousa sobre a disciplina, mas sobre as mximas. Devemo-nos aplicar para que
este aluno aja bem a partir das suas prprias mximas e no por hbito, que ele no faa
somente o que o bem, mas que ele faa porque o bem. [] Ele deve perceber sempre o
princpio das aces e como que elas se deduzem dos conceitos de dever (Kant, 1987, p.
117).
O desenvolvimento da dimenso cultural do homem o fim da educao kantiana.
A associao que Kant estabelece entre cultura e educao imprime a esta um cunho
original. A educao, enquanto processo de cultura, no se reporta apenas transmisso
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do legado cultural, que constitui a identidade cultural de um povo, mas tambm, e
essencialmente, diz respeito ao despertar no homem da sua racionalidade moral.
Ao conceber a educao como um processo de desenvolvimento moral, Kant
confere educao uma dimenso tica, expressa no desenvolvimento do carcter do
homem como ser individual, como um fim em si mesmo. O homem no um meio para
aceder a algo, ele um fim em si mesmo. neste sentido que se compreende o clebre
imperativo kantiano age de tal forma que a tua mxima se torne lei universal, que vise
o outro homem como um fim em si mesmo.
Na verdade, legitimo afirmar-se que a originalidade de Kant na educao
decorre do carcter tico e moral que a liberdade assume neste domnio. O processo
educativo kantiano diz respeito ao homem como fim em si mesmo, no sua ideia
universal como os gregos o concebiam, no se trata do homem que se submete s leis
gerais da comunidade, da polis, mas sim de um homem livre, autnomo, que desenvolve
a sua razo e que se guia individualmente por ela. Trata-se, na verdade, do homem
como liberdade e independncia face ao mecanismo de toda a natureza, consideradas
ao mesmo tempo como a faculdade de um ser submetido a leis prprias, ou seja, a leis
puras prticas estabelecidas pela sua prpria razo (Kant, 1994, p. 103).
O fim da educao kantiana o desenvolvimento do homem moral, entendido
como auto legislador, consciente e livre. A construo deste homem moral pressupe
que, no processo educativo, o homem seja cultivado, ou seja, educar compreende
bildung (cultura).
Se, em Kant, o termo bildung designa a cultura, nas concepes filosficas
posteriores o vocbulo evolui e adopta uma acepo cada vez mais complexa, que
denuncia claramente a separao entre educao e cultura.
No idealismo alemo do sculo XVIII, a palavra bildung designa o processo
teleolgico do indivduo, reporta-se ao processo de evoluo humana de cada indivduo.
Hegel define bildung como um processo de autoformao. Numa primeira fase, esta
autoformao diz respeito ao indivduo e, depois, ao conjunto de indivduos que
constituem o Estado como realizao do indivduo, do povo e do esprito-mesmo
(Hegel, 1991).
Assim sendo, podemos afirmar que a bildung hegeliana no se reporta, como se
verificou na filosofia kantiana, ao desenvolvimento das disposies naturais, mas
[] apropriao do sujeito particular da sua dimenso espiritual, a sua elevao at
universalidade (Hegel, 1994, p. 10).
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Hegel defende que o esprito se desenvolve dialecticamente em trs momentos: o
esprito subjectivo, que compreende trs graus dialcticos de realizao conscincia,
autoconscincia e razo; o esprito objectivo (sociedade), que se desenvolve na trade
dialctica: direito, a moralidade e eticidade ou moralidade social; e o esprito absoluto.
Partindo da concepo hegeliana de esprito, legtimo afirmar que a bildung,
educao, visa essencialmente formar o homem para a tomada de conscincia do
esprito objectivo, isto , para a sua integrao no Estado. A tomada de conscincia do
esprito subjectivo no permite ao homem desenvolver plenamente a sua liberdade,
porque o isola na sua conscincia individual; s no esprito objectivo, e no seu ltimo
patamar, o Estado, o homem pode realizar-se plenamente.
Assim sendo, e tendo em considerao que o Estado, na filosofia hegeliana,
corresponde eticidade, podemos concluir que a dimenso antropolgica e tica da
educao assume em Hegel novos contornos. A educao, na filosofia hegeliana, visa a
formao do homem como um ser histrico, que vive e age com os outros e que
reconhece os vnculos de pertena comunidade como o meio pleno de realizao da
sua felicidade.
No obstante a filosofia da educao kantiana enfatizar a formao tica e moral
do homem, do homem que delibera livremente em conformidade com o imperativo
categrico e com o dever, esta dimenso tica situa-se ainda num plano formal. Em
Hegel, assiste-se materializao, ao colocar em prtica dessa dimenso tica. O
homem a que se refere a filosofia da educao hegeliana o homem como ser histrico
e social, que vive e age com os outros e que, no curso da sua historicidade, se realiza
pessoalmente.
A dimenso do homem como ser histrico e social radicalizada nas concepes
filosficas do sculo XIX. Exemplificativo desta radicalizao o materialismo
histrico de Karl Marx.
Para Marx, o ser homem determinado pelo todo social, condicionado pelas
relaes, nomeadamente as relaes de produo e de trabalho, do homem com o outro
homem. Segundo a filosofia marxista,
A sociedade a total consubstanciao do homem com a natureza, a verdadeira
ressurreio da natureza, a realizao do naturalismo do homem e a realizao do
humanismo da natureza. [] O indivduo um ser social. A sua manifestao de vida, []
a manifestao e uma afirmao de vida social (Marx, 1993, p. 260).
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A sociedade conceptualizada por Marx o resultado da evoluo das foras de
produo. Estas e o trabalho so considerados pelo filsofo como o meio de afirmao e
de manifestao da liberdade humana. O homem do sculo XIX, enquanto ser
individual, perde-se no todo social, que produz tendo em vista o crescimento galopante
da sociedade capitalista. Trata-se, na verdade, de um homem que aliena e subjuga as
suas liberdades individuais em prol dos interesses sociais.
Assim sendo, a educao assume, neste perodo histrico, uma funo
exclusivamente social. O processo educativo concebido como o meio de impor [] o
sacrifcio, [] a abdicao as tendncias individualistas em proveito das exigncias
sociais. [] Os imperativos sociais impem que a exigncia intelectual e a instncia
crtica da razo se vejam substitudas por um tipo de f poltica (Jolibert, 1987, p. 94).
A educao concebida como um processo de inculcao e como um meio de
disciplinar. Entenda-se a disciplina no na perspectiva kantiana, que referimos
anteriormente, da sublimao da animalidade do homem em prol de um progressivo
aperfeioamento, mas como um processo autoritrio de imposio de conhecimentos,
das normas, tendo em vista a integrao e submisso do homem sociedade.
Para alm de a educao no sculo XIX promover a submisso do homem
sociedade, pela via da inculcao dos valores e normas sociais, tambm o subjuga ao
desenvolvimento da racionalidade instrumental.
Como do conhecimento comum, o sculo XIX o perodo em que a razo
concebida como a razo absoluta, o perodo da afirmao da cincia e do positivismo.
Para August Comte3, o estado perfeito da humanidade o estado positivo
4, sendo este
entendido como a deificao da razo.
pelo progresso da razo e do conhecimento cientfico e tecnolgico que advm
o progresso e o bem-estar social. pelo maior nvel de conhecimento e pelos seus
efeitos de progresso cientfico e tecnolgico que o homem pode esbater as
desigualdades sociais.
Neste sentido, a educao, para alm de ser um processo de imposio de regras,
normas e valores sociais, tambm um meio que instrui o homem no conhecimento
cientfico que conduz ao progresso social. Como referimos anteriormente, o sculo XIX
3
August Comte (1798-1857), filsofo e socilogo francs, foi o pai do Positivismo. A filosofia positiva
de Comte defende que pela descrio dos fenmenos sensoriais que se pode alcanar o conhecimento
mais elevado das coisas.
4 Estado positivo o estado mais elevado do conhecimento humano. Este estado limita o conhecimento
das coisas ao que positivamente dado, evitando qualquer tipo de especulao.
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marcado pelo positivismo cientfico e pela valorizao das cincias que possibilitam a
quantificao do real. Deste modo, a educao compreendida como um meio que
promove a instruo do homem nos diferentes passos que possibilitam o conhecimento
objectivo do mundo. Em sntese, possvel afirmar que, no sculo XIX, educar
sinnimo de instruir o homem no quadro axiolgico e normativo da sociedade e no
conhecimento objectivo do mundo que orienta o progresso desta.
A dimenso puramente social que o conceito de educao do sculo XIX assume
e o carcter instrutivo que lhe est associado acabam, novamente, por conduzir ao
esquecimento do homem como um valor em si mesmo. Isto , a educao, enquanto
processo instrutivo, como meio de transmisso de saberes e legados culturais,
negligencia o homem na sua globalidade, como ser individual e social, como um eu que
se desenvolve num dilogo e num processo de reconstruo permanente com o outros e
com o substrato cultural que os sustenta.
A concepo da educao ao servio da racionalidade instrumental e do progresso
social predominou at ao final da 2 Guerra Mundial. Os horrores cometidos contra o
homem neste grande confronto mundial fazem emergir, no contexto ideolgico,
filosfico e educacional da segunda metade do sculo XX, a preocupao com a
dimenso subjectiva do homem. Na verdade, possvel afirmar que, na sociedade ps-
moderna, h um retorno ao humanismo, chacinado pelos horrores da 2 Guerra
Mundial e de Auschwitz; assiste-se importncia e necessidade de reconhecer o
homem como um ser livre, como um projecto a realizar.
O pensamento ps-moderno, fortemente marcado pela filosofia de Jean-Franois
Lyotard5, rejeita as metanarrativas da sociedade moderna. O filsofo apresenta como
exemplo de metanarrativa a filosofia iluminista, que acreditava que a razo e seus
produtos o progresso cientfico e a tecnologia levariam o homem felicidade.
Lyotard, em entrevista concedida a Anita Kechikian (1993, pp. 50-51), afirma que
a modernidade conduziu ao [] fim do humanismo, o que significa que, no incio do
perodo ps-moderno, [] o modo de pensar o homem como sujeito livre, consciente,
que o saber tornaria transparente, est em declnio. [] O saber j no um meio de
5
Jean-Franois Lyotard (1924), filsofo francs do sculo XX. Entre vrias obras, escreveu A condio
ps moderna (1989). Nesta obra, o filsofo retrata a situao da cultura europeia e ocidental de ento,
apresentando um debate bastante importante sobre a s consequncias da modernidade. Em A condio
ps moderna, assiste-se recusa do estruturalismo e do nietszchianismo francs e a um retorno s
concepes filosficas de Kant.
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emancipao. um luxo que o mundo oferece a si prprio. [] O homem e o seu
pensamento constituem um desses produtos (1993, pp. 50-51).
A sociedade ps-moderna tem por tarefa acabar com a instrumentalizao da
razo e com a subjugao do homem ao todo social. Na verdade, a sociedade ps-
moderna prope-se veemente acabar com a separao do eu individual e do eu social e
posiciona-se contra a absoro de uma dimenso pela outra. Esta preocupao do
perodo ps moderno tem reflexos na forma de conceber e desenvolver o processo
educativo.
A educao na ps-modernidade concebida como um meio que promove o
desenvolvimento do homem como um fim e um valor em si mesmo. A educao tem
como finalidade o desenvolvimento da dignidade humana, isto , a educao visa o
desenvolvimento do homem como ser livre, responsvel, que interage na sua sociedade.
O homem que protagonista do conceito da educao ps-moderna, um actor
social, um eu que constri a sua identidade numa aco mediada entre o eu individual
e o eu que se integra na sociedade e participa na obra colectiva desta.
A concepo da educao como um meio que promove o investimento no ser
humano, enfatizando o desenvolvimento pessoal e social de cada homem, , na verdade,
juridicamente introduzida nos finais da dcada de 40 e incios da dcada de 50 pela
Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948).
No artigo 26 da Declarao Universal dos Direitos Humanos, a educao
considerada como um direito universal de todos os homens que [] deve visar a plena
expanso da personalidade humana e o reforo dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais. Em 1976, a assinatura do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Polticos introduz importantes alteraes ao artigo 26, nomeadamente o facto de
acrescentar s finalidades educativas o sentido da dignidade humana e a preparao do
homem para agir na sociedade livre.
O fim das grandes ditaduras europeias e a emergncia da democracia traz um
novo sentido para o contexto educativo. A educao para a democracia visa o
desenvolvimento da sociedade, de [] um mundo em que somente o desenvolvimento
livre e pleno da personalidade humana possvel (UNESCO, 2000, p. 126).
A educao, na segunda metade do sculo XX, diz respeito a uma construo
integrada da condio humana, que se desenvolve no dilogo permanente entre o
desenvolvimento da conscincia moral autnoma, a liberdade e a responsabilidade de
cada homem e o conhecimento dos valores, das normas e da identidade cultural de cada
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sociedade. A construo da identidade de cada homem, considerado na sua
singularidade, coexiste com a perpetuao e construo da identidade social e cultural
de cada sociedade. Ambas as identidades desenvolvem-se permanentemente num
processo de co-participao, interaco e dilogo entre a dimenso individual de cada
homem e a sua dimenso social.
Na contemporaneidade, a dimenso histrica, social e cultural do homem no
entendida como um facto dado, inquestionvel, alienante da condio humana, mas
como uma realidade dinmica que exige um processo hermenutico permanente.
Como refere Adalberto Dias de Carvalho (2004, p. 19),
Somos, de uma maneira ou de outra, herdeiros. No no sentido estrito atribudo por
Bourdieu e Passeron ao sobrevalorizarem o poder determinante dos constrangimentos
histricos e sociais sobre as opes e os itinerrios dos indivduos, mas enquanto
depositrios de valores, expectativas, ideologias e experincias que assim se presentifica
superando-se. [] A contemporaneidade impe [] que sejamos herdeiros crticos e no
apenas devotos do passado. A contemporaneidade definir-se- pela distncia crtica
relativamente ao presente []. A contemporaneidade hermenutica do presente.
Assim sendo, o processo educativo contemporneo tem como misso pr