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Figura página anterior: AUGUSTO, Fernando. Diário de Passagem. Pigmento sobre cartas e envelo-pes. Instalação. Dimensões variadas. Galeria Debret, 2000. Foto do artista.

Uma carta, como toda mídia, é a expressão de um paradoxo.Reúne a proximidade e a intimidade com a distância e a estranheza. E cartas de amor são o registro de uma dilaceração, o retrato do abismo e do desespero da separação. Tal abismo paira sempre sobre toda relação, mas também sobre toda comunicação. Mesmo que abismal, uma carta traz a voz do outro: alimenta e acalenta. Voz e escrita, lábios e língua, saliva e tinta. Uma carta é sempre um beijo. Fechada, abriga surpresas como todo beijo; aberta, alimenta o sonho, recordando o diálogo entre a boca que degusta os delicados sabores da outra boca, entre a boca e o seio materno, a amamentação primordial, o primeiro vínculo da vida.

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A CARTA, O ABISMO, O BEIJOOs ambientes de imagens entre o artístico e o mediático

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Coleção ComuniCação

• Caminhos cruzados da comunicação (Os): política, economia e cultura, José Marques de Melo• Comunicação e cultura das minorias, Raquel Paiva; Alexandre Barbalho (orgs.)• Comunicação e democracia: problemas & perspectivas, Wilson Gomes; Rousiley Celi Moreira Maia• Comunicação e identidade: quem você pensa que é?, Luís Mauro Sá Martino• Comunicação e sociedade do espetáculo, Valdir José de Castro; Cláudio Novaes Coelho• Comunicação mediações interações, Lucrécia D´Alessio Ferrara• Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação, Lucia Santaella• Comunicação verbal – Educação vocal: o teatro – fonte e apoio, Terezinha Nackéd Zaratin• Corpo e comunicação: sintoma da cultura, Lucia Santaella• Cultura, comunicação e espetáculo, Cláudio Novaes Pinto Coelho; Valdir José de Castro• Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, Lucia Santaella• Dromocracia cibercultural (A): lógica da vida humana na civilização mediática avançada, Eugênio Trivinho• É preciso salvar a comunicação, Dominique Wolton• Ecologia pluralista da comunicação (A): conectividade, mobilidade e ubiquidade, Lucia Santaella• Escavador de silêncios (O): formas de construir e de desconstruir sentidos na comunicação, Ciro Marcondes Filho• Ética e comunicação organizacional, Clóvis de Barros Filho (org.)• Explorador de abismos (O): Vilém Flusser e o pós-humanismo, Erick Felinto; Lucia Santaella• Futuro da internet (O): em direção a uma ciberdemocracia, André Lemos; Pierre Lévy• História do jornalismo: itinerário crítico, mosaico contextual, José Marques de Melo• História do pensamento comunicacional: cenários e personagens, José Marques de Melo• Linguagens líquidas na era da mobilidade, Lucia Santaella• Mídia e cultura popular: história, taxionomia e metodologia da Folkcomunicação, José Marques de Melo• Mídia e movimentos sociais: linguagens e coletivos em ação, Jairo Ferreira; Eduardo Vizer (orgs.)• Mídia e poder simbólico: um ensaio sobre comunicação e campo religioso, Luís Mauro Sá Martino• Mídia, religião e sociedade: das palavras às redes digitais, Luís Mauro Sá Martino• Mutações no espaço público contemporâneo, Mauro Wilton; Elizabeth Saad Corrêa (orgs.)• Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo, Lucia Santaella• Net-ativismo: da ação social para o ato conectivo, Massimo Di Felice• Pensamento comunicacional brasileiro: o legado das ciências humanas – vol. I – História e sociedade, José Marques de Melo; Guilherme Moreira Fernandes• Pensamento comunicacional brasileiro: o legado das ciências humanas – vol. II – Cultura e poder, José Marques de Melo; Guilherme Moreira Fernandes• Pensamento comunicacional brasileiro: o legado das ciências humanas – vol. III – Mídia e consumo, José Marques de Melo; Guilherme Moreira Fernandes• Princípio da razão durante (O): comunicação para os antigos, a fenomenologia e o bergsonismo – Tomo I – Nova teoria da comunicação III, Ciro Marcondes Filho• Princípio da razão durante (O): da Escola de Frankfurt à crítica alemã contemporânea – Tomo II – Nova teoria da comunicação III, Ciro Marcondes Filho• Princípio da razão durante (O): o círculo cibernético: o observador e a subjetividade – Tomo III – Nova teoria da comunicação III, Ciro Marcondes Filho• Princípio da razão durante (O): diálogo, poder e interfaces sociais da comunicação – Tomo IV – Nova teoria da comunicação III, Ciro Marcondes Filho• Princípio da razão durante (O): o conceito de comunicação e a epistemologia metapórica – Tomo V – Nova teoria da comunicação III, Ciro Marcondes Filho• Produção social da loucura (A), Ciro Marcondes Filho• Realidade dos meios de comunicação (A), Niklas Luhmann• Redes e ecologias comunicativas indígenas: As contribuições dos povos originários à Teoria da comunicação, Massimo di Felice; Eliete S. Pereira (orgs.)• Redes sociais digitais: a cognição conectiva do twitter, Lucia Santaella; Renata Lemos• Regulação das comunicações: história, poder e direitos, Venício Artur de Lima• Revolucionários, mártires e terroristas: a utopia e suas consequências, Jacques A. Wainberg• Rosto e a máquina (O): o fenômeno da comunicação visto dos ângulos humano, medial e tecnológico. Nova teoria da comunicação, vol. I, Ciro Marcondes Filho• Ser jornalista: a língua como barbárie e a notícia como mercadoria, Ciro Marcondes Filho• Ser jornalista: o desafio das tecnologias e o fim das ilusões, Ciro Marcondes Filho• Sociedade tecida pela comunicação (A): técnicas da informação e da comunicação entre inovação e enraizamento social, Bernard Miège• Temas e dilemas do pós-digital: a voz da política, Lucia Santaella• Teoria do jornalismo: identidades brasileiras, José Marques de Melo• Teoria e metodologia da comunicação: tendências para o século XXI, José Marques de Melo• Vestígios da travessia: da imprensa à internet – 50 anos de jornalismo, José Marques de Melo• Comunicologia ou mediologia? – a fundação de um campo científico da comunicação, Ciro Marcondes Filho• Mídia e lutas por reconhecimento, Rousiley C. M. Maia

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A CARTA, O ABISMO, O BEIJOOs ambientes de imagens entre o artístico e o mediático

Norval Baitello Junior

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AS FAZENDAS DE FORMIGAS E AS SOCIEDADES ENTÔMICAS

Direção editorial: Claudiano Avelino dos SantosCoordenação editorial: Valdir José de CastroEditoração: Gledson Zifssak – Kalima EditoresImpressão e acabamento: PAULUS

1ª edição, 2018

© PAULUS – 2018

Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 – São Paulo (Brasil)Tel.: (11) 5087-3700 • Fax: (11) 5579-3627paulus.com.br • [email protected]

ISBN 978-85-349-4788-6

Seja um leitor preferencial PAULUS.Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções: paulus.com.br/cadastroTelevendas: (11) 3789-4000 / 0800 16 40 11

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Baitello Junior, NorvalA carta, o abismo, o beijo: os ambientes de imagens entre o artístico e o midiático / Norval Baitello Junior. – São Paulo: Paulus, 2018. – (Coleção Comunicação)

BibliografiaISBN 978-85-349-4788-61. Ambientes mediáticos 2. Comunicação 3. Estética 4. Imagem (Filosofia) I. Título. II. Série.

18-17157 CDD-302.23

Índices para catálogo sistemático:1. Ambientes mediáticos da imagem : Comunicação 302.23

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AS FAZENDAS DE FORMIGAS E AS SOCIEDADES ENTÔMICAS

AGRADECIMENTOS E CRÉDITOS

Além dos autores e artistas que me inspiraram e constam citados no presente livro, sou grato a muitos interlocutores do presente e do passado.

Interlocutores do passado: Harry Pross, Ivan Bystrina, C.G. Jung, Sigmund Freud, Ludwig Binswanger, Dietmar Kamper, Günther Anders, Vilém Flusser, Masao Yamaguchi, Tetsuro Watsu-ji, Aby Warburg, Vicente Romano, Viktor von Weizsäcker, Dieter Wyss, Eduardo Peñuela Cañizal, Ruben Alves, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Oswald de Andrade, Oliver Sacks, A.R. Luria, Joseph Beuys, Leo Navratil, Nise da Silveira, André Leroi-Gourhan, Eberhard Roters.

Interlocutores do presente: Alberto Klein, Alex Florian Heil-mayr, Anahi Ré, Birke Mersmann, Camila Garcia, Ceiça Almeida, César Baio, ChristophWulf, Ciro Marcondes Filho, Claudia Gia-netti da Fonseca, Danielle Naves, Dimas Kunsch, Diogo Bornhau-sen, Eckhard Fürlus, Eckhard Hammel, Edgar Morin, Élmano Ricarte, Eugenio Trivinho, Fábio Ciquini, Gonzalo Abril, Goulnara Khaidarova, Gunter Gebauer, Hajo Eickhoff, Hans Belting, Isabel Capeloa Gil, Jerusa Pires Ferreira, Jorge Miklos, José Eugenio de Oliveira Menezes, José Marques de Melo, Leão Serva, Luciano

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Guimarães, Lucrecia Ferrara, Luiz Carlos Iasbeck, Luiza Spinola, Malena Segura Contrera, Marisa Muñoz, Mauricio Ribeiro da Silva, Mikhalis Kontopodis, Moises Lemos Martins, Muniz Sodré, Rodrigo Browne, Rodrigo Daniel Sanches, Rubens Matuck, Ryuta Imafuku, Sílvia Pinto, Siegfried Zielinski, Takao Asano,Thomas Bauer, Thomas Nölle, Torsten Leder, Valentina Bullo, Valerij Savt-chuk, Victor Echeto, Waldemar Magaldi, Yuka Amano.

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Sumário

PREFÁCIO – OS AMBIENTES MEDIÁTICOS DA IMAGEM .......................................................13

CAPÍTULO 1 – A CARTA, O ABISMO, O BEIJO .........................................................................19Toda carta é sempre um beijo ..................................................................................................19Toda carta é um abismo ..........................................................................................................20Toda escrita contém em si um mistério, já que é irmã da carne e das entranhas ........................21

CAPÍTULO 2 – AS FAZENDAS DE FORMIGAS E AS SOCIEDADES ENTÔMICAS .......................25O teatro das formigas rasgando bandeiras nacionais ................................................................26Planeta dos insetos .................................................................................................................27Metáfora da comunicação e sobretudo do trabalho ..................................................................28“Ari”, “Giri”, “Gi” ...................................................................................................................29

CAPÍTULO 3 – O ESPÍRITO DA GOTA D’ÁGUA. MIRAGENS VISUAIS E SONORAS ...................33A Memória Líquida do Planeta .................................................................................................33Imagem e Violência .................................................................................................................34Os meios terciários e a supressão da corporeidade ..................................................................35

CAPÍTULO 4 – A VISÃO CREPUSCULAR E AS IMAGENS INTERNAS .......................................39A luz apolínea e os sonhos da luz do dia..................................................................................39O resgate do crepúsculo e da noite ..........................................................................................41Não violarás a noite. A assepsia do escuro dos mundos interiores ............................................42

CAPÍTULO 5 – DIÁLOGO DOS CAMINHOS COM OS PÉS ........................................................45Diálogo dos cadernos com as sementes ...................................................................................46Diálogo das sementes com o rio... e com o vento... e com os pássaros ......................................47Diálogo da escrita com a faca ..................................................................................................47

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CAPÍTULO 6 – DIFUSO, CONFUSO, PARAFUSO. SOBRE A LINHA E O BORRÃO, A RAZÃO E A CONFUSÃO, OS DEDOS E DADÁ ...............................................................49

Os dedos e os dígitos, o pensar com os dedos ..........................................................................49O dedo indicador de Dadá .......................................................................................................50A linha e o borrão ...................................................................................................................50Os custos do digital .................................................................................................................51

CAPÍTULO 7 – O COIOTE E A ARTE DOS VÍNCULOS ...............................................................53O que nos quer dizer o coiote: a memória da matéria ..............................................................54O que queremos que o coiote nos diga: a matéria da memória .................................................57A comunicação com o coiote e o homem enjaulado .................................................................59A força do silêncio e a escultura sonora ...................................................................................60

CAPÍTULO 8 – VESTIR A LIBERDADE... ...................................................................................63A era da reprodutibilidade técnica: as grandes tribos ................................................................64Estar-por-dentro estar-por-fora: reconfortar-se ou detonar? ......................................................66As muitas peles do ser humano ...............................................................................................67

CAPÍTULO 9 – MIRAGENS, O SOL, O DESERTO E A CIÊNCIA DA VISÃO ..................................69O deserto: I. O inóspito ............................................................................................................70O sol: I. O deus implacável .......................................................................................................70O deserto: II. Miragens ............................................................................................................71O sol: II. O fogo sagrado ..........................................................................................................71O deserto: III. A ciência óptica .................................................................................................72O deserto: IV. O deus pessoal ...................................................................................................73

CAPÍTULO 10 – PARA QUE SERVEM AS IMAGENS MEDIÁTICAS? ..........................................75I. À sua imagem e semelhança .................................................................................................75II. Ambientes de imagens e iconomania ...................................................................................76III. Imagem e paradoxo ............................................................................................................78IV. Era de culto, era de exposição .............................................................................................79V. A era da imagem mediática ..................................................................................................81VI. Iconomania, multiplicação de si mesmo e sedação ..............................................................83

CAPÍTULO 11 – CABEÇA, PULMÕES, DEDOS, ROSTO, LÍNGUA E O NADA. O CORPO INVISÍVEL E SUA ANATOMIA ......................................85

A embalagem do nada ...........................................................................................................85A cabeça (I): a perda do espaço e a desmontagem do corpo.....................................................86A cabeça (II): a perda do corpo, a construçÃo da pose ..............................................................88A cabeça (III): O corpo-máquina e o nada ................................................................................90Os pulmões: a máquina a vapor e o diabo na garrafa ...............................................................91Braços, mãos e dedos: a produção arcaica de símbolos e os vínculos com o céu ........................93A língua: a arte da conversação ...............................................................................................94O rosto: da fisonômica à fisionomania .....................................................................................95O invisível: do espírito do nosso tempo ao tempo de nosso espírito ..........................................96

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CAPÍTULO 12 – UM SONHO E OUTROS SONHOS CREPUSCULARES PARA DIETMAR KAMPER .............................................................................97

O sonho ..................................................................................................................................97Outros sonhos crepusculares ...................................................................................................98O homem de terno e chupeta ..................................................................................................99A ocidentação .........................................................................................................................99Retirada da assinatura ...........................................................................................................100A costa, as costas ..................................................................................................................101O espírito e a letra .................................................................................................................102Os sonhos .............................................................................................................................102

CAPÍTULO 13 – AS UVAS-PASSAS E OS SÍMBOLOS: A GUERRA DAS IMAGENS NOS PRIMÓRDIOS DO ISOLAMENTO DE BERLIM .......................................105

“O muro ainda vai durar mais 100 anos” ..............................................................................105Comunicar é preencher uma falta .........................................................................................107Distribuição de Uvas-Passas e Símbolos .................................................................................109Alimento da Fantasia e do Sonho: os Símbolos .......................................................................111

CAPÍTULO 14 – A NÃO FOTOGRAFIA E AS IMAGENS HIPNÓGENAS ....................................113A retina.................................................................................................................................113As imagens, entre a transcendência e a imanência .................................................................114As janelas .............................................................................................................................114A caminho ............................................................................................................................115

CAPÍTULO 15 – “MÍDIA COMO DROGA” ............................................................................117“Ensinar – 1968-1983” ........................................................................................................117Símbolos da política, política dos símbolos. ............................................................................119Verticalismo e economia dos sinais ........................................................................................121Mídia e ritualismo como drogas ............................................................................................123

CAPÍTULO 16 – A ROUPA SUJA E A EXPOSIÇÃO DAS PAIXÕES ...........................................125

REFERÊNCIAS .....................................................................................................................129

HISTÓRIA DOS PRESENTES TEXTOS ........................................................................................135

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PREFÁCIO

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PREFÁCIO

Prefácio

OS AMBIENTES MEDIÁTICOS DA IMAGEM

Este é um livro escrito para as imagens e seus mistérios. Sobre-tudo as imagens que habitam os ambientes contemporâneos de trânsito entre o mediático e o artístico, mas também

aquelas imagens endógenas, que habitam as obscuras entranhas do sonho. Uma parte do livro é resultado de um processo de escavação – escrever é escavar, como nos ensina a etimologia, não apenas do indoeuropeu, mas também do japonês1... mas também do tupi2... – no baú de duas décadas. Decidi reescrever, passar a limpo, corrigir mesmo, coisas que havia escrito sob pressão das agendas. Árdua tarefa, conforme me havia alertado já meu velho e inesquecível mes-tre Harry Pross: “Jamais reescreva um livro, ‘mein lieber’... Dá mais trabalho que escrever três novos...”. Desobedeci ao mestre, descobri sua profunda razão e confirmei sua sabedoria. Mas ele sabia tam-

1 Yuka Amano me ofereceu gentilmente um exaustivo e belo levantamento da palavra da língua japonesa designadora de escrita e desenho, associada a incisão e instrumentos pontiagudos. Se-gundo Kojien, 1991, p. 449: Ka.ku tem como significado original arranhar (uma superfície com objeto pontiagudo) e como significados derivados desenhar, pintar, desenhar linhas com pincel, escrever letras, fazer textos, escrever livros.2 Foi Rubens Matuck quem me alertou que a palavra usada pelos povos tupi-guarani para a escrita e o desenho era a mesma que ‘arranhar’.

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A CARTA, O ABISMO, O BEIJO

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PREFÁCIO

bém que “alertar”, para um discípulo rebelde, é o mesmo que dizer subliminarmente “faça!”. Pois fiz! Descobri depois que obedeci à sua mensagem subliminar. Os mestres... os grandes mestres... têm astúcias! Se escrever é escavar, reescrever é como escavar sabendo que vamos encontrar fantasmas. Assim foi, um embate com velhos fantasmas com os quais tinha contas a acertar.

Uma parte dos textos foram escritos originalmente para apre-sentação em eventos científicos ou culturais ou para a publicação em outra língua que não o português. Não tinha tido a coragem de traduzi-los antes. Sabia que não conseguiria traduzi-los (como de fato não consegui). Tive que reescrevê-los ou transcriá-los, corrigin-do pensamento, estilo e expressão: aproximei-os no tempo, atualizei e corrigi coisas de que já não gostava, expandi outras tantas. Outros foram publicados em diversificados lugares de difícil acesso, já esgo-tados, ou em anais ou catálogos de pequena e restrita amplitude. Alguns deles corrigi e ampliei radicalmente. Alguns inéditos aguar-davam uma verificação de sua atualidade, veracidade e validade para que pudessem ser oferecidos a público. Enfim, selecionei aqueles que se afirmavam vivos e atuais, mesmo partindo de obras e objetos artístico-mediáticos criados há anos e décadas, hoje quase clássicos.

“Objetos artístico-mediáticos”, este foi o filtro para o presente livro. Isto requer uma explicação. A expansão do espectro das ima-gens mediáticas a partir de fins do século XIX e sua explosão na segunda metade do século XX já não permitem a leitura puramente estetizante da criação artístico-mediática, no mundo das imagens que passaram a se produzir e reproduzir em dimensões e proporções inauditas. Mesmo aquelas imagens que se querem exclusivamente artísticas não serão compreendidas assim, pois habitam os ambien-tes mediáticos. E são os ambientes mediáticos que fornecem os parâmetros para nossos olhares, educam e moldam mesmo nossa mirada. E é o olhar quem constrói a imagem. Qualquer olhar que obedeça aos parâmetros unicamente estéticos perderá o mais insti-gante e o mais vigoroso dos objetos e imagens contemporâneos, sua lida com a grande exigência de exposição que o universo mediático oferece em todas as suas formas.

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Tal consideração e crítica sobre o olhar exclusivamente esteti-zante já foram abertamente declaradas e praticadas por Aby War-burg no início do século XX, tanto na construção de sua Biblioteca Warburg de Ciências da Cultura quanto em seus artigos, livros e conferências que revelam um pensamento pioneiro e ousado para sua época (e até mesmo para hoje!), estudar a pós-vida (Nachleben) das imagens, vale dizer, estudar sua capacidade de se recriar, de res-surgir em novos ambientes e de gerar impacto renovado.

Para entendermos a proposta do notável pensador, o relato de um caso é a melhor imagem ilustrativa: Warburg recebeu, por indi-cação de uma amiga da família, um jovem aspirante ao estudo de História da Arte, Carl Georg Heise. Percebendo as falsas expectati-vas e o olhar ingênuo e estereotipado do rapaz quanto aos objetos da arte, Warburg assumiu uma tutoria informal para prepará-lo melhor para suas ambições, teve com ele longas e repetidas conver-sas e um convívio que durou mais de duas décadas. Heise, já adulto, foi diretor da Kunsthalle de Hamburgo e escreveu, anos após a morte do mestre, seu relato sobre tais sábias conversas, recheadas de imagens verbais do humor e do mau humor warburguiano, mas sobretudo fiéis testemunhos do genial pensamento do mestre. O pequeno escrito de 150 páginas foi publicado em 1947 e distribuí-do apenas para a família Warburg. Apenas em 1959 foi reeditado para um círculo maior, um clube do livro de Hamburgo. Heise conta da fúria do mestre quando, ao descrever uma obra pictórica qualquer, o discípulo lança mão apenas dos cânones da História da Arte. Escreve Heise: “O estético não era proibido, apenas não era um âmbito central”. E: “[...] toda a propensão exclusivamente estetizante em mim deveria ser combatida com todos os recursos” (Heise, p. 16). Conta ainda Heise que a biblioteca Warburg possuía um “guarda-venenos” (Giftschrank), onde estavam trancadas aque-las obras contaminadas com a visão exclusivamente estetizante.3

Warburg percebeu, antes de tudo e de todos, a natureza mediá-tica da imagem contemporânea (mesmo que ela se pretenda artís-

3 Cf. também a excelente biografia de Aby Warburg publicada recentemente por Marie-Anne Lescourret.

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A CARTA, O ABISMO, O BEIJO

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tica). Estudou o selo postal, colecionava fotos de guerra, recortava imagens de jornais e revistas, fotografava ele próprio imagens de outros ambientes, trazendo-as para o universo da reprodutibilidade. E buscou as raízes profundas das imagens, comprovando que sua natureza estética estava ancorada também em profundezas míticas e de culto, assim como a tônica da imagem contemporânea está ancorada em seu “valor de exposição” gerado pelos ambientes mediáticos. A natureza da imagem é dada pelo ambiente em que ela é produzida e tal ambiente agora é hegemonicamente mediá-tico. Malena Contrera aponta as profundas coordenadas e a força impactante daquilo que denomina “mediosfera”. A mediosfera dita os parâmetros, educa e direciona os olhares e pensamentos segundo seus princípios norteadores, segundo sua orientação que requer muita exposição.

Aqui chegamos a outro ponto nevrálgico. O ‘valor de exposição’, agudamente diagnosticado por Benjamin, não é necessariamente um valor estético, é ele que se encontra no cerne da imagem mediá-tica. É sua razão de ser. Ele nasce da repetição e da reprodução que geram ambientes de infindáveis reiterações, explorando à exaustão os motivos imagéticos que transitam de uma mídia a outra. A intenção da imagem mediática não é estética, ao contrário, ela não pretende o movimento centrípeto da aisthesis, da introspecção e da fruição. Sua ação pretende desencadear o vetor de movimento oposto ao da fruição, um movimento centrífugo que nos afasta do sentir e da imanência; ela quer sempre nos levar a um outro lugar que não é o aqui e agora da fruição. A imagem mediática pura nasce em um ambiente do arrebanhamento para uma ação fora da ima-gem, um consumo, uma postura, uma atitude, uma crença, uma filiação, promessa de um pertencimento (ainda que seja meramente imagético e fugaz). E é por isso que ela necessita de muita exposição e da grande capilaridade possibilitada pelas conexões elétricas (dos cabeamentos, fios e fibras que cobriram o globo terrestre) e eólicas (das ondas, dos equipamentos móveis, dos wi-fi, das nuvens e dos ventos e furacões da informação).

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PREFÁCIO

Os ambientes em que vivemos hoje são indiscutivelmente mediáticos. Nos vãos e frestas do mediático, no entanto, emer-gem imagens vigorosas de outra natureza, a contrapelo do mesmo mediático ou refletindo rebeldemente sobre esta hegemonia avassa-ladora e homogeneizadora. São elas que constituem o eixo do pre-sente livro, as imagens que transitam entre o artístico e o mediático, a contrapelo do ambiente em que são geradas. É este o fio condutor que reúne os textos do presente livro.

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