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A “canha não tem parente”: relações de substância e consumo de álcool entre
os Mbyá-Guarani, RS
Luciane Ouriques Ferreira1
O presente artigo tem como objetivo analisar o fenômeno do uso abusivo de bebidas
alcoólicas vigente entre os Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul, a partir das teorias que
consideram o corpo humano enquanto uma construção sociocultural, lugar onde se inscreve
os valores e significados da sociedade que o ‘modela’. A produção de corpos e de pessoas
são elementos centrais na compreensão de como são criados, estabelecidos, mantidos e
atualizados os vínculos sociais, constituindo-se enquanto instância mediadora que, através
das trocas e partilhas de substâncias, instituem os sistemas de parentesco e as lógicas que o
sustentam.
Nesse sentido, a partilha de substâncias entre os Mbyá-Guarani apresenta-se como
processamento simbólico das relações de parentesco enquanto relações de substância. Essa
partilha envolve desde a troca de fluídos corporais e de alimentos, até as experiências
compartilhadas dos rituais, das festas ‘profanas’ e do próprio ‘trabalho’ (plantação e
colheita, artesanato, esperar troquinho, etc) estabelecendo assim relações entre as pessoas e
o espaço a que se unem os parentes Mbyá. Tais relações de substância também são
articuladas ao idioma do cuidado (Gow, 1991) responsável por criar na pessoa a memória, o
amor e o sentimento de pertencimento ao seu grupo.
Os estudos sobre parentescos realizados por Da Matta (1979), Teixeira-Pinto (1993)
e Mellati (1979) apontam para a correspondência existente entre os sistemas terminológicos
de parentesco, as relações sociais estabelecidas entre parentes e as suas respectivas
ideologias. Entretanto neste trabalho não pretendo dar conta dessa correspondência, mas
sim me deter sobre o idioma de substancialidade enquanto lógica que informa a
compreensão nativa do uso que as pessoas fazem das bebidas alcoólicas (canha)
introduzidas através do contato interétnico.
1Dra. em Antropologia Social. Bolsista de PDJ/CNPQ da Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação
Oswaldo Cruz; professora visitante do Departamento de Saúde Coletiva/Universidade Federal de Brasília.
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Considerando que uma das funções da teoria é direcionar o olhar do antropólogo em
campo, aqui o caminho tomado foi o inverso, ou seja, os pressupostos teóricos serão
empregados na leitura de dados coletados em uma pesquisa que não teve a pretensão de
buscar informações relacionadas ao sistema de parentesco Mbyá-Guarani. Por outro lado,
os dados que emergiram durante o trabalho de campo expressavam e expressam o quanto o
sistema de parentesco sustentado pelo idioma da substancialidade ordena a relação entre os
Mbyá, que se dizem todos parentes, e deles com os seres e as ‘coisas’ que habitam o seu
cosmos, sendo um desses ser/coisa a bebida alcoólica.
Os dados etnográficos aqui apresentados foram levantados durante distintos
momentos do processo de pesquisa entre os Mbyá-Guarani: 1º.) durante o Diagnóstico
Antropológico Participativo sobre a Manifestação do Alcoolismo entre Mbyá-Guarani
realizado nos anos de 2000 e 20012; 2º.) durante as Reuniões Gerais dos Karaí, Caciques e
Lideranças Mbyá-Guarani sobre o Uso Abusivo de bebidas alcoólicas e alcoolismo; e nos
encontros promovidos pelo Percurso Terapêutico dos Xondaro Marãgatu (guardiões,
policias do espírito) às comunidades com uso abusivo de bebidas alcoólicas para levarem as
mensagens e as boas palavras dos Karaí3. Estas reuniões e encontros constituíram-se em
eventos discursivos onde o aconselhamento através das boas palavras, gênero de fala
cerimonial que compõe a arte verbal deste grupo, foi usado como uma forma terapêutica de
intervir sobre a problemática do uso abusivo de bebidas alcoólicas. Dezesseis comunidades
Mbyá-Guarani do RS foram percorridas e estão envolvidas neste projeto.
O presente trabalho está organizado da seguinte forma: na primeira parte faço uma
revisão sobre as teorias de corporalidade apresentando três casos etnográficos exemplares
onde a partilha de substâncias é um principio organizador dos sistemas de parentesco
indígenas; na segunda etapa, trago alguns dados sobre o parentesco e a organização social
Guarani buscando me aproximar da temática relacionada à presença do idioma de
substancialidade também como um fator que informa as relações sociais entre os Mbyá-
Guarani no RS; por fim, apresento uma etnografia sobre como a lógica da substancialidade
2Os principais objetivos do Diagnóstico foram: 1º.) reconhecer se o uso de bebidas alcoólicas era considerado
um problema pelos Mbyá-Guarani no RS; 2º.) em sendo considerado um problema, diagnosticar as dimensões
sócio-cosmológicas do fenômeno do uso abusivo de álcool; 3o.) identificar os recursos do sistema médico
tradicional Mbyá para o controle do consumo de álcool, visando apontar os caminhos de intervenção. 3 Para um maior detalhamento do processo de pesquisa antropológica e intervenção intracultural, ver Ferreira,
2001, 2001ª e 2004.
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está subjacente ao discurso das lideranças espirituais Mbyá-Guarani (karaí – homem; e
cunhã-karaí - mulher) sobre o uso de bebidas alcoólicas entre este grupo étnico.
As teorias de corporalidade e de partilha de substância como princípios organizadores
dos sistemas de parentesco ameríndios
Com a constatação de que os modelos antropológicos empregados para análise dos
sistemas de parentesco africanos, centrados nas idéias de descendência e linhagem, seriam
inadequados para compreendermos estes mesmos sistemas nas sociedades indígenas da
América do Sul4, a ênfase é deslocada dos modelos formais de estudo dos sistemas de
parentesco para o conteúdo que informa as relações entre parentes. Com isso, o corpo passa
a ser considerado uma categoria central para a compreensão dos sistemas de parentesco das
sociedades indígenas sul-americanas.
O modelo teórico sobre a corporalidade proposto por Seeger, A., Da Matta, R.,
Viveiros de Castro, E.B (1987), nos permite apreender os processos de formação e
construção do indivíduo enquanto pessoa social, considerando que a fabricação e a
modelagem do corpo são realizadas pela sociedade com o objetivo de construir a pessoa e
as identidades sociais (Viveiros de Castro,1987). As ideologias de corporalidade
constituem-se assim, em um idioma simbólico focal que atuam como princípios centrais da
organização social dos indígenas, na medida que operacionalizam e informam a práxis
social. Através das relações corporais a interação entre as pessoas é instrumentalizada.
Estes autores postulam a tese da existência de uma fisiologia dos fluidos corporais –
sangue, sêmen – e dos processos de comunicação do corpo com o mundo (alimentação,
sexualidade, fala e demais sentidos) que subjazem às variações de organização sociais nas
sociedades indígenas sul-americanas, ou seja, há uma ordenação da vida social através de
uma linguagem do corpo. O corpo assim constitui-se no lugar onde se articulam as
diferentes instâncias que compõe a pessoa: nome e substância, alma e sangue.
No contexto dos estudos dos sistemas de parentesco o processo de fabricação e
modelagem do corpo tem como resultado a construção da ‘pessoa aparentada’. Através das
4 Nesse sentido, o estudo de Roberto da Matta “The Apinayé relationship system: terminology and ideology”
(1979) faz referência aos estudos de Nimuendajú sobre a organização social Apinayé, por exemplo, e a sua
constatação de que a organização social desta sociedade, e isso podemos estender para as sociedades
indígenas da América do Sul, apresentaria uma certa anomalia e um cento amorfismo por não se encaixarem
nos modelos clássicos e eurocêntricos de estudos de parentesco.
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teorias nativas de concepção, reprodução e ciclos vitais fica claro como são formados os
laços de identidade física e corporal que orientam as relações sociais de substância
enquanto base dos grupos de parentesco. Nos “grupos de pessoas relacionadas por
‘substância’ (...) um indivíduo é literalmente criado como membro de um grupo na sua
própria carne, sangue e ossos” (Seeger, 1980). As relações e posições sociais que compõe o
sistema de parentesco são assim estruturadas partir de um idioma de partilha de substâncias,
tanto através da troca de fluidos corporais, quanto através os alimentos.
Buscamos a partir de agora apresentar três exemplos etnográficos de sistemas de
parentesco de sociedades indígenas sul-americanas e suas respectivas análises
antropológicas que empregam os postulados teóricos desenvolvidos até o momento, para
ilustrar como a lógica da substancialidade está estruturando as relações sociais entre
pessoas e classe de pessoas sociais.
Da Matta (1979) propõe pensarmos o sistema de parentesco Apinayé enquanto um
sistema de relações sociais e não como um sistema formalmente estruturado. Nesse sentido,
ele busca estudar o sistema ideológico deste grupo indígena como base para analisar a sua
terminologia de parentesco. Nos deteremos aqui, como já pontuado na introdução, na
análise da dimensão ideológica deste sistema de relações por ser expressiva do lugar que o
idioma de substancialidade ocupa nesta sociedade indígena.
Para Da Matta, a família nuclear Apinayé é reconhecida socialmente como uma
unidade produtora de crianças. Seu espaço é a casa, lugar onde se come e se dorme, lugar
da vida doméstica. Duas ideologias são encontradas neste âmbito doméstico: primeiro são
as regras de evitação e de etiqueta que existem, por exemplo, nas relações entre o novo
esposo e o sogro e cunhados, ou seja, entre afins que habitam a mesma residência5. O
sentimento preponderante entre eles é o de piam que pode ser traduzido por vergonha,
respeito, distância social; e segundo, a ideologia associada aos períodos de couvade que
envolvem precauções, abstinência ou restrições relacionadas tanto a alimentação quanto a
comportamentos. Estas ideologias são fundadas nas concepções nativas sobre o
funcionamento do corpo humano, pois, o funcionamento correto depende da combinação
adequada de substâncias durante a gravidez e o período pós-parto, durante a menstruação e
também em casos de doença.
5 A regra de residência aqui é a uxorilocalidade.
5
Nesse sentido, o autor postula que a família nuclear é o grupo natural, onde a
ideologia da substância expressa nas relações de precauções, abstinências ou restrições
alimentares e comportamentais criam uma continuidade entre pessoas física e socialmente
separadas, formando uma comunidade de substância6 que envolve tanto consangüíneos
quanto afins, pois os laços do casamento criam uma substância comum entre o marido e a
mulher. A função dessa comunidade de substância é o bem estar físico de seus membros. É
nesse espaço doméstico e privado que é feita a mediação entre o mundo externo (a
natureza) e o mundo interno (controlado por regras, a cultura). Aqui a pessoa é chamada
por um nome caseiro, um apelido.
Como instância complementar temos a relação que a pessoa estabelece com os
grupos cerimoniais, relação essa que a iniciará na dimensão estrutural da vida social adulta
Apinayé. Um dos aspectos rituais que marcam a passagem da pessoa do mundo doméstico
para o mundo propriamente social é a transmissão de nomes cerimoniais, que teria como
ideologia subjacente uma ordem simbólica e cósmica. Através dos rituais de passagem a
pessoa é separada da sua comunidade de substância e inserida no mundo social adulto,
quando estará preparado para formar o seu próprio grupo de substância. Nesse sentido, a
função dos grupos cerimoniais seria a quebra dos laços de substância de ego. Ou seja, o
idioma de substancialidade, em Da Matta, se restringe a esfera doméstica da vida social
Apinayé e não se expande para os domínios públicos, que ele interpreta como domínios
propriamente naturais, em oposição ao doméstico que seria um domínio próximo a
natureza, mas que tem como função domesticá-la.
Em síntese, aquilo que é expresso através da análise do sistema ideológico
subjacente a terminologia de parentesco Apinayé e que informa a relação entre parentes é
que enquanto a família nuclear, a esfera doméstica, a casa, o espaço do feminina e a
domesticação da natureza estão relacionados a comunidade de substância; os grupos
cerimoniais, que tem a função de romper com esses laços estão relacionados com a
comunidade de forma mais ampla, com a esfera pública, com a praça e casa dos homens,
com o masculino e com a dimensão do social.
Peter Gow (1991) ao estudar a sociedade Piro e Campa do Baixo Urubamba vai
reconhecer dois idiomas de parentesco organizadores das relações sociais: 1º.) o idioma da
6 (parafraseando o conceito de comunidade de aflição proposto por V. Turner):
6
substancialidade, baseado na conexão física e substância compartilhada que é revelado nas
proibições pós-parto a serem cumpridas pelos pais do recém-nascido, momento onde o
corpo da criança tem uma ligação de contigüidade com o corpo dos pais, pois sua alma,
apesar de ser independente, é ignorante e pode ser perdida diante de determinadas
situações; e 2º.) o idioma do cuidado que se estabelece a partir do momento em que a
criança desmama e começa a dar os primeiros passos andar. A partir daí os pais devem
alimentar a criança com a ‘comida legitima’ o que evocará na criança o seu amor pelos pais
que tornar-se-á manifesto quando ela começar a chamá-los pelos termos de parentesco. O
cuidado dado pelos pais aos seus filhos criará uma memória recíproca do cuidado que se
estenderá por toda a vida adulta da pessoa.
São estes idiomas que informam o processo de produção da pessoa aparentada, na
medida que influenciam na construção identidade de gênero da sociedade do Baixo
Urubamba. A organização da economia de subsistência do grupo é sustentada pelas
relações de gênero nesta sociedade, mais especificamente nas relações entre marido e
mulher. É o sistema de trocas e de obrigações recíprocas entre marido e mulher que coloca
em movimento a produção chamados ‘alimentos legítimos’. Se por um lado, os cônjuges
devem satisfazer os desejos sexuais um do outro, por outro eles também devem atender as
suas exigências alimentares: o homem deve trazer carne de caça para a sua mulher , e a
mulher deve fazer cerveja de mandioca para o homem7. É essa dinâmica que permite a
manutenção dos idiomas centrais do parentesco – da partilha de substâncias e do cuidado –
sustentado nas relações entre os familiares vivos e na produção de pessoas autônomas que
mantém por sua vez os padrões de relações entre familiares.
“A criação dos filhos é a atividade dos pais que faz a criança em uma pessoa
aparentada, justamente como um casamento é a atividades dos maridos e mulheres
que mantém o relacionamento entre eles. Para ser real, alguém pode dizer, um
relacionamento deve ser encenado. (...) Co-residência, o viver junto na mesma vila,
é uma demonstração de cuidado” (1991; 194).
Na medida que o idioma do cuidado se estende para as demais relações
estabelecidas entre os co-residentes da comunidade, entre aqueles que vivem juntos e se
ajudam, convivem e trocam alimentos, podemos reconhecer mais um idioma organizador
7 A relação de gênero também organiza as outras atividades que compõe o ciclo da economia de subsistência
do grupo, que podem ser agrupadas nas categorias ‘trabalho’ (construção da casa e feitio da cerveja de
mandioca) e a busca por algo (caça, pesca e busca por dinheiro).
7
das relações de parentesco: o idioma da co-residência. Por um lado, a comunidade é um
fenômeno do parentesco; por outro, o parentesco é um fenômeno da comunidade, pois viver
juntos é a demonstração e a atualização dos laços de parentesco8.
Apesar de Peter Gow apresentar os três idiomas – de substância, do cuidado e da co-
residência – em um esquema lógico, podemos perceber através dos dados etnográficos
apresentados pelo autor, que existe uma sobreposição entre estes idiomas na vida cotidiana
da sociedade do Baixo Urubanba: ao mesmo tempo em que o idioma da substância perpassa
todos os outros domínios da vida adulta (como por exemplo, o presente na troca de comidas
e bebidas existente entre marido e mulher) convivendo lado a lado com o idioma do
cuidado; o idioma do cuidado também está presente nos primeiros meses de vida de uma
nova criança, convivendo lado a lado com o idioma de substância. Por outro lado, através
do idioma de co-residência nos damos conta de que, diferente dos Apinayé abordado por
Da Matta, o idioma de substância e o do cuidado não se restringem ao âmbito doméstico,
mas também estruturam a relação entre parentes que são co-residentes e que também
trocam alimentos entre si, principalmente através das mulheres aparentadas9.
Por fim Teixeira-Pinto (1993), abordando os sistemas de parentesco enquanto
geradores e reprodutores de indivíduos, estará atento aos processos e conceitos nativos de
‘biologização’ de certas relações sociais que são fundamentadas em termos substantivos10
.
Em seus estudos junto a sociedade Arara, este autor reconhece a existência de dois
sistemas paralelos de classificação que se alternam e expressam categorias e modelos
diferenciados de interação social de sociabilidade: alternância entre um padrão havaiano
onde primos e irmãos são chamados pelos mesmos termos – um sistema horizontal; e por
uma aproximação ao sistema crow-omaha, sistema oblíquo – geracional onde o irmão da
mãe passa a ser chamado de irmão; e a irmã do pai passam a ser chamada de avó.
Estes dois sistemas classificatórios informam sobre uma lógica da proximidade,
distância e delimitação de fronteiras sociais entre parentes, instituída pelo idioma de
substancialidade: os parentes mais próximos são aqueles que partilham substâncias.
8 Algumas notas sobre os mortos: Os velhos escolhem o lugar que vão morrer e quando morrem os vivos
abandonam esse lugar de moradia, pois a alma do morto que ali fica residindo quer atrair os vivos para não
ficar sozinho, entretanto ela não tem como constituir família, ela é só. O parentesco é coisa dos vivos! 9 Sobre a troca de alimentos via mulheres aparentadas na sociedade do Baixo Urubamba, ver Gow, 1991.
10 Segundo ele, esse é um traço característico da organização social dos grupos indígenas Sul-americanos.
8
Considerando que a regra de casamento entre os Arara é uxorilocal, o sistema de
havaianização está relacionado com as relações estabelecidas no interior das ‘casas’, que é
o espaço dos parentes consagüineos (mães e irmãs de ego) e do grupo de substância ligado
pela partilha de serviços, dádivas e reciprocidade, formando assim uma comunidade de
substância. Por outro lado, o sistema crow-omaha marca a relação estabelecidas entre as
casas através dos laços de casamento e de afinidade. Com o casamento o homem muda de
casa e também de regime de sociabilidade, assim ele entre no universo da afinidade real.
A passagem de um sistema classificatório ao outro sistema está relacionada à
dinâmica de relações estabelecida entre as casas e ao trânsito do homem da esfera
consangüínea para a da afinidade, sendo que essa passagem também está relacionada ao
idioma da substancialidade. O sistema classificatório oblíquo expressa a sociabilidade entre
os diferentes grupos residenciais através da ‘transmissão de substâncias’: com o casamento
ego muda-se para a casa de sua esposa e passa a viver com seus parentes afins, mas ainda
continua associado ao seu grupo de substância por um sistema de visitação e de prestações
recíprocas estabelecidas entre ele e suas parentas consangüíneas – por ocasião da visita, ego
agora casado oferece carne de caça as suas mães e irmãs e elas, por sua vez, retribuem
oferecendo a ego cerveja de mandioca. Como o irmão da mãe casou na mesma casa que
ego casou e como ele foi cuidado por sua irmã que lhe ofereceu cerveja de mandioca por
ocasião de suas visitar, a mesma mulher que amamentou ego, então o irmão da mãe (tio)
passa a ser chamado de irmão. Por outro lado, como a irmã do pai, foi aquela que ofereceu
cerveja de mandioca para ele quando ele as ia visitar, ela estabelece um mesmo tipo de
relação com ele que a mãe do pai estabelecia quando lhe dava de mamar, logo a irmã do pai
passa a ser chamada de avó Correspondência entre as irmãs que alimentam ego com a
cerveja de mandioca e a mãe que alimenta ego com leite materno (mãe).
Diferente de Da Matta, Teixeira-Pinto aponta para a continuidade e o rearranjo das
relações de substância durante o ciclo de vida masculino, ou seja, não há entre os Arara um
sistema cerimonial que estabeleça uma ruptura entre o idioma de substancialidade e o de
afinidade, a lógica da substância permanece orientando a interação de ego com seus
parentes mesmo depois do seu casamento. E mais é ela que organizará o sistema de
classificatório de parentesco Arara.
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Breve panorama sobre a organização social e o parentesco Guarani
Aqui centraremos nossa atenção nos dados etnográficos apresentados por Egon
Schaden (1974) e Aldo Littaif (1996) e os dados historiográficos trazidos por André Soares
(1997) sobre a organização social Guarani que possam lançar luz sobre o tema que aqui
estamos desenvolvendo. Na medida que se fizer interessante acrescentaremos dados
referentes ao meu trabalho de campo realizado entre os Mbyá-Guarani no Rio Grande do
Sul desde 1996.
Shaden (1974) afirma que a organização social Guarani está baseada na família
extensa. Este mesmo grupo é definido por Soares (1997) como kindred, ou seja, um grupo
de parentes ligados por laços de consangüinidade e de afinidade organizados em torno a
uma pessoa de prestígio que pode ser a liderança política e/ou religiosa do grupo. O
cunhadasco (tovadjá: cunhado) é uma instituição baseada em regras de reciprocidade e
central na organização social Guarani, pois através dele que são estabelecidas as alianças
políticas entre as famílias. Nesse sentido, a poligamia torna-se uma forma de tornar o outro
em cunhado, de “ligar-se com parentesco” (Soares, 1997).
No RS a maior parte das aldeias (teko’á: lugar da vida; aldeia) são composta por
famílias extensas e outras famílias agregadas a estas por laços de afinidade ou de aliança de
natureza política. Cada família nuclear que ali mora constitui-se em uma unidade social
elementar com a sua própria casa e o seu próprio fogo de chão usado para cozinhar, para
esquentar a água do chimarrão, para aquecer, para esquentar os ferros com os quais são
preparadas as esculturas em madeira, e também para fornecer remédio. No centro ideal da
comunidade encontramos a casa de reza (opy) onde mora a liderança religiosa e onde são
realizados os rituais cósmico-religioso e de cura.
Aldo Littaif (1996) citando Maria Inez Ladeira, afirma que a regra de residência
Guarani-Mbyá é uxorilocal e temporária, ou seja, o homem habita com a família da esposa,
prestando serviço para os sogros, até o nascimento do primeiro filho, depois o casal estaria
livre para escolher o lugar para morar. André Soares contesta esta informação defendendo a
idéia de que a regra de residência é definida pelo prestígio da liderança do grupo.
Entre os Mbyá no RS a regra vigente é realmente a da uxorilocalidade temporário,
entretanto, os chefes de prestígio podem influir sobre a situação e fazer, por um lado, que
10
suas noras venham morar junto a seus filhos, e por outro, a partir do segundo casamento do
chefe, que as esposas venham morar diretamente com ele11
.
Segundo Soares (1997) a regra de filiação entre os Guarani é indiferenciada
(cognática), reconhecendo tanto os parentes do lado materno quanto do lado paterno.
Enquanto que a terminologia do sistema de parentesco expressa uma estrutura complexa,
onde há uma ausência da regra matrimonial positiva, prescritiva, sendo a busca de prestígio
o que orientaria a escolha do cônjuge.
No RS os Mbyá falam que antigamente as famílias dos jovens é que decidiam sobre
o casamento dos filhos, mas que hoje quem escolhe e acerta o casamento são os próprios
jovens. Isso não isenta ao homem de consultar os pais da noiva e pedir a permissão para o
casamento. O casamento é ministrado pelo cacique, que aconselha os recém-casados quanto
aos deveres e direitos dos dois cônjuges. É o cacique que também intervirá em caso de
problemas e discórdias entre o casal.
A noção dualista da alma, o nome e a pessoa Tupi-Guarani enquanto devir
Os estudos clássicos sobre as três parcialidades étnicas Guarani – Kayová, Xiripa ou
Ñandeva e Mbyá – não apresentam dados etnográficos sistemáticos sobre o sistema de
parentesco vigente nestas sociedades. Todos eles são unânimes em afirmar a
preponderância do sistema religioso guarani sobre os demais sistemas que compõe a cultura
Guarani. Dois temas foram amplamente explorados por estes autores: um deles foi à noção
de dualidade da alma Guarani como chave para a compreensão do seu sistema religioso e o
outro foi as grandes migrações em busca da Terra sem Mal e sua associação com a
centralidade mítica e cosmológica que a linguagem, a bela linguagem, possui nesta
sociedade12
.
A pessoa guarani possui duas almas: uma que é a alma divina (nhe’ë) e alma
telúrica para os Mbyá ou alma animal para os Kayová e Ñandeva. Os nhe’ë13
são
proveniente das moradas dos Pais Verdadeiros dos espíritos: Kuaray, Karaí, Tupã, Jakairá.
11
Ao cacique geral (uvicha guaçu) é permitido ter até 7 esposas, desde que ele consiga sustentá-las. 12
Curt Nimuendajú (1987), Helené Clastres (1978), Leon Cadógan (1950), Bartomeu Meliá (1988; 1989),
Susnik (1984; 1989), Egon Schaden (1974). 13
“(...) espécie de espírito protetor, incumbe a segurança do indivíduo, vigiando-o. (...) É parte integrante do
seu eu. (...) A sede da alma – ou das almas, como veremos mais adiante – (...) é o corpo todo. Ademais as ñe’ë
caracterizam-se por existência relativamente livre, isto é, existem independentemente do corpo, podendo
deixá-lo, (...) e retirar-se para regiões longínquas” (Schaden, 1974:137-138).
11
É na cerimônia de batismo (nhemongaraí) realizado na Casa de Reza (Opy)14
, depois que a
criança começa dar os seus primeiros passos e a articular as suas primeiras palavras (mais
ou menos com um ano de idade) que os deuses revelarão ao Karaí a proveniência divina do
espírito encarnado e o seu nome divino15
. Esse nome divino faz parte da pessoa e é ele que
‘sustentará erguido o fluir do seu dizer’ (Cadogan, 1950).
Por outro lado o espírito telúrico, no caso Mbyá, é desenvolvido durante a
caminhada da pessoa neste mundo como condição de sua verticalidade. Ao viver nessa terra
a pessoa compartilha das qualidades imperfeitas dela. Essas qualidades imperfeitas que
constituem pessoa são denominadas teko achÿ (teko: vida; achÿ: dor). São essas qualidades
imperfeitas que a pessoa deve superar através de resguardo sexual, restrições alimentares e
comportamentos adequados para com os parentes, se ela quiser alcançar a terra sem mal e
habitar junto aos deuses, atravessando o grande oceano verticalmente com o ‘corpo e tudo’.
Aqui se manifesta o ideal de pessoa Mbyá-Guarani enquanto devir-outro: “a pessoa não é
um ente, mas um entre” (Viveiros de Castro, 1986), a alteridade é constitutiva dessa pessoa
pois ela está localizada entre as suas duas almas sendo o espírito divino o outro que a
constitui, entretanto essa pessoa só se realiza em plenitude enquanto devir-outro, enquanto
devir-deus, quando ela consegue superar a condição de teko achÿ e integrar o corpo
humano à sua condição de divindade.
Entretanto a terra sem mal é destino de poucos e atualmente com uma quantidade
enorme de substâncias do ‘mundo do branco’ que foram incorporadas ao universo Mbyá, a
morte é o destino da maior parte dos parentes que aqui “deixam o seu corpo como terra”16
.
Com a morte a pessoa se fragmenta: ”Assim que morremos a pessoa se divide. Corpo, alma
e sombra explodem em direções diversas e divergentes” (Viveiros de Castro, 1986:495):
O nhe’ë retorna para a sua morada divina, o corpo apodrece e a alma telúrica, e o espírito
14
O Batismo (nhemongaraí) dura alguns dias e acontece em janeiro quando o milho está pronto para ser
colhido, pois para que haja batismo é preciso que haja milho: esse é o batismo do milho. Também nesse
período as outras crianças e também adultos são observados pelos karaí para ver se está tudo bem com o
espírito e se o nome está adequado. Se o nome não é adequado a criança não desenvolve e quando a pessoa
está doente, a troca de nome também é um recurso terapêutico. 15
Esse nome dependerá e indicará a filiação divina do espírito, por exemplo: Filhos de Karaí: Karaí (H) e
Crechu (M); filhos de Nhamandu: Kuaray (H) e Gerá (M); filhos de Tupã: Verá (H) e Pará (M); filhos de
Jakairá: Tataendy (H e M). 16
Yvyramo (deixar seu corpo como terra) e uma palavra empregada em um gênero de fala específico dos
Mbyá-Guarani chamado ayvu porã (boas palavras).
12
do morto fica a vagar pela terra em torno aos parentes vivos causando doenças e levando
alguns à morte.
O idioma de substancialidade como lógica organizadora do sistema de relacionamento
Guarani
Egon Schaden (1974) vai interpretar esses momentos de resguardo como estados de
crise na vida guarani que envolveria os momentos relacionados ao ciclo vital - o
nascimento, maturação biológica, doenças, nascimento dos filhos e morte. Para este autor o
resguardo e restrições alimentares a que se submete o pai do recém-nascido no período pós-
parto “se trata, primordialmente, de extensão, para o pai, de medidas de precaução
necessárias à segurança do recém nascido. Através de uma espécie de ‘participação’, o pai
representa o filho e, até certo ponto, também a mãe” (1974: 81). Ou seja, em nenhum
momento Schaden estará relacionando estas práticas à construção das relações de
parentesco entre os Guarani. No entanto, é justamente neste período de resguardo pós-parto
que as relações de substância tornam-se evidentes, assim como durante o período da
menarca feminina17
.
Para os Mbyá a mulher possui uma fecundidade localizada que é instigada pela
vontade divina, entretanto durante a gestação sua função é passiva, enquanto o homem que
é o responsável pela formação do sangue e do corpo do feto da criança através de repetidas
relações sexuais durante a gravidez. Em torno ao sangue gira uma séria de concepções e de
cuidados no sentido de mantê-lo puro. Esse cuidado com a manutenção da pureza do
sangue é primordial para que o nhe’ë permaneça ligado à pessoa.
Quando uma criança nasce os pais devem permanecer em reclusão porque existe o
perigo do espírito da criança sair andando com eles e perder-se no caminho. Nessa fase,
enquanto o corpo da criança ainda está em formação o espírito dela está especialmente
ligado aos pais. Por ocasião do nascimento de sua sétima filha, o cacique José Cirilo
Morinico nos fala sobre os cuidados e procedimentos que os pais e a família deve ter no
período pós-parto18
:
17
Na primeira menstruação a menina deve ficar reclusa por determinado período, nos próximos períodos
menstruais as mulheres não podem cozinhar para os homens para que os mesmos não fiquem doentes. 18
Ao me falar sobre esse tema José Cirilo tinha como intenção a elaboração de um documento para ser
encaminhado ao Ministério Público Federal buscando reivindicar o direito a atenção diferenciada a saúde
13
“Em primeiro lugar, a parteira guarani tem que sentar e cuidar da mãe com o
cachimbo e fazer o remédio das cinzas da fogueira para que a mãe tome antes de
nascer a criança. Muitas vezes tem espírito mau dentro do mundo e por isso é
importante que a criança nasça normal e a mãe fique bem. Então minha esposa
ficou com dor de cabeça, com dor de barriga, isso é normal. Mas tem outra coisa
que acompanha essa doença que é por causa do espírito. Em primeiro lugar é
preciso pegar a cinza e colocar no copo pra mãe tomar pra não ficar com dor no
corpo todo. E o pai a mesma coisa. Nós temos que colocar uma panela cheia de
cinza misturada na água, chamar todos os filhos e molhar as pernas de todos com
isso e também todo o corpo. Isso é pra evitar problema, não ter dor, e nem ter
algum problema de doença de virar animal. Quando a criança nasce o pai tem que
fazer balaio pra menina e arco-e-flecha pro menino para evitar acidente do
espírito, para que ele fique na aldeia com esse brinquedo, pra que ele va brincar
com esse brinquedo e não acompanhar o pai se ele tiver que sair em outra aldeia.
Se o espírito o acompanha ele pode se perder no caminho. Depois que o filho nasce
o pai tem que ficar de resguardo durante 30 dias, depois disso ele pode voltar as
suas atividades normais. Neste período ele também não pode usar faca para que o
umbigo do recém-nascido não inflame. Agulha também não, a mãe não pode
costurar. Mas o principal é fazer o balaio para a menina e o arco para o menino.
Se não há resguardo as crianças sofrem muito, ficam com dor no corpo, choram. A
mãe também tem que evitar de dar mama deitada pra criança, para que não entupa
o nariz do nenê. Depois de quinze dias da criança ter nascido a mãe deve lavar os
pés na água quente de cinzas. Durante trinta dias a mãe não pode comer feijão, sal,
coisas doces, carne de porco. Ela só pode comer mandioca, batata doce, milho.
Antigamente se proibia de comer tudo que é carne para que a mãe não tenha
tonturas, porque quando matamos os animais eles não morrem na hora, eles ficam
tonto antes de morrer. Hoje a gente come carne pra ter força, mas isso também é
decisão do branco. É importante que a mãe permaneça na aldeia para que ela não
tenha recaída pois ela está espiritualmente fraca, sem conseguir falar alto, ainda
está fraca a voz; e principalmente para que não cause doença na criança. Para que
a mãe possa comer galinha depois de 15 dias a cunha-karaí tem que fazer oração e
baixar a fumaça na galinha pra tirar o veneno que tem ali na galinha. A placenta
também é importante, temos obrigação de enterrar na hora em que o nenê nasce.
Também não se pode cortar o umbigo com faca ou tesoura, nós cortamos com
taquara. É importante enterrar a placenta para que a criança lembre sempre da
nossa cultura e da nossa tradição, porque senão ele vai esquecer. Porque a pessoa
é natureza, ai ela se une com a natureza, com a terra. Na hora que enterramos a
placenta vai a informação dos deuses, para o Pai Verdadeiro do Espírito. Também
é preciso ter cuidado com a criança. É proibido que outras pessoas vejam a
criança, por exemplo, se numa aldeia vem o bebedor e quer mexer nela ela pode
ficar com dor de cabeça, ter pressão alta por causa da bebida alcoólica, porque ela
é recém-nascida não está segura ainda, por isso pode pegar muita doença”.
indígena, explicando o que é o diferenciado do ponto de vista Mbyá. Isso porque Patrícia nasceu no hospital e
teve que permanecer por alguns dias na Unidade de Tratamento Indensivo Neo-natal. A maior preocupação de
Cirilo e de sua esposa era de que os profissionais de saúde não dessem leite materno de mulher branca para a
sua filha, pois se isso acontecesse o sangue da criança seriam corrompido e ela iria morrer.
14
Com o processo histórico de contato interétnico, algumas substâncias produzidas
pelo ‘mundo do branco’ foram incorporadas no universo relacional dos Mbyá-Guarani. Tais
substâncias contaminam a pessoa e as relações entre os Mbyá. Entre estas substâncias
temos alguns alimentos (sal, azeite, açúcar, arroz) e também a canha (bebida alcoólica).
A canha e o idioma de substancialidade
Existem múltiplos fatores que contribuem para a construção do uso abusivo de
bebidas alcoólicas entre os Mbyá-Guarani. O primeiro deles, reconhecido pelos Mbyá, diz
respeito ao processo histórico de contato interétnico19
. Esse processo é o responsável pela
construção de uma cultura do beber que articula um conjunto de práticas, significados e
relações próprias da sociedade Mbyá-Guarani aos elementos da sociedade ocidental que
foram incorporados à este universo: alimentos, músicas, bebidas alcoólicas.
Práticas associadas ao consumo de álcool e incorporadas pelos Mbyá durante o
contato são os “bailes do branco” e os jogos de futebol. Estes são momentos de bebedeiras
coletivas onde a maior parte das famílias que residem em uma determinada comunidade se
envolvem. A bebida utilizada com mais freqüência é a cachaça. As comunidades onde os
‘bailes do branco’ são recorrentes são lugares onde não há casa de reza (opy) e nem rezador
(karaí no caso de homem, e cunhã-karaí no caso de mulher), onde a liderança não tem
autoridade para orientar o seu grupo com bons conselhos, pois ela mesma bebe.Os Mbyá
afirmam que quando as pessoas bebem e dançam ao som da música sertaneja, o
pensamento é direcionado para o sexo (jerokua), enquanto os rituais realizados na casa de
reza mantêm o pensamento da pessoa ligado aos Deuses.
Na compreensão dos karaí e cunhã-karaí, a pessoa que torna-se bebedora estabelece
um laço com a bebida alcoólica, uma espécie de matrimônio entre os espíritos de diferentes
substâncias: a do corpo e a da canha.
“Porque como você tá bebendo, quando você toma, não está pensando lá em cima,
porque você ama, você gosta, você se apaixona por beber. Porque essa bebida
alcoólica tem espírito! Porque não quer parar? Essa bebida tem espírito, e esse
espírito está casado com seu corpo. Esse é o princípio! Quando você sente tonto de
tomar bebida alcoólica se sente livre, sente uma coisa de natureza (vontade de
fazer sexo), sente muita coisa. Esse espírito quando casa comigo, não quero parar
19
Para uma descrição mais aprofundada sobre as diferentes situações alcoólicas das comunidades Mbyá-
Guarani no RS e as múltiplas causas do beber ver Ferreira, 2002.
15
nem um dia, parece que não vai conseguir parar!” (Cuña karaí Marcelina, Salto do
Jacuí).
A violência entre parentes e mais particularmente a violência entre cônjuges é um
dos problemas desencadeado pelo uso abusivo de álcool. Geralmente quando embriagados,
o motivo das desavenças entre maridos e mulheres é o ciúme e a desconfiança por parte de
um dos componentes do casal. Esse é um dos fatores que contribuem para a separação de
muitos casais Mbyá. Por isso os karaí aconselham os casais:
“Quando falamos de casamento, tem que mostrar bem pro parente, um casal certo,
de verdade. Isso que é importante pra nós. Quando separa e casa com outro e
assim continua, isso não é bom pra nós. O jovem quando casa, tem que tratar bem
a sua esposa. Não pode dar sofrimento pra mulher. A mulher e o homem a mesma
coisa: não pode dar sofrimento nem pra mulher nem para o homem. Todos os que
casam tem que procurar viver bem. Essa separação existe em todas as partes, não
é só aqui. Nisso tem ainda quando o pai da sua filha bebe e fala bobagem. Ai a
mulher fica sofrendo, porque ela não bebe. Então isso acontece em alguns casais,
isso é que causa dor. Então qualquer coisa chega o momento de entregar o corpo
pra outro espírito. Se casal bebe junto não tem controle”.(Juanzito)
O tornar-se violento afeta as pessoas mais próximas ao bebedor que não tem limites
e nem controle para beber: o bêbado (cau). De acordo com os Mbyá, o cau não tem
condições de cuidar de sua família, pois bebe até cair ou até acabar a bebida, além disso ele
maltrata os seus filhos pois tornar-se violento. Como diz o karaí Alex Benitez, “a canha
não conhece pai, nem mãe, nem irmão, nem filho! Não gosto desse álcool”.
A grande preocupação dos karaí e cunhã-kara (mulher religiosa) é com o cuidado
para com as crianças, pois com o consumo abusivo de bebidas alcoólicas os pais
esqueceram a forma correta ensinada pelos deuses de educarem seus filhos. Eles afirmam
que hoje os pais não sabem mais o porque dos deuses terem enviado os espíritos dos seus
filhos para o mundo e por isso que eles não seguem as restrições recomendadas para o
período de gravidez e do pós-parto, como por exemplo, a proibição relacionada ao
consumo de bebidas alcoólicas, para que não seja prejudicada a saúde da criança.
“Porque hoje em dia, o pai e a mãe não sabem respeitar a criança, o seu
filho? Porque quando a mulher ta grávida não pode andar com outro
homem ou com outra mulher. O pai e a mãe tem que valorizar as crianças,
se a mãe está grávida o marido tem que respeitar a mulher, não pode fazer
sexo com outra mulher. Ai o espírito chora, se vê o pai fazendo sexo com
outra mulher. Então não pode fazer nada, para que o espírito venha com
alegria, pra nascer saudável, vir bem de saúde. O pai e a mãe tem que
saber que está vindo as crianças dos deuses. Porque antes de incorporar
nas crianças, Deus manda uma prova pro pai e pra mãe. Se acontece de
16
não passar na prova, na criança vai chegar outro espírito, porque o pai
não sabe esperar a incorporação da criança. As vezes o espírito vai
embora por causa da briga do pai e da mãe. Isso já aconteceu aqui. A
segunda vez, não se pode assustar as crianças, porque senão o espírito
pode voltar pra sua casa. Quando nós temos crianças, nós temos que
cuidar bem, não podemos brigar. A criança tem que ser bem tratada. Se a
mãe ou o pai matam os seus filhos, tem que ir pra cadeia. Porque que o Sol
está vindo? Brilhando neste mundo ainda? Porque ainda existem as
crianças, porque elas estão nascendo ainda. Quando tem criança pequena,
os pais não podem beber muito. A canha é que traz doença pras crianças.
Porque quando a mãe bebe, se a criança está na barriga, a criança fica
sofrendo pelo calor da bebida alcoólica” (cunha-karaí Pauliciana).
Outro problema causado pelo consumo de bebidas alcoólicas é, por um lado, a
quebra das normas que proíbem a relação sexual entre membros do próprio grupo (incesto);
e por outro, é levá-la ter relação sexual com o branco(a). Os filhos gerados nestas relações,
não podem ser nem batizados e nem atendidos pelo karaí em casos de doença. O karaí
Horácio Lopes, nos explica o que acontece com aquele que bebe e que mantém relações
sexuais inapropriadas aos olhos da tradição.
“Porque se não é uma mulher índia tomadora de cachaça, também não vai
gostar branco. Pero, uma vez que tomo,qualquer branco aceita pra
aproveitar! Porque antes, quando não existe tomadora de cachaça, a
quenga não existe dentro dos índio! De aí trouxe a doença pra dentro da
aldeia, pega homem, pega esposo... Por culpa disso agora, o médico do
índio não pode resolver todo enfermidade agora. O médico do índio é
karaí!! Para levar dentro do karaí, pra tratar junto com karaí também
muita família tem que pensar primeiro! Família de quem é? Quem é que é
pai? Quem é que é mãe? Quem é que começou essa criança? Porque agora
criança não se sabe quem é que é pai, quem é que começou ela, eh... Até
por aí, muito problema tem, muito trabalho tem que fazer. Então quando
está doente karaí não sabe ou karaí não quer trabalhar, porque pai não
tem!”.
Quando a pessoa bebe demais e perde o “sentido”, ultrapassa limites e faz coisas
que não deve, age contra o seu espírito divino que, ao não possuir outra alternativa, afasta-
se dela deixando-a sem proteção. Ao estar sem proteção vários perigos ameaçam-na,
inclusive o de morrer atropelada por um carro ao atravessar à estrada, ou seja, a pessoa não
morre porque está bêbada, mas sim porque está sem a proteção de seu ñe’ë. Se o ñe’ë
afasta-se os espíritos dos mortos (mbogüa) e demoníacos (anhã), aproximam-se da pessoa
e passam a exercer uma influência nefasta que leva o bebedor a brigas com os parentes,
17
doenças e morte. Os Xondaro Marãgatu falam sobre a preocupação dos karaí com os
parentes que deixaram ‘seu corpo como terra’:
“Saudações meus parentes. Eu também não sei falar muita coisa. Eu também vou
falar um pouco sobre a bebida alcoólica. Eu também era feio (bebedor). Nossos
parentes estão diminuindo, já perdemos muito. Muitos dos nossos parentes já
ficaram com o corpo como terra só por causa da bebida alcoólica. Eu conheço
também porque eu era bebedor. Os mais velhos e mais velhas sofreram muito por
causa disso, quando o filho ou a filha é bebedor. Então quando o filho ou a filha
falam assim: quando estou bebendo o problema é meu, sou eu. Mas se ele morre,
isso é mau pra todos, isso é dor. Quando o meu parente morre, vem o sofrimento
pra todos. Os karaí estão orientando pra não chegarmos no ponto de cairmos num
buraco e morrermos. Então, por isso que os mais velhos se preocupam, por causa
da morte” (Cezário, Salto do Jacuí).
Considerações Finais
A máxima Mbyá que afirma que “a canha não tem parente, não tem irmão, não tem
pai, não tem mãe... A canha é sozinha!”, demonstra, assim como os outros dados
apresentados no decorrer deste trabalho, que o idioma da substancialidade constitui-se em
uma lógica que subjaz ao fenômeno do uso de bebidas alcoólicas e estrutura a compreensão
Mbyá-Guarani sobre o mesmo.
O uso abusivo de bebidas alcoólicas ameaça os vínculos sociais estabelecidos entre
os parentes, porque a canha é uma substância que não tem parentes e que vem justamente a
se interpor nas relações sociais atualizadas pela partilha de substâncias. O espírito da canha
almeja casar com o corpo da pessoa que bebe. Entretanto ao ser sozinho ele não tem como
estabelecer vínculos de parentesco com essa pessoa e nem pode fortalecer os vínculos já
existentes. Por outro lado, essa é uma substância proveniente do ‘mundo do branco’ que se
instala no coração do sistema de reciprocidade Mbyá, ali mesmo onde são construídas as
pessoas aparentadas através da partilha de substâncias.
Nesse sentido, a condição de violência familiar é o resultado lógico que pode ser
criado por um espírito que não possuí parentes, mas quer relacionar-se. Ao desencadear a
violência familiar (brigas, incestos, estupros) a canha leva o espírito divino da pessoa a se
afastar, deixando-a definitivamente a mercê da influência dos outros maus-espíritos
(mbogüa e anhã) que habitam esse mundo. Aqui podemos intuir que da imbricada relação
entre o nhe’ë e o corpo da pessoa Mbyá depende o bem-estar e a boa saúde das pessoas e
18
das comunidades Mbyá. E que essas, por sua vez, depende de como se dá o fluxo da
partilha de substância entre as relações sociais e cósmicas. O espírito divino se afasta
quando esses princípios cosmológicos que regulam o fluxo de substâncias não são
‘respeitados’ nestas relações. Por exemplo, quando o pai ou a mãe faz uso de bebida
alcoólica durante a gravidez ou no período de resguardo pós-parto. Entretanto, essa relação
entre a dimensão dos espíritos, divinos ou não, o corpo das pessoas, mediada pelo idioma
da substância ainda deverá ser aprofundada em pesquisas posteriores20
.
Interessante percebermos que o idioma da substancialidade e o idioma do cuidado
não encontram-se numa dimensão diacrônica, como a descrita por Peter Gow para as
sociedades do Baixo Urubamba, mas que estão sobrepostos um ao outro. O cuido com o
fluxo de substâncias entre os Mbyá é fundamental para que a criança cresça com saúde e
para que o adulto a mantenha, na medida que é através desse cuidado que ele se manterá
em contato com o seu espírito divino. Por outro lado, diferente dos Apinayé descrito por Da
Matta, entre os Mbyá-Guarani a lógica da substância não apenas informa e orienta a relação
entre parentes no âmbito doméstico, ou entre grupo de parentelas, como as relações
descritas por Teixeira-Pinto, mas também se estendem para além da esfera comunitária da
vida Mbyá. Ela abarca e informa as relações sócio-cosmológicas que os humanos Mbyá
estabelecem com os outros seres – humanos ou não - que habitam o cosmos. Entre estes
seres encontramos o branco com o qual é proibida, num nível ideal, a relação sexual, e com
a ‘canha’ que é uma substância proveniente do mundo do branco e que por não ter parente
busca destruir os vínculos de parentesco entre as pessoas Mbyá.
Por fim gostaria de terminar levantando uma hipótese do porque o postulado
da substancialidade enquanto linguagem organizadora do parentesco dos povos indígenas
sul-americanos não foi utilizada para pensar o parentesco Guarani. Acredito que os estudos
clássicos produzidos sobre os guarani até o momento21
, enfatizaram a preeminência da
dimensão religiosa sobre as outras dimensões que compunha esta sociedade indígena –
política, econômica, de organização social – colocando em destaque, por um lado, sobre o
conceito de alma nativo como chave para a compreensão desse sistema, sendo que apenas
20
Uma leitura a ser desenvolvida em outro momento é olhar para este fenômeno a luz das teorias sobre o
perspectivismo ameríndio propostas por Viveiros de Castro, 1996. 21
Cadogan (1950), Meliá (1988; 1989), Helene Clastres (1978), Egon Schaden (1974), Nimuendajú (1987),
Susnik (1984;1989).
19
algumas notas são endereçadas ao lugar do corpo no interior desta sociedade, mas nunca
como um princípio tão importante, quanto o princípio metafísico; e por outro lado, a ênfase
que recai sobre o tema mitológico da busca da terra sem mal e de como tal busca refletiria a
negação Mbyá da própria sociedade22
. Nesse sentido, podemos perceber que este não se
constituiu em um solo fértil para que estudos sobre as relações sociais Guarani enquanto
mediadas por um idioma da substância.
Além disso, essas etnografias compartimentalizam esferas desta sociedade que de
forma alguma estão separadas. Isso porque tais sociedades possuem um sistema
cosmológico-xamânico onde as fronteiras entre religião, política, economia, organização
social, medicina e a arte não são bem demarcadas; por outro, porque é através do idioma de
substancialidade que os vínculos entre corpo e espírito são estabelecidos e que a pessoa, em
relação com as outras, é construída. Assim, gostaria de terminar esse trabalho reforçando o
postulado colocado por Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro de que a ênfase “na noção
de pessoa, e na corporalidade como idioma focal, evita ademais os cortes etnocêntricos em
domínios ou instâncias sociais como ‘parentesco’, ‘economia’, ‘religião’” (1987: 26).
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22
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