a cicatriz e a cidade

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66 + Monet + NOVEMBRO NOVEMBRO + Monet + 67 O que ficou– Sinais do muro que cortou e dividiu Berlim entre 1961 e 1989 estão ainda visíveis e chamam a atenção principalmente dos turistas que conhecem a cidade alemã. A linha que representa o local exato onde ficava o maior símbolo da Guerra Fria está estampada nas ruas. Já os grafites realizados no lado ocidental (à direita) foram mantidos como obras de arte a céu aberto texto e fotos José Gabriel Navarro, de Berlim F A CICATRIZ E A CIDADE A QUEDA DO MURO DE BERLIM COMPLETA 25 ANOS NO INÍCIO DE NOVEMBRO. ENQUANTO A CAPITAL ALEMÃ FESTEJA A REUNIFICAÇÃO DO PAÍS, A MARCA DO PASSADO CONTINUA VISÍVEL – E OS CIDADÃOS LIDAM NATURALMENTE COM ELA FOI NO CINEMA THALIA, EM POTSDAM, REGIÃO metropolitana da capital alemã, que o filme brasileiro Hoje Eu Quero Vol- tar Sozinho foi exibido ao público do Festival Internacional de Cinema de Berlim deste ano – e, posteriormente, premiado em duas categorias. Antes de a sessão começar, em 13 de fevereiro, o anfitrião discursou e fez questão de frisar: “Este cinema sobreviveu a cinco regimes políticos”. O Thalia foi fundado em 1919. Seus frequentadores ao longo das décadas não viram só filmes. Assistiram também ao fim do Império Alemão, à instituição da República de Weimar, à ascensão do nazismo, do comu- nismo, e à vinda do modelo atual, parlamentarista. Detalhar a história daquele cinema foi mais do que um gesto de marketing. Mostrou que as feridas angariadas pela Alemanha ao longo do século 20 se fecharam, mas as cicatrizes continuam visíveis. A memória ganha ainda mais peso ao se recordar que este mesmo evento, a Berlinale, foi ofuscado em sua 11ª edição, em junho e julho de 1961. Poucas semanas após o fim do festival – uma das demonstrações de pujança da República Federal da Alemanha, capitalista, para o mun- do –, a capital acordou talhada ao meio. Na madrugada de 13 de agosto daquele ano, soldados da República Democrática Alemã (RDA, comu- nista) construíram um muro ao redor de Berlim Ocidental. O objetivo > 4 nações ocuparam a Alemanha após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Reino Unido, França e EUA (capitalistas) ficaram com o oeste do país, e a União Soviética com o leste. Berlim fica bem no meio da porção oriental, mas lá também se reproduzia essa divisão: a metade oeste da cidade era administrada pelo trio capitalista. > 3,5 milhões de cidadãos da RDA, a Alemanha Comunista, escaparam para a RFA, capitalista, antes da construção do Muro. > 106 quilômetros de muro isolavam Berlim Ocidental de Berlim Oriental e do território da RDA. A fronteira em si totalizava 155 quilômetros. OS NÚMEROS DO MURO HASSELHOFF E O MURO DE BERLIM I DIA 9, DOMINGO, 21H15, NATGEO 80 E 580 (HD) GN ESPECIAL I DIA 9, DOMINGO, 20H30, GLOBONEWS, 40 E 540 (HD) • DUAS VIDAS I DIA 22, SÁBADO, 22H, MAX, 178 E 678 (HD) era evitar a fuga de cidadãos orientais para o lado ocidental. Nisso houve êxito, inclusive aplaudido pelo então presidente americano, John F. Kennedy, mas também mortes e escapa- tórias (veja o quadro nesta página). A muralha só perdeu função a partir da noite de 9 de novembro de 1989 – o controle da fronteira deveria ter cessado no dia se- guinte, porém o governo da RDA se confundiu numa coletiva de imprensa e acabou apressando o processo de livre-trânsito. Era questão de tempo para a própria população começar a destruir o muro, depois derrubado por maquinário a mando do Estado. Agora se comemoram 25 anos da Queda do Muro, que sig- nificou o início da reunificação alemã, o reencontro definitivo de parentes, amigos e namorados e, sobretudo, a liberdade de andar por toda a metrópole. Em 9 de novembro de 2014, um concerto de música instrumental deve emocionar cidadãos e turistas em frente ao Portão de Brandemburgo. No mesmo dia, um documentário com apresentação de David Hasselhoff (de sucessos da TV, como Baywatch) e um especial apresenta- do por Silio Boccanera também celebram a data. Fora do período de festa, é quem vem a passeio que dá aten- ção aos vestígios da barreira. As ruínas podem ser encontradas em pontos turísticos como a Potsdamer Platz. O lugar é uma espécie de Times Square berlinense, e foi também cortado pela muralha. Até hoje, é o antigo lado capitalista da praça que abri- ga os prédios mais viçosos e modernos. Mas é no chão que está a marca do passado: uma linha de pouco mais de um palmo de largura no solo recorda a quem passa por ali do paredão. Porém, mesmo nas vias mais improváveis e pacatas da ca- pital é possível esbarrar com uma parte ou mesmo um trecho inteiro do Berliner Mauer. Os grafites feitos no lado ocidental da parede tornam esses vestígios obras de arte a céu aberto. O que também faz a alegria dos vendedores de suvenires: os camelôs, concentrados em áreas estratégicas, vendem desde distintivos e peças de roupas militares da RDA até máscaras de gás e supos- tos pedacinhos do Muro. Um naco de concreto pichado desses raramente sai por menos de 15 euros (algo entre 45 e 50 reais). Tanto quem tem mais quanto quem tem menos de 25 anos vivendo em Berlim parece, no geral, acostumado a usufruir da cidade sem ligar para sua antiga divisão. Em meio ao este- reótipo do alemão austero, os berlinenses são no geral vistos como muito bem-humorados – tanto que, apesar de estarem reduzidas, ainda resistem aqui e ali na capital as piadas de wessi (moradores da Alemanha Ocidental) e ossi (da RDA). O passado é passado, mas manda lembranças. > 3,6 metros de altura tinha a porção de concreto da muralha. > Estavam espalhadas ao longo do Muro 302 torres de observação. > O Muro de Berlim existiu por pouco mais de 28 anos. > 1 bilhão de marcos alemães (ou 500 milhões de dólares) era quanto custava anualmente a manutenção do Muro para a RDA nos anos 80. > 5 mil pessoas conseguiram fugir para Berlim Ocidental enquanto o Muro esteve de pé. > Mas pelo menos 98 morreram tentando. Não há consenso sobre o número de cidadãos executados nessa fronteira. Segundo uma ONG, o número de mortos no muro chegou a 1.065. > Outros 18.300 cidadãos da RDA foram condenados e presos por tentativa de fuga.

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6 6 + M o n e t + N O V E M B R O N O V E M B R O + M o n e t + 6 7

O que fi cou– Sinais do muro que cortou e dividiu Berlim entre 1961 e 1989 estão ainda visíveis e chamam a atenção principalmente dos turistas que conhecem a cidade alemã. A linha que representa o local exato onde ficava o maior símbolo da Guerra Fria está estampada nas ruas. Já os grafites realizados no lado ocidental (à direita) foram mantidos como obras de arte a céu aberto

texto e fotos José Gabriel Navarro, de Berlim

FA CICATRIZ E A CIDADE

A QUEDA DO MURO DE BERLIM COMPLETA 25 ANOS NO INÍCIO DE

NOVEMBRO. ENQUANTO A CAPITAL ALEMÃ FESTEJA

A REUNIFICAÇÃO DO PAÍS, A MARCA DO PASSADO CONTINUA VISÍVEL – E

OS CIDADÃOS LIDAM NATURALMENTE COM ELA

FOI NO CINEMA THALIA, EM POTSDAM, REGIÃO metropolitana da capital alemã, que o filme brasileiro Hoje Eu Quero Vol-tar Sozinho foi exibido ao público do Festival Internacional de Cinema de Berlim deste ano – e, posteriormente, premiado em duas categorias. Antes de a sessão começar, em 13 de fevereiro, o anfitrião discursou e fez questão de frisar: “Este cinema sobreviveu a cinco regimes políticos”. O Thalia foi fundado em 1919. Seus frequentadores ao longo das décadas não viram só filmes. Assistiram também ao fim do Império Alemão, à instituição da República de Weimar, à ascensão do nazismo, do comu-nismo, e à vinda do modelo atual, parlamentarista. Detalhar a história daquele cinema foi mais do que um gesto de marketing. Mostrou que as feridas angariadas pela Alemanha ao longo do século 20 se fecharam, mas as cicatrizes continuam visíveis.

A memória ganha ainda mais peso ao se recordar que este mesmo evento, a Berlinale, foi ofuscado em sua 11ª edição, em junho e julho de 1961. Poucas semanas após o fim do festival – uma das demonstrações de pujança da República Federal da Alemanha, capitalista, para o mun-do –, a capital acordou talhada ao meio. Na madrugada de 13 de agosto daquele ano, soldados da República Democrática Alemã (RDA, comu-nista) construíram um muro ao redor de Berlim Ocidental. O objetivo

> 4 nações ocuparam a Alemanha após o fi m da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Reino Unido, França e EUA (capitalistas) fi caram com o oeste do país, e a União Soviética com o leste. Berlim fi ca bem no meio da porção oriental, mas lá também se reproduzia essa divisão: a metade oeste da cidade era administrada pelo trio capitalista.> 3,5 milhões de cidadãos da RDA, a Alemanha Comunista, escaparam para a RFA, capitalista, antes da construção do Muro.> 106 quilômetros de muro isolavam Berlim Ocidental de Berlim Oriental e do território da RDA. A fronteira em si totalizava 155 quilômetros.

OS NÚMEROS DO MURO

HASSELHOFF E O MURO DE BERLIM I DIA 9, DOMINGO, 21H15, NATGEO 80 E 580 (HD) GN ESPECIAL I DIA 9, DOMINGO, 20H30, GLOBONEWS, 40 E 540 (HD) • DUAS VIDAS I DIA 22, SÁBADO, 22H, MAX, 178 E 678 (HD)

era evitar a fuga de cidadãos orientais para o lado ocidental. Nisso houve êxito, inclusive aplaudido pelo então presidente americano, John F. Kennedy, mas também mortes e escapa-tórias (veja o quadro nesta página).

A muralha só perdeu função a partir da noite de 9 de novembro de 1989 – o controle da fronteira deveria ter cessado no dia se-guinte, porém o governo da RDA se confundiu numa coletiva de imprensa e acabou apressando o processo de livre-trânsito. Era questão de tempo para a própria população começar a destruir o muro, depois derrubado por maquinário a mando do Estado.

Agora se comemoram 25 anos da Queda do Muro, que sig-nificou o início da reunificação alemã, o reencontro definitivo de parentes, amigos e namorados e, sobretudo, a liberdade de andar por toda a metrópole. Em 9 de novembro de 2014, um concerto de música instrumental deve emocionar cidadãos e turistas em frente ao Portão de Brandemburgo. No mesmo dia, um documentário com apresentação de David Hasselhoff (de sucessos da TV, como Baywatch) e um especial apresenta-do por Silio Boccanera também celebram a data.

Fora do período de festa, é quem vem a passeio que dá aten-ção aos vestígios da barreira. As ruínas podem ser encontradas em pontos turísticos como a Potsdamer Platz. O lugar é uma espécie de Times Square berlinense, e foi também cortado pela muralha. Até hoje, é o antigo lado capitalista da praça que abri-ga os prédios mais viçosos e modernos. Mas é no chão que está a marca do passado: uma linha de pouco mais de um palmo de largura no solo recorda a quem passa por ali do paredão.

Porém, mesmo nas vias mais improváveis e pacatas da ca-pital é possível esbarrar com uma parte ou mesmo um trecho inteiro do Berliner Mauer. Os grafites feitos no lado ocidental da parede tornam esses vestígios obras de arte a céu aberto. O que também faz a alegria dos vendedores de suvenires: os camelôs, concentrados em áreas estratégicas, vendem desde distintivos e peças de roupas militares da RDA até máscaras de gás e supos-tos pedacinhos do Muro. Um naco de concreto pichado desses raramente sai por menos de 15 euros (algo entre 45 e 50 reais).

Tanto quem tem mais quanto quem tem menos de 25 anos vivendo em Berlim parece, no geral, acostumado a usufruir da cidade sem ligar para sua antiga divisão. Em meio ao este-reótipo do alemão austero, os berlinenses são no geral vistos como muito bem-humorados – tanto que, apesar de estarem reduzidas, ainda resistem aqui e ali na capital as piadas de wessi (moradores da Alemanha Ocidental) e ossi (da RDA). O passado é passado, mas manda lembranças.

> 3,6 metros de altura tinha a porção de concreto da muralha.> Estavam espalhadas ao longo do Muro 302 torres de observação.> O Muro de Berlim existiu por pouco mais de 28 anos.> 1 bilhão de marcos alemães (ou 500 milhões de dólares) era quanto custava anualmente a manutenção do Muro para a RDA nos anos 80.> 5 mil pessoas conseguiram fugir para Berlim Ocidental enquanto o Muro esteve de pé.> Mas pelo menos 98 morreram tentando. Não há consenso sobre o número de cidadãos executados nessa fronteira. Segundo uma ONG, o número de mortos no muro chegou a 1.065.> Outros 18.300 cidadãos da RDA foram condenados e presos por tentativa de fuga.