a cartografia indÍgena no rio da prata colonial · indígenas no período colonial, exemplificando...

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A CARTOGRAFIA INDÍGENA NO RIO DA PRATA COLONIAL Artur H. F. Barcelos Universidade Federal do Rio Grande – FURG; PPGH- Universidade Federal de Pelotas – UFPEL Que alguns jesuítas enviados à América produziram uma grande quantidades de mapas já não configura uma informação original. Desde os trabalhos pioneiros de Guillermo Furlong (Furlong,1936) e Ernest Burrus (Burrus, 1964), passando por referências em outros autores, esta temática foi objeto de diversos trabalhos. Ainda que, entretanto, não se haja retomado a questão com aportes mais contemporâneos. Mesmo entre aqueles trabalhos dedicados as conexões entre a Companhia de Jesus e o desenvolvimento das ciências nos séculos XVII, XVIII e XIX (Bermeo, 2005). Em trabalho anterior, tratei de analisar parte da cartografia jesuítica no rol de uma investigação acerca das ações jesuíticas e seus impactos no espaço americano (Barcelos, 2006a). Na ocasião, deparei-me com a possibilidade de que, em determinados contextos de missionalização na América, os indígenas com os quais os jesuítas tiveram contato tivessem não apenas desenvolvido o saber cartográfico, como lançado mão do mesmo quando a situação assim o exigisse. Isto significava reconhecer, em primeiro lugar, que a razão gráfica havia operado não apenas um papel de mediação para a inserção dos jesuítas entre os indígenas, mas que também teria servido de meio para as manifestações dos indígenas no contexto das missões religiosas. A escrita, como ramo do grafismo, desenvolvida pelos indígenas Guarani da antiga Província jesuítica do Paraguai, foi objeto de estudo recente (Neumann,2005), o qual demonstrou as apropriações do saber letrado feitas pelos índios reduzidos pelos jesuítas. O que proponho a seguir é uma breve discussão sobre a possibilidade da ocorrência do saber cartográfico entre os indígenas no período colonial, exemplificando através de uma aproximação com a cartografia produzida por indígenas Guarani, especificamente no século XVIII. A representação cartográfica do espaço pode não ter sido uma novidade absoluta para os indígenas da América, sobretudo para algumas sociedades do mundo andino ou mesoamericano. Porém, para as sociedades ágrafas do restante do continente, o convívio

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A CARTOGRAFIA INDÍGENA NO RIO DA PRATA COLONIAL

Artur H. F. Barcelos

Universidade Federal do Rio

Grande – FURG; PPGH-

Universidade Federal de Pelotas –

UFPEL

Que alguns jesuítas enviados à América produziram uma grande quantidades de

mapas já não configura uma informação original. Desde os trabalhos pioneiros de

Guillermo Furlong (Furlong,1936) e Ernest Burrus (Burrus, 1964), passando por

referências em outros autores, esta temática foi objeto de diversos trabalhos. Ainda que,

entretanto, não se haja retomado a questão com aportes mais contemporâneos. Mesmo

entre aqueles trabalhos dedicados as conexões entre a Companhia de Jesus e o

desenvolvimento das ciências nos séculos XVII, XVIII e XIX (Bermeo, 2005). Em

trabalho anterior, tratei de analisar parte da cartografia jesuítica no rol de uma

investigação acerca das ações jesuíticas e seus impactos no espaço americano (Barcelos,

2006a). Na ocasião, deparei-me com a possibilidade de que, em determinados contextos

de missionalização na América, os indígenas com os quais os jesuítas tiveram contato

tivessem não apenas desenvolvido o saber cartográfico, como lançado mão do mesmo

quando a situação assim o exigisse. Isto significava reconhecer, em primeiro lugar, que

a razão gráfica havia operado não apenas um papel de mediação para a inserção dos

jesuítas entre os indígenas, mas que também teria servido de meio para as manifestações

dos indígenas no contexto das missões religiosas. A escrita, como ramo do grafismo,

desenvolvida pelos indígenas Guarani da antiga Província jesuítica do Paraguai, foi

objeto de estudo recente (Neumann,2005), o qual demonstrou as apropriações do saber

letrado feitas pelos índios reduzidos pelos jesuítas. O que proponho a seguir é uma

breve discussão sobre a possibilidade da ocorrência do saber cartográfico entre os

indígenas no período colonial, exemplificando através de uma aproximação com a

cartografia produzida por indígenas Guarani, especificamente no século XVIII.

A representação cartográfica do espaço pode não ter sido uma novidade absoluta

para os indígenas da América, sobretudo para algumas sociedades do mundo andino ou

mesoamericano. Porém, para as sociedades ágrafas do restante do continente, o convívio

com o saber cartográfico europeu foi, seguramente, mais um elemento de alteração em

suas concepções espaciais. Desafortunadamente, o processo de conquista destruiu quase

por completo as evidências de um conhecimento cartográfico indígena. Há indícios de

mapas realizados por índios durante os primeiros contatos com os europeus. Contudo,

as provas empíricas são por demais fragmentárias. Seguramente, o auxílio prestado a

alguns europeus incluía informações geográficas, vitais para a sobrevivência destes

(ROMANO, 1989). É possível que estas informações fossem repassadas de forma

gráfica, mas, provavelmente, dar-se-iam sobre bases perecíveis, como areia, peles de

animais ou madeira (Harley, 1995:92). Apesar da ausência de uma materialidade que

registre o saber geográfico indígena, este pode estar oculto nos mapas europeus. As

representações de regiões interiores, por exemplo, onde rios e lagos são muito

simétricos (retos, circulares, quadrados), indicaria que foram acrescentados com base

em informações indígenas e não pela observação direta, como aponta Harley:

“En identifiant ainsi des délimitations qui intègrent les concepts indiens de

distance et de topographie, et en établissant leurs sources culturelles et

écologiques, on peut reconstruire en partie la contribution des Indiens à

l’image cartographique de l’Amérique et vérifier la façon dont les

cartographes européens utilisaient ce type de savoir.”(Harley,1995:97)

O que ainda persiste como uma lacuna é o conhecimento das formas indígenas

de representação gráfica dos elementos do espaço. Por outro caminho, pode-se pensar

no amadurecimento de um conhecimento indígena sobre o saber cartográfico europeu.

O intercâmbio de informações é sempre uma via de mão dupla e, se o conhecimento

geográfico indígena foi fundamental para a exploração e a representação espacial da

América, também pode ter ensejado a apreensão do registro cartográfico europeu pelas

sociedades nativas. As explorações geográficas da América, incluídas as jesuíticas,

contaram, invariavelmente, com a presença de guias e intérpretes. Seu conhecimento

está implícito nas rotas trilhadas, novas ou tradicionais, na toponímia em vozes

indígenas, nas descrições da fauna, da flora e do mundo mineral americano. Ainda que

muitos mapas da América tenham sido elaborados em centros urbanos coloniais ou na

Europa, outros devem ter sido produzidos em campo, na forma de croquis e esboços.

Certamente, muitos indígenas participaram ativamente destes processos. Em alguns

casos, podem ter sido inclusive incentivados a uma iniciação ao fazer cartográfico.

Em que pese a tradição jesuítica de restrição do saber repassado aos indígenas

com os quais tiveram contato, isto não impediu que formas gráficas de comunicação

fossem apropriadas, sobretudo em convivências duradouras como foram as reduções.

Entre os guaranis, a escrita foi sendo paulatinamente agregada ao cotidiano através das

práticas administrativas dos Cabildos, dos registros contábeis, dos textos litúrgicos e,

até mesmo, através da imprensa, como no caso das reduções de Nuestra Señora de

Loreto, Santa María la Mayor ou San Francisco Xavier. Estudos recentes têm

demonstrado a importância da razão gráfica, sobretudo a escrita, e o uso deste saber por

parte dos guaranis das reduções jesuíticas. Se, como aponta Neumann, a escrita foi

sendo apreendida gradualmente pelos guaranis até converter-se em um instrumento de

suas práticas, o mesmo poderia ser pensado para as representações gráficas do espaço,

mormente diante da grande produção cartográfica dos jesuítas. Porém, as evidências de

que os guaranis, ou qualquer outra etnia indígena reduzida pelos jesuítas tenham

produzido mapas são quase nulas.

Uma vez mais, como no caso de muitas referências a mapas indígenas, as

informações são muito mais textuais do que gráficas. O padre Peramas indicava que o

índio Melchor, autor de uma história da redução de Corpus Christi,

“... habia enriquecido su obra con un mapa trabajado por él, en el que no

estaban puestos los grados de longitud y latitud, que él desconocia, pero en el

mismo estaban consignados en toda exactitud los montes, los arroyos y los

rios, contenidos dentro de los lindes del pueblo.” (Peramas, 1962:595)

Infelizmente, nem o texto nem o mapa de Melchor foram dados a conhecer.

Outro mapa comumente atribuído a um indígena foi apresentado durante as

investigações sobre a existência de supostas minas de ouro e prata no território das

reduções de guaranis. No final do século XVII, um índio chamado Domingo denunciou

este fato às autoridades espanholas. O Ouvidor D. Juan Blasquez de Valverde foi

nomeado para investigar e visitou o local, na região da redução de Concepción, não

encontrando nada que referendasse a denúncia. Domingo confessou a mentira após fugir

e ser capturado em Yapeyú. Dobrizhoffer incluiu este episódio em sua História de los

Abipones:

En una ocasión, a fin de cumplir no solo los deseos de los Jesuitas sino

también su pedido, la Corte de Madrid envió unos hombres que debían

investigar diligentemente todas las señas de minería. A estos exploradores

fue agregado en cierta ciudad un Guaraní escapado, un hombre de una

conciencia liviana y fe venal. Este bribón, captado por regalos y promesas de

parte de un enemigo de los Jesuitas, declaró que las minas de oro estaban en

el contorno de la localidad de Concepción a orillas del Uruguay; que él

conocía muy bien tal lugar, pero que este estaba pertrechado cual una

fortaleza con trincheras, cañones y una numerosa guarnición. Hacia allá

partió la expedición. La compañía de viajeros se hallaba aún a pocas leguas

de las ponderadas minas de oro, cuando a la noche huyó el falsario indio, en

su temor ante el castigo que le iba acarrear la mentira, ya próxima a ser

descubierta. En la localidad Yapeyú nuestro mismo misionero lo hizo

prender, atar y bajo suficiente custodia, entregarlo leal y rápidamente a los

Españoles de quienes había escapado. Quedó manifiesto ahora el engaño de

las minas de oro inventadas y de las fortificaciones. La fábula y la calumnia

quedaron desautorizadas.(Dobrizhoffer, 1967-69:262)

Fig. 1 Mapa de la Laguna Brava y de los Ríos Uruguay, Paraná y Paraguay, con diseño de

las fortificaciones y lugar de las minas de oro que según declaración de un indio llamado Domingo,

poseían los jesuitas en aquellos lugares.

Fig. 2. Mapa de la Laguna Brava y de los Ríos Uruguay, Paraná y Paraguay, con diseño de

las fortificaciones y lugar de las minas de oro que según declaración de un indio llamado Domingo,

poseían los jesuitas en aquellos lugares.1

Furlong, em seu catálogo, identifica um mapa com o seguinte título: Mapa

Compuesto por un indio guarani y en el que se consignan las estancias de algunas

reducciones. (Furlong,1936:42) O referido mapa representa uma área entre os rios

Paraná e Tebiquari, incluindo alguns afluentes destes. Nele, estão registradas as

reduções de Itapuã, Trinidad e Jesús, além das reduções franciscanas de Yuti e Caazapá.

Outros elementos indicados são as chácaras antigas dos índios de Itapuã. Os ervais são

identificados como “yerbales de los IHS”, mas entre os rios Piraiubi e Pirapo estão os

“yerbales de Caa Cay”. Identifica um caminho como sendo o “Camino de los de Yuti a

los yerbales”. Embora as condições da cópia oferecida por Furlong sejam precárias, é

possível visualizar alguns caminhos entre uma redução e outra, e destas para diferentes

pontos do mapa, bem como as capelas ao longo dos caminhos. Não há qualquer

indicação de longitudes ou latitudes, apenas um quadriculamento, embora a cópia possa

estar incompleta, como indicam as marcas em suas extremidades.

Furlong procurou identificar uma autoria indígena para este mapa através de

indícios, no mínimo, duvidosos. Baseava-se no fato de que a caligrafia seria “típica” dos

índios das reduções, além de o mapa incluir frases em idioma guarani. Quanto à

caligrafia, uma revisão da cartografia jesuítica permitiria identificar vários mapas como

1 AGI. Est. 74, Caj. 6, Leg. 29, Charcas, 120. Publicado em HERNANDEZ, Pablo. Misiones de Paraguay: organización social. Barcelona, Gustavo Gili, 1913, p.228 e LANZAS, Pedro Torres. Archivo General de

Indias. Catálogo Mapas y Planos. Buenos Aires. Tomo I. Madrid: Ministerio de Cultura,1988, p.19-20. No catálogo do AGI – Sevilha não consta quais destes dois exemplares seria a cópia realizada pela comissão verificadora sobre o mapa do índio Domingo.

sendo de autoria de guaranis. Como saber se, tal como ocorria com a escrita, alguns

mapas não foram realizados ou copiados por guaranis, sob orientação dos jesuítas? O

fato de haver frases em guarani não pode servir de indício para uma autoria indígena,

pois inúmeros outros mapas, seguramente elaborados por jesuítas, também continham

expressões em guarani. Ainda segundo este autor, o mapa conteria a indicação dos

locais de morte dos padres Joseph Arce e Hipólito Dactilo. Porém, tais informações não

constam na cópia publicada no catálogo. Este mapa não foi amplamente divulgado e,

conforme Furlong, fazia parte da coleção particular de Alejo B. Gonzalo Garaño, o qual

foi diretor do Museu Histórico Nacional da Argentina e autor de um trabalho clássico

sobre a iconografia argentina.

Fig. 3. Mapa Compuesto por un indio guarani y en el que se consignan las estancias de algunas

reducciones.

Outro mapa indicado por Furlong é o Plano o Mapa del Pueblo de la Real

Corona Nombrado Santo Thomé (Furlong,1936:122) Trata-se de um mapa produzido

pelo Cabildo de Santo Thomé após o período jesuítico. A legenda que acompanha o

título indica que o objetivo do mapa era identificar a jurisdição de Santo Thomé, que

passara à administração civil espanhola após 1767. Os cabildantes assinam a

informação, a qual leva a data de 1784. Neste caso, pode-se creditar o mapa aos

guaranis do Cabildo de Santo Thomé. É possível estabelecer uma relação entre esta peça

cartográfica e o contexto do reordenamento espacial e jurisdicional promovidas por

Francisco de Paula Buicarelli y Ursúa, Governador da Província do Río da Prata entre

1776 e 1770 e por Juan José de Vértiz y Salacedo, sucessor de Bucarelli e

posteriormente Vice-Rei do Rio da Prata entre 1778 e 1784 (Maeder, 1992). As

políticas administrativas de ambos visavam reordenar a jurisdição das missões que

haviam sido administradas pelos jesuítas até 1767. Isto implicava em um

reconhecimento prévio dos limites territoriais de cada redução, o que procedeu Vértiz

ao solicitar “...informe y encomendar al coronel Marcos José de Larrazábal el

empadronamiento de los indios, un informe completo sobre ese distrito y las medidas

conducentes para su mejor gobierno” (Maeder, 1992:27)

Este plano administrativo levou os cabildos indígenas das antigas reduções a

preparar prospectos onde davam conta de seus domínios. É aqui que o saber

cartográfico desenvolvido junto aos jesuítas pode ter cobrado valor. A documentação

produzida pelos cabildos se fez acompanhar de mapas. Contudo, ainda há poucos

estudos sobre a administração destes povoados na fase pós-jesuítica e torna-se difícil

saber quanto interferiram os representantes espanhóis nomeados para dirigir os

povoados. O que não impede uma interpretação dos mapas como parte da

documentação gerada no contexto em que os cabildos indígenas ainda estavam ativos.

No mapa em questão, do povoado de Santo Tomé, a representação da

hidrografia, com evidentes distorções, é o principal elemento, que inclui também o

núcleo dos povoados de San Borja e La Cruz, além de outras localidades menores. Estas

podem indicar postos ou capelas, e algumas estão denominadas como San Marcos, San

Antonio, San Gabriel, San Pedro, etc. A toponímia dos rios, arroios e outros locais está

grafada em guarani e há caminhos que partem dos núcleos urbanos ou das margens dos

rios, levando a diferentes direções. A orientação do mapa não está indicada, mas se

encontra invertida, no sentido anti-horário, não havendo indicação de latitudes e

longitudes.

Fig. 4. Plano o Mapa del Pueblo de la Real Corona Nombrado Santo Thomé, 1784.

Além de responder as exigências de Bucarelli e Vértiz com respeito a seus

domínios, os mapas gerados pelos cabildos indígenas serviam também como provas em

processos relativos a pleitos territoriais entre os povoados de guaranis. Estes litígios se

acirraram no contexto da reorganização administrativa pós-jesuítica. Contudo, alguns

pleitos remontavam ao final do século XVII e a primeira metade do século XVIII. Em

12 de julho de 1688, o cabildo de Yapeyú, através do Corregidor e seus Caciques

fizeram uma doação para a redução de La Cruz de terras localizadas na margem oriental

do Rio Uruguai. A doação foi oficializada pelo Provincial Thomas Donvidas. Nestas

terras, La Cruz instalou a estância de Itaqui, com gado oriundo da Vacaria do Mar. Anos

mais tarde, o Superior Simón de Leon tornou sem efeito esta doação. Abriu-se, então,

um pleito em nome de La Cruz e, em 27 de Janeiro de 1700, a redução recuperou a

posse da estância (Porto, 1954:325).

Das terras de La Cruz, também chamada La Asumpción de Nuestra Señora del

Mborore, há o registro detalhado com todos marcadores de términos e linderos. Em

1688, estas possessões foram confirmadas por documento oficial, e, através do mesmo,

é possível verificar a forma textual utilizada no final do século XVII para descrever os

limites territoriais da ampla área de uma redução. Durante o processo de reorganização

territorial e administrativa do período pós-jesuítico, o povoado de La Cruz também

apresentou seus limites e domínios. Com base nos documentos de posse anteriores,

sobretudo através da confirmação de seu território feita em 1688, os cabildantes de La

Cruz puderam apresentar uma descrição por escrito, a qual se fez acompanhar de um

mapa, cuja data é mesma daquele referido para Santo Tomé, a saber, 1784. Como pode

ser visto na transcrição a seguir e no mapa que a acompanha, a delimitação buscava

precisar com exatidão uma linha de demarcação que acompanhava acidentes

geográficos, como rios, arroios e pântanos2.

“Al Pe.Thomas Donbidas de la Comp.a de Jesus y su Prov.l en estas Prov.as

del Paraguay, Tucuman y Rio de la Plata a peticion y ruego del Correg.or y

Cavildo y demas casiques de este Pueblo de la Assunpcion de ñra S.ra del

Mborore, y su cura al P.e Domingo Bodileu [Bodiler? Bodiles?] y al Prov.l

Thomas Donvidas, y P.e superior Alonso del Castillo, y P.e Juan de Torres

que todos con instancias me anpedido [han pedido] les mendedar [mande dar]

títulos de las tierras, q.e desde q.e se fundo este dicho pueblo en el sitio em q.e

el presente esta, porteen para mas justificacion de su derecho, y de que

legitim.te las posen, para que en ningun tiempo nadie les moleste ni inquiete

su pacifica posecion digo, y declaro por términos de la estancia de la otra

banda del Uruguay donde tienen sus vacas y se llama el Ytaqui comenzando

el termino de dicha estancia desde la otra banda del Uruguay corre havia el

orientale y llega hasya el A. Ybipira miri, q.e es el ultimo termino de lo

largita, y por un Cierrillo costado desde el B. Ytaembe q.e es la cabezada del

C. Mbutuî vine [viene] corriendo siempre dicho mbutuî por la otra banda

hasta entrar al Uruguay dicho Mbutuî, corriendo al Uruguay arriba hacia de

S.to Thomé llega el ultimo termino de lo Largo, D. al Caai mirî de esta vanda,

y corriendo dicho Caai mirî arriba hasta, E. el Yaqueri y pasando dicho

Aguapey F. el Yaqueri saliendo un vaquito del Cupecandu, se va corriendo

hacia el Sur desde, G. el Chaitaqua que es un Caa pau H. y el Yapo catindi,

que es un Caa pau desde donde comienza el pântano grande I. del Guabirabi,

y corre hasta K. el Ararati q.e es un baxo q.e divide las chacras del Yapeiu de

las deste Pueblo, y viene hasta llegar L. al Mbaeati q.e es um arroyo q.e entra

al Uruguay y todas las tierras que caen de esta vanda de dicho arroyo hasta el

Uruguay son las tierras de este Pueblo menos el xembia ha q.e esto es de los

del Yapeyu, y asi el termino fixo es desde la cavezada del Mbaeati corriendo

entra al Uruguay y pasando [ilegível] um baxio de pantanillo M. del Pari riti

se va corriendo hasta N. el Tembetari vine [viene] corriendo entrar O. el

Ybicuiti corriendo arriba el orrientele [orientale] hasta P. el Ibipira guasu,

pues y asi ordeno y mando q.e ningun Pueblo, ni para q.e cuide de el Ynquiete

el domínio y pareciendo dichas tierras aqui mencionadas dentro de dichos

linderos ni pase, ni haga pasar a algun de su Pueblo a obtener posecion o

dominio de dichas tierras contenidas em dichos términos pues en Justicia se

2 Documento de certificação dos limites do território da redução de La Cruz, conforme definidos em 1688, Buenos Aires, AGN, sala IX, 22-8-2. Cópia gentilmente cedida por Eduardo Santos Neumann e Fabrício Prado.

guarden a cada uno indemnes las tierras q.e poseen, y los derechos con que

los porteen, y por que coste [conste] dói esta firmada de mi nombre. En doze

de Julio de mil seis cientos y ochenta y ocho años en esta Doctrina de la

Assump.on de ñra Señora del Mborore.”

O documento e o mapa foram apresentados a Don Francisco Bruno de Zavala,

nomeado Governador de Misiones pelo Governador da Província de Buenos Aires, Don

Francisco Bucarelli y Ursua, em 1768. Deste documento, o cabildo de La Cruz redigiu

uma cópia em 1784, conforme se depreende das anotações inseridas ao final:

“Pueblo de la Cruz a 20 de Dez.re de 1768

Este papel simple me ha presentado el Cavildo de este Pueblo se sacara copia

del.

Zavala

Copia de su Original q.e para en el Archivo de este Pueblo al que nos

remitimos y p.a q.e conste lo firmamos en la Cruz a diez de septiembre de mil

setecientos ochenta y quatro.”3

O mapa que acompanha o documento possui legendas que estão inseridas ao

longo da linha de limites do território da redução e que se encontram também no

documento. Seguramente, não foi elaborado em 1688, pois no corpo do mapa há duas

inscrições em guarani com datas posteriores: “Ybî Jesus ygua rembiporu miri que 1716

roî pîpe”, e “SS.ma

Trin.d Asump.

on de La Cruz Est.

a 1753 D. Lequibe guare 16.192

vacas oromoinque Ypî Pay Comis.o Luis Altamirano licencia pp”. Como dito

anteriormente, é possível que o mapa tenha sido realizado para representar

cartograficamente o texto do documento de demarcação das terras, transpondo para a

forma cartográfica a descrição espacial presente na forma textual. De posse destes

recursos, os cabildantes de La Cruz puderam apresentar suas queixas em 1784, como se

infere de outros documentos anexos, onde registravam:

“Este papel denota las dos Baquerias q.e hizieron los naturales deste

Pueblo en los años de mil setecientos quatro, mil setecientos siete

quedando dicho numero de ganado en los campos y rincon de el

Caraguatai y Taquarembo a beneficio deste Pueblo lo q.e tubo efecto

en el tiempo de los expulsos pero despues como barios pueblos se

denominan dueños de los campos le quitaron este derecho q.e

3 Buenos Aires, AGN, sala IX, 22-8-2. Cópia gentilmente cedida por Eduardo Santos Neumann e Fabrício Prado. Seguem as assinaturas dos cabildantes guaranis de La Cruz em 1784.

verdaderam.te le correspondia al numero tan crecido de ganado q.e

introdujeron en los referidos campos. Y para q.e conste ser traslado al

q.e se alla en este cavil. lo firmamos en el Pueblo de la Cruz a catorze

de Sept.re de mil setecientos ochenta y quatro.”4

4 Idem.

Fig. 5. Mapa produzido pelo Cabildo de La Cruz, em 1784.

O pequeno conjunto de mapas aqui apresentado é demonstrativo de que, ao

menos no caso dos indígenas Guarani reduzidos pelos jesuítas ao longo de

aproximadamente 150 anos, o saber cartográfico desenvolveu-se de tal forma que,

quando necessário, os indígenas souberam utiliza-lo em defesa de seus interesses. Por

outro lado, demonstra também que a representação cartográfica incluiu o uso das

toponímias, da delimitação de limites espaciais, além do recurso a ícones gráficos para

representar relevos, vegetação, hidrografia e caminhos. Em alguns casos, pequenos

elementos iconográficos serviam para indicar os núcleos urbanos dos povoados ou as

capelas e postos de estâncias. Uma rápida análise basta para verificar que os

conhecimentos cartográficos dos guaranis das antigas reduções estavam coesos com as

formas mais simples em uso no final do século XVIII. Considerando especificamente os

mapas de Santo Tomé e La Cruz, produzidos em 1784, é possível verificar ainda o uso

prático da cartografia e sua combinação com a redação de documentos oficiais. Por fim,

estes mapas apontam ainda para uma profunda alteração nas concepções de espaço e

territorialidade dos guaranis reduzidos, os quais passaram a reclamar seus direitos sobre

o solo com base nos mesmos critérios da sociedade colonial hispânica. O grafismo, e

incluindo aí a cartografia, possibilitaram aos guaranis, no período pós-jesuítico,

posicionar-se frente às forças políticas e econômicas que se projetavam sobre seus

povoados. O processo de redefinição de fronteiras com o Brasil português após a

tomada das sete reduções da Banda Oriental do Uruguai, em 1801, e os posteriores

movimentos de independências na região platina acabaram contribuindo para a

desestruturação completa destes povoados e de seus cabildos indígenas. Contudo,

restaram os registros de um período em que, ainda que brevemente, os guaranis

chegaram a demonstrar sua capacidade de auto-administração, valendo-se para isto,

entre outras coisas, daquele saber cartográfico desenvolvido no contato com os jesuítas.

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