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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CAMPUS DE LARANJEIRAS DEPARTAMENTO DE MUSEOLOGIA “A CASA ANTIGA QUE DEPENDE DO NEGRO E DE SUA HISTÓRIA”: AMINTAS VIEIRA SOUZA COMO “GUARDIÃO DA MEMÓRIA” DO MUSEU AFRO-BRASILEIRO DE SERGIPE JISLAINE SANTANA DOS SANTOS LARANJEIRAS (SE), 2016.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

CAMPUS DE LARANJEIRAS

DEPARTAMENTO DE MUSEOLOGIA

“A CASA ANTIGA QUE DEPENDE DO NEGRO E DE SUA HISTÓRIA”: AMINTAS VIEIRA SOUZA COMO “GUARDIÃO DA MEMÓRIA” DO MUSEU

AFRO-BRASILEIRO DE SERGIPE

JISLAINE SANTANA DOS SANTOS

LARANJEIRAS (SE),

2016.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

CAMPUS DE LARANJEIRAS

DEPARTAMENTO DE MUSEOLOGIA

JISLAINE SANTANA DOS SANTOS

“A CASA ANTIGA QUE DEPENDE DO NEGRO E DE SUA HISTÓRIA”:

AMINTAS VIEIRA SOUZA COMO “GUARDIÃO DA MEMÓRIA” DO MUSEU

AFRO-BRASILEIRO DE SERGIPE

Trabalho de conclusão de curso apresentado

como pré-requisito parcial para obter o título

de Bacharel em Museologia, pela

Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Orientador: Prof. Dr. Clovis Carvalho Britto

LARANJEIRAS (SE),

2016.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

CAMPUS DE LARANJEIRAS

DEPARTAMENTO DE MUSEOLOGIA

JISLAINE SANTANA DOS SANTOS

“A CASA ANTIGA QUE DEPENDE DO NEGRO E DE SUA HISTÓRIA”:

AMINTAS VIEIRA SOUZA COMO “GUARDIÃO DA MEMÓRIA” DO MUSEU

AFRO-BRASILEIRO DE SERGIPE

APROVADO EM: ____/____/_______

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento

de Museologia da Universidade Federal de Sergipe e aprovado

pela Banca Examinadora.

__________________________________________________ Profº. Dr. Clovis Carvalho Britto (Orientador)

Professor efetivo (UFS)

__________________________________________________ Profª. Dra. Neila Dourado Gonçalves Maciel (Avaliadora)

Professora efetiva (UFS)

__________________________________________________ Profª. Ms. Sura Souza Carmo (Avaliadora)

Professora efetiva (UFS)

LARANJEIRAS (SE),

2016.

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Dedico este trabalho a todos que fizeram parte da minha

caminhada em busca do meu sonho: minha mãe, meus

entrevistados. De forma geral, dedico a todos que contribuíram

de alguma forma.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a DEUS, por ser fundamental na minha vida, na minha

caminha buscando meu desenvolvimento profissional, por me dar forças para ir em frente

mesmo quando apareceram obstáculos.

Aos meus bons amigos de luz que sempre intercederam ao meu favor, que mandaram

boas energias, bons pensamentos e me favoreceram com belos sonhos que remetem ao meu

futuro.

À minha mãe, Maria José dos Santos Santana, pelo apoio e por agüentar meus stress,

sobretudo em momentos de provas, como também a minha avó materna, Maria Helena dos

Santos Santana e ao meu avô Maximino dos Santos por ter contribuído muito com a minha

criação, meu desenrolar educacional desde criança.

Ao meu querido orientador, Clovis Carvalho Britto, pela paciência e incentivo, como

ainda por ser a minha fonte de inspiração no mundo acadêmico.

Á Amintas Vieira Souza que se dispôs a ser entrevistado muitas vezes. Sempre fui

muito bem recebida por ele e sua esposa, dona Elenice.

Ao falecido Babalorixá Jorge dos Santos, mais conhecido como Jorginho, que sempre

ajudou em meus aprendizados sobre a religião afro-brasileira, como também por contribuir

com uma entrevista para fazer parte deste trabalho meses antes do seu falecimento.

Às professoras integrantes da banca examinadora, Sura Carmo e Neila Maciel, por

aceitar o convite para avaliação deste trabalho.

À Estefanni Patrícia por transmitir seus conhecimentos em prol do meu crescimento

no meio museal.

Aos amigos que contribuíram de alguma forma.

Muito Obrigada!

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“Uma alegria pode compensar mil tristezas; quem passou pela vida e

não amou, não viveu. Se do amor se nasce, por que não se querer se

morrer de amor? Que eu chore por ter amado - doce lágrima de amor!

Mas que eu não morra sem conhecer o amor, que eu não morra sem

conhecer Oxum”.

Pai Cido de Òsun Eyin (2000, p. 144)

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“A CASA ANTIGA QUE DEPENDE DO NEGRO E DE SUA HISTÓRIA”:

AMINTAS VIEIRA SOUZA COMO “GUARDIÃO DA MEMÓRIA” DO MUSEU

AFRO-BRASILEIRO DE SERGIPE

Resumo: Este trabalho analisa os silêncios na exposição do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe

(MABS), situado na cidade de Laranjeiras/SE tento como recurso metodológico a trajetória de

vida de Amintas Vieira Souza que aqui é apresentado como o “guardião da memória”,

conforme a categoria apresentada por Ângela de Castro Gomes (1996). Amintas foi

funcionário do museu por 38 anos (1975-2013) e como público interno sua trajetória se tornou

indício importante para a compreensão das estratégias da instituição e, por sua vez, do modo

como as culturas diaspóricas são representadas nos museus brasileiros. A partir desse

entendimento, apresenta algumas memórias sobre o museu afro-brasileiro a partir dos

documentos e das narrativas do “guardião”, no intuito de visualizar aspectos ocultados,

silenciados ou esquecidos na história do museu e de suas práticas sociais.

Palavras-chave: Museu Afro-Brasileiro; Silêncio; Guardião da memória, Exposição,

Museologia.

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"THE OLD HOUSE THAT DEPENDS ON THE BLACK AND THEIRS HISTORY"

AMINTAS VIEIRA SOUZA AS "GUARDIAN OF MEMORY"" OF AFRO-

BRAZILIAN MUSEUM OF SERGIPE

Abstract: This work analyses silences on exposition of Museu Afro-Brasileiro de Sergipe

(MABS), situated in the city of Laranjeiras\SE, having as a methodological resource the

trajectory of life of Amintas Vieira Souza Who here is presented as the "guardian of the

memory", according to the category presented byAngela de Castro Gomes (1996). Amintas

was museum worker for 38 years (1975-2013) and as internal public his trajectory became

important clue to understanding of the institution's strategies and in turn , the way like

diasporic cultures are represented in Brazilian museums. Based on this understanding,

presents some memories of the African-Brazilian Museum from documents and narratives of

the "guardian", in intend to view hidden aspects, silenced or forgotten in the history of the

museum and its social practices.

Keywords: Museum Afro-Brazilian; Silence; Guardian ofMemory ; Exhibition; Museology .

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................................10

1 Museus e memórias afro-diaspóricas: itinerários na Museologia brasileira..................15

1.1 Problematizando a regra: silêncios, subrepresentações e estereótipos................................17

1.2 A exceção como enfrentamento: outros itinerários possíveis.............................................26

2 Museu Afro-Brasileiro de Sergipe: entre marcas da escravidão, cores, cheiros e

sabores do axé..........................................................................................................................31

2.1 A exposição da escravidão?................................................................................................37

2.2 Um museu de arte sacra?....................................................................................................41

2.3 Sinestesias museológicas: os cheiros e os sabores da afro-brasilidade...............................46

3 Amintas Vieira Souza: um “guardião da memória” nos “silêncios da história”...........51

3.1 Uma trajetória em narrativas...............................................................................................55

3.2 Amintas Vieira e o jogo de memórias: o museu e os documentos.....................................59

3.3 O mundo museal e a cultura afro-brasileira........................................................................69

Considerações finais...............................................................................................................71

Referências bibliográficas..................................................................................................... 73

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INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como propósito analisar os silêncios na expografia do Museu Afro-

Brasileiro de Sergipe (MABS) que se localiza na cidade de Laranjeiras/SE a partir da

trajetória de Amintas Vieira Souza que trabalhou na instituição durante 38 anos (1975-2013),

acompanhando diversas ações de musealização: “modos de construção de imagens e diálogo

entre „nós‟ e „outros‟, visando contribuir para aprofundar o papel da Museologia e suas

instituições no âmbito da produção e difusão cultural‟‟ (CUNHA, 2006, p. 3).

Seu objetivo concentra-se em realizar um estudo no Museu Afro-Brasileiro de Sergipe

e seus processos de musealização, a partir da trajetória de Amintas Vieira Souza

reconhecendo-o como “guardião da memória” até hoje esquecido na história desse espaço

museal. Além disso, visa reconstruir a trajetória deste personagem a partir de seu acervo

pessoal e de suas memórias, visualizando as transformações que ocorreram nas exposições de

longa duração e problematizar as representações da população afro-brasileira nas exposições

museológicas.

Acreditamos que a investigação da trajetória do “guardião da memória” (GOMES,

1996) contribuirá para a reconstituição de aspectos silenciados nos processos de musealização

do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe, apresentando uma memória construída sob um olhar

dissonante que, até o momento, ainda não foi ouvida na “batalha das memórias” que (re)

inventa a história de umas das primeiras instituições museais do gênero no Brasil, criada em

1976.

Desde sua criação, o museu passou por várias modificações especialmente em sua

exposição de longa duração. A expografia foi alterada reforçando aspectos relacionados à

escravidão e silenciando outras facetas da presença da população afro-brasileira em

Laranjeiras, as quais foram destacadas em seu projeto original.

Amintas Vieira Souza nascido em 12 de maio de 1942, natural e residente de

Laranjeiras/SE, teve uma infância voltada para os estudos e trabalho no campo, vivia com

seus pais e os irmãos, dedicado aos estudos tirou o 1º Grau (hoje isso é conhecido como

conclusão do ensino médio) que o deu à oportunidade de começar a trabalhar no Museu Afro

Brasileiro de Sergipe. Aos 73 anos é dono de uma memória invejável, relatando com detalhes

quando começou a trabalhar no casario que abriga atualmente o Museu Afro desde 10 de

outubro de 1975 no governo de José Rollemberg Leite, local então denominado “Casa

Laranjeiras”. Desse modo, Amintas Souza acompanhou o processo de instalação do museu

um ano antes de sua inauguração

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Atualmente, o museu encontra-se organizado com as seguintes salas temáticas: “Sala

de Economia”, “Sala de Instrumentos de Tortura”, “Sala de Senhorio”, “Sala representando a

Cozinha da Casa Grande”, “Sala de Exu”, “Sala do Sincretismo Religioso”, “Sala do Nagô”,

“Sala para exposição de curta duração”, na parte externa da instituição encontra-se um jardim

que foi projetado para representar através das ervas um contexto que abrigasse o uso na

produção de medicação, no preparo de alimentos e no culto religioso.

Em suma, Amintas Vieira é de extrema importância para que possamos montar um

diálogo entre passado e presente. Suas memórias apresentam o museu desde sua fase inicial,

onde o mesmo nos faz perceber através do seu discurso a significância de uma instituição

museológica, além de notarmos as inúmeras mudanças no decorrer do tempo. Pois ele se

encaixa no que chamamos de público interno, ou seja, um funcionário que trabalhou em

museu mesmo sem ter uma formação na área, ou mesmo uma formação acadêmica, mas que

esteve em contato direto com o visitante, com o acervo etc.

O público interno, em outras palavras, a equipe que trabalha nos museus, é de suma

importância e também deve ser visualizado pelas ações educativas:

Para haver coerência com a Sociomuseologia, que se pretende mais atenta

aos indivíduos e que justifica a existência dos museus para servir

primeiramente às pessoas e posteriormente aos objetos, entende-se que este

grupo de trabalhadores precisa ser envolvido nas ações educativas

promovidas pelos museus. E por acreditar que a vertente social da

Museologia precisa considerar o interior do museu como um espaço de ação

e perceber seu público interno (sua equipe de trabalhadores) como público

em potencial, o presente estudo trilha suas reflexões neste caminho

(FIGURELLI, 2013, p. 32).

Assim, este trabalho tem como foco fazer uma análise de diversos aspectos do público

interno e o “guardião da memória apresentados na trajetória do Museu Afro-Brasileiro de

Sergipe através das memórias de Amintas Vieira Souza. O museu consiste em um dos

primeiros sobre a temática afro-diaspórica no Brasil, abrigando um vasto acervo do período

escravocrata e açucareiro, além de indumentárias religiosas e de grupos “folclóricos”,

instrumentos musicais, artesanato, bonecas de pano, fotografias etc.

Raul Lody (2005) em O negro no museu Brasileiro: construindo identidades ressalta

quesitos complexos como “museus e sua relação com a tradição” e “a gama de representações

do negro na cultura e no imaginário brasileiro”, além do patrimônio afro-brasileiro, ou seja, os

museus e coleções. Destaca, no conjunto das coleções analisadas, que a cidade de Laranjeiras

se desenvolveu economicamente através da monocultura da cana-de-açúcar, fábricas de

aguardentes e charutos, obtendo ainda um porto que recebia inúmeras embarcações, dando-lhe

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um vasto desenvolvimento. Dessa forma ficou notória a presença e a vivencia dos

afrodescendentes e testemunhos da cultura material:

Durante quase todo século XIX, viveu da monocultura da cana-de-açúcar,

transformando-se, entre 1840 e 1863, no império industrial de Sergipe,

possuindo 73 engenhos de açúcar, fábricas de aguardentes e charutos, e um

porto movimentado que recebia embarcações de várias procedências,

proporcionando-lhe um comércio dos mais desenvolvidos da época. Por tudo

isso, vê-se e vive-se um forte e expressivo legado afrodescedente, notando-

se até uma comunidade chamada Mussuca, como sua inspiradora, em

Angola, África Austral (LODY, 2005, p. 195).

Na primeira1 exposição de longa duração do MABS o foco era apresentar a riqueza da

herança africana viva em Laranjeiras. Para tanto, existia uma sala reservada para os grupos

“folclóricos” do Estado de Sergipe, artesanato e elementos que compõem a religião afro-

brasileira. Todavia, nas exposições subseqüentes, incluindo a atual, reforçaram o discurso do

negro enquanto escravizado que acompanha a maioria das narrativas sobre os negros

apresentadas nos museus brasileiros: “o silêncio quase absoluto sobre a participação positiva

do negro na constituição da nação e a lembrança do período em que ele foi amarrado ao

tronco, espancado, dominado e humilhado pelo homem branco (SANTOS, 2004, p. 4).

O Município de Laranjeiras possui uma expressiva quantidade de grupos tradicionais

relacionados à herança afro-brasileira, além de muitos terreiros e de uma área reconhecida

como remanescente quilombola. A expografia do Museu Afro ao optar por apresentar uma

memória da dor ou um “Museu da Escravidão”, silencia aspectos significativos da trajetória

da população negra no Nordeste, especialmente em Sergipe e em Laranjeiras, negligenciando

os grupos tradicionais, os lideres dos terreiros que estão vivos, com exceção do Terreiro Santa

Barbara Virgem (que dá espaço a Loxâ que esta no comando), a língua Iorubá, a Mussuca, a

história africana, entre diversas possibilidades.

Dessa forma este trabalho pretende problematizar os silêncios existentes no Museu

Afro, a edificação de uma nova visão em relação à contribuição negra em nosso país,

colaborando ainda com a perspectiva de produção de argumentos para que a expografia

constitua-se em um espaço que ajude para o reconhecimento da pluralidade cultural e da

valorização da herança afro-brasileira tendo como foco a valorização das memórias de seu

público interno. Para tanto, parte da valorização da trajetória de Amintas Vieira Souza, ex-

funcionário do museu. A proposta intentou esboçar uma história das práticas museológicas na

1 A primeira exposição do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe foi montada em 1976 por Ana Conceição de

Carvalho junto com Luiz Antonio Barreto. Segundo seu Amintas até a gestão de Telma Santos a exposição de

longa duração abrigava parte das riquezas culturais deixadas como heranças pelos negros, mas ao adentra a

gestão de Telma Rosita já saem alguns objetos, como por exemplo, os berimbaus, os artesanatos, etc. Entrevista

com Amintas Vieira em 23 de Outubro de 2014.

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instituição a partir das memórias e do acervo pessoal de Amintas, cuja trajetória se confunde

com a do próprio museu e que, até hoje, permanece silenciado nos trabalhos sobre o campo

museológico de Sergipe.

Para a realização deste trabalho foi necessário analisar as modificações na expografia

do Museu Afro no intuito de visualizarmos os silêncios construídos ao longo do tempo. Nesse

aspecto, concordamos com Marcelo Cunha quando afirmou:

Expor é revelar/esconder, evidenciar/dissimular, incluir/excluir,

iluminar/nublar, elementos que seus organizadores e patrocinadores desejam

tornar conhecidos ou esquecidos. Neste quadro, a exposição caracteriza-se

também como espaço de luta entre poderes, daí advindo exclusões,

ocultamentos, seleções, promovendo silêncios e omissões (CUNHA, 2006,

p. 16).

A exposição tem um papel fundamental, a mesma deve ter aspectos que acionem de

imediato as memórias de um respectivo grupo ou que façam o individuo se identificar na

mesma, ainda que reconheçamos a diversidade de público:

Tem-se dito, muitas vezes, que a exposição é um discurso ou, mais

precisamente, um „texto‟. (...) A exposição verdadeiramente histórica é

aquela em que a comunicação dos documentos, por sua seleção e

agenciamento, permite encaminhar inferências sobre o passado - ou melhor,

sobre a dinâmica - da sociedade, sob aspectos delimitados, que conviria bem

definir, a partir de problemas históricos (MENESES, 1994, p. 37-39).

Desse modo, a narrativa museológica consiste em um trabalho de memória e, portanto,

um jogo de poder. Guardar uma memória é essencial para quando for necessário evidenciar

através da mesma as modificações ocorridas no decorrer do tempo, além de que são elas que

desvendam o comportamento de um determinado grupo, como diz Ângela Gomes: “a guarda

de uma memória comum é fator essencial na formação e manutenção de grupos (de tamanhos

e tipos variados), bem como é elemento base de sua transformação” (GOMES, 1996, p. 6-7).

Dessa forma, destaca a categoria “guardião da memória” para enfatizar o trabalho

desempenhado por alguns indivíduos na realização desse processo em busca de construir uma

narrativa que sobreviva ao esquecimento, o que faremos no caso da trajetória de Amintas

Vieira Souza.

A pesquisa se desenvolveu através de entrevistas semi-estruturadas, realizadas em

períodos diversificados com Amintas Vieira Souza visando reconstruir a partir de suas

memórias e de seu acervo pessoal aspectos de sua trajetória de vida e da memória do Museu

Afro-Brasileiro de Sergipe. Além disso, também realizamos um levantamento bibliográfico

sobre a questão do negro nos museus brasileiros e sobre o Museu Afro em questão. A

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pesquisa também se pautou na análise documental e nos registros fotográficos realizados na

exposição de longa duração e na reserva técnica do Museu Afro-Brasileiro.

Amintas Vieira possui em seu acervo pessoal uma série de fotografias da época em

que trabalhou no Museu, além de cartazes sobre a cidade de Laranjeiras e o Museu Afro.

Também guardou um documento que descreve como era distribuído o acervo dentro das salas,

além de contribuir com suas memórias, pois consegue lembrar-se da época em que muitos

objetos adentraram na instituição, descrevendo os mesmos.

Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, realizamos uma revisão

bibliográfica sobre a representação do negro nos museus brasileiros, dialogando com alguns

autores do campo museológico brasileiro que problematizaram as ligações entre exposições

museológicas e memórias afro-diaspóricas.

Já no segundo capítulo apresentamos um breve contexto do surgimento e consolidação

do Museu Afro- Brasileiro de Sergipe, de 1976 até meados de 2013, sua finalidade e atuação.

O enfoque priorizou a análise sobre as representações das culturas negras na exposição do

museu, as tensões, os silêncios, além de iniciativas que tentam instituir ações mais inclusivas,

combatendo subrepresentações e estereótipos.

O último capítulo enfoca a trajetória de Amintas Vieira Souza e as memórias

recordadas por ele, aqui reconhecido como o “guardião da memória”. Produz um diálogo que

liga a vida de Amintas Vieira com a instituição museal, já que o mesmo trabalhou no local

mesmo antes que a instituição tivesse as portas abertas como museu. Neste capítulo também

tratamos das modificações nas exposições museológicas e nas representações sobre as

culturas negras, com o intuito de desvendar e (des) silenciar alguns fatos e objetos importantes

para a história e para a memória afro-brasileira, sobretudo em Laranjeiras.

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1. MUSEUS E MEMÓRIAS AFRO-DIASPÓRICAS: ITINERÁRIOS

NA MUSEOLOGIA BRASILEIRA

“As contas desse colar

Hoje a raça está formada

Nossa aventura, plantada

Nossa cultura é raiz”.

(Bahia de todas as contas, Gilberto Gil, 1983)

O interesse deste capítulo é visualizar como as populações negras vêm sendo

representadas em alguns museus sobre a temática afro-brasileira. Para tanto, apresentaremos

uma revisão bibliográfica destacando alguns autores no campo da Museologia no Brasil que

problematizaram as aproximações entre exposições museológicas e memórias afro-

diaspóricas.

Mario Chagas (2011) em seu texto “Memória e Poder: dois movimentos” desempenhou

uma análise tendo como foco os museus, visando compreender a relação entre memória e

poder. O autor problematiza dois movimentos que discutem a relação entre memória e poder

em instituições voltadas para a preservação do patrimônio cultural nos séculos XVIII e XIX e

nos dias atuais.

A idéia que a Revolução de 1789 possa ter sido provocada pela memória acumulada

reluz como o grande estopim para tal acontecimento, podendo assim dizer que o pesquisador

possui razão quando menciona que existe um momento de memória que segue em rumo ao

passado e chegando ao seu destino se “cristaliza”, como veneração saudosa, reminiscência

que aliena e ladeia o individuo de si e seu próprio período temporal, “lembrança que reificada

e saturada de si mesma e por isso sem possibilidade de criação e inovação” existe ainda um

momento de memória que se rasteja em direção ao presente. É a batida entre esses

movimentos, sendo que o segundo leva a vantagem mesmo que por pouco tempo, que cria a

possibilidade da memória ser um enorme disparador de modificações e alterações particulares

e sociais (CHAGAS, 2002, p.5).

Por esse caminho, compreende-se que ao admitir que a memória acumulada

possa ter sido o dispositivo detonador da Revolução de 1789, está aberta a

vereda para a compreensão de que no seio da memória acumulada (solução

saturada), uma contramemória pode operar e pode desembocar no poder de

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agir. Avançando um pouco mais. Se de um lado a memória explode na

Revolução, de outro a Revolução inaugura novas articulações de memória.

Uma nova e moderna rede (de pode e memória) é construída, uma rede por

onde passam novas relações de classe, novas relações com o corpo, com a

religião, com as instituições públicas e privadas (CHAGAS, 2002, p.5)

Apresentando discussões sobre as aproximações entre memória e poder nos dias atuais,

tendo como fio condutor os museus, foi possível perceber a função do museu enquanto local

para salvaguardar o patrimônio. O autor conceitua o museu como “[...] um campo onde

encontram-se os dois movimentos de memória e que desde o nascedouro está marcado com os

germes da contradição e do jogo das múltiplas oposições” (CHAGAS, 2002, p. 16).

As instituições museológicas são vistas como locais para se comemorar a memória do

poder ou ainda aparelhamento com interesse em trabalhar com o poder da memória. A

memória é construída no presente, localiza-se na extensão relacional entre os seres e entre os

indivíduos e os fatos:

Com todos esses ingredientes, o pesquisador está habilitado para o

entendimento de que a constituição dos museus celebrativos da memória do

poder decorre da vontade política de indivíduos e grupos e representa a

concretização de determinados interesses. Os museus celebrativos da

memória do poder- ainda que tenham tido origem, em termos de modelo, nos

séculos XVIII e XIX - continuaram sobrevivendo e multiplicaram-se durante

todo o século XX. Aqui não se está falando de instituições perdidas na

poeira do tempo; ao contrário, a referência incide em modelos museológicos

que, superando as previsões apocalípticas de alguns especialistas,

sobrevivem e continuam deitando regras. Para estes museus, a celebração do

passado (recente ou remoto) é a pedra de toque. O culto à saudade, aos

acervos valiosos e gloriosos é o fundamental. Eles tendem a se constituir em

espaços pouco democráticos onde prevalece o argumento de autoridade,

onde o que importa é celebrar o poder ou o predomínio de um grupo social,

étnico, religioso ou econômico sobre os outros grupos. Os objetos (seres e

coisas), para os que alimentam estes modelos museais, são coágulos de

poder e indicadores de prestígio social. O poder, por seu turno, nestas

instituições, é concebido como alguma coisa que tem locus próprio, vida

independente e está concentrado em indivíduos, instituições ou grupos

sociais (CHAGAS, 2002, p. 16-17).

Essas orientações de Mario Chagas (2002) são fundamentais quando analisamos os

patrimônios e as exposições museológicas relacionadas às diásporas negras. Ao longo deste

capítulo, visualizaremos as problematizações comuns relacionadas a essa temática visando

inventariar, de algum modo, como as populações e culturas negras foram e são comumente

representadas nos museus. Para tanto, realizaremos uma breve revisão de algumas pesquisas

sobre as intersecções entre as diásporas negras e o campo museológico brasileiro.

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1.1 Problematizando a regra: silêncios, subrepresentações e estereótipos

O museu é definido pelo Conselho Internacional de Museus - ICOM como “uma

instituição permanente sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento,

aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o patrimônio material e

imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite”.

Como espaço de saber e de poder, torna-se emblemático para a compreensão de diversas

práticas sociais. Aqui nosso interesse se voltará para a representação das diásporas negras.

Dão-se alguns sentidos ao termo diáspora. De modo geral, relaciona-se a dispersão de

um povo em decorrência de perseguição política, religiosa ou étnica, segundo Marilise Reis:

A definição do conceito diáspora, segundo o Dicionário de relações étnicas

e raciais (Cashmore, 1996), vem dos antigos termos gregos dia (através, por

meio de) espeirõ (dispersão, disseminar ou dispersar) e está associada às

ideias de migração e colonização da Ásia Menor e do Mediterrâneo (800 a

600 a.C). De acordo com Cashmore (1996), na tradução grega do

Deuteronômio, a palavra designa, também, maldição, visto sua referência à

dispersão dos judeus exilados da Palestina depois da conquista babilônica.

Por isso, a conotação inicialmente positiva das sociedades que se

disseminavam por meio e entre diferentes geografias políticas e culturais

transformou a diáspora num termo de opressão e de vitimização. É

justamente por isso que, no sentido clássico, a noção de diáspora

corresponde a exílio forçado, dor e sofrimento (REIS, 2010, p. 39).

A diáspora ainda é vista como algo que envolve o experimento junto à intelectualidade e

a “consciência identitária”, assim, podemos conceituá-la como uma zona de conflito, onde se

deve perder ou obter através da experiência com os indivíduos em diáspora. Desse modo,

conseguimos experimentar o lado positivo, apontando a procedência da história, ou mesmo a

parte negativa, com o experimento de desvalorização e de eliminação (REIS, 2010, p. 40).

Segundo esta autora, a diáspora africana teve maior intensidade entre os séculos XVI e

XVIII, graças ao procedimento de retirada por meio da força brutal dos negros africanos para

lugares como as Américas, Europa e Ásia, fato consolidado em virtude da escravidão e

também pelo tráfico negreiro através do Atlântico.

Quando observamos museus dedicados à temática das culturas negras na diáspora de

imediato visualizamos essas questões em sua expografia2. Segundo Marcelo Cunha (2006),

2 Área da Museografia que “se ocupa da definição da linguagem e do design da exposição museológica,

englobando a criação de circuitos, suportes expositivos, recursos multimeios e projeto gráfico, incluindo

programação visual, diagramação de textos explicativos, imagens, legendas, além de outros recursos

comunicacionais” (FRANCO, 2008, p. 61).

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“entendemos exposições como estratégias comunicacionais com lógicas e sentidos próprios,

relacionados com o processo de produção de fatos, eventos e bens sociais, reconhecidos pela

materialidade, revelando redes de relações entre acontecimentos, idéias e indivíduos” (p. 14).

Mas o que seria expor? Podemos dizer que esse fazer pode ser realizado a partir da

revelação, de representar aspectos de um determinado momento da história, de montar uma

proposta estética e política etc. Assim, concordamos com o pensamento deste autor quando

diz :

Expor é revelar, comungar, evidenciar elementos que politicamente precisam

se explicados, em uma perspectiva relacionada a um momento histórico,

uma produção estética, um ideal político. A exposição deve ser percebida

como “obra aberta”, alimentada e realimentada permanentemente, articulada

e articulando-se com outros elementos do sistema de conhecimento. Expor é

propor, daí seu caráter de abertura a debates e outros objetos [...].

Exposições caracterizam-se como um discurso, uma estratégia

informacional, em um contexto de comunicação, com narrativas realizadas

com o objetivo de transmitir/ou reforçar idéias, em uma proposta conceitual,

ao tempo que compõem, no caso de exposições museológicas, um projeto de

preservação de referências políticas, históricas e de dinâmicas culturais e

patrimoniais. Nesse sentido, as exposições museológicas devem ser pensadas

considerando-se suas inserções em cenários panorâmicos, o das políticas e

ações culturais públicas como resultado de processos históricos e

transformações sociais [...]. Não pode ser entendida como o fim de um

processo, mas como outros elementos e signos do sistema de conhecimento e

de poderes instituídos, um meio para a comunicação e transmissão de

conteúdos valorizados e trabalhados pela instituição museu (CUNHA, 2006,

p. 15-16).

Em uma exposição seleciona-se o que será exposto. Dessa forma, coloca-se tudo aquilo

que seu organizador acredita ser favorável à construção de seu argumento, sendo silenciados

muitas vezes conteúdos de grande significância. Outro fator seria esquecimento de um objeto

ou memória de maneira proposital, provocada por quem está à frente da montagem da

expografia. Visto sob essa perspectiva o museu pode se transformar em um ambiente

institucional dedicado a apresentação das diversas culturas. Entretanto, também pode se

transformar em espaço que oculta, exclui e esconde, subrepresenta ou estereotipa práticas

culturais.

Conforme destacou Marcelo Cunha (2006), quando se fala da cultura africana ou

mesmo do negro nos museus, naturaliza-se e resume-se, muitas vezes, à representação da

religião, da capoeira e do trabalho forçado no período escravocrata, com destaque para os

instrumentos de tortura usados nos mesmos. Entretanto, sabemos que as práticas culturais da

população negra não se resumem a esses aspectos.

Esse traçar da cultura afro, na maioria das vezes, não condiz com o que são as heranças

de matrizes africanas, com as diferentes contribuições para a cultura brasileira, por exemplo.

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Os museus, em regra, difundem um discurso doloroso aos olhos do público, evidenciando

uma visão negativa e por vezes racista que ganhou força no século XIX e que chega até

nossos dias. Ideal forjado no período escravocrata, em que eram apontados como seres não

civilizados, tratados como animais domesticados, servindo como moeda para trocas

comerciais e simbólicas.

Além disso, as religiões de matriz africanas são abordadas em diversas exposições

museológicas de maneira teatral, onde se dá ênfase ao “sincretismo religioso” e ao olhar do

colonizador. Sendo que os terreiros são poucos mencionados e valorizados, no decorrer das

diásporas, mesmo sendo um local de resistência e lutas. Outro aspecto é que muitas vezes não

se dá espaço aos lideres que estão vivos. Além disso, as culturas das populações negras são

tratadas em expografias de modo recorrente como “populares” e “folclóricas”

As práticas institucionais do Brasil revelam esforço permanente em negar

traços étnico-culturais que ponham em risco desejos de „modernidade‟,

„progresso‟ e „desenvolvimento‟ nacional, baseado em referências culturais

ditas „ilustradas‟. Os museus sempre estiveram a serviço deste projeto,

exibindo objetos testemunhos das culturas ditas superiores, modelos para a

formação de um caráter e personalidades que comportem modos e maneiras

„elegantes e civilizados‟. Objetos de culturas de negros [...] geralmente são

apresentados pelo viés do exotismo e da variação/deturpação dos padrões

superiores a serem seguidos, moldando-se, para tal, conceitos como cultura e

religiosidade popular, folclore, objeto etnográfico e manifestação de cultura

tradicional [...]. A religiosidade fica limitada à apresentação de informações

com ênfase no sincretismo. As religiões afro-brasileiras são apresentadas

como homogêneas, confundindo, inclusive, nas imagens apresentadas,

elementos que pertencem a estruturas religiosas e simbólicas diferenciadas,

padronizando as representações sobre as diversas práticas religiosas

africanas no Brasil [...]. Quanto às lideranças religiosas, a abordagem vem

envolta em tom memorialista, com referencias a pais e mães-de-santo já

falecidos, normalmente os fundadores das diversas comunidades religiosas,

sem menções às gerações recentes de líderes com suas novas formas de

atuação e busca de atualização de suas práticas [...]. É pouco mencionada e

valorizada a importância dos terreiros, ao longo da história das diásporas,

como centro de resistências e lutas, como espaços que possibilitaram a

manutenção, preservação e transmissão atualizada de elementos das culturas

africanas de geração a geração. A religião/divindades é um dos temas mais

explorados de forma teatralizada, sendo um dos que apresenta maior

possibilidade na elaboração de cenários e dioramas. [...]. As religiões afro-

brasileiras aparecem, na maioria das instituições pesquisadas, na perspectiva

do sincretismo, com o desenvolvimento de discursos que atrelam o

imaginário afro-brasileiro ao universo religioso católico [...]. No Memorial

das Baianas de Acarajé e Vendedoras de Mingaus, em Salvador,

encontramos imagens de Santa Bárbara relacionada à Iansã, orixá que está

ligada à produção, venda e consumo do acarajé, uma das iguarias a ela

destinada. Neste caso, a imagem traduz, de forma bastante forte, a

permanência do sincretismo em uma determinada prática cultural afro-

brasileira, não mais na perspectiva de ferramenta para escamotear práticas

religiosas proibidas (CUNHA, 2006, p. 68-85)

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A maioria dos museus brasileiros ao apresentar e representar em exposições a temática

das culturas negras ainda a resume à religião, sob a luz do sincretismo, ou a objetos

relacionados aos castigos que o negro escravizado foi submetido, possuindo ainda imagens

que representam as cenas de negras limpando as casas grandes, dos homens carregando

liteiras (também conhecidas como cadeira de arruar), trabalhando nas lavouras, nas sapatarias

sendo castigados com palmatórias contendo lâminas ou pregos etc.

Deborah Silva Santos (2014) no texto Apontamentos sobre as culturas negras nos

museus no século XIX analisou o modo como o “outro” africano e seus descendentes foram

construídos historicamente, levando em conta povos de origem asiática, indígena ou

americana. Destaca que do século XVI ao XIX a África se despoja dos elementos do reino

animal, vegetal, mineral e em grande quantidade homens e mulheres. Entretanto, a partir do

século XVII os ditos gabinetes de curiosidade começam a se transformar, vão abandonando a

característica de possuírem inúmeros objetos, visando outras formas de apresentação daquilo

que existia em locais longes e desconhecidos. Assim, nota-se que era necessário não somente

obter o objeto, mas investigá-lo, estudá-lo e organizá-lo por classificação, buscando explanar

o “mistério” da criação, interpretar os “outros”.

A pesquisadora informa que no século XVIII são construídos os museus como

instituições nacionais européias e responsáveis por abrigar as coleções da monarquia e

franquear o acesso ao público. Este século edifica a instituição museal, porém é o século XIX

que molda como são apresentados atualmente, chegando a atingir outras partes do mundo.

Nesse mesmo período são criados os museus de artes, o museu de história natural e museu

etnográfico:

O século XVIII criou o museu como instituição, mas foi o século XIX que o

moldou como hoje conhecemos e o proliferou para todas as partes do

mundo, como instituição de caráter enciclopédico, instalada em grandes

edifícios, com procedimentos científicos em relação à pesquisa, à

salvaguarda, à exposição, a preocupação com a educação e a relação com o

público, a especialização dos seus trabalhos e a segmentação por áreas de

conhecimento: artes, história natural e tecnologia. Os museus de arte

mantiveram a procura pelo „belo‟ estético e por obras clássicas e

introduziram o espaço para o ensino através das escolas de belas artes, dando

incentivo ao estudo e a produção, através das cópias dos artistas. O

desenvolvimento industrial e tecnológico do período criou a tipologia dos

museus de artes tecnológicas, que tiveram nas Exposições Universais, a

partir da segunda metade do século XIX, o seu maior incentivo, ao trazer

para a expografia questões referentes às exposições temporárias. Durante o

século XIX os museus de história natural investiram na formação dos

acervos, para isso organizaram expedições cientificas de coleta de acervo

que percorreram os territórios colonizados, com o objetivo de estudar seus

recursos naturais e seus habitantes, formando coleções referentes à botânica,

à zoologia, à mineralogia, à etnografia e à arqueologia que foram enviados

para os principais museus europeus. (SANTOS, 2014, p.95-96).

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Nesses termos a autora, relembra que em meados do século XIX os seres humanos eram

explicados de acordo com teorias pautadas nos determinismos biológico e geográfico, que

confirmavam a distinção biológica entre os homens devido à atribuição racial. Nesse patamar

estavam inclusos os museus etnográficos, onde os elementos africanos eram um dos acervos

privilegiados. Destaca essas questões no caso brasileiro, com a criação do Museu Nacional no

início do século XIX, chegando ao final do referido século com as destacadas presenças do

Museu Paraense Emilio Goeldi e do Museu Paulista, instituições difusoras dessas teorias no

Brasil. Essas instituições tinham por anseio organizar o conhecimento humano e um saber

“evoluído”, fazendo a classificação da coleção e influenciando no debates nacionais

indicativos ao desenvolvimento do povo brasileiro (SANTOS, 2014, p. 99). Segundo Deborah

Santos (2014), os museus, cada um deles ao seu modo, deram sua contribuição para a

divulgação no Brasil das teorias raciais no século XIX.

Ainda no rol dos estudos sobre a representação das culturas afro-diaspóricas nas

exposições museológicas, Raul Lody (2005) na obra O negro no museu brasileiro:

construindo identidades apresenta duas linhas de força voltadas para a atualidade: as

instituições museais e sua relação com a tradição e a gama de aspectos do negro na cultura e

no imaginário brasileiro.

O pesquisador investigou festas e coleções relativas às diásporas negras em diversos

estados brasileiros, com destaque para a Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas3. Dessa

maneira, ressalta que os objetos que adentram as instituições museológicas são frutos de um

procedimento de “feitura”, de utilidade e significações. Nesse sentido, destaca que grande

parte destes artefatos vem de uma longa jornada como “[...] rescaldo de apreensões policiais,

outros doados por intelectuais, outros doados pelos próprios usuários ou por pessoas delas

próximas” (LODY, 2005, p. 16-17).

A partir disso podemos estudar o estilo e as procedências das coleções. Esses são

elementos que poderão articular a apreciação, o estudo, fixar relações, para classificar grupos

e pode se auto-reconhecer, para definir regiões e idéias contribuindo para redefinir as relações

3 Raul Lody (2005) estudou inúmeras instituições museais, coleções e cidade, a exemplo da Coleção

Perseverança de Alagoas, Xangô pernambucano no Museu do Estado, Candomblé de Salvador: Coleção do

Instituto Geográfico da Bahia, Um museu inspirado em Gilberto Freyre, Coleção afro – pernambucana no Museu

do Homem do Nordeste, Arte africana no Museu Nacional de Belas-Artes, Arte dos povos bantu no Museu

Paraense Emílio Goldi, Coleção afro-maranhenses: Patrimônios dos terreiros mina-jeje e mina-nagô e das festas

de São Luís, Coleção da Fundação Freyre, Museu Théo Brandão e o xangô das Alagoas, Museu Arthur Ramos,

Museu Câmara Cascudo, Coleção angola de Luís da Câmara Cascudo, Museu do Ilê Axé Opô Afonjá, Coleção

do Museu Nacional (UFRJ), Instituto Feminino da Bahia, Museu Afro-Brasileiro de Laranjeiras, Sergipe, Pencas

de balangandãs no Museu Carlos Costa Pinto, Bahia, Museu Afro-Brasileiro (UFBA), Coleções afro-brasileiras

no Museu de Folclore Edison Carneiro. .

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entre a África e o nosso país. Entretanto, Raul Lody chama a atenção para que se modifique o

modo de apresentar esses fatos:

Ao mesmo tempo, vejo uma necessidade urgente de rever esse olhar

museológico perante o que se consagrou exclusivamente etnográfico. As

comunidades afrodescendentes reclamam e exigem suas representações nos

museus e também querem retomar testemunhos materiais de suas histórias,

sociedades, para retomar assim os objetos e suas funções, desempenhando

seus papéis, assumindo os verdadeiros significados (LODY, 2005, p. 18).

O pesquisador ainda destaca que mesmo depois do regime escravocrata, tanto a

memória quanto os objetos que representam práticas relacionadas ao negro no Brasil se

tornaram alvos da polícia e do meio político:

Também nas cidades de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e outras durante o

Estado Novo (1937), foram registrados abusos de autoridade policial,

resultado em invasões de terreiros e apreensão de objetos, levados, então,

para delegacias policiais, hospitais psiquiátricos e, posteriormente, utilizados

como documentos de marginalidade e loucura, resultantes da danosa mistura

de raças. Cinqüenta anos após perseguições institucionalizadas, uma geral e

aberta absorção social toma e retoma matrizes próximas de um ideário

africano/afro-brasileiro numa também estética do ser negro, porém as causas

transpõem a virtude do esteta e atingem fundamentação econômica, política

e social. Daí concepções e representações materiais sustentam patamares de

uma reafricanização, de um purismo africano ou ainda de uma busca dos

símbolos culturais de uma plural ação civilizatória africana. Também dessa

ação resultados próprios e assim afro-brasileirados geram motivações para

artistas plásticos, músicos, grupos de afoxé, blocos afro, escolas de samba,

artesãos de terreiros, lideranças políticas, além de um amplo processo

educativo sobre questões de uma historiografia de fundo social em vez da

épica e heróica história oficial de feitos e fatos de figuras notáveis e, quase

exclusivamente, agentes do poder e da dominação. Das relações

internacionais redefinidas após a descolonização acelerada da África na

década de 1960 e de movimentos ideológicos em busca das identidades

africanas e em sua diáspora, destacam-se a negritude e a Africanness, que

estimularam e apoiaram ideologicamente o surgimento de grupos

organizados de negros e também de não-negros mobilizados pela causa da

liberdade em seus patamares econômico, cultural e social (LODY, 2005,

p.24-25).

Ainda destacando alguns trabalhos representativos no campo da Museologia e das

diásporas negras, o trabalho de Myrian Sepúlveda Santos (2004) analisa as representações dos

negros em algumas coleções e museus brasileiros. O argumento inicial da pesquisadora é que

os museus afro-brasileiros situados em Salvador e São Paulo são pequenas portas abertas para

extensas modificações. Esses têm por objetivo expressar uma inovação na questão das

representações sobre o povo negro para um amplo público.

No entanto, destaca que muitos museus ainda reproduzem discursos que abrigam um

conteúdo que vai contra o mencionado acima. Myriam Sepúlveda faz uma análise dos

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conflitos e disputas que aconteceram nas distintas representações de negros que estão

presentes em determinados museus brasileiros, que, em ampla parte, são instituições oficiais

responsáveis pela salvaguarda da memória nacional. Para tanto, examinou o poder na

edificação dos diálogos sobre o passado, que significados são lembrados e esquecidos e qual a

afinidade dessas narrativas com métodos que induzem a desigualdades raciais e as

aproximações entre raça, memória e nação (SANTOS, 2004, p. 3).

Evidenciando o Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro destaca que existe

um silêncio em relação aos artistas negros, pois não se divulgam informações sobre os

produtores das obras. Diante disso, podemos dizer que as mesmas são apresentadas, mas a

história dos autores, sua raça, simplesmente deixa de ser exposta e inclusa no contexto:

O silêncio sobre raça pode representar a predominância de um imaginário

coletivo, comum, capaz de se impor ao conjunto de cidadãos,

independentemente de cor, etnia ou raça. Cabe a nós, entretanto, investigar

este imaginário comum e perceber em que medida ele traz hierarquia de

valores e elege padrões estéticos e produções culturais de um segmento

populacional em detrimento de outro. O que encontramos no Museu

Nacional de Belas Artes não é apenas o silencio sobre a natureza racial dos

autores das obras de arte. Os curadores dessa coleção não só silenciaram

sobre a identidade de autores negros, como também, ao logo da história,

ignoraram muitos deles, excluindo-os do seleto grupo que representa a arte e

intelectualidade brasileira. (SANTOS, 2004, p. 6).

Para a autora, na maioria das exposições, além do silêncio e da exclusão, o negro é

enaltecido em práticas como samba, carnaval e futebol, sendo esses aspectos mais citados nos

museus brasileiros:

O estereótipo criado de que os negros são bons em música e esportes

caminha junto com o de que eles são ineficientes como políticos,

empresários, industriais, advogados, médicos, engenheiros e demais

profissões de prestígio. Samba, carnaval e futebol fazem parte, portanto, de

uma memória da nação que não é freqüentemente reiterada nos museus, mas

em práticas populares. Ainda assim, no Museu da República, os curadores da

exposição „A Ventura Republicana‟, Gisela Magalhães e Joel Rufino dos

Santos, procuraram inovar as exposições museológicas, agregando ao acervo

tradicional encontrado no museu, praticamente todo ele relacionado aos

representantes das elites políticas e econômicas, objetos que fizessem jus à

contribuição dos excluídos: indígenas, sertanejos, e o povo das ruas. É no

módulo denominado „a rua‟ que encontramos a frase de Gilberto Freyre „O

brasileiro é negro nas suas expressões sinceras‟. A exposição traz para

dentro do museu a negritude do brasileiro que se configura no domínio da

rua em uma tentativa declarada de popularizar o discurso lá encontrado e

atrair mais público (SANTOS, 2004, p. 6-7).

A maioria dos museus brasileiros produz diálogos que possuem como característica o

silêncio sobre como o negro deu sua contribuição de maneira positiva para a edificação do

nosso país ou uma memória ativada a partir da escravidão. Assim podemos a partir dos

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apontamentos da autora ressaltar algumas exposições que narram o negro escravizado,

submisso, submetido à dor, aos castigos severos vividos a longo período de escravidão:

O Museu Imperial, por exemplo, que foi criado em 1940, durante o Estado

Novo, com a proposta de recolher, ordenar e expor objetos de valor histórico

ou artístico referente a fatos e vultos dos reinados de D. Pedro I e, de D.

Pedro II, trás pouquíssimos indícios da presença do negro na vida do

Império. Já o Museu Chácara do Céu, antiga residência de Raymundo Ottoni

de Castro Maya, transformado em museu em 1972, reúne uma rica coleção

de obras de arte, entre elas desenhos e gravuras de viajantes europeus que

documentam o Rio de Janeiro no século XIX, como Debret e Rugendas. Na

página eletrônica deste precioso Museu, encontramos duas imagens que bem

representam o negro brasileiro: escravos sendo castigados. O Museu

Histórico Nacional, instituição que procura retratar fatos e momentos

relevantes a história do país ao longo dos séculos, traz imagens do negro que

fazem com que ninguém queira com ele se identificar. Há na exposição

„Colonização e Dependência‟ uma narrativa evolutiva de um processo

econômico que se estende desde as grandes navegações, comércio colonial,

ciclos da cana de açúcar, do café e da mineração até a abertura dos portos e

imigração. Quando chegamos no trecho relativo às plantações de cana de

açúcar encontramos uma grande maquete de um engenho, onde vemos

negros escravos trabalhado e ao lado a figura de um negro com uma

gargalheira. Em frente às vitrines dois troncos imensos sinalizam que negros

eram colocados ali por castigo. No ambiente neutro em que são mostrados

estes objetos, eles tendem a cumprir a função de banalizar os açoites, as

chicotadas, o trabalho forçado, a separação de famílias, o aviltamento a que

foram submetidos os escravos (SANTOS, 2004, p. 11).

Ainda sobre a representação dos negros nos museus brasileiros, Joana Angélica Flores

Silva (2015) faz uma análise destacando a perspectiva de gênero nos museus de Salvador. Seu

trabalho destaca como as mulheres negras vêm sendo representadas nos museus de tipologia

histórica em Salvador4. Dessa forma foi analisada metade da expografia de longa duração, do

Museu do Traje e do Têxtil do Instituto Feminino da Bahia, que narra o universo feminino no

argumento da moda, no século XIX.

A pesquisadora reconhece que o Museu do Traje e do Têxtil produz uma ideologia

representativa que não favorece as igualdades de gênero e racial. Assim afirma que exposição

museológica contribui para a discriminação de raça. As mulheres negras representadas nos

museus históricos de Salvador são apresentadas no contexto expositivo com eliminação de

“cenários construídos, vividos e vivenciados", edificando a representação de um

conhecimento que dá ênfase a desvalorização que elas ainda enfrentam (SILVA, 2015, p. 5).

4 Sobre esse artigo usando como referência bibliográfica podemos dizer que Joana Angélica Flores Silva (2004)

estudou museus de tipologia histórica em Salvador, buscando identificar como as mulheres negras estão sendo

retratadas nesses espaços museais com destaque para a expografia de longa duração do Museu do Traje e do

Têxtil, do Instituto Feminino da Bahia, ressaltando a moda feminina no século XIX.

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[...] Utilizando-se do recorte da exposição do Museu do Traje e do Têxtil,

podemos aferir onde o universo feminino se destaca pelas roupas e modos de

convivência no cotidiano das mulheres desse período. No espaço expositivo,

as manequins de cor branco abrigados em vitrines, se encontram dispostas

em ambientes, donde vê-se a dinâmica dos passeios, das festas, das relações

maternais etc. em contraponto com as peças que ilustram a única vitrine

composta por manequins na cor preta, cujos trajes representam as mulheres

escravizadas, não evidenciando uma proposta de visibilizar a também

participação das Mulheres Negras na construção política, econômica e social

do país. A disposição espacial dos suportes escolhidos pelo Museu incentiva

à prática de uma leitura, cujo contraste social retira dos objetos históricos (os

trajes), a sua gama de informação que vai além do simbólico e que podem

influenciar na omissão de fatos históricos, silenciados-quando não

modificados à revelia pela historiografia oficial - o que deixa o público

visitante à mercê da história dos grupos sociais que formaram a sociedade

brasileira e baiana do século XIX, apresentada de forma fragmentada e

parcial. Nesse contexto, é que o contraponto do diálogo em branco e preto,

toma o lugar de enunciado na exposição: de um lado, a somente existência

de brancas, economicamente bem sucedidas, do outro, negras que viveram

desprovidas, economicamente. A exposição não contempla nos seus

discursos as questões políticas, econômicas, sociais e também afetivas que

fizeram parte dos cotidianos desses indivíduos, naquela sociedade. São as

cores, em meio ao universo da moda, que o branco e o preto por si só,

demarca e historiciza o universo das Mulheres Negras nessa exposição.

(SILVA, 2015, p. 5-6).

As instituições museológicas, em grande parte, produzem amostras de mulheres negras

como servas da comunidade, em todos os séculos. A negra é associada, como diz Joana Silva,

a “[...] uma figura simbólica, alusiva à imagem de mulher forte, cuidadora dos (as) frágeis e

desprotegidos (as), legitimando o imaginário cultural coletivo que atribui a essas mulheres, o

papel único de impossibilitada de pensar” (SILVA, 2015, p. 7). O negro ainda possui destaque

através do seu corpo, que foi utilizado artisticamente e também usado por muitas instituições

museais para com o mesmo fim, contribuindo para um discurso sexual e racista:

Numa abordagem que discorre sobre a participação do museu como espaço

de representação e poder, podemos afirmar que a exposição construída a

partir das narrativas artísticas que caminham dos manequins aos textos, do

início ao final do circuito expositivo, onde em meio ao universo da moda a

carta de Carlos Gomes à Princesa Isabel dá o toque final para o lugar que ali

está a Mulher Negra, nele é demarcado e legitimado a sua condição também

nos dias atuais, quando os seus trajes se contrapõem às vestes da mulher

branca que supostamente lhe deu a liberdade (SILVA, 2015, p. 8).

Resta-se a dúvida de que se foi representada a moda do século XIX na exposição do

Museu ou se a partir dali se forma outra expografia, onde as negras seriam vistas de maneira

inferior, pois usavam roupas fabricadas com tecidos considerados inferiores aos das mulheres

brancas. Nesse aspecto, quando não são silenciadas, muitas vezes, são sub-representadas nas

exposições museológicas.

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As pesquisas aqui apresentadas consistem em indícios de como os museus brasileiros,

salvo raras exceções, têm representado às culturas afro-diaspóricas. Analisando a

representação dos povos negros e das diásporas nos museus observamos a existência de

tensões que no passado e presente marcaram impossibilidades e imprecisões em meio à

confrontação entre narrativas e idéias culturalmente diferentes. As exposições em museus

brasileiros, ao edificarem simbologias acerca das culturas afro-diaspóricas, apresentam, em

grande parte, um discurso onde à predominância referencial e o capital simbólico está ligado a

uma visualização de mundo ajustadas ao ocidente branco.

Podemos afirmar que no século XIX as culturas dos povos negros estavam formadas nas

ações de salvaguarda e análise dos museus, como “os outros”, o diferente e o estranho. As

instituições daquela época, ao apresentarem características enciclopédicas, apresentavam uma

cultura material da população africana relacionando-a aos determinismos biológico e

geógrafico. Todavia, ainda hoje o negro é silenciado quando representado na maioria dos

museus brasileiros. Quando ganha um destaque é por meio da religião, apontada como parte

da resistência do negro, constantemente perseguida, sendo esta uma forma de luta para que

tivesse seu espaço, o real reconhecimento, a valorização e, principalmente o respeito que

merece.

As pesquisas aqui apresentadas destacam que na maioria das exposições o negro é

resumido à religião, a capoeira, ao samba, ao futebol, sendo ainda representado na expografia

museal como submisso, reforçando uma narrativa que apresenta o domínio do branco sobre os

mesmos. Além disso, o lado artístico, a literatura, a política, entre outros, são aspectos que

envolvem o negro, mas que são excluídos, esquecidos, silenciados muitas vezes nesses

espaços de poder e representação.

Entretanto é preciso ressaltar que muitos museus não abarcam as questões políticas e

sociais que podem ser recuperadas a partir de seus acervos. Eles ainda reforçam os símbolos

da escravidão, por exemplo. As narrativas reafirmam a desigualdade, que assola não somente

o espaço de interação entre homens e mulheres negras representados na exposição,

contribuindo para que suas culturas sejam difundidas de maneira preconceituosa.

1.2 A exceção como enfrentamento: outros itinerários possíveis

Mesmo com tantas instituições museológicas que tentam representar o negro (a) em

suas expografias se conclui que falta muito para observarmos uma representação igualitária e

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respeitosa. A partir da conscientização de que o povo africano contribuiu para com a

construção da identidade cultural brasileira poderemos notar as iniciais mudanças no campo

das exposições, pois não são somente os indivíduos que as observam precisam mudar seu

ponto de vista, mas quem as fabrica, eliminando um olhar preconceituoso que formula

memórias seletivas que desfavorecem uma raça e silencia práticas culturais tão importantes.

Nesse aspecto, algumas experiências vêm sendo realizadas em diversos museus brasileiros

visando construir itinerários alternativos de representação das diásporas negras.

Seguindo esse entendimento, convêm observarmos as discussões de Joseania Miranda

Freitas e Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha (2014) na análise da exposição de curta

duração “Exu: outras faces”, no Museu Afro-Brasileiro de Salvador, realizada no ano de

2013. Visando problematizar os bens afrobrasileiros na cidade de Salvador/BA, realizam um

estudo a partir da exposição apontando os aspectos considerados por ela eficazes e de extrema

valia para desmistificar algumas ideias preconcebidas sobre esse orixá. Essa expografia tinha

como propósito inovar o olhar do público, como também fazer com que as pessoas pudessem

se auto-identificar com a sua cultura, além de produzir a diversidade das faces dos Orixás sem

ocasionar desconforto ou mesmo atitude voltada para o preconceito.

Não muito diferente de outras cidades, Salvador mesmo possuindo muitos adeptos e

simpatizantes das religiões afro-brasileiras ainda se torna palco para manifestações de

intolerância religiosa e discriminação racial:

A cidade de Salvador é conhecida por sua forte herança africana, traduzida

em grande parte por representações relacionadas às matrizes religiosas.

Ainda assim, a cidade, como outras partes do mundo, tem passado por um

forte processo de intolerância religiosa. Nas últimas décadas tem crescido o

número de organizações neopentecostais, com diversas denominações e

filiações, que dão continuidade aos apelos preconceituosos do cristianismo,

observados ao longo da história, em relação às religiões de matriz africana.

Ainda que grande parte dos adeptos convertidos a estas novas igrejas seja de

afrodescendentes, práticas relativas às religiões de matriz africana têm sido

vistas como expressões satânicas. Estas ideias têm se difundido através de

pais e educadores que repetem para seus filhos e alunos imagens que

demonizam divindades e práticas do candomblé, elaboradas a partir dos

discursos de suas lideranças religiosas, realizados nas igrejas e meios de

comunicação, marcados por atitudes de perseguição moral, que imprimem

nos fiéis a intolerância que, semelhante à antiga perseguição policial aos

terreiros de candomblé, que durou até o terceiro quartel do século XX no

Brasil, impedem o acesso ao conhecimento da diversidade cultural da

sociedade (FREITAS, CUNHA, 2014, p 193)

A exposição aderiu a escolha do Orixá Exu para iniciar novas expografias que

dialoguem, mostrando inúmeros olhares em relação às heranças deixadas pelos negros

africanos, expostas no desenvolvimento religioso e reveladas em muitas línguas. Aqui é

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importante destacar como os curadores organizaram a exposição sobre Exu e suas respectivas

faces:

Corpo - A energia de Exu permite ao corpo humano vivenciar descobertas e

aprendizagens. Esta energia promove o despertar da alegria, do desafio, do

prazer e das escolhas que marcam os destinos de cada pessoa. Línguas - Exu

possui o conhecimento de todos os idiomas conhecidos, desconhecidos,

desaparecidos ou pouco utilizados, característica que aproxima pessoas,

constrói ideias e tudo que envolve o falar. Artes - O fazer artístico no mundo

material é uma das possibilidades de manifestação de Exu. A sua forte

energia impulsiona processos artísticos, tais como: música, canto, dança,

pintura, escultura, arquitetura, teatro, poesia, literatura e cinema. Escrita - A

comunicação, oral ou escrita, é a característica principal de Exu. A

transmissão de informações em diversificados modos constitui-se num

campo de possibilidades de manifestação de Exu. Tecnologia - Tudo que é

relacionado à tecnologia e ao movimento está também na essência de Exu,

pois ele é o intermediário para a criação de artefatos tecnológicos. Caminhos

e Continuidade - Exu apresenta as possibilidades de recomeço ou de

renovação, para que a vida possa ter continuidade. Exu é impulso da vida em

sua complexidade. É energia vibrante que estimula as pessoas a perceberem

a importância da vida, valorizando os momentos vividos em plenitude. Exu,

em suas diferentes faces, direciona o ser humano a experienciar a vida com

intensidade (FREITAS, CUNHA, 2014, p.198)

Segundo os pesquisadores essa exposição de curta duração “por suas características de

implicação com a realidade social de intolerância às religiões de matriz africana, representou

uma atitude política ao defender os direitos constitucionais de liberdade religiosa” (FREITAS,

CUNHA, 2014, p. 205).

Ainda destacando outra iniciativa no Museu Afro-Brasileiro de Salvador é possível

registrar as ações museológicas em torno das coleções sobre a capoeira. Joseania Miranda

Freitas, José Joaquim de Araújo Filho e Jean Herbert Batista Brito (2013) analisam no texto

“A capoeira dos mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no acervo do Museu Afro-

Brasileiro da UFBA” a coleção voltada para esses mestres da Bahia que atuaram no século

XX, sendo este um período onde a capoeira era vista como um ato marginal.

O Mestre Pastinha ressaltava sua vontade em ver a capoeira reconhecida como parte

do patrimônio cultural do Brasil, além de se ter o devido cuidado com as atitudes para

preservar a mesma, para que não fosse silenciada, perdida no decorrer do tempo. A capoeira é

um dos legados culturais da diáspora negra, reúne informações musicais, os instrumentos, a

voz, o movimento do corpo dos indivíduos em roda, que alguns denominam como dança, luta.

A coleção do Museu Afro-Brasileiro reúne elementos que testemunharam a capoeira

jogada no século XX na Bahia, através dos Mestres Pastinha (Vicente Joaquim Ferreira

Pastinha), Bimba (Manoel dos Reis Machado) e Cobrinha Verde (Rafael Alves França). É

dada ênfase a dois feitios considerados de grande importância na construção dos

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agrupamentos dos elementos dos mestres. A princípio, os próprios líderes da capoeira

estavam atentos e guardavam documentos, fotografias, carteiras das academias, registros feito

por alunos, livros, papéis, entre outros. Já o segundo aspecto encontra-se na preservação das

peças, sendo os herdeiros os responsáveis por confiar e entregar os objetos a uma instituição

museológica entre os anos de 1983 e 1984 (FREITAS, FILHO, BRITO, 2013,).

A atuação dos pesquisadores nessa coleção contribuiu para que fosse possível criar

contextos que dessem direção ao entendimento dos inúmeros assuntos vivenciados por

Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde, por exemplo, de maneira que revelasse coisas sobre a

existência dos seus objetos antes da transferência para o espaço museológico:

O estudo das peças da coleção exigiu o estabelecimento de nexos entre os

artefatos - produtos da cultura material, sua vida anterior e sua

transformação em objetos museológicos - e as diversas memórias,

registradas ou não, sobre a vida de cada mestre, sobre a formação das

coleções por cada família e suas diversas histórias, individuais e coletivas.

Ao final do processo a coleção passou a ter um caráter autobiográfico,

apresentando uma série de dados que levaram à identificação de cada mestre,

com a explicitação de suas diferentes formas de praticar e registrar a

capoeira, sendo necessário, portanto, subdividi-la, com seus nomes [...]

(FREITAS, FILHO, BRITO, 2013, p. 179).

Os três Mestres negros lutaram contra o racismo, o preconceito e demonstrou o quanto

a capoeira tinha extenso significado para quem a conhecia e sabia seu valor histórico cultural.

O estudo dos objetos dos Mestres foi um meio de gerar uma via de comunicação. Nesse

sentido, as duas exposições apresentadas, embora dialoguem com temáticas tradicionalmente

associadas ao universo afro-brasileiro não apresentam uma visão estereotipada, estimulando,

desde a sua inauguração em 1982, leituras críticas que possibilitam reconhecer as diferentes

contribuições dos povos descendentes das diásporas negras.

Ao continuar a narrar o contexto sobre contribuições em expografias em museus pode-

se dizer que Emanoel Araújo teve a satisfação em pode ir à frente realizando seus trabalhos e

produzir uma mostra cultural conhecida como “Vozes da Diáspora” no ano de 1992, quando

ele se tornou diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo. A expografia seria entorno dos

objetos africanos e referentes aos pintores negros que viveram no século XIX.

Outro exemplo significativo consiste na atuação do Museu Afro Brasil, inaugurado em

2004 na cidade de São Paulo sob a curadoria do artista plástico baiano Emanoel Araújo. O

local se tornou uma referência, pois desenvolveu exposições que abarcavam a cultura negra,

como por exemplo, a expografia “A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e

histórica” que se tornou muito conhecida e utilizada como referência:

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A obra enfatiza as artes visuais sem descurar de outras expressões artísticas a

exemplo do Teatro Experimental do Negro abordado por Abdias

Nascimento. A entidade não apenas instaurou um novo ponto de vista no

que concerne a representação dos afro-brasileiros como também se dedicou a

um trabalho de base visando letramento e qualificação profissional da

população negra. O TEN, como ficou conhecido, possuía uma dimensão

estética e política sem precedentes na história da cultura brasileira no que

concerne a afirmação de uma identidade negra construída a partir do próprio

segmento em oposição às identidades a ele atribuídas (SILVA, 2013, p.41)

No Museu Afro Brasil trabalha-se com as nações Ketu, Jejê e Angola, além de

ressaltar o culto de Babá Egun. A curadoria quis provocar o olhar do visitante expondo no

local as múltiplas faces das religiões afro-brasileiras. O Museu Afro Brasil pode ser

considerado um lugar que valoriza a cultura afro-brasileira. Nesse sentido, se as ações em

debates não modificam o quadro da mobilidade da sociedade, provocam interferência na

construção simbólica, na medida em que colocam em discussão nacional aspectos que

historicamente foram silenciados (SILVA, 2013).

Diante dos diversos exemplos apresentados neste capítulo concluímos que as

populações afro-brasileiras precisam ter voz ativa e que essa voz adquira ressonância nos

museus brasileiros. Suas práticas culturais devem ser evidenciadas e suas obras e legados

apreciados. Nesse sentido, a presença dos herdeiros e das heranças das diásporas negras não

deve figurar apenas como tema das exposições. Acreditamos que os próprios agentes

representados devem se tornar protagonistas nos processos museológicos, configuração que só

recentemente começa a modificar. Para tanto, visualizaremos nos próximos capítulos a

poética e a política em torno dessas problematizações tendo como estudo de caso o Museu

Afro-Brasileiro de Laranjeiras-SE.

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2. MUSEU AFRO-BRASILEIRO DE SERGIPE: ENTRE MARCAS

DA ESCRAVIDÃO, CORES, CHEIROS E SABORES DO AXÉ

“Sou negro na raça, no sangue e na cor

Um guerreiro beija-flor

Óh minha deus soberana

Resgata sua alma africana”.

(Samba enredo da Beija-Flor, 2015)

O intuito deste capítulo é apresentar o Museu Afro-Brasileiro de Sergipe, situado na

cidade de Laranjeiras distante a 18 quilômetros de Aracaju, capital do Estado. Visualizaremos

o modo como congrega algumas das principais discussões sobre a representação das culturas

negras nas exposições museológicas demonstrando uma ambigüidade ao fomentar um

discurso da escravidão e, ao mesmo tempo, tentativas de articular saberes e fazeres

significativos para a comunidade afro-brasileira em Laranjeiras.

Apesar de ser a primeira instituição museológica com a nomenclatura Museu-Afro-

Brasileiro (bem anterior aos museus de Salvador e São Paulo), o Museu Afro-Brasileiro de

Sergipe, fundado em 1976, é herdeiro de um conjunto de práticas museais que buscam

representar as culturas negras, muitas inventariadas pelo museólogo Raul Lody (2005).

Embora não seja o primeiro museu brasileiro voltado para essa temática, o Museu Afro-

Brasileiro de Sergipe consiste em uma experiência significativa nesse campo de produção

simbólico.

O Museu Afro-Brasileiro de Sergipe surge com uma coleção eclética, com peças que

variavam de artesanato a objetos de terreiro. Porém, a maioria desses objetos não era

proveniente de Laranjeiras, foi produzida em regiões próximas e representavam uma parcela

das culturas negras em Sergipe. Anos mais tarde novos objetos são incorporados ao acervo,

bem como alguns deixaram de fazer parte das exposições museológicas.

Segundo Verônica Nunes (1993), Laranjeiras tornou-se Vila em 1832 e foi elevada a

cidade no ano de 1848. Rapidamente foram edificados os templos religiosos, os trapiches, o

mercado, teatro, entre outros, para que suprissem as necessidades de uma cidade que crescia

rapidamente:

Geograficamente localiza-se a uma altitude de aproximadamente 8 metros

acima do nível do mar, na região Centro-Sul do Estado de Sergipe, incluída

entre os municípios da baixa região do Cotinguiba. Limita-se com

municípios de Riachuelo (Norte), Nossa Senhora do Socorro (Sul), Maruim

e Santo Amaro (Leste) e Areia Branca (Oeste). Sua área é de 191 km²

(NUNES, 1993, p. 20).

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Laranjeiras se tornou um local de grande relevância sócio-cultural no século XIX.

Sustentou-se economicamente através da “agro-indústria canavieira” e também por meio do

comércio, aumentou a diversidade de ocupação, e a população, principalmente em meados do

século, conseguiu adapta-se a um jeito de viver urbanizado que se manifestou nos “[...] usos,

hábitos sociais, nas reuniões familiares, nas manifestações literárias etc., espelhando os

padrões e valores culturais da corte ou mesmo da Europa” (NUNES, 1993, p. 20). Destacam-

se, nesse sentido, a implementação das aulas de francês no ano de 1878, a fundação do Liceu

Laranjeirense, dos gabinetes de leitura e dos clubes, como o “Democrata” de 1887 e o

“Republicano” (NUNES, 1993, p. 20).

O açúcar foi o responsável pela grande concentração de negros na Província. Segundo

Beatriz Dantas (1988), a riqueza de Laranjeiras vinha, principalmente, do açúcar que era feito

nos engenhos situados em diversos locais do vale do Cotinguiba. Esse fato contribuiu para

uma vasta concentração da população negra, a maioria composta de africanos escravizados e

seus descendentes, e pelo florescimento e consolidação de um conjunto de práticas culturais e

religiosas de matriz africana.

A maioria dessas práticas culturais e religiosas, ao longo do tempo, foi definida por

alguns intelectuais como expressões significativas do folclore e da cultura popular (Cf.

DANTAS, 2013). Na segunda metade do século XX, surge uma preocupação em criar

condições para a preservação e promoção dessas manifestações. Segundo Verônica Nunes

(1993), existe um relatório5 que destaca a necessidade da criação de mecanismos para

salvaguardar tais práticas:

A ação do poder público poderia sustar alguns dos fatores que atentavam

contra a sua continuidade, estabelecendo as providências para a proteção: 1-

„estudo e a documentação do folclore laranjeirense nas suas múltiplas

manifestações, procedendo-se a coleta de artesanato, gravação de som e

imagem‟. 2- „proteção e incentivo às manifestações folclóricas de interesse

turístico, inicialmente através da ajuda financeira e organizacional, no

sentido e que evoluam para a criação de uma base econômica e associativa

estável dos referidos grupos. „Essa intervenção deveria repousar em bases

científicas e numa atitude de respeito às manifestações folclóricas, a fim de

que não se adulterem as formas espontâneas da criação popular, o que se

constituiria numa ação lastimável‟. 3- „caráter educacional, que visa à

criação de uma consciência pública, que favoreça a defesa, o estímulo e a

concretização dos fenômenos folclóricos, relativos a festa, danças, folguedos

populares arte e artesanato‟ (In: NUNES, 1993, p. 29).

Além disso, também foi feita a sugestão de edificar um Centro Folclórico que

associasse, classificasse, e realizasse o estudo, “a documentação, a proteção, a promoção, a

5 Relatório elaborado pela comissão do levantamento do patrimônio de Laranjeiras. Decreto de 27 de março de

1972.

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valorização e a divulgação das manifestações folclóricas” (NUNES, 1993, p. 29). Nunes

(1993) informa que não foi possível colocar em prática a criação desse centro, todavia tais

recomendações contribuíram para a criação de um encontro cultural, no ano de 1976, em

Laranjeiras. Os envolvidos questionaram o momento de realização, ou seja, em maio, pois

estaria fora do contexto dos festejos da cidade, além de ser um período chuvoso e de plantio

nesse município. Todavia, foi estabelecido que em maio fosse realizado o que foi chamado de

“Encontro Cultural de Sergipe”, onde ao passar do tempo substitui-se o termo Sergipe, por

Laranjeiras, sendo este até os dias de hoje.

Depois das negociações entre a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, o

Governo do Estado/Secretaria de Educação e Cultura e a Prefeitura Municipal de Laranjeiras,

foi realizado o I Encontro Cultural, deixando estabelecido que o segundo ocorreria no mês de

janeiro, pois poderiam aproveitar os festejos a São Benedito.

Segundo Verônica Nunes (1993), o I Encontro Cultural realizou a aproximação da

cultura erudita e da cultura popular, culminando com a inauguração do Museu Afro-Brasileiro

de Sergipe em 1976 que tinha por finalidade preservar os aspectos da cultura afro-brasileira e

dispunha de uma expografia que apresentava a cultura popular na área do artesanato.

Entretanto, é preciso ressaltar que não havia objetos das religiões afro de Laranjeiras, mas sim

peças de um terreiro situado em Aracaju. Quanto aos objetos de artesanato, os mesmos não

eram os produzidos na cidade. Esses vieram de cidades distintas de Sergipe. Com o Encontro

Cultural e a criação do Museu-Afro, afluíram para a cidade estudiosos de diversas áreas,

produzindo publicações e estimulando apresentações das manifestações culturais das diversas

cidades do Estado, que fizeram as ruas de palco, contribuindo para que Laranjeiras se tornasse

referência no estudo e promoção da cultura popular, conforme relatou em entrevista6 Izaura

Julia, ex-diretora do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe e que ficou a frente da instituição por

23 anos:

O ano de 1976 que a gente considera o primeiro Encontro Cultural de

Laranjeiras né? É o primeiro Encontro digamos assim academicamente

montado né? E estruturado como um todo, tanto que teve a inauguração do

Museu Afro, mas o Encontro Cultural já existia antes né? Por que o

Encontro Cultural nasce em cima da quermesse que Laranjeiras tinha e que

era bastante conhecida e movimentada dentro da cidade com grupos

6 A entrevista com Izaura aconteceu em meados de 2014, integrando um documentário sobre os 40 anos do

Encontro Cultural e Museu Afro- Brasileiro de Sergipe em janeiro de 2015, vídeo organizado por graduandos em

Museologia (Bacharelado) da Universidade Federal de Sergipe. Junto ao documentário foi realizada uma

exposição de curta duração no museu. Os alunos que participaram da fabricação do documentário: Jislaine

Santana, Roberto Fernandes, Valéria Oliveira, Sendy Matos. Filmagem, Direção e roteiros de Robson Silva e

coordenação do projeto e da disciplina de Expografia I a professora Priscila Maria de Jesus. O nome do

Documentário é “Entre Falas e Cenas: Memórias do Encontro Cultural de Laranjeiras” e está disponível no

Youtube no endereço tal: www.youtube.com/watch?v=CUFZFFR_flk

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folclóricos, com feirinha na praça, com a missa e com essa coisa toda, com a

ida da Chegança para o porto né? Com reverência a São Benedito e Nossa

Senhora do Rosário. Então essa relação da quermesse é que leva um grupo

de pesquisadores na época liderado pelo professor Luís Antônio Barreto a

criarem um Encontro junto com a professora Beatriz e professora Aglaé

voltado para questão da cultura popular e a cultura popular por que? A

cultura popular é o berço, a base da cultura de Laranjeiras.

O Encontro Cultural modifica Laranjeiras nos três dias de sua realização, pois o

movimento pelas ruas é intenso, se torna um local de estudo, um “fórum” sobre o meio

cultural. Além disso, ao longo do ano os grupos culturais e os pesquisadores realizam ações

tendo como eixo condutor o encontro. O encontro se tornou estímulo a trabalhos sobre os

grupos de cultura popular e as religiões afro em Laranjeiras, além dos anais publicados nos

dois primeiros anos (NUNES, 1993). A cidade respira cultura negra e popular não somente

nesses dias de festas, mas cotidianamente com seus grupos e espaços dedicados aos mesmos,

estando o Museu Afro-Brasileiro de Laranjeiras atrelado a esse contexto difundindo uma

vertente de leitura das culturas e do patrimônio afro-brasileiro.

Fig. 1 – Fachada do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe. Foto: Jislaine Santana, 2016.

Especificamente sobre o Museu Afro-Brasileiro de Sergipe existem alguns trabalhos

acadêmicos abordando diferentes aspectos de sua trajetória. Muitos ressaltam a expografia,

outros relatam o estudo de uma coleção do museu ou analisam a representação do negro na

instituição museal.

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A dissertação de Verônica Maria Meneses Nunes (1993) aponta de forma sucinta o

Museu Afro-Brasileiro de Sergipe, pois faz um apanhado do que ocorreu na cidade de

Laranjeiras quando se começou a pensar em realizar o primeiro Encontro Cultural, assim, a

mesma ressalta a inauguração do museu junto a esse grande evento cultural. Em quatro

capítulos, Nunes (1993) trabalha a articulação entre a memória e a cidade de Laranjeiras

apresentando os aspectos históricos, as manifestações populares e o Encontro Cultural,

adentra nas questões do patrimônio cultural, a cidade como patrimônio histórico, as

manifestações culturais populares e o patrimônio, a cultura oficial e a cultura popular, os

conceitos vistos pela comunidade e pelos funcionários da cultura e, por fim, o encontro e

desencontro: a gestão cultural.

Verônica Nunes (1993) ressalta que foi realizado um programa denominado

“Programa de Restauração de Cidades Históricas do Nordeste” e a cidade de Laranjeiras

passou a integrá-lo. A Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia construiu a

proposta de trabalho intitulada Plano Urbanístico de Laranjeiras. Ação realizada em 1975,

tendo por foco restaurar os monumentos da cidade e promover uma linha de preservação dos

edifícios na Rua Direita do Comércio (atualmente chamada de José do Prado Franco) e como

também das igrejas situadas em Laranjeiras.

Um desses imóveis consiste na residência Achiles de Oliveira Ribeiro que,

posteriormente, foi vendida ao Município. A denominação do lugar é uma homenagem ao

laranjeirense Achiles de Oliveira Ribeiro, ministro do antigo Tribunal de Apelação de São

Paulo. O plano de restauro tinha por objetivo instalar nesse imóvel o Museu do Folclore,

entretanto optou-se pela criação do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe-MABS.

Raul Lody (2005) destaca resumidamente a cidade de Laranjeiras, seu “patrimônio

artístico-cultural”, a sua fundação no Vale do Cotinguiba. Sublinha o século XIX como

período em que a cidade usufruía da mão de obra escrava e seu poder econômico voltava-se

para a monocultura da cana-de-açúcar, registrando a existência de cerca de 70 engenhos de

açúcar, fábricas de aguardentes e charutos, e um porto movimentado que recebia embarcações

de inúmeros locais. Segundo o autor, o Museu Afro-Brasileiro de Sergipe foi criado em

janeiro de 1976 e passou a ser oficializado em fevereiro desse mesmo ano através do Decreto

nº 3.339.

A exposição apresenta elementos ligados aos negros africanos na região e a influência

do “sincretismo religioso”. O açúcar e o tabaco são objetos que ainda tem uma intensa

apresentação na formação do patrimônio cultural de Laranjeiras, parecido com o do

Recôncavo da Bahia (LODY, 2005, p. 196). Raul Lody diz que: “[...] assim, o museu

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concentra seu acervo nas questões religiosas do xangô em Sergipe e também do candomblé

baiano migrado e incorporado às características religiosas do Estado” (p. 196).

O autor ainda enfatiza a construção da expografia, especificamente o peji7, que busca

edificar um argumento de promessa e “hierarquizado” de acordo com intuições regionais que

ligam o habitual nagô à incidente de distantes fontes voltadas para o meio religioso, como a

umbanda, e até mesmo às festividades com prestígio na cidade, como “as taieiras, por

exemplo, bem como manifestações populares e tradicionais, profundamente religiosas”.

(LODY, 2005, p.196).

Ainda sobre alguns textos relacionados ao Museu Afro, o artigo intitulado A lei federal

10.639/03 e o museu afro-brasileiro de Sergipe (MABS) e produzido por Laedna Nunes

Santos, Elizabete Mendonça e Wellington Bonfim (2012) relaciona essa lei com a instituição.

Segundo os autores, a Lei Federal 10.639, aprovada em 9 de janeiro de 2003 diz no artigo 26-

A que “[...] nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,

torne-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”:

No ano de 2003, mais uma iniciativa desta natureza foi instituída; dessa vez

no âmbito federal. A Lei 10.639/03 surge na perspectiva de desconstruir, de

forma mais abrangente, essa versão eurocêntrica e estigmatizada da história

do negro no Brasil; principalmente enfatizando a participação do povo

africano na formação da identidade nacional (SANTOS, MENDONÇA,

BONFIM, 2012, p. 41).

O texto descreve o surgimento do Encontro Cultural de Laranjeiras até chegar na

inauguração do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe, baseando-se no que diz Verônica Nunes.

Ao apresentar os nomes dados as salas da instituição, citando alguns objetos que compõem os

espaços, realizam uma crítica a expografia, alegando que ela constrói um passado que

desfavorece o povo negro. Concluem que a exposição minimiza o lado positivo do mesmo,

chegando a silenciar grandes aspectos, até mesmo a questão da construção da identidade do

povo brasileiro:

Para alguém de ascendência africana, nada seria mais prazeroso e

gratificante do que percorrer aqueles espaços e poder reconhecer naquelas

representações, parte de sua própria história. Seria... Porém, o que se percebe

é que a expografia do MABS evoca um passado da população negra

desnecessário aos olhos e, que por outro lado, silencia sobre aspectos mais

positivos, sobretudo com relação à contribuição deste grupo para a formação

da nossa sociedade; evidenciando contradições e reforçando ideologias. As

sensações obtidas ao adentrar e percorrer cada sala, cada módulo expositivo,

só reitera a ideia de que a história do negro se resume apenas a servidão;

7 O Peji é um local sagrado que abriga o altar onde são colocados os assentados de orixás, esculturas de santos da

Igreja Católica e de Orixás, como por exemplo, São Jerônimo, Nossa Senhora da Conceição, Iemanjá, entre

outros. Nele também são colocadas oferendas para as divindades.

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panorama tão recorrente na historiografia brasileira referente a este grupo

brasileira (SANTOS, MENDONÇA, BONFIM, 2012, p. 45).

Nesses discursos, para se aplicar a Lei Federal 10.639/03, crê-se que os museus que

possuem o objetivo de preservar os bens patrimoniais afro-brasileiros possuem uma enorme

responsabilidade no que diz respeito a adaptação de suas práticas às questões relativas aos

temas raciais.

Ligando o MABS a essas instituições e compreendendo que pode ser possível por

meio de peças e coleções que estão sobre sua salvaguarda interpretar os diversos aspectos e

versões sobre as culturas negras, é possível acreditar que as práticas museais do Museu Afro

consistem em oportunidade para difusão das contribuições culturais afro-brasileiras e para a

afirmação dos valores da própria comunidade.

2.1. A exposição da escravidão?

O casarão do século XIX que pertenceu à família do senhor Nogueira de Freitas

Brandão foi utilizado na parte térrea como comércio e a superior como residência. Ele passou

a ter nova função no século XX, sendo usado de diversas maneiras e em momentos diferentes,

como Asilo, Escola, Museu Horácio Hora, entre outros8.

Em fevereiro de 1976 o local foi inaugurado como Museu Afro-Brasileiro de Sergipe

(MABS) com 213 peças9, sendo a maior parte do acervo pertencente ao colecionador José

Augusto Garcez, contendo objetos dos municípios de Laranjeiras, Malhador, Riachuelo,

Estância, entre outros, relacionados com a presença da história do negro em Sergipe. Hoje a

instituição museológica possui um acervo eclético com aproximadamente 1.064 objetos.

O prédio passou por algumas restaurações, sendo a ultima no ano de 2003. As

modificações no museu foram realizadas em sua maioria na parte externa, buscando não

interferir no estilo original do local. O mesmo integra o conjunto arquitetônico de Laranjeiras,

que mantém características da arquitetura do século XVIII e inicio XIX, período em que a

cidade liderava economicamente os destinos de Sergipe Del Rey. Em 1848 a vila passou a ser

8 O imóvel teve distintas funções ao longo do tempo, como Biblioteca Pública, depósito e foi sede de um clube

da localidade, depois foi “Casa Laranjeiras”, entre outros. Nesse mesmo lugar foi criado o Museu Histórico

Horácio Hora através de um Decreto de número 31 de maio de 1942, quando se encontrava na atual gestão o

prefeito Alberto Bragança de Azevedo, o museu se mantinha em uma sala da recém criada Casa de Laranjeiras.

O objetivo do museu era apresentar o contexto histórico do Município (NETO, 1943, p. 48). 9Essas informações foram encontradas em um documento que existia na própria instituição dentro de uma gaveta

no birô da recepção. Esse servia como fonte informativa para os novos estagiários, para que pudessem ler e

aprender o contexto histórico do Museu. É necessário ressaltar que este documento feito com folha ofício e

plastificado já com tom amarelado pelo tempo de existência desapareceu não se sabe se o mesmo está em algum

local da instituição ou se foi levado da mesma.

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conhecida como cidade, onde muitos anos depois, especificamente em 1996 foi tombada pelo

IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

O museu possui um acervo que demonstra a principal economia da época, sendo assim

composto por objetos relacionados à economia açucareira, além das religiões de matriz

africana (Candomblé, Nagô). O museu possui oito salas, assim divididas10

: Economia

Açucareira, Instrumentos de Tortura, um corredor com telas e pilões, Senhoril, Cozinha da

Casa Grande, Exu, Candomblé, Nagô e Exposição Temporária. O mesmo também possui uma

pequena reserva técnica, onde se encontram muitos objetos que já integraram exposições de

longa e curta duração. Até 2015, a exposição de longa duração era apresentada nos dois

pavimentos do museu. O térreo com elementos relacionados predominantemente à escravidão

e o superior com objetos relativos às religiões afro.

No térreo, na primeira sala são expostas duas moendas de cana de madeira e ferro,

uma âncora, uma prensa de casa de farinha em madeira, um tacho de ferro, duas gamelas em

madeira, uma cevadeira em madeira e metal, um arado em madeira, um arado em ferro e um

pilão com mão em madeira, todos do século XIX; caçuá feito de cipó, cesto feito com cipó,

dois carros de boi, duas cangas de boi, do século XX; além de uma maquete que representa

uma casa de farinha.

Fig. 2 - Peças na Sala de Economia Açucareira. Foto: Estefanni Patrícia, 2012.

10

Essa divisão permaneceu até 2015, quando ocorreram mudanças na disposição dos espaços do Museu Afro-

Brasileiro de Sergipe.

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Há um corredor com duas telas grandes do artista plástico Nogueira, uma representa o

Lambe - Sujo e a outra o grupo Cacumbi11

, além disso, expõe pilões. Espaço destinado

inúmeras vezes para exposições temporárias.

Na Sala de Instrumento de Tortura encontram-se replicas de mordaças, palmatória12

,

algema (anjinho), dois chicotes de couro e madeira, fotografias do filme “Chico Rei”, foto da

escrava Anastácia, quadros representando a sapataria e o pelourinho no século XIX, sendo

estas copias das obras de J. B. Debret. Os objetos originais expostos são uma tornozeleira,

uma corrente, uma gargalheira e dois troncos de chão em madeira, todos do século XIX, além

de duas esteiras de chão datadas do ano 2000.

Fig. 3 - Instrumentos de Tortura - réplica de palmatória do século XX e uma gargalheira original do

século XIX. Foto: Estefanni Patrícia, 2013.

11

O Lambe-Sujo e o Caboclinho têm traço cultural africano e indígena, homens e mulheres representam negros

e índios numa encenação com lutas, embaixadas, cantos e danças. Existia antigamente essa mesma manifestação

em Aracaju e São Cristóvão, sendo realizado atualmente em Laranjeiras, que acontece sempre no mês de

outubro, envolvendo os moradores, turistas e demais brincantes (ALENCAR, 1998, p.87-89). O Lambe-Sujo tem

relação com as histórias dos negros fujões, que lutavam em busca da sua liberdade, aproveitavam os momentos

de distrações dos seus vigilantes e corriam para as matas vestidos de short e touca de tons vermelhos, sendo

confundidos com o Saci-Pererê, desta maneira os capitães do mato com medo não os procuravam. Da mesma

forma utilizavam o cabaú, envolvendo todo o seu corpo com o mel e rolando em folhas secas para se camuflar,

dissimulando sua aparência para não serem reconhecidos. Já o Cacumbi é um folguedo que envolve homens

dançando, usam enfeites no chapéu como espelhos pequenos, paetês e fitas de cetim coloridas. Sobre sua origem

pouco se sabe, acredita-se que tenha surgido de uma variante de outras danças como Congo, Guerreiro e

Reisado. Seu ritmo é forte, o som marcante e o apito é que coordena a modificação nos passos. 12

Na atual expografia encontram-se alguns equívocos nas informações das etiquetas como, por exemplo, a

palmatória que está data como do século XIX.

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A Sala de Senhoril possui uma cadeira de arruar (liteira), uma cama com forro de

palhinha e, um baú em madeira, do século XIX, e cadeiras e mesa de palhinha do século XX.

Também integram dois quadros, um representa a saída da senhora da cadeira de arruar e o

outro a “evolução” da maneira dos escravos transportarem os senhores de engenho, ambos são

reproduções.

A sala que representa a cozinha da Casa-Grande tem uma mesa com duas gavetas e

duas cadeiras em madeira, uma réplica da roupa feita com saco de açúcar, uma representação

do fogão a lenha, duas chaleiras de ferro, duas panelas redondas sem alça, uma réplica do pote

de barro, uma réplica de um porta pano de prato em madeira, uma escrivaninha em madeira,

três almofarizes de bronze, dois candeeiros em vidro, dois candeeiros em metal, dois tachos

em bronze, três pilões em madeira, vaso em cerâmica, molheira em louça, bule em louça,

tigela, moedor de café, frigideira em metal, todos do século XIX, além de dois caçoar em

madeira, do século XX.

A expografia13

do MABS, especialmente a apresentada no pavimento inferior (tendo

como referência a exposição de longa duração existente até 2015), dá ênfase ao domínio do

branco sobre o negro escravizado, humilhado e torturado.

Muitos visitantes deixam transparecer seus comentários a respeito da instituição,

apontando o mesmo como “Museu do Escravo”, pois o que se nota ali são objetos que narram

historicamente como o negro foi obrigado a trabalhar nas lavouras, como era torturado a cada

desobediência, como carregavam os senhores de engenho em redes, cadeira de arruar, como

as negras sofriam para agradar o paladar dos seus senhores. A sensação que se tem é que a

exposição de longa duração do MABS faz questão de mostrar como o negro foi

menosprezado e escravizado, deixa de lado argumentos e objetos que reluzem o lado positivo

de sua contribuição para a identidade cultural do país e da região.

Laedna Nunes Santos, Elizabete Mendonça e Wellington Bonfim (2012) ressaltam que

a expografia do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe não apresenta o negro de forma agradável,

a imagem transmitida não contribui com o engrandecimento da cultura do negro, pois a

exposição reproduz a parte dolorosa da qual o africano ficou sujeito no período da escravidão.

Fica evidenciada ao percorrer os espaços expositivos do museu que é construída a idéia do

negro que serviu tornando-se que submisso, servindo apenas para o trabalho, assim reduzindo

o negro e silenciando grandes aspectos dos mesmos na história brasileira e, sobretudo na

edificação da identidade cultural do Brasil.

13

Segundo seu Amintas as expografias do Museu Afro foram remontadas a cada nova direção, algumas coisas

eram mantidas e outras retiradas, assim com tantas modificações na gestão do museu as salas que remetiam ao

folclore situado na cidade de Laranjeiras foram retiradas da exposição de longa duração.

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Todavia, embora a escravidão seja uma realidade que não deve ser esquecida, é

necessário modificar o discurso expográfico e desenvolver ações educativas na instituição

com o intuito de aproximar a população local e demais visitantes tendo por finalidade

desconstruir o pensamento sobre o papel do negro e das religiões afro-brasileiras, quebrando a

rejeição, o preconceito e a intolerância religiosa que existe em boa parte da sociedade.

2.2 Um museu de arte sacra?

Até 2015 o pavimento superior do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe era dedicado à

temática das religiões afro-brasileiras, juntamente com uma sala dedicada às exposições de

curta duração. Desse modo, poderíamos reconhecer essa expografia como um segundo museu

dentro do museu, um museu de arte sacra que desconstruía a noção dessa tipologia apenas

como arte sacra católica.

A arte sacra encontradas nas igrejas católicas nos retábulos, altares, esculturas, entre

outros, de fato passaram por influência da mão-afro-brasileira. Como podemos exemplificar

com Aleijadinho, Chagas, Valentim etc. (SILVA, 2008, p. 98). Todavia, a arte religiosa afro-

brasileira é uma arte conceitual que demonstra estimações grupais, apesar de muitas vezes o

artista deixar transparecer um estilo próprio e reconhecível. Do mesmo modo, a arte afro

procura permanecer com uma concepção viva de cultura e natureza como extensões não

contrárias (SILVA, 2008, p. 99). Nesse aspecto, a noção de arte sacra deve extrapolar a ideia

tradicional de arte sacra católica, podendo ser aplicada aos artefatos religiosos dos povos

indígenas, afro-brasileiros e imigracionistas. Pensando sob essa ótica, o segundo andar do

Museu Afro-Brasileiro de Laranjeiras poderia ser considerado uma exposição de arte sacra,

sob o recorte das religiosidades afro-brasileiras.

Na Sala de Exu se podia encontrar um Exu masculino, um Exu Bom Ninja (Pomba

Gira), um tridente de Exu, cerca de doze búzios pequenos, um assentamento de Exu com

búzio, vela, jarro pequeno com tampa de barro, e um banner com informações sobre essa

entidade.

A sala dedicada ao candomblé apresentava os Orixás Ogum, Oxossi, Ossain, Xangô,

Yansã, Oxum, Obaluaiê, Oxalá, Yemanjá, Nanã Buruku. Na vitrine eram expostas as

ferramentas de lei, que pertenceram ao Babalorixá Gilberto da Silva (Lê) do Terreiro Oxossi

Tauamim situado em Aracaju/Se. Na segunda vitrine, as ferramentas dos Orixás Obaluaiê,

Yemanjá, Xangô, Oxossi, além de três atabaques cada um com um nome “Yle”, ”Rum” e

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“Rumpí”, dois Igbás, um do Orixá Oxossi e outro de Oxalá, um banner informando sobre o

Terreiro Oxossi Tauamim e o Babalorixá Gilberto da Silva, conhecido como Lê.

Fig. 4 – Representação dos orixás na exposição de longa duração do Museu Afro-Brasileiro de

Sergipe. Foto: Rafael Dantas, 2013.

O candomblé é uma religião de matriz africana, cujas referências foram trazidas para o

Brasil no período escravocrata. No principio, a religião não causou desespero nos senhores de

engenho, pois os mesmos acreditavam que era um meio de diversão e lembranças de suas

origens. No entanto, mais tarde, os costumes, a linguagem, a crença estavam sendo apagados,

e os negros escravizados e seus descendentes encontraram uma nova forma de manter vivos

os seus ideais, criando uma nova metodologia para cultuar seus orixás, a partir de estratégias a

exemplo do sincretismo, aproximação dos santos da Igreja Católica com as divindades

africanas.

Ressalta-se que o culto afro-brasileiro,“candomblés”, utiliza o termo no plural, por

visar os africanos vindos para o "Novo Mundo", que foi retirado de distintas regiões de matriz

africana e, por isso, obtinham diferentes tradições, que resulta nas várias nações edificando o

candomblé. A própria denominação “Candomblé” remete à significação “união de nações”

(RIBEIRO, 2008, p. 3). No Brasil, as nações mais comuns são o Nagô e Kêtu, de procedência

sudanesa, e Angola e Jêje, de procedência Banto. Cada uma delas mantém suas tradições de

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origem dos cultos. As diferenças estão presentes em diversas nações, sobretudo no tipo e na

forma de preparar as oferendas para os Orixás. A religião relaciona os orixás aos quatro

elementos que formam a força da natureza: Terra, Fogo, Água e Ar. Cada divindade possui

suas cores, suas comidas, seus toques (cânticos), saudações, entre outras.

Existem muitas formas de alimentos para se ofertar ao orixá, resumidas em duas das

categorias. A primeira está ligada ao sacrifício, onde o ejé (sangue) é oferecido junto com os

axés, que dessa maneira recebem as partes vitais dos animais, como o coração e fígado, para a

divindade. A segunda associa-se as “comidas secas”, estas não precisam jorrar o sangue de

animal, aderem a elementos tais como quiabo, feijão, milho, etc. (RIBEIRO, 2008, p. 4).

Os orixás são ancestrais divinizados, mediadores entre humanos e a forças da natureza

vinculados aos elementos da vida diária. Podemos dizer também que os Orixás são “seres

divinos criados por Olorun, nosso Deus único, que auxiliaram na criação do universo e de

todos os seus componentes. A partir daí, eles ganharam a função de intermediários entre o

criador e a criatura” e, segundo os yorubás, os orixás são os donos da nossa cabeça ou “ori”, e

nossos protetores individuais (ILÊ AXÉ OXOSSI E OXALÁ, 1994, p. 39).

O xirê14

é iniciado de Exu até chegarem Oxalá, sendo que a gira é somente pra os

exus. Onde se cultuam primeiro os orixás masculinos e depois os femininos como, por

exemplo, Exu, Ogum, Ossãe, Oxóssi, Oxumaré, Xangô, Omolu, Oxum, Iansã, Obá, Iemanjá,

Nanã, entre outros.

Além do candomblé, o MABS também dedicava uma sala ao Nagô de Laranjeiras. Ela

continha um peji (altar) coberto por uma toalha branca, possuindo em cima do altar um Cristo

crucificado, dois portas velas de vidro e pequenos pratos de barro com pedras representando

as divindades do Nagô. Na vitrine estava uma cabaça coberta por sementes, estas conhecidas

como lágrimas de Nossa Senhora, e um tambor. Outra vitrine apresentava um assentamento

de Obaluaiê, um quadro com foto do Babalorixá Alexandre José da Silva, uma vitrina com

pedras em homenagem ao primeiro filho de santo de Alexandre, uma vitrine com cabaça de

barro e querequexês e um torno do Babalorixá Alexandre e fotos de Umbelina Araújo, Maria

de Lourdes e Bárbara Cristina dos Santos atual Lôxa do Nagô15

.

14

Segundo o Axogum da oxum Edelvânio Vieira, o xiré é o nome dado a seqüência dada a manifestação dos

Orixás na hora do culto, ou seja, de Exu até chegar em Oxalá, o Deus de todos os Orixás. O Museu Afro não

segue essa seqüência, a expografia era feita de forma sortida, em uma sala separada ficava o Exu masculino e

feminino com alguns elementos referentes aos mesmos. Na outra sala iniciava-se o xirê com Ogum, Oxóssi,

Ossain, Iansã, Xangô, Oxum, Obaluaiê, Oxumare, Oxalá, Iemanjá, Nanã Buruku. Ao longo do tempo ocorreram

mudanças passando Xangô, Iansã, Oxum a ficarem nessa seqüência, pois se desejava relatar a união conjugal

entre eles e, ao mesmo tempo, mostrar todos próximos. Também se defini xirê como festa, brincadeira (Cf. ILÊ

AXÉ OXOSSI E OXALÁ, 1994, p. 37). 15

Para maiores informações sobre o Nagô e o campo religioso em Laranjeiras, conferir Beatriz Gois Dantas

(1988).

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Uma das possíveis críticas ao negro na expografia do Museu Afro-Brasileiro de

Sergipe é que ele é resumido ao povo que cultua a religião afro, apontada como uma das

formas de resistência e de sociabilidade no período escravocrata. Na verdade, a exposição

deveria deixar claro que a representação do Candomblé e do Nagô são apenas exemplos das

diversas religiões e religiosidades praticadas na região. Temática significativa ao

considerarmos que na cidade de Laranjeiras existe mais de vinte terreiros que se denominam

como Candomblé, Nagô e Umbanda.

Todavia, a representação da arte sacra não católica também suscita preconceitos não

apenas em virtude do desconhecimento do público dos museus. Isso nos faz lembrar um

episódio ocorrido no final do ano de 2013. Nesse período, o museu foi fechado por alguns

dias para que houvesse limpeza e modificações na exposição de longa duração. Nesse

momento, profissionais e gestores do campo da cultura e dos museus relataram que a sala

dedicada a Exu seria retirada, nela seriam colocados os objetos da sala do Nagô e no espaço

dedicado ao Nagô ficaria uma exposição de curta duração sobre o Babalorixá Gilberto da

Silva (Lê) e seu Terreiro Oxóssi Tauamim. Assim, Exu deixou de fazer parte da expografia da

instituição por alguns meses.

No Encontro Cultural de 2014, a nova exposição de longa duração começou a receber

inúmeras críticas e perguntas como “cadê o povo da esquerda?”, “por que tiraram a sala de

Exu?”, entre outras. Paralelamente, ocorreram discussões nas redes sociais envolvendo

adeptos e simpatizantes das religiões afro-brasileiras em Sergipe. Tensões relatadas nos

depoimentos apresentados na pesquisa de Vitória Carvalho (2014):

Ele chegou a colocar alguns elementos do Orixá (tridente, búzios e cabaça)

no alto da escada, mas retiraram, ele ainda acrescenta que para ele „parece

que eles (pessoas envolvidas na montagem da exposição) queriam mostrar

que ali não era um terreiro e sim um museu. A retirada não foi por causa do

medo das pessoas [...]. Por que essa sala cedeu o espaço? É mais

conveniente, talvez, é o jogo de poder que acontece nas relações

institucionais. Se a exposição fosse um sucesso, no sentido de aceitação do

público, certamente não seria essa a sala a ceder o lugar para uma exposição

temporária (In: CARVALHO, 2014, p. 8).

O público na maioria das vezes criava uma idéia negativa sobre Exu, discurso esse que

é passado muitas vezes de geração a geração, porém ao se visitar o museu eram transmitidas

pelos monitores esclarecimentos sobre a entidade, combatendo sua demonização. Como

podemos observar alguns comentários sobre a figura de Exu:

Para o entrevistado 2, ao realizar a monitoria ele buscava explicar quem é

Exu mensageiro e Orixá da comunicação, segundo ele „O museu representa

parte da cidade, já que tem uma diversidade religiosa, há também várias

visões de Exu dentro das religiões e isso causa um conflito com relação á

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forma como a exposição retrata Exu‟. (Entrevistado 2). Já pela visão do

entrevistado 4 „a figura de Exu retratada a exposição é justamente a que a

maioria das pessoas conhecem, os tons (preto e vermelho), os manequins

trajando roupas que logo são associadas a pomba gira e tranca rua, os que

fazem bem se você agrada, mas que na maioria das vezes fazem mal (In: CARVALHO, 2014, p. 9).

Contudo, as discussões suscitadas nas redes sociais contribuíram para que a então

diretora do MABS solicitasse a ex-estagiária Jislaine Santana que refizesse a Sala de Exu,

retornando a divindade ao espaço museal. Fato exemplar do modo como a expografia pode

acionar tensões, silêncios e memórias, contribuindo para a instituição de preconceitos, debates

e esclarecimentos sobre as culturas negras.

Finalizando a apresentação dos espaços expositivos, no pavimento superior do MABS

a última sala era dedicada às exposições de curta duração16

, dentre elas as exposições de

alunos do curso de Museologia (Bacharelado) da Universidade Federal de Sergipe, História,

Música, Arqueologia etc., além de profissionais do campo das artes17

e de alunos de ensino

médio que trabalhavam na instituição ou colaboradores, estudantes que pertencem à

comunidade laranjeirense e atuavam como voluntários, “Amigos do Museu”. Na verdade,

além das exposições temporárias, algumas iniciativas foram e são responsáveis por uma maior

dinamização e ampliação das ações museológicas na instituição.

2.3 Sinestesias museológicas: os cheiros e os sabores da afro-brasilidade

Algumas ações museológicas foram realizadas ao longo da trajetória do MABS. Um

exemplo é a criação de um projeto para recuperar o jardim do museu, onde foram plantadas

ervas utilizada nos ritos do candomblé. A intenção do mesmo era convidar a população local

para trazer plantas para a instituição, como forma de aproximação entre comunidade e museu

e de troca de saberes relacionados a importância das ervas nos rituais afro-brasileiros, mas

16

São exemplos de exposições de curta duração apresentadas nos últimos cinco anos no MABS: “Entre os

Lambe - sujos e os Caboclinhos: Manifestação Laranjeirense do mês de Outubro”, “O olhar da descoberta” em

2012, “Umbanda e Candomblé sob linhas e o artesanato de Jeronymo Freitas: Novembro Negro” em 2012,

“Simbologias das representações dos cultos afro em Laranjeiras” em 2013, “Tempos de mudança e reflexão”:

Matrizes africanas, em respeito às culturas locais em 2013, “Sabedoria e Fé dos Pretos Velhos” em 2013, “A

Doçura dos Yori” em 2013, “Fragmentos da cultura afro brasileira de Laranjeiras” em 2014, “As memórias do 1º

Encontro Cultural de Laranjeiras/SE” junto com a produção do Documentário “Entre Falas e Cenas: Memórias

do Encontro Cultural de Laranjeiras-SE em 2015, feito pelos alunos da disciplina de Expografia I do Curso de

Museologia, após ganharem o edital promovido pela Prefeitura Municipal de Laranjeiras junto a Secretaria de

Cultura do Município. 17

Existiram outras exposições de curta duração no MABS como, por exemplo, a “Egebê-Espaço Sagrado” tendo

como curadora Janaína Couvo, “Mestre Deca e o Cacumbi” também com curadoria de Janaína Couvo, “Arte in

África” com curadoria de Guga Viana no ano de 2014.

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após dois anos o projeto perdeu vida (JESUS, 2015). Entretanto é preciso ressaltar que em

entrevista dada por Luis Fernando Ribeiro Sotello a Carlos Augusto Braz de Jesus, o

entrevistado diz que: “Já houve ali um jardim quando a professora Telma Rosita foi diretora

após Isaura, um jardim com plantas de ritual” (In: JESUS, 2015, p. 52).

O jardim18

que foi recuperado no ano de 2013 tinha erva como a cidreira, capim-santo,

erva anador, hortelã miúdo, boldo do Chile, mastruz, sambacaitá, alevante, aroeira, espada de

São Jorge, espada de Ogum, tridente de Exu, espada de Xangô, tipi manjericão, além das

roseiras, flores buque de noiva, outros tipos de flores, cana-de-açúcar, mandioca (estas

últimas eram usadas na representação da economia da cidade na primeira sala da instituição).

Continha ainda dois bancos feitos com cimento para que o visitante pudesse sentar e apreciar

a paisagem, como também ler um banner que ficava pendurado em uma árvore falando sobre

as ervas utilizadas pelos negros escravizados.

Esse local muitas vezes era solicitado pela população laranjeirense que ia até o lugar

pedir erva tanto para o consumo em chá, quanto para fazer banhos, herança essa que foi

passando de geração a geração. Segundo Helena Gonçalves, ex-diretora do MABS, para que

houvesse a reativação do projeto do jardim estiveram envolvidos:

A Coordenadora dos Museus Sayonara Viana, que providenciou a compra

das ervas para o Encontro Cultural de Laranjeiras do ano de 2013, mas foi

projetado com a mesma e outros, nós da equipe do museu, inclusive eu

enquanto gestora é que ficamos cuidando da manutenção através das mãos

do Senhor Carlinhos, o qual foi demitido e aquele local ficou desprezado. Na

época, o próprio Brás me disse que ele, professora Verônica Nunes e outros

mais teriam participado do projeto. Só sei que nós poderíamos reativar o

plantio a custo zero com a própria comunidade19

.

As ervas possuem uma extensa quantidade de axé - “energia mágico-universal e

sagrada”, que ao serem combinadas, apresentam um forte poder de purificação da aura

retirando as forças negativas, edificando boas energias. As ervas usadas para fazer banhos

devem obter a adequação precisa tendo por desejo atuar absolutamente sobre a necessidade,

retirando o sintoma causado pelas péssimas energias. Existe uma grande importância dos

vegetais utilizados no candomblé, isso por causa das conseqüências que os mesmos provocam

nos indivíduos que aderem ao uso como também, por conta do valor dentro da simbologia das

ervas numa conjuntura total das religiões afro-brasileira. Atribui-se a informação sobre as

18

Segundo entrevista com Helena Gonçalves, ex-diretora do MABS, em 28 mar. 2016, “o projeto do jardim foi

implantado na gestão de Telma Rosita, mas a idealizadora foi Izaura [Izaura Júlia Ramos] com alunos de escolas

públicas do município, só não me lembro o ano, mas Jorginho Babalorixá contribuiu muito naquela época...

naquela época eu trabalhava como guia no museu por curto período. Foi plantado pelos alunos e equipe do

museu era o projeto museu/escola”. 19

Entrevista com Helena Gonçalves, ex-diretora do MABS, em 28 mar. 2016.

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funções das ervas seja em ritual ou tratamento medicinal ao “alossaim, cultuador do Orixá

Ossaim” (GOMES, DANTAS, CATÃO, 2008, p. 114).

Através da estimada importância dada as folhas dentro do candomblé, seja no culto

aos Orixás como no uso para banhos e pelos poderes medicinais obtidos, o rito a Ossaim

realizou uma ação essencial no crescimento do candomblé (GOMES, DANTAS, CATÃO,

2008). Podemos citar alguns de seus usos nas religiões afro-brasileiras como, por exemplo, o

banho de descarga, amaci, cerimônias de consagração de um noviço a uma divindade, bebida

ritual etc.

Fig. 5 - Jardim do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe. Foto: Jislaine Santana, 2014.

Desse modo, a implantação do jardim no MABS se torna coerente com o universo

simbólico ali representado. Nesse mesmo jardim foram realizadas diversas monitorias, onde

se falava da importância das mesmas na história e para a sociedade laranjeirense, como

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também foram feitas ações educativas, já que o museu não possui um auditório ou outra

localidade para tais eventos.

Além do projeto do jardim, outra ação significativa no MABS consiste no caruru. Em

2012, juntamente com outro estagiário do museu, Rafael Dantas, surgiu a idéia de fazermos

uma exposição de curta duração que abordasse as três temáticas afro-brasileiras, Candomblé,

Nagô e Umbanda, onde seria escolhida uma festividade para representar cada uma delas.

No Candomblé ressaltamos a “saída de Iaô da Oxum”, no Nagô expomos fotografias

do festejo “Corte do Inhame” e na Umbanda adentramos com “uma homenagem a Cosme e

São Damião”, já que a abertura da exposição aconteceria em 12 de setembro de 2012, mês

este dedicado aos Ibejis. Assim, montamos um altar com os santos da Igreja Católica e

Orixás, além de montar um circulo ao redor do santos com bexigas contendo mensagens de

amizade, amor, paz, felicidade, entre outras. Tivemos a presença de representantes do Terreiro

Santa Barbara Virgem e de diversos terreiros de Candomblé do Estado de Sergipe. Além

disso, realizamos uma ação educativa com crianças que tinham idade entre 8 a 11 anos, onde

apresentamos a instituição, sobretudo a exposição “O olhar da descoberta”, que obteve na

curadoria Jislaine Santana e Rafael Dantas e ainda fizemos brincadeiras e ofertamos balas,

pirulitos, bolo, refrigerante e, principalmente, o Caruru20

.

No ano seguinte produzimos juntamente com colegas do curso de Museologia e de

outras áreas uma nova expografia denominada “A doçura dos Yori” que abordava São Cosme

e São Damião, do mesmo jeito distribuído o caruru e os doces para crianças e adultos.

O caruru é uma iguaria que faz parte do cardápio de muitos brasileiros, sobretudo dos

baianos, cuja comida é de origem africana, também usada como oferenda no Candomblé, na

Umbanda, sendo possível que sua chegada ao Brasil tenha sido através dos negros africanos

escravizados. No Candomblé, geralmente os festejos que oferecem o caruru, na festa de São

Cosme e São Damião ocorrem desde o primeiro de setembro e finaliza, em dezembro, com a

exceção de novembro, não se dá caruru nesse mês porque é dedicado a Eguns21

. Entretanto,

Cosme e Damião são santos católicos que exerciam como profissão a medicina, curavam

principalmente as crianças. Acredita-se que faziam essa prática sem cobrar pelos serviços

prestados aos enfermos, tendo sido sincretizados como erês e, por este motivo, as festas dos

êres são realizadas no mês de setembro, data dedicada a esses santos católicos.

20

Ingredientes para fazer o caruru: um cento ou mais de quiabos cortados em formato de cruz, uma cebola grande

picada, dois dentes de alho, gengibre ralado a gosto, 1/2 Kg de camarão seco moído, meio quilo de saburica

(camarões pequenos), duzentas gramas de castanha de caju, uma xícara de chá de dendê, água quente e vinagre

para retirar a baba do quiabo, caso seja desejado. 21

Os eguns são espíritos dos mortos que se concretizam ritualmente (MOURA, 1989, p.128).

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49

São Cosme e Damião também são chamados de Ibeji, que na nação do Ketu é o

mesmo que erê, ou melhor, dizendo, o orixá criança. Sendo a divindade da brincadeira, da

alegria, etc. Os Ibeji representam à solidariedade, a iniciação da vida, a felicidade, o amor, a

infância, os gêmeos, entre outras coisas.

Além do caruru, outra ação realizada em parceria com a equipe do MABS é a

Lavagem das Escadarias da Igreja do Bonfim, que acontecia no dia 13 de maio, porém ao

decorrer do tempo esse festejo mudou de data e mês, passando a ser contemplada em janeiro

juntamente ao Encontro Cultural de Laranjeiras:

A Lavagem foi idealizada por um grupo de dança que era o grupo de dança

afro que eu tinha lá, que a gente chamava grupo de dança afro Arruanda

Sudanês, então era um trabalho com os adolescentes da cidade, então quando

a gente pensou na Lavagem pensou em relação a força da religiosidade que

as igrejas de Laranjeiras tinha, então todas as cidades que tem igreja para o

Senhor do Bomfim significar dizer que havia dentro da estrutura africana um

culto a Oxalá, mas no momento que a gente pensou a Lavagem, pensou

como uma resistência da cultura negra. (...) O primeiro terreiro a ser

convidado foi o terreiro de Jorginho, foi ele quem encampou junto com o

grupo afro Arruanda Sudanês a idéia de fazer a Lavagem. (...) Na época

como eu era a diretora do museu afro eu puxei a lavagem para o museu afro

entendeu? Trouxe ela para o museu afro como uma ação do museu afro no

mês de maio e uma ação que valorizaria o trabalho dos grupos negros que

Sergipe tem tanto22

.

A primeira lavagem ocorreu em 13 de maio de 1993, promovida por seus criadores, o

grupo Arruanda Sudanês, juntamente com o Terreiro de candomblé de Pai Jorge de Iansã. Em

2013, a Lavagem completaria 20 anos de existência. Em decorrência da 11ª Semana de

Museus, os estagiários do MABS montaram um projeto com o intuito de realizar o festejo em

13 de maio. Após uma reunião no museu envolvendo a presença do ex-secretario de cultura

de Laranjeiras Irineu Fontes, uma representante do Terreiro Filhos de Obá, o Babalorixá

Jorginho, a diretora do museu Helena Gonçalves, o estagiário Rafael Dantas, a estagiária

Jislaine Santana, conseguimos o apoio da Secretaria da Cultura do Estado e Secretaria da

Cultura do Município para realizar a Lavagem que também contou com a participação do

grupo de balé afro Um que de Negritude. Esse evento ocorreu até o ano de 2014, articulando o

museu, a comunidade e os adeptos das religiões afro, sendo interrompido em virtude da

doença e do falecimento do Babalorixá Jorginho de Iansã.

Todavia, alguns fatos e personagens significativos para a compreensão da trajetória do

MABS muitas vezes são destinados ao esquecimento. Após a apresentação de alguns projetos

desenvolvidos pelo museu, de sua expografia, das tensões em torno de seu discurso expositivo

relacionando-o às representações das culturas negras, torna-se necessário reconhecer a

22

Entrevista com Izaura Júlia de Oliveira Ramos, ex-diretora do MABS, em 28 mar. 2016.

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50

presença negra nesse museu para além das exposições museológicas, iluminando um público

muitas vezes esquecido pelos museus, a partir da trajetória de um de seus funcionários mais

antigos, importante “guardião da memória” da instituição.

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51

3. Amintas Vieira Souza: um “guardião da memória” nos “silêncios da

história”

“A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade,

individual ou coletivo, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos

indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”

(LE GOFF, 2003, p. 469).

O intuito deste capítulo é reconstruir a trajetória de um personagem que se mescla com

a história do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe. Para tanto, destaca o público interno dos

museus, muitas vezes esquecido. Nesse aspecto, valorizando esses silêncios conta com as

informações orais e o acervo pessoal de Amintas Vieira Souza, aqui considerado “guardião da

memória”, pois o mesmo tem muito a dizer já que atravessou décadas na instituição como

funcionário da mesma.

Fig. 6 - Amintas Souza, em sua residência. Foto: Jislaine Santana, 2016.

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É possível iniciar essa discussão através do texto O público interno dos museus:

reflexões sobre os funcionários de museus enquanto público-alvo das ações educativas

museológicas, de Gabriela Ramos Figurelli (2013), que visa demonstrar a importância de

valorizar os trabalhadores de instituições museológicas tendo como foco as ações educativas e

instigar uma ação no sentido de privilegiar o desenvolvimento do “público esquecido, através

das reflexões expostas”. A autora realiza uma reflexão sobre o público interno, ou seja, a

equipe de funcionários dos museus, responsável central nos cuidados com a figura do museu e

no contentamento do conhecimento museológico do público externo, que na maioria das

vezes é esquecido:

Trata-se do grupo formado pelos trabalhadores dos museus. Aqueles que

atuam nas instituições museológicas mas não possuem formação na área, que

fazem parte da equipe da segurança, da limpeza, da manutenção, da recepção

e demais serviços de apoio ao museu. Que participam da rotina das

instituições museológicas, a quem pode-se chamar de público interno dos

museus e que é, na grande maioria das vezes, esquecido pelo setor educativo

destas instituições (FIGURELLI, 2013, p. 32).

O museu que se preza e se preocupa com o envolvimento da população seja ela local

ou não também tem que demonstrar interesse em entrelaçar seus funcionários para com a

instituição, fazendo com que eles se envolvam com a realidade do lugar. Percebe-se que esta

equipe de trabalhadores necessita ser envolvida nas ações educacionais geradas pelas

instituições museológicas (FIGURELLI, 2013). Fazer um investimento nas pessoas que

trabalham diariamente nos museus é uma boa estratégia, pois são eles que recebem o

visitante, que possuem contato maior e inicial com os indivíduos que tem por vontade

conhecer o museu:

Este entendimento une-se à compreensão de que investir nos funcionários do

museu é estratégico para a instituição já que parte deste grupo é considerado

o front office do museu, aquele que diariamente estabelece contato com os

visitantes, que desenvolve o trabalho de acolhimento e portanto é

parcialmente responsável pela imagem que o público visitante constrói da

instituição. Uma imagem que se faz importante para a credibilidade da

instituição e também se torna favorável à conquista de novos públicos e

fidelização dos já existentes (FIGURELLI, 2013, p. 33).

Entretanto, os museus ainda necessitam criar mecanismos para a valorização do

público interno, a maioria não proporciona um bom treinamento para que o mesmo seja mais

receptivo ou transmita bem os conhecimentos. Ainda segundo a autora, nas instituições

museológicas esse público interno seria composto por empregados ou prestadores de serviço.

Porém aqui se está trabalhando com um público que age internamente no cotidiano dos

museus, em diversos ambientes e funções, como no expografia, na recepção etc.:

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Público interno é a denominação dada ao conjunto de indivíduos que têm

vínculo institucional com uma organização, de maneira remunerada e que

submetem-se a orientações diretivas e gerenciais. Em outras palavras, são as

pessoas que estão dentro de uma instituição, ligadas a sua estrutura

organizacional e que formam o seu quadro de funcionários, nos mais

diversos níveis hierárquicos (FIGURELLI, 2013, p. 37).

Ao relacionar o que diz a autora com o público interno do Museu Afro-Brasileiro de

Sergipe, destacamos um esquecimento não apenas por parte do setor educativo, mas na

própria história da instituição. Nesse aspecto, destacamos a figura de Amintas Vieira Souza

que na qualidade de funcionário do museu trabalhou durante décadas como porteiro,

extrapolando suas ações ao colaborar muitas vezes na montagem de exposições, na função de

monitor apresentando o museu aos visitantes, como também como doador de peças - dois

chicotes para serem expostos na Sala de Instrumentos de Tortura. Além disso, realizava ações

de conservação dos objetos e cuidava do jardim de ervas da instituição.

Nesse aspecto, Amintas Souza pode ser visualizado como um “guardião da memória”,

nos moldes apresentados por Ângela de Castro Gomes (1996). O intuito inicial de sua

pesquisa era analisar a trajetória de Alzira Vargas do Amaral Peixoto, pensando-se na

introdução da mulher no meio político no Brasil. Entretanto, encontrou inúmeras resistências

da parte da mesma, já que não se motivava em se dispor a ceder entrevistas. Mas com o passar

do tempo, os obstáculos foram vencidos e o trabalho retomado, onde D. Alzira deixa claro

suas exigências em relação a tudo que fosse mencionado por ela. A mesma envolveu-se na

política entre os anos de 1940 até os anos 80, onde teve participação crucial nesse meio. Mas

se faz necessário dizer que ela se torna guardiã da memória de seu pai, Getúlio Vargas, de sua

família, obtendo sucesso ao mantê-lo em evidência na salvaguarda da memória nacional.

Durante o seu depoimento, D. Alzira realizou uma seleção de memórias que

possivelmente foram consideradas por ela as mais importantes e que deram solidez ao

trabalho do pai e também da mesma. A partir do momento em que ela narra o perfil da

história de vida de seu pai, de sua família e dela mesma, a depoente recupera e reelabora

certos episódios do passado, tornando-se uma “guardiã da memória”, uma observadora

privilegiada de determinados fatos:

A memória é um trabalho. Como atividade, ela refaz o passado segundo os

imperativos do presente de quem rememora, ressignificando as noções de

tempo e espaço e selecionando o que vai e o que não vai ser “dito”, bem

longe, naturalmente, de um cálculo apenas consciente e utilitário. Quem

aceita fazer o trabalho da memória, o faz por alguma ordem de razões

importantes, dentre as quais estão a busca de novos conhecimentos, a

realização de encontros com outros e consigo mesmo, de forma a que os

resultados sejam enriquecedores sob o ponto de vista individual e coletivo. A

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rememoração pode ser um difícil processo de negociação entre o individual e

o social, pelo qual identidades estejam permanentemente sendo construídas e

reconstruídas, garantindo-se uma certa coesão à personalidade e ao grupo,

concomitantemente (GOMES, 1996, p. 6).

Nesses termos, acreditamos ser possível aplicar essa categoria à trajetória de Amintas

Vieira Souza, pois o mesmo guarda memórias sobre o primeiro e único trabalho, iniciado em

1975 ainda quando o casario abrigava a “Casa Laranjeiras”, mas que um ano mais tarde se

transformaria no Museu Afro-Brasileiro de Sergipe. Amintas recorda datas em que muitos

objetos chegaram ao museu, o nome das pessoas que doaram os objetos, os que foram

compradas, qual peça chegou primeiro na instituição: “Quem começou a doar peças lá foi

José Augusto Garcez de Itaporanga da Ajuda/SE. Depois chegou os troncos de chão, depois

varias peças da economia açucareira, depois dessas vem a do Terreiro de seu Lê”23

.

Por muitos motivos podemos considerar o senhor Amintas Vieira Souza como um

“guardião da memória”, pois ele viu o MABS surgir em Laranjeiras como também teve

participação nessa construção. A partir de seus relatos é possível reconstruir aspectos

significativos da história do museu e da Museologia em Sergipe. Através dele e de sua

trajetória de vida podemos narrar a história dessa instituição museal, como o negro foi

representado na primeira exposição e como ocorreram as mudanças e os silêncios.

Segundo Ângela Gomes (1996), o guardião tem por função narrar de forma

privilegiada o contexto histórico do grupo no qual se insere e a respeito do que se encontra

possibilitado a falar:

O guardião ou o mediador, como também é chamado, tem como função

primordial ser um „narrador privilegiado‟ da história do grupo a que pertence

e sobre o qual está autorizado a falar. Ele guarda / possui as “marcas” do

passado sobre o qual se remete, tanto porque se torna um ponto de

convergência de histórias vividas por muitos outros do grupo (vivos e

mortos), quanto porque é o „colecionador‟ dos objetos materiais que

encerram aquela memória. Os „objetos de memória‟ são eminentemente bens

simbólicos que contêm a trajetória e a afetividade do grupo. Sejam

documentos, fotos, filmes, móveis, pertences pessoais etc., tudo tem em

comum o fato de dar sentido pleno, de „fazer viver‟ em termos profundos o

próprio grupo. Tais objetos podem ser, assim, um bom exemplo do que

Pierre Nora consagrou, em sua metodologia, com a designação de „lugares

da memória‟. Este acervo, que também inclui, com destaque, relatos

preciosamente recontados, é a própria identidade do grupo „materializada‟: é

sua riqueza, poder e emoção (GOMES, 1996, p. 7).

Nesse aspecto, reconhecemos Amintas Souza como “guardião da memória”. Em seus

relatos é possível perceber a atitude da população laranjeirense em relação ao MABS, sua

aceitação ou não, qual foi à importância dada pela população local ao museu, de como era

23

Entrevista com Amintas Vieira Souza em 23 out. 2014.

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feito o diálogo entre público e exposição, como o negro era representado dentre aquelas

paredes e para além daquele espaço:

A gente sabe que ele tem uma importância histórica, que ali apresenta tanto a

parte do trabalho escravocrata quanto a religião, se não tivesse esse museu

talvez não mais existissem essas peças. Olhe não todo mundo. O pessoal de

Laranjeiras não liga muito para o Museu Afro, mais os de fora, que chegam

os turistas, algumas pessoas de Laranjeiras, alguns reconhecem que o museu,

não é todas não, nem vai lá visitar às vezes, as pessoas da cidade mesmo tem

muito a ver com a questão da religião, porque muitos não gostam, tem

preconceito e outra o museu afro depende do negro também né? Conta

história do negro24.

Através desse discurso podemos suscitar que a instituição desde o inicio sofre com a

rejeição de uma parcela da população local, mas que também existem os que aderiram a ideia

de se ter um Museu Afro em uma cidade que possui uma grande quantidade de descentes de

africanos cujo legado cultural é marcador identitário das expressões dos moradores dessa

região, a exemplo da própria trajetória de Amintas Vieira Souza que, aqui, será tida como

metáfora de tantos outros personagens que foram esquecidos na história do museu e no

próprio discurso sobre o negro em Sergipe.

3.1. Uma trajetória em narrativas

Amintas Vieira Souza nasceu em 12 de maio de 1942 na cidade de Laranjeiras, filho de

José Vieira de Souza, conhecido como Zeca Bomfim, e de Maria de Lurdes Vieira Souza.

Passou sua infância com seus pais. Desde cedo conciliou os estudos com o trabalho.

Trabalhava com o pai na fazenda da família, na lavoura, como também com leite e cana.

Plantava a cana e depois levava para o engenho, isso era feito através de um carreiro, o

mesmo auxiliava no transporte da cana até o Engenho Sergipe.

24

Entrevista com Amintas Vieira Souza em 6 nov. 2014.

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Fig. 7 - Foto do álbum de família de Amintas. Na mesma está seu pai, sua madrasta, seu irmão e

seu Amintas ao lado direito da fotografia.

Ao recordar sua convivência familiar, Amintas diz que seu pai era bastante econômico,

gostava de guardar dinheiro, mas não sabe dizer ao certo se a fazenda onde eles moravam foi

adquirida através da compra, herança, entre outros, é apenas deduzida pelo filho como

compra. Seu pai era da cidade Riachuelo/SE, mas que se mudou para Laranjeiras e construiu

família, teve oito (filhos) e faleceu há muito tempo, não sabendo informar a data: “Olha eu

não alcancei quando, eu não era nascido quando ele comprou, agora foi comprada, ele juntava

dinheiro, juntava”.25

Amintas se emociona ao falar sobre seus avôs maternos, os únicos que conheceu: Maria

Firma e José Cesar. Os pais de seu Amintas eram de Riachuelo-SE, de um local conhecido

como Bonfim, situado nessa cidade.

25

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 16 abr. 2016.

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Fig. 8 - Foto do álbum de família de Amintas Vieira. Na fotografia está seu Amintas quando mais

jovem no aniversário de seu filho.

Amintas Souza conviveu com seu pai, mãe e um irmão mais velho. Relata que teve bons

pais, todavia era castigado quando cometia atos de “rebeldia”. Seu pai era o que mais

promovia o castigo, aderindo a um manguá (chicote):

Mas quando aprontava alguma coisa tinha castigo, meu pai batia com um

manguá, é um chicote como aquele que tem no museu, meu pai era, só

bastava ele olhar assim e minha mãe olhar que eu já saia, meu pai castigava

mais que minha mãe, ele era mais severo, não deixa jogar bola, quando

vinha do colégio, ele dizia cadê Amintas? tá ali no campo, ele montava no

cavalo e me pegava de lá até em casa batendo, meu fio venha trabalhar,

agradeço a Deus e a ele por ser hoje um homem trabalhador, honesto26

.

Informa que na adolescência não saia para festas, focando no trabalho e nos estudos.

Também não integrou os grupos “folclóricos” locais, embora gostasse de ver o Lambe-Sujo e

também o São Gonçalo.

Por volta de 1968, seu Amintas, que sempre foi incentivado por seus pais a estudar,

concluiu o primeiro grau no Ginásio27

professora Posidônia Bragança28

. A partir desse

momento, se dedicou ao trabalho na fazenda com seu pai, pois não tinha uma profissão que

26

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 13 nov. 2014. 27

Esse Ginásio atualmente é a Escola Estadual João Ribeiro. 28

A família Bragança tinha um Hospital na cidade e o esposo da professora Posidônia era médico. A memória

oral de parte dos habitantes da cidade de Laranjeiras destaca que quando Lampião passou nesse município

estava com um olho machucado e esse médico tratou do seu olho e por gratidão Lampião não atacou a cidade.

No Museu Afro-Brasileiro existe uma cadeira de arruar que pertencia a essa professora.

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desejasse exercer, permanecendo em algo que gostava e na companhia de seu pai até o dia que

consegui emprego no Museu-Afro: “Fiquei junto ao meu pai sabe, negócio de fazenda, de boi,

gostava muito sabe? Aí me dediquei sabe?”29

.

Com o passar dos anos, já adulto, Amintas foi trabalhar no Museu Afro-Brasileiro de

Sergipe, era o seu primeiro emprego. Através de José Rollemberg Leite, que era muito amigo

do pai de Amintas e andava muito na casa do mesmo, conseguiu indicar o mesmo para

trabalhar no museu:

Olha nesse tempo não existia curso, era assim: entrava um governo aí a

pessoa, era cargo indicado. Olha foi no tempo do doutor José Rollemberg

Leite, entrei no Governo do José Rollemberg Leite, ele era muito amigo do

meu pai, através dele eu consegui o trabalho30

.

Isso aconteceu no Governo de José Rollemberg Leite, no dia 10 de outubro de 1975,

quando o local ainda era conhecido como “Casa Laranjeiras”. No momento em que ele

chegou ao lugar tinha-se reformado o ambiente e não havia nada dentro, somente entregaram

a chave, onde o mesmo ficou aguardando os objetos chegarem:

Era a Casa Laranjeiras, lá por enquanto não tinha nada, reformaram e me

entregaram a chave, eu fiquei com a chave esperando chegar os objetos31

.

(...) Eu quando fui me apresentar, quando mandaram eu me apresentar ao

secretário de educação e cultura, secretario era aquele no sei o que Diniz, ele

está vivo, já tá e idade, aí ele disse você que eu ia trabalhar no Museu Afro

aqui em Laranjeiras, eu disse tá bem, me deu a chave e eu vim e tomei conta

do museu e não tinha nada dentro32

.

Já em 1976 é inaugurado como Museu Afro-Brasileiro de Sergipe junto com o primeiro

Encontro Cultural de Laranjeiras e seu Amintas continuou como funcionário da instituição.

Ali trabalhou até se aposentar na própria instituição e, mesmo após isso acontecer, continuou

a trabalhar no local contabilizando 38 anos (1975-2013) no Museu Afro.

Naquela época, seu Amintas era jovem e não possuía uma concepção sobre o que seria

uma instituição museológica, adquirindo esse conhecimento no decorrer do tempo. Nesse

momento ficou muito feliz em saber que faria parte da equipe de funcionários do museu,

mesmo sabendo que a principio seriam contratados dois funcionários somente, ele e a diretora

da instituição: “Quando eu cheguei a Casa Laranjeiras não tinha idéia de que ali seria um

museu, eu não tinha nem noção do que era um museu, não entendia nada, não tinha

conhecimento, um ano depois, em 1976 transformaram o lugar no Museu Afro”.33

29

Entrevista com Amintas Vieira Souza em 23 out. 2014. 30

Entrevista com Amintas Vieira Souza em 23 out. 2014. 31

Entrevista com Amintas Vieira Souza em 23 out. 2014. 32

Entrevista com Amintas Vieira Souza em 16 abr. 2016. 33

Entrevista com Amintas Vieira Souza em 16 abr. 2016.

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Seu Amintas casou-se duas vezes, a primeira com Lidia Teles de Oliveira com quem

teve quatro filhos (Antônio Amintas, Luciana, Ana Lucia e Adriana), o mesmo não recorda

mais a data, pois faz muito tempo, já que sua filha mais velha completou 46 anos, mas diz que

a primeira vez casou na igreja e no civil, até separar. O segundo casamento foi com dona

Maria Elenice da Silva e tiveram um filho chamado Anderson da Silva Souza. Vieira possui

onze netos e um bisneto.

O mesmo trabalhava no Museu Afro como porteiro pelo dia e a noite exercia a função

de guarda, sendo contratado pela Prefeitura Municipal de Laranjeiras. Tempos depois teve

que decidir em qual dos seus trabalhos gostaria de permanecer e decidiu ficar como porteiro

no MABS. Já Elenice morava a principio com sua irmã em Aracaju e trabalhava como

doméstica. Quando seu Amintas se separou do primeiro casamento, casou-se com Elenice,

sustentando a família com o dinheiro que ganhava trabalhando no museu: “nós fomos morar

juntos em 2 de maio de 1982, vai fazer 34 anos que moramos juntos, dia 2 de maio de 2016

completaremos os 34 anos”.34

Quando o pai de Amintas era vivo, mas já com certa idade, pensando no bem estar dos

seus oito filhos, ele dividiu seus bens:

Antes de falecer ele foi ao cartório, ele tinha muita terra, aquele que dava pra

deixar dois, ele deixava, ele tinha oito filhos, deixou tudo dividido em dois,

sabe ele dividiu pra todo mundo. Depois dessa divisão todo mundo ficou

com sua terra, mas depois eles venderam, só quem tem até hoje sou eu, essa

parte que eu moro e lá onde minha filha mora, outro terreno mais pra

baixo35

.

Atualmente, Amintas encontra-se com a saúde um pouco frágil após ter feito uma

cirurgia e amputado um dos pés. É considerado por seus conterrâneos como um homem

alegre, prestativo, gentil e amigo. Reside com sua esposa no povoado Machado que fica

situado a cerca de um quilômetro do centro da cidade de Laranjeiras/SE.

3.2. Amintas Vieira e o jogo de memórias: o museu e os documentos

O Museu Afro-Brasileiro de Sergipe, em 1976, teve como diretora36

Ana Conceição de

Carvalho37

que ficou atuando mais ou menos por um ano. Depois que ela saiu, Telma Santos

34

Entrevista com Amintas Vieira Souza e Maria Elenice da Silva em 16 abr. 2016. 35

Entrevista com Amintas Vieira Souza em 16 abr. 2016. 36

Essas informações são de acordo com as memórias de Amintas Vieira que narrou precisamente os nomes das

pessoas que ficaram a frente da instituição museal, mas o mesmo não ressaltou datas precisas de quando isso

aconteceu.

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assumiu o cargo e, um tempo mais tarde, Telma Rosita. Em seguida foram diretoras Izaura

Júlia e, por fim, Helena Gonçalves Meiras que permaneceu na direção da instituição até

meados do ano de 2014.

Ainda na gestão de Ana Conceição que se começou a montar o MABS que obteve o

auxílio de Luiz Antônio Barreto, assessor cultural38

, que contribuiu com o Encontro Cultural

de Laranjeiras. Foram os responsáveis pela busca dos objetos que fariam parte do museu,

porém outros funcionários ajudaram na organização do mesmo. Sobre Luiz Antônio Barreto

ressalta Amintas:

Era uma boa pessoa, sabe? Hoje falecido, agora uma boa pessoa, muito

brincalhão, era uma pessoa ótima, tratava bem os funcionários, uma pessoa

simples, ele só veio montar a exposição no Encontro Cultural, ele sempre

aparecia para ver como as coisas estavam39

.

Antônio Barreto nasceu em Lagarto/SE e é considerado um dos maiores pesquisadores

de Sergipe. Enquanto estava no cargo de secretário de Educação e Cultura de Aracaju, na

gestão do prefeito Héraclito Rollemberg, Barreto foi quem deu o primeiro passo para trazer a

primeira filial do escritório da Fundação Joaquim Nabuco, fora da cidade de Recife,

integrando-a em Aracaju.

Na primeira expografia do Musseu Afro era apresentado berimbau, artesanatos, que

eram expostos na parte inferior. Eram objetos de palha, abano, esteira, peneira etc., entretanto,

isso acontece até a gestão de Telma Santos, pois quando adentra como diretora Telma Rosita

os berimbaus e os artesanatos saem de cena.

Seu Amintas foi contratado para ser o porteiro do Museu Afro-Brasileiro de Sergipe

durante o dia, mas na época não tinha monitor para atender o visitante então ele também

apresentava a instituição. A contratação foi para ser porteiro, o mesmo ressaltou ainda ter a

carteira de trabalho, mas não recorda onde a guardou, porém se dispôs a encontrá-la. Em 1976

trabalhava ele e sua ex-esposa Lidia Teles de Oliveira, desenvolvendo várias ações no museu,

inclusive mediação, na direção estava Telma Rosita.

37

Segundo seu Amintas ela iniciou como diretora em 1976 permanecendo cerca de um ano na gestação, já Izaura

começou a trabalhar na instituição no ano de 1988 a 2007, logo após é a vez de Helenaque fica como diretora do

MABS até meados de 2014. 38

Disponível em: jornaldacidade.net/noticia-leitura/129/27953/luiz-antonio-barreto-o-maior-historiador-que-se-

ja-teve.html#.VxTTr0ePDIU. Acesso em 18 abr. 2016. 39

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 23 out. 2014.

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61

Fig. 9 - Carteirinha de trabalho. Acervo pessoal de Amintas Souza.

Valendo-nos das memórias de seu Amintas é que podemos ressaltar como era

apresentada a exposição do MABS de 1976 até aproximadamente 2003, após esse ano

começou a se contratar monitores e o mesmo deixou de apresentar o museu aos visitantes.

Dessa forma, também podemos observar o discurso feito por ele quando apresentava a

instituição ao visitante:

Olha primeiro eu recebia os visitantes, me apresentava a eles, eu era o guia e

tinha a primeira sala „Sala da Economia Açucareira‟ mostrava todas as

peças, eram as mesmas peças que ainda tem hoje no museu, as moedas, os

arados e a presença da casa de farinha de mandioca, depois passamos para

uma salinha que é a „Sala de Castigo‟ o tronco de escravo, no tronco os

escravos ficariam preso pela mão e pelo pé. E tem também o pelourinho

onde eles apanhavam ali e depois nós saiamos para sala do Senhoril, tem a

cadeira de arruar ou leiteira, temos o conjunto de sofá que pertenceu a

Fazenda Massapé, temos também vários quadros, como antigamente os

senhores andavam, os escravos que levavam, tem também uma cama, que

essa cama pertenceu a família Ermelino Lobão, essa família era daqui da

cidade, que segundo passou para professor Jorge Luiz que foi uma compra

que o museu fez ao professor Jorge Luiz, temos também o baú que guardava

as roupas e jóias, ai vem agora a parte da cozinha, na cozinha tem a mesa e

todos os mantimentos, talheres, os pratos, temos também as placas e os

almofarizes, também os caixões com baú, temos também as panelas, as

frigideiras que foi adquirida aqui em Laranjeiras, temos também o fogão de

lenha, o pote, um porta prato, temos também pilões de cintura que foram

adquiridos em Malhador, o pilão quadrado é daqui da Laranjeiras, foi uma

doação de uma senhora, se não me engano foi de Dona Rita. Em cima a

primeira sala em 1796 ainda não era dedicada a Exu, não tinha essa sala,

nessa salinha eles botavam negocio de palha, pertencente ao Candomblé,

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algumas figuras, era coisas de artesanato voltados para religião afro, na Sala

Grande era um pegi, ou seja,um Untá, cada um santo da igreja católica

corresponde a um Orixá, então dizemos da parti do sincretismo religioso,

depois vem Lê assim ao lado que não sei se está assim ainda hoje, Lê que é

Babalorixá que morava em Aracaju, já falecido, e tem todos os 12 Orixás

acompanhando, depois vem a Sala do Nagô de Umbelina Araújo, segundo

ela faleceu ficou Dona Lurdes e terceiro ficou Bárbara e aquela parti dali

temos o quadro de Alexandre exposto, temos também alguns pretos velhos.

A ultima sala grande tinha os expositores e tinha coisas referidas aos grupos

folclóricos, representava as danças, tinha as roupas dos grupos folclóricos,

tinha uma roupa de cada grupo40

.

Foi por meio do acervo particular de seu Amintas que é composto, por exemplo, por

apostila, panfletos, catálogo, entre outros, onde os mesmos possuem informações sobre o

Museu Afro-Brasileiro de Sergipe, que podemos ressaltar como era a exposição da instituição

museal desde o inicio, assim, podemos mencionar que Vieira por possui tal preciosidade

documentada torna-se não apenas “guardião da memória” oral, mas de documentos escritos.

Ao ser questionado do porque guardar até hoje esses documentos que contêm informações

sobre o Museu Afro-Brasileiro de Sergipe ele respondeu: “Por que eu gosto, foi o meu

primeiro emprego e eu sou muito apegado ao meu trabalho, gostava muito né? Se eu pudesse

voltava a trabalhar lá, mas agora é hora de descansar (risos)” 41

.

Segundo Ângela Gomes (1996), os “objetos de memória” acionam propriedades

simbólicas que possuem o andamento e a valor sentimental do indivíduo. Podendo ser

fotografias, documentos, vídeos, entre outros bens particulares, esse conjunto torna-se

indícios e representação da memória dos envolvidos. Assim, os elementos destacados podem

adquirir a denominação de espaços da memória.

Amintas se encaixa perfeitamente nesse contexto, pois possui um acervo que envolve

fotos, documentos, panfletos, catálogo, e suas memórias orais, que faz questão de lembrar. Ao

descrever cada momento vivido percebe-se a satisfação em poder ter feito parte dessa história,

e agradece por poder falar sobre seu primeiro local de trabalho.

40

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 13 nov. 2014. 41

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 16 abr . 2016.

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Fig. 10- Foto do álbum de família de Amintas Vieira. Aniversário surpresa de Amintas no Museu

Afro-Brasileiro de Sergipe.

Dentre esses documentos sobre o museu encontramos a descrição da expografia e o

nome de cada sala do Museu Afro e o que cada uma significava. Por meio da descrição do

documento podemos observar como era a exposição permanente do MABS, nos primeiros

anos de sua fundação. A importância do documento justifica a longa citação:

II - O CIRCUITO MUSEOGRAFICO DO MUSEU - O prédio onde o

Museu está instalado possui dois pavimentos o que facilita a montagem da

exposição permanente do Museu. O pavimento térreo possui cinco (05)

salas, sendo duas (02) pequenas e duas (02) grandes, além do corredor e do

rol de entrada; possui ainda uma (01) sala anexa bem ampla. Essas salas são

assim distribuídas dentro do circuito do Museu: - Rol da entrada- funciona a

recepção; - Duas (02) salas pequenas; - A primeira sala funciona- A Sala de

Instrumento de Tortura; - Sala em anexo- funciona a Sala da Economia

Açucareira; - Segunda sala grande- Sala Herança do Senhorio; - Terceira

sala- Cozinha de Casa Grande; - Corredor- Pinacoteca e espaço para

exposições temporárias; - Área externa- Jardim de Ervas Medicinais, plantas

e fruteiras. 2.1 O QUE SIGNIFICA CADA SALA - 2.1.1 Sala da economia

açucareira: Nesta sala, procuramos mostrar, que o Negro foi introduzido no

Brasil como força motriz de um processo econômico que se instalava, que

era a monocultura canavieira, implantada no Sistema de Capitanias

Hereditárias, inicialmente contando com a mão-de-obra dos índios que não

se adaptaram a nova atividade. Pra que essa produção desse certo, Portugal

lançou mão do Negro que ele já escravizava desde o século XV, antes

mesmo de conquistar o Brasil. - O que temos nessa sala: A sala é composta

por equipamentos utilizados na produção, transporte e fabricação do açúcar,

como também da farinha e do café. As peças são na sua maioria de madeira,

grandes e do século XIX e pertencente a Engenhos da região canavieira de

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Sergipe. Mostramos também essas atividades através de reprodução

fotográficas e telas colocadas estrategicamente na composição da mostra.

Destacamos- Os arados, as moendas, os carros de bois. 2.1.2- Sala de

Instrumento de Tortura: Esta mostra, procura enfatizar que o Negro nunca

aceitou a escravidão. Tanto que para eles permanecerem no cativeiro os

Senhores tiveram que criar instrumentos de tortura que levavam o Negro

algumas vezes a submissão por força dos fortes castigos, implementados

principalmente contra aqueles que se rebelavam. Mas esses instrumentos não

intimidavam os negros na sua luta pela liberdade, muitos deles morreram por

causa das duras penas que lhes eram aplicadas.- O que temos nessa sala: A

exposição é composta por peças em madeira e ferro. Destacamos - Os

troncos e as correntes. 2.1.3 - Sala Heranças do senhorio: Nesse espaço

procuramos mostrar um pouco do mobiliário e das louças que faziam parte

do cotidiano do Senhor de Engenho. As peças que estão na exposição

pertenceram a Engenhos da região canavieira de Sergipe. - O que temos na

sala: A sala é composta por peças em madeira e louça. Destacamos - O

conjunto de sofá e cadeiras em palhinha do Engenho Massapé; Os baús dos

Engenhos da região de Malhador, as louças dos Engenhos de Malhador, a

cadeira de arruar. 2.1.4- Cozinha de Casa Grande: Nesta sala, procuramos

reproduzir uma cozinha de engenho, local onde trabalhava os escravos

domésticos e de onde saíram vários pratos que hoje fazem parte da culinária

brasileira, com bastante destaque. O escravo doméstico tinha alguns

privilégios, mas o serviço era bastante pesado, pois os utensílios domésticos

eram na sua maioria de ferro, conseqüentemente bastante pesado. - O que

temos nessa sala: Como a sala simboliza uma cozinha, temos o fogão, mesa

e vários utensílios utilizados pelos negros nas cozinhas das casas grandes.

Destacamos - A mesa de um Engenho da região de Malhador, os

almofarizes, os pilões, as frigideiras. A parte externa é formada pelo jardim

de Ervas Medicinais que são usadas nos rituais afro-brasileiros como a

Aroeira, Samba Caita, Quarana, Tapete de Oxalá, Alevante e várias outras.

Como também existe planta ligada aos Orixás Africanos. E as fruteiras que

já fazem parte do cenário da área externa do Museu. O PAVIMENTO

SUPERIOR - No pavimento superior temos três (3) grandes salas e duas (2)

pequenas, além de um corredor. Essas salas são assim distribuídas: - Uma

sala grande- O Candomblé; - Sala pequena- O Nagô; -Sala grande- Heranças

Africanas no Cotidiano Brasileiro; - Sala grande- O Folclore de Herança

Negra e Personalidade que contribuíram para a formação do Museu; - Uma

sala pequena- Reserva Técnica. 3 - O QUE SIGNIFICA CADA SALA: 3.1-

Sala do Candomblé: Esse espaço procura mostrar uns traços mais

marcantes do Negro no Brasil que foi a sua religiosidade, tão perseguida, tão

descriminada até os dias de hoje. Procuramos enfatizar a origem real da

religião dos Orixás e mostramos as influências que sofreram e no que se

transformaram. Essa mostra é feita através de várias peças ligadas ao ritual

afro-brasileiro. - O que temos na sala: A mostra é composta por manequins

que mostram a indumentária de alguns Orixás, pelo Pegi (altar), por adereços

dos Orixás, tronos de babalorixás, imagens dos Exus da Umbanda,

assentamentos, máscaras e instrumentos musicais do Candomblé.

Destacamos - Os manequins com as indumentárias dos Orixás, o Pegi, os

assentamentos. 3.2- Sala do Nagô: O Nagô é considerado por pesquisadores

da religião afro no Brasil, como o seu lado mais. Ligado ás origens. O Nagô

é uma linha muito fechada com características bem peculiares e severas, não

possui ostentação, seus filhos vestem-se de branco e cumprem um ritual

bastante longo em períodos determinados pela Loxâ que comanda o Abaça

(Terreiro). Em Laranjeiras a presença do Nagô é bastante forte e respeitada

pela comunidade o que acontece com os Abacás (Terreiros das linhas do

Candomblé). - O que tem nessa sala: A exposição é composta pelo Pegi e

por manequim vestido com traje usado pelos filhos de fé do Nagô, peças que

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são o destaque da sala. 3.3- Heranças Africanas: Nessa sala procuramos

mostrar um pouco do que o negro introduziu em nossa cultura e que fazem

parte do cotidiano do povo brasileiro. - O que temos nessa sala: A exposição

é composta por instrumentos musicais ligados a musicalidade afro-brasileira,

por elementos de superstição42

, por representações de rituais como a ceia de

Cosme e Damião, o culto a Escrava Anastácia, a Nossa Senhora da

Conceição, a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, por indumentárias

de grupos folclóricos de origem afro-brasileira e por peças que representam

o negro nas suas tribos na África, por Santos do Catolicismo de origem

Negra e peças de cerâmica feitas por artesões negros. O acervo que compõe

essa mostra, apesar de ser do século XX, são todos de destaques, pois

representam o que temos vivo no nosso cotidiano que veio de um passado

tão negro da nossa História que foi a Escravidão. 3.4 - Sala O Folclore de

Origem Negra e Personalidades: Esta sala representa os folguedos populares

ligados a Herança Africana introduzidos no Brasil no período canavieiro. Os

grupos que mostramos fazem parte de um pequeno grupo de manifestações

que sobreviveram à aculturação do branco. São grupos de Laranjeiras,

Japaratuba e Lagarto. A mostra também se refere às personalidades que

contribuíram durante os 25 anos de existência do Museu para o seu

funcionamento, são pessoas que fizeram doações, Babalorixás e Ialorixás e

pessoas que passaram pela vida pública durante esse período. - O que temos

na sala: Painéis com fotografias dos grupos: Taieira, Cacumbi, Parafusos,

Maracatu, sendo os dois primeiros de Laranjeiras, o terceiro de Lagarto e o

quarto de Japaratuba. Temos a indumentária da Taieira e do Cacumbi. Na

parte das Personalidades, temos reproduções fotográficas, com destaque para

o Sr. José Monteiro Sobral que foi o Prefeito que inaugurou o Museu e o que

dirigia Laranjeiras quando dos 25 anos do Museu43

(...).

Ao analisarmos as informações citadas acima podemos dizer que a sala que possui

objetos voltados para economia continua praticamente igual, a diferença é que atualmente

não estão mais expostas as fotografias e as telas que antigamente faziam parte da expografia.

Já na sala de instrumentos de tortura, as peças permanecem representando os castigos

vividos pelos negros escravizados.

Todavia, é necessário questionar o porquê das retirada das fotos e telas que estavam na

sala de economia? É possível que essas tenham sido silenciadas através da mudança que

ocorrera na gestão. E na sala de instrumento de tortura porque dizer que queriam representar

a não aceitação do negro aos castigos se a expografia mostra outra coisa? De fato quem olha

o que ainda se encontra exposto percebe o quanto a raça negra sofreu, nota-se que não existe

um contexto que abranja, através do que se apresenta, a resistência do negro, a expografia

enfoca a dor, a discriminação e, sobretudo, o domínio do branco sobre seres humanos

tratados de maneira desigual, desumana.

42

No local existia figa (mão fechada que simboliza a retirada do mal olhado), o gato preto (imagem pequena de

porcelana), etc. 43

Trata-se de um documento feito com folha ofício e tendo por responsavéis o Governo do Estado de Sergipe,

Secretaria de Estado da Cultura, Instituto da Memória e da Documentação, Museu Afro-Brasileiro de Sergipe.

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66

A sala heranças do senhorio, conhecida agora como sala do senhorio, ainda apresenta

os objetos citados no documento, entretanto organizada sem as louças, pois estas se

encontram na representação da cozinha da casa grande. Nesse espaço, que envolve o

mobiliário, a cadeira de arruar tem a reafirmação do trabalho forçado que o negro executava,

ou seja, continua a afirmação do poder do branco sobre o negro.

O espaço dedicado a cozinha da casa grande visa apresentar a culinária negra mesmo

sabendo que esses seres sofreram, pois o trabalho era muito pesado porque os objetos na sua

maioria pesavam bastante, manusear o pilão com mão requeria muito esforço etc. Mas ao

analisar a expografia e o que a maioria dos monitores que trabalham no local ressalta

enquanto apresentam o lugar ao visitante é possível dizer que o contexto não condiz com a

idéia inicial da instituição, já que enfocam apenas os acervos, o século e para que servia

cada objeto, não evidenciando a comida enquanto um patrimônio intangível. É mais um

aspecto silenciado dentro do MABS.

Próximo a essa sala, na parte externa, havia o jardim de ervas medicinais que fazem

parte de rituais nas religiões afro-brasileiras. Atualmente, existem apenas algumas plantas, o

jardineiro foi dispensado e as ervas começaram a morrer, resta ainda a aroeira, a espada de

Ogum, espada de São Jorge, o tridente de Exu, alevante. Não mais existem o samba caitá,

quarana, tapete de Oxalá (boldo do Chile), manjericão, tipi, anador, hortelã miúdo etc.

Amintas participou no início desse projeto:

Da primeira vez que o jardim foi montado eu já estava lá, aquelas plantas

quem começou a plantar foi eu, as plantas afro-brasileiras, eu comecei a

plantar quando abriu o museu, são ervas medicinais, foi eu que plantei os

canteiros depois foi que chegou esse rapaz o Brás já na direção de Helena e

refez junto com Sayonara o projeto do jardim44

.

Com relação ao pavimento superior, a sala dedicada ao Candomblé até a década de

1990 tinha em exposição de longa duração os manequins vestidos com as indumentárias dos

Orixás, pegi, imagens de santos da Igreja Católica, imagens de Exus da Umbanda, máscaras,

assentamentos etc. Com os anos, boa parte do que foi citado deixou de fazer parte da

expografia, encontram-se na reserva técnica, saíram os santos, assentamentos, ervas nas

quartinhas, os pretos velhos etc. Com tantas modificações a sala também adaptou o nome para

sala do sincretismo religioso, isso permaneceu até o ano de 2013.

A sala do Nagô não mais condiz com a descrição. A roupa do Nagô que era exposta em

manequim está em caixa de papelão dentro de um quartinho no pavimento superior, como

ainda o pegi que tinha pretos velhos está organizado totalmente diferente. Existe essa

44

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 11 abr. 2016.

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confusão entre as religiões cujos rituais e história não são apresentados na expografia. Até

porque o Candomblé é bem mais conhecido que o Nagô, sendo assim vale lembrar que

existem diferenças entre ambas, pois na primeira não se cultuam os pretos velhos, já na

segunda sim, como também no Nagô não cultuam Exus, por exemplo.

Com relação à sala do folclore de origem negra, suas personalidades e as heranças

africanas, contendo painéis com fotos dos folguedos Taieira, Cacumbi, Parafusos, Maracatu,

roupas dos grupos Taieira e Cacumbi, por exemplo, o espaço não existe mais. Foi desfeita,

calaram parte da herança africana, silenciaram essa memória colocando os objetos em um

espaço escuro do museu. As indumentárias dos grupos, os instrumentos musicais, as inúmeras

fotografias tudo se encontra na reserva técnica da instituição sem que haja uma vontade maior

de que os mesmos voltem a fazer parte da expografia.

Segundo a ex-diretora Maria Helena o que chamamos de sala de exposição de curta

duração era o local reservado para o acervo dos folguedos, mas que foi desfeita e o espaço

ficou reservado para temáticas temporárias.

Com o passar dos anos a exposição do Museu e alguns eventos começaram a ser

modificados, a cada gestão uma nova alteração, conforme destacou Amintas Souza:

Mudou muito minha fia, muito, pra pior, por que as que estão na exposição

não são mais as mesmas e não embelezam tanto o museu, não mostra muito

o “EU” do negro, a dança, a música, a comida, a contribuição do negro. Olha

teve uma época que os Orixás não lembro muito bem, no Encontro Cultural

eram postos pratos, comidas, flores, tinham também concurso de beleza

negra, tudo isso desapareceram com o passar do tempo. Olhe ele foi até

museu-escola, nós tinha lá cadeiras, mesas, bancas, teve até aula lá no museu

naquela sala que da economia açucareira, aquelas peças não existia ali

naquela sala, era uma escola para ensinar só crianças45

.

Isso é notável a cada visita que um indivíduo faça ao MABS. Sua expografia enfatiza a

escravidão, silenciado aspectos da contribuição do negro. Podemos citar peças que estão no

museu, mas guardadas, em silêncio profundo como, por exemplo, a roupa do grupo Taieria,

Chegança, Lambe-Sujo, Caboclinho, como também uma indumentária do grupo Ylê Aiyê (em

bom estado de conservação), uma série de bonecas de pano que representam os folguedos de

Laranjeiras, os instrumentos musicais (tambor, agogô, querequexé, tamborim, atabaque), além

do vasto acervo de fotografias referente aos eventos produzidos pelo Museu (o concurso

Beleza Negra, a Lavagem da Escadaria da Igreja do Bomfim, fotos da inauguração do Museu

Afro-Brasileiro de Sergipe em 1976, pastas com atividades feitas no projeto escola no museu,

inúmeras pastas com fotos da exposição de anos atrás, onde os manequins estão vestidos, ou

45

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 23 out. 2014.

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mesmos funcionários da instituição estão usando a indumentária para representar a

divindade).

Na reserva técnica que fica na parte térreo estão à maior parte desses objetos citados

acima e a outra parte fica no pavimento superior, onde se guarda mais tecidos, roupas de

Orixás, manequins, instrumento musical, pratos de barro, vitrines, pedras, birô, expositores de

madeira arredondados etc.

O fato é que os grupos “folclóricos” no inicio faziam parte da expografia do MABS,

como uma maneira de lembrar a herança deixada pelos negros e que os brancos aderiram ao

cortejo, assumindo a prática, valorizando sua cultura. Os anos passaram e, aos poucos, tais

indícios foram retirados da expografia.

Toda a reconstrução feita por meio da memória ou por documento apresentado por

Amintas Vieira Souza foi de extrema importância para a construção deste trabalho. Mas é

preciso ressaltar que houve um corte de funcionários no final do ano de 2013, Amintas foi

dispensado e encerrou de vez sua função no MABS:

Me aposentei pelo museu, foi o meu primeiro trabalho. Aí quando Dona

Helena assumiu, o secretario mandou recado para eu comparecer na

Secretaria, aí chegando lá ele perguntou quer trabalhar? O senhor já é

aposentado né? Aí eu disse já, a data que eu comecei é que não me lembro.

Pegou-me de surpresa quando fiquei sabendo que não ia mais trabalhar lá, eu

senti um pouco por que tava acostumadinho com os meus colegas, a ir todo

dia pra lá, aí um dia Helena mim chamou, já estava pra saí e disse seu

Amintas não venha mais por que eles vão vim aqui e o senhor não precisa

vim mais hoje, aí eu mim afastei e não fui mais46

.

Assim que foi dispensado, o mesmo não retornou mais ao local nem para fazer a

devolução da chave que ficava com ele. A chave foi entregue na casa da diretora Maria

Helena que comentou esse fato ao chegar à instituição, pensou que seu Amintas ficou muito

triste por ter que se afastar de sua função do museu.

Seu Amintas nunca recebeu uma homenagem na instituição e não existe nenhum

trabalho acadêmico anterior que fale sobre o mesmo. O lugar que fez uma homenagem a ele

foi o Centro Social do Machado no ano de 2012, na direção do senhor Carlos Alberto, que

deu ao lugar o nome de Amintas Vieira Souza:

Porque eu sou um dos moradores mais antigos daqui do Machado, então

fizeram uma reunião lá e botaram meu nome, teve uma plaquinha com meu

nome, em minha homenagem, isso aconteceu quando completei 70 anos, eles

me deram um certificado por que qualquer coisa tenho como comprovar, foi

Carlos Alberto que se reuniu e deu meu nome ao Centro, ele mora na Vila

Ione e ainda está na coordenação do centro. Fiquei muito alegre, elogiado

né? Não fiz nenhum discurso, não sou muito de falar, sou um pouco tímido.

46

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 23 out. 2014.

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Era sócio do Centro, tinha uma mensalidade, nós pagava, era um real,

quando começou a Associação era um real, agora a mensalidade é cinco

reais, eu e minha esposa continuamos sócios, esse dinheiro serve para pagar

energia, comprar material de limpeza. Nessa Associação já teve curso de

informática, agora vai ter de novo, para os moradores do Machado é dez

reais e para o povo de fora é 25 reais, sim foi dado pela Cimesa, é uma

parceria com a Cimesa47

, que é uma ajuda que eles dá por causa da poluição,

eles deram o dinheiro pra comprar os computadores e o dinheirinho que dá é

pra comprar material, o curso será de manhã, a tarde e a noite48

.

Amintas continua contribuindo com a sua comunidade, integrando a Associação que

leva o seu nome e que auxiliam jovens a fazerem um curso a baixo custo financeiro, mas

também como “guardião da memória” do MABS.

3.3. O mundo museal e a cultura afro-brasileira

Segundo Amintas Souza, o MABS tem uma importância histórica, pois apresenta tanto

a parte do trabalho escravocrata quanto a religião, além de que se não houvesse esse museu

possivelmente não existiriam mais essas peças. Ao dialogar com Amintas e ao ser interpelado

o que seria museu em sua concepção o mesmo ressalta que: “O museu afro é uma casa antiga

que preserva as peças antigas, pra mim o museu é isso e tanto é isso e serve também para

guarda as peças e salvaguardá-las”.49

O museu é visto como um lugar para se guardar coisas antigas, para manter todas as

peças salvaguardadas, assim a comunidade acredita nessa instituição e doa seus bens

materiais: “O coração do museu é o acervo... A primeira obrigação de um museu é reconhecer

e assumir as responsabilidades inerentes à posse de seu acervo, que lhe é confiado em

benefício dos cidadãos, atuais e futuros, da comunidade” (BURKE, 1988, p. 32).

Segundo Amintas, boa parte da população laranjeirense se identifica com a sua própria

cultura, como também a valoriza, para ele a cultura é:

Cultura é, cada um possui a sua cultura, assim Laranjeiras tem uma cultura

muito grande, muitos grupos folclóricos, nossa cidade valoriza muito o

folclore que nós temos né? Todos da minha família gosta dessa cultura, mas

nunca brincamos nos grupos folclóricos, mas gostávamos de ver os grupos,

todos nós50

.

O negro teve um papel fundamental no desenvolvimento da cidade de Laranjeiras, na

influência da identidade cultural desse povo. Para Amintas, o negro:

47

A Cimesa é uma fábrica de cimento que fica situada na cidade de Laranjeiras. 48

Entrevista com Amintas Vieira Souza e Maria Elenice, em 16 abr. 2016. 49

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 6 nov. 2014. 50

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 12 abr. 2016.

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É uma pessoa igualmente ao branco, são uma, sobre o branco e o negro, é

tudo eu acho por iguais, agora tem esse racismo né? As pessoas naquela

época, agora esse racismo não é tanto como naquela época, agora diminuiu

mais, antigamente era mais forte, mas o negro contribuiu muito com a

construção da identidade do povo brasileiro51

.

Esse depoimento que ressalta o racismo nos faz lembrar que apesar de estamos no

século XXI as coisas ainda não modificaram por completo a favor do negro, pois estes ainda

são alvos também de preconceito em diversas situações. A intolerância religiosa está inclusa

nesse meio, pois muitos adeptos a religião afro brasileira são alvos de violência,

discriminação, desrespeito. A escravidão que durou cerca de 300 anos deixou marcas

profundas não somente na história, mas do negro que é apontando muitas vezes como uma

raça impura, inferior. E graças aos movimentos negros que os mesmos na atualidade já

conseguiram muitos direitos, embora ainda a muito que lutar. O mundo museal, aos poucos,

tem tentado contribuir com essa causa, embora ainda falte uma maior conscientização do

papel dos museus e da Museologia.

51

Entrevista com Amintas Vieira Souza, em 16 abr. 2016.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou apresentar inicialmente um discurso sobre as

representações dos negros nos museus brasileiros, mas também se baseou em uma revisão de

literatura que mostrou as representações sobre as diásporas negras nos museus, como ainda

existem silêncios, subrepresentações e alternativas apresentados por muitas instituições

museais ao falar das culturas negras, das heranças africanas.

De fato o jogo entre poder e memória existente em museus, aponta como se é

trabalhado a memória dentro desses locais e como e quem se sobressai e, principalmente,

quando a questão se refere aos aspectos de contribuição dados pelos negros. A desigualdade é

expressiva, notória e algumas vezes exagerada, a depender do lugar. Na maioria das

exposições a cultura negra é inferiorizada, diminuída, muitas de suas características são

esquecidas, quando se fala em obras produzidas por negros a autoria é ocultada, como se os

mesmos não fossem merecedores da “glória”, do sucesso no mundo dos artistas.

O conceito dado sobre diáspora lembra um povo forçado a abandonar sua terra natal,

seus costumes, família, moradia e expressões culturais. Entretanto, vemos que povo negro

conseguiu adaptar-se ao “Novo Mundo”, resistiu aos castigos, à saudade de sua África e, além

disso, contribuiu com a construção complexa da formação cultural brasileira.

Nesse aspecto, merecem respeito, igualdade, valorização como um todo, espaço

garantido e, sobretudo, serem representados com dignidade nos espaços museológicos,

Quando citamos o Museu Afro-Brasileiro de Sergipe estamos preocupados com a maneira que

o local vem representando o negro, pois fica clara a construção através do meio expográfico

da idéia de um “museu da escravidão”, seus objetos expostos e muitas das vezes o fraco

diálogo desenvolvido não dá ênfase a uma cultura com versões diferentes, pois fica

constatado que a raça negra se resume ao trabalho forçado e que seu único meio de resistência

foi à religião.

O museu possui porte para melhorar sua exposição de longa duração, como ainda

produzir exposições de curta duração, já que é detentor de um vasto acervo de peças em

porcelana, cerâmica, tecido, madeira, ferro, bronze etc, que estão agregados nas pequenas

salas conhecidas como reserva técnica, uma na parte térrea e outra na parte superior da

instituição.

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Mesmo a instituição museal estando situada em uma cidade que recebeu uma enorme

leva de escravizados para mão-de-obra, com uma parte extensa de descendentes de negros

vivendo em Laranjeiras ou locais próximos como é o caso do antigo quilombo conhecido

como Mussuca, o museu não contempla em seu discurso expositivo uma série de memórias

significativas para a sua comunidade.

Para falar dessas modificações temporais conseguimos ressaltá-las graças a Amintas

Vieira Souza que trabalhou por muitos anos no Museu Afro. Este pode descrever com

propriedade cada espaço dedicado as figuras culturais existentes no museu. Amintas como o

“guardião da memória” fez de seus relatos um acervo, pois desvendou muitos aspectos na

cultura negra silenciada no MABS, os grupos “folclóricos”, suas indumentárias, instrumentos

musicais, bonecas de pano os representando, dentre outros.

Sua trajetória de vida mescla-se com a trajetória do MABS, já que foi o seu primeiro

trabalho, cada vez que se pergunta como era o museu na sua fase inicial, Amintas relatava ser

muito diferente do que é apresentado hoje, que antes favorecia mais o negro e que agora isso

não mais é visualizado. Suas memórias são significativas para recuperar a história do museu

e, principalmente, reconhecer o público interno como uma faceta importante a ser observada

pelos processos museológicos e pela pesquisa em museus e em Museologia.

É de se desejar que em um futuro não muito distante o Museu Afro-Brasileiro de

Sergipe se transforme em uma instituição cujas ações estejam coerentes com sua missão, com

seu acervo, sua equipe de funcionários e que, sobretudo, deixe de silenciar os aspectos sobre a

cultura negra, que os valorize como merecem e reconheça a importância dos seus

trabalhadores e da comunidade local, em uma perspectiva cada vez mais inclusiva.

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