a bruxa e a arte do sonhar
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Florinda Donner-Grau
A bruxa e a artedo sonhar
Traduo de
A. COSTA
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Donner, Florinda
A bruxa e a arte do sonhar / Florinda Donner-Grau;
traduo de A. Costa. - Rio de Janeiro: Record: Nova Era, 1998.
Traduo de: The witch's dream ISBN 85-01-05059-81. ndios Yanomami - Religio e mitologia. 2. ndios Yanomami - Medicina. 3. Xamanismo -
Venezuela. 4. Etnologia - Venezuela - Trabalho de campo. I. Ttulo.
Ttulo original norte-americano THE WITCH'S DREAM
Copyright 1998 by Florinda Donner-Grau
Primeira publicao em lngua inglesa pela Simon & Schuster, Inc. 1985 sob o ttulo The Witch's
dream by Florinda Donner-Grau. Publicado em Arcana 1997. Copyright Florinda Donner, 1997.
Publicado mediante acordo com Viking Penguin, uma diviso da Penguin Books USA, Inc.
Direitos exclusivos de publicao em lngua portuguesa no Brasil adquiridos pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIOS DE IMPRENSA S. A. Rua Argentina 171 - Rio de
Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 585-2000 que se reserva a propriedade literria desta traduo
Impresso no Brasil ISBN 85-01-05059-8
Contra-capa:
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Uma conhecida discpula do brujoDom Juan Matus, Florinda Donner-Grau foi
introduzida ao mundo da cura espiritual como antroploga. Mas seu envolvimento
logo se transformou e se aprofundou na direo de algo bem mais pessoal.
Este livro o relatoextraordinrio de suasexperincias com DonaMercedes, uma
xamidosa de uma remota cidade venezuelana conhecida por suapopulao de
espiritualistas, feiticeiros e mdiuns. Trabalhandocomo aprendiz de Dona Mercedes,
Florinda testemunhou emprimeira mo o poder e a beleza da verdadeira cura
espiritual.
Ao mesmo tempo, travou contato com muitas pessoas queprocuravam a xam em
busca de ajuda.Entremeado com as histrias impressionantes de Dona Mercedes,
est a prpria histria dramtica de autodescoberta da autora, pois atravs dos
encontros com essas pessoas que Florinda se conscientiza de seus prprios poderes
espirituais e se d conta do quanto sua presena se torna importante como auxiliar
nos trabalhos da velha curandeira.
"Para todos aqueles que no posso citar pelo nome."
Prefcio
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O trabalho de Florinda Donner-Grau tem um significado todo especial para
mim. Na verdade, seu trabalho coincide com o meu, ao mesmo tempo que se desviadele. Florinda Donner-Grau minha companheira de trabalho. Ns dois estamos
envolvidos no mesmo projeto e ambos pertencemos ao mundo de Don Juan Matus. A
diferena provm do fato de ela ser mulher. No mundo de Don Juan, homens e
mulheres caminham na mesma direo, seguem o mesmo caminho de luta, mas esto
de lados opostos da estrada. Portanto, as vises de um mesmo fenmeno, obtidas a
partir destes dois plos, sero diferentes nos detalhes, mas no em sua essncia.
Essa proximidade com Florinda Donner-Grau acarreta, acima de qualquer
outro aspecto, um inevitvel senso de lealdade que acaba sendo maior do que um
exame impiedoso. Mas por baixo destas premissas do caminho do guerreiro, as quais
ns dois seguimos, lealdade somente expressa quando utilizamos o melhor de ns
mesmos. E o melhor, para ns, acarreta um exame completo das nossas
possibilidades.
Seguindo os ensinamentos de Don Juan, apliquei a premissa do exame
implacvel no trabalho de Florinda Donner-Grau. Para mim, existem trs diferentes
nveis, trs esferas distintas para apreciao.
A primeira o rico detalhamento das descries e da narrativa. Para mim,
esse detalhamento etnogrfico. O relato minucioso do dia-a-dia, comum no
ambiente cultural dos personagens que ela descreve, algo totalmente desconhecido
para ns.
A segunda tem a ver com a arte. Gostaria de comentar que um etnografista
tambm pode ser um escritor. Na tentativa de inserir-nos no horizonte da etnografia
que ele ou ela descrevem, um etnografista deve ser mais do que um simples cientista
social; um etnografista deve ser um artista.
A terceira a honestidade, simplicidade e objetividade do trabalho. Neste
ponto, com certeza, sou mais exigente. Eu e Florinda Donner-Grau fomos moldados
pelas mesmas foras, portanto, seu trabalho ajusta-se a um padro geral de busca da
excelncia. Don Juan nos ensinou que nosso trabalho precisa ser um reflexo completo
de nossas vidas.
Eu no posso deixar de sentir a admirao e o respeito do guerreiro por
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Florinda Donner-Grau, que sozinha e contra terrveis desavenas manteve-se calma,
permaneceu fiel aos caminhos do guerreiro e seguiu os ensinamentos de Don Juan ao
p da letra.
Carlos Castaneda
Nota da Autora
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O estado de Miranda, no nordeste da Venezuela, foi habitado pelos ndios
Caribe e Ciparicoto durante o perodo pr-hispnico. Durante a colonizao, dois
outros grupos raciais e culturais tornaram-se proeminentes por l: os colonizadores
espanhis e os escravos africanos, trazidos pelos primeiros para trabalhar em suas
plantaes e minas.
Os descendentes destes ndios, espanhis e africanos deram origem mestia
populao que atualmente sobrevive nas pequenas aldeias, vilarejos e cidades
espalhadas pelo interior e pelo litoral.
Muitas destas cidades no estado de Miranda so famosas pelos seus
curandeiros, muitos dos quais tambm so espiritualistas, mdiuns e bruxos.
Em meados da dcada de 70, viajei para Miranda. Naquele tempo, eu era
uma estudante de antropologia interessada nas prticas curativas e acabei trabalhando
com uma curandeira nativa. Para honrar seu pedido de anonimato, dei a ela o nome de
Mercedes Peralta e denominei sua cidade de Curmina.
Tentando ser o mais fiel e acurada possvel, e com a permisso da curandeira,
escrevi em um dirio de campo tudo sobre meu relacionamento com ela, desde o
momento em que fui para sua casa. Separadamente, tambm gravei algumas coisas
que os pacientes de Mercedes contavam sobre si mesmos. O presente trabalho
consiste em partes do meu dirio de campo e as histrias dos pacientes que foramselecionadas pela prpria curandeira. As partes retiradas de meu dirio foram escritas
na primeira pessoa. As histrias dos pacientes, entretanto, transcrevi em terceira
pessoa. A nica liberdade que tomei com este material foi trocar os nomes e dados
pessoais dos personagens das histrias.
Parte Um
Captulo 1
Isto comeou para mim com um evento transcendental, um evento que
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moldou o curso da minha vida. Eu conheci um nagual. Ele era um ndio do extremo
norte do Mxico.
O dicionrio da Real Academia Espanhola define nagual como uma
adaptao espanhola para a palavra que significa, na linguagem nuatle do extremo
sul do Mxico, bruxo ou mago.
As tradicionais histrias de naguais homens de tempos antigos que
possuam poderes extraordinrios e eram capazes de atos que desafiam a imaginao
continuam a existir no Mxico moderno. Mas, tanto nas cidades quanto nas zonas
rurais, os naguais contemporneos so puramente legendrios. Eles parecem viver
somente no folclore, passado de boca em boca, ou no mundo da fantasia.
O nagual que conheci, entretanto, era real. No havia nada ilusrio nele.
Quando perguntei, sem querer ser curiosa, o que o tornava um nagual, ele me
apresentou uma explicao ao mesmo tempo simples e totalmente complexa sobre o
que fazia e era. Ele me disse que o nagualismo comea com duas convices: a
certeza de que os seres humanos so seres extraordinrios vivendo em um mundo
extraordinrio, e a certeza de que nem o homem nem o mundo podem ser aceitos
como verdade sob nenhuma circunstncia.
A partir dessas doces e simples premissas, disse ele, surge uma concluso
simples: o nagualismo retira uma mscara para colocar outra. Os naguais retiram amscara com a qual vemos ns mesmos e o mundo em que vivemos como um local
comum, sem graa, previsvel e repetitivo e colocam uma segunda, que ir ajudar-nos
a vermos ns prprios e o ambiente que nos envolve da forma que realmente
somos: momentos emocionantes que florescem uma nica vez durante nossa
transitria existncia e que nunca mais se repetem.
Aps o encontro com este inesquecvel nagual, tive uma hesitao
momentnea ao perceber o medo que senti ao me deparar com estas questes comoum paradigma imposto. Quis correr para longe daquele ndio e de sua busca, mas, ao
mesmo tempo, no queria fazer isso. Algum tempo depois, tomei uma deciso
drstica e me juntei a ele e a seu grupo.
Mas esta no uma histria sobre aquele nagual, embora suas idias e
influncia estejam fortemente presentes em tudo o que fao. No minha tarefa
escrever sobre ele, nem mesmo dizer seu nome. Existem outros no grupo que iro
fazer isso.
Quando decidi acompanh-lo, ele me levou ao Mxico para conhecer uma
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estranha e forte mulher, sem me dizer que ela era possivelmente a mulher mais
influente e sbia do grupo dele. Seu nome: Florinda Matus. Apesar das roupas
malcuidadas que usava, ela tinha uma elegncia comum s mulheres altas e magras. O
aspecto plido de sua face, fina e severa, era coroado por tranas de cabelos brancos e
iluminada por largos e luminosos olhos. Sua voz rouca e a risada alegre e jovial
dissiparam meu temor irracional.
O nagual me deixou aos cuidados dela. A primeira coisa que quis saber de
Florinda era se ela tambm era um nagual. Sorrindo quase enigmaticamente, ela
apenas refinou a definio da palavra.
Ser um bruxo, um mago ou uma feiticeira no significa ser um nagual.
Mas qualquer um pode se tornar um deles, a partir do momento em que ele ou ela se
tornam responsveis por um grupo de homens e mulheres e em que encaminham este
grupo para um envolvimento em uma questo especfica do conhecimento disse
ela.
Quando perguntei que questo era essa, ela respondeu que para estes homens
e mulheres o objetivo era encontrar a segunda mscara, aquela que nos vai ajudar a
vermos ns mesmos e o mundo da maneira que ns realmente somos: momentos
emocionantes.
Entretanto, este livro tambm no a histria de Florinda, apesar do fato deela ser a mulher que me guia em todos os meus atos. Pelo contrrio, esta a histria
de uma das muitas coisas que ela me mandou fazer.
Para a mulher, a busca do conhecimento , na verdade, um
relacionamento curioso Florinda me disse uma vez. Ns temos que ultrapassar
estranhos ardis.
Por que assim, Florinda?
Porque mulheres no se importam de verdade. Eu me importo.
Voc apenas diz que se importa.
Estou aqui com voc. Isto no significa que me importe?
No. Acontece que voc gosta do nagual. A presena dele dominou voc.
Aconteceu o mesmo comigo. Fui dominada pelo nagual antecessor. O bruxo mais
irresistvel que j existiu.
Admito que voc est certa, mas em parte. Eu me importo pela busca do
nagual.
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No duvido. Mas s isso no suficiente. As mulheres precisam conhecer
algumas manobras especficas a fim de encontrar a essncia de si mesmas.
Quais manobras? De que essncia voc est falando, Florinda?
Se existe alguma coisa dentro de ns que no conhecemos, como
habilidades escondidas, coragem e astcia jamais imaginadas ou uma nobreza de
esprito frente a dor e o sofrimento, ela aparecer se ns formos confrontados com o
desconhecido, nos momentos em que estamos sozinhos, sem amigos, sem o apoio
familiar, sem suporte. Se, nessas situaes, no acontecer nada, porque ns no
temos nada. E antes de dizer que voc realmente se importa com a busca do nagual,
deve descobrir se existe algo dentro de voc. Preciso que voc faa isso.
Temo no me sair bem sendo testada, Florinda.
Minha dvida : voc pode viver sem saber se h algo escondido dentro
de voc?
E se eu for uma dessas pessoas que no tm nada?
Se for este o caso, ento terei que apresentar minha segunda dvida: voc
continuar vivendo no mundo que escolheu se no tiver nada dentro de si?
claro que vou continuar aqui. J estou ligada a voc.
No. Voc apenas acredita que escolheu meu mundo. Para ingressar no
mundo do nagual no basta apenas dizer que quer. Tem que provar. Como posso fazer isso?
Vou dar-lhe uma sugesto. Voc no tem que segui-la. Mas, se quiser,
deve ir sozinha ao lugar onde nasceu. Nada ser mais fcil do que isto. V at l e
veja suas chances, sejam elas quais forem.
Mas sua sugesto impraticvel. No sinto uma sensao boa sobre
aquele lugar. No sa de l numa boa situao.
Bem melhor. Assim voc poder enfrentar suas antigas desavenas. Porisso escolhi seu pas. Mulheres no gostam de ser incomodadas alm da conta. Se elas
tm que se preocupar com vrios assuntos, elas se desestruturam. Prove-me que voc
no assim.
O que sugere que eu faa naquele lugar?
Seja voc mesma. Faa seu trabalho. Voc me disse que quer tornar-se
uma antroploga. Seja uma. Poderia ser mais simples?
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Captulo 2
Anos depois, seguindo a sugesto de Florinda, finalmente fui Venezuela,
pas onde nasci. Aparentemente, voltei para reunir dados antropolgicos sobre o
curandeirismo. Na verdade, seguindo as instrues de Florinda, estive l para pr em
prtica as estratgias necessrias para descobrir se possua as habilidades escondidas
sem as quais jamais poderia ingressar no mundo do nagual.
No tardei a descobrir que minha jornada deveria ser solitria. Com palavras
fortes e gestos decisivos, Florinda proibiu-me de pedir, sob qualquer circunstncia,
conselhos a qualquer pessoa. Ao saber que iria para uma universidade, ela me advertiu
que no utilizasse os adornos da vida acadmica enquanto estivesse no campo. Eu no
poderia pedir favores, ter supervisores acadmicos, nem mesmo pedir qualquer tipo
de ajuda a minha famlia e amigos. Deveria deixar os acontecimentos me guiarem
para um caminho a ser seguido. Escolhido um, deveria mergulhar nele com a fria de
uma mulher no caminho do guerreiro.
Iria Venezuela para fazer uma visita informal. Poderia visitar meus
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parentes, pensei, reunir informaes e saber a possibilidade de cursar aulas de
antropologia cultural. Florinda me elogiou pelo meu discurso e pela minha mincia.
Pensei que ela estivesse sendo irnica. No havia motivo algum para me elogiar.
Alm disso, disse Florinda que estava amedrontada por ela no me ter dado maiores
instrues. Vrias vezes quis saber mais detalhes sobre minha misso na Venezuela.
Conforme chegava o dia de minha partida, fui ficando cada vez mais ansiosa sobre o
resultado daquilo tudo e insistia que precisava saber mais.
Estvamos sentadas em cadeiras de vime, confortavelmente acolchoadas com
almofadas macias, sob a sombra de uma das muitas rvores frutferas que cresciam no
imenso ptio interno. Um antigo vestido de musselina, um chapu de abas largas, um
leque de renda com o qual se abanava davam a ela a aparncia de pertencer a um
outro tempo.
No se preocupe com informaes precisas disse impaciente. Isto
no vai fazer nenhum bem a voc.
Tenho certeza de que me ajudaria muito insisti. Realmente, no
entendo por que voc est fazendo isso comigo, Florinda.
Culpe o fato de eu pertencer ao mundo do nagual. Na verdade, sou uma
mulher e tenho um humor diferente.
Humor? O que voc quer dizer com humor diferente? Ela me olhoufixamente, mas sem interesse.
Queria que voc pudesse ouvir a si prpria falando: que humor? disse
sarcstica. Seu rosto estampava um tolerante desdm. No estou procura de
combinaes aparentemente sistemticas de pensamentos e aes. Para mim, ordenar
diferente de arrumar as coisas sistematicamente. Pouco me importa a estupidez e
no tenho pacincia. Esse o humor.
Isso soa terrvel, Florinda. Sempre fui levada a acreditar que no mundo donagual as pessoas no eram mesquinhas e no se comportavam com impacincia.
Pertencer ao mundo do nagual no tem nada a ver com a minha
impacincia disse, enquanto fazia um gesto engraado e esperanoso. Como v,
sou impecavelmente impaciente.
Gostaria, realmente, de saber o que quer dizer com ser impecavelmente
impaciente.
Significa que estou perfeitamente consciente de que voc est me
chateando agora com sua estpida insistncia em ter instrues detalhadas. Minha
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impacincia me diz que eu deveria fazer voc parar. Mas minha impecabilidade que
far voc se calar. Ou seja, mesmo tendo pedido para voc se calar, se voc persistir e
continuar me perguntando por detalhes, simplesmente por ter o pssimo hbito de ter
tudo explicado, vou bater em voc. Mas no se preocupe pois nunca vou ficar com
raiva ou usar isso contra voc.
Embora seu tom de voz fosse srio, comecei a rir.
Voc realmente me bateria, Florinda? Pois acerte-me se tiver que fazer
isto completei olhando para seu rosto determinado. Preciso saber o que vou
fazer na Venezuela. Estou ficando louca com esta preocupao.
Tudo bem! Se insiste em saber detalhes que considera importantes vou
lhe dizer. Espero que entenda que ns estamos separadas por um abismo e ele no
pode ser ultrapassado com conversas. Agora, voc parece imitar os homens. Mulheres
tm que construir uma ponte para esse abismo atravs de suas aes. Ns damos a
vida, voc sabe. Fazemos pessoas. Quero que voc v para longe e sozinha consiga
descobrir quais so suas foras e fraquezas.
Entendo o que voc diz, Florinda, mas leve em conta minha posio.
Florinda enterneceu-se, desfazendo a resposta incisiva que estava pronta para
me dar.
Tudo bem, tudo bem disse devagar, acenando para que puxasse minhacadeira para mais perto da dela. Vou dizer o que considero importante para sua
viagem. Felizmente, no existem os detalhes que voc tanto procura. O que voc quer
exatamente de mim que eu diga como agir numa situao futura e quando isso vai
acontecer. algo estpido demais para se perguntar. Como poderia dar instrues de
algo que ainda no existe? Em vez disso, ensinarei a voc como arrumar seus
pensamentos, sentimentos e reaes. Com esse trunfo na mo, ser capaz de resolver
qualquer eventualidade que possa surgir. Vocrealmente est falando srio, Florinda? perguntei incrdula.
Serssimo assegurou-me. Inclinando-se na cadeira, disparou a falar
com um meio sorriso que, a qualquer momento, parecia que iria tornar-se uma
gargalhada. O primeiro detalhe a ser considerado fazer uma avaliao de si
mesma. Voc ver que, no mundo do nagual, ns somos responsveis pelos nossos
atos.
Ela me lembrou que eu conhecia o caminho do guerreiro. Durante todo o
tempo em que estive com ela, recebi um extenso treinamento da trabalhosa filosofia
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prtica dos naguais. Por isso, qualquer instruo detalhada que ela me desse seria, na
verdade, uma lembrana detalhada do caminho do guerreiro.
No caminho do guerreiro, mulheres no se sentem importantes dizia
num tom de quem parece estar recitando de cor , porque importantes mars caem
furiosamente. No caminho do guerreiro, mulheres so a fria. Elas permanecem
furiosamente impassveis sob qualquer circunstncia. Elas no exigem nada e, ainda
assim, esto prontas para dar qualquer coisa de si mesmas. Elas procuram
furiosamente um sinal do esprito das coisas na forma de palavras ou de um simples
gesto e, quando conseguem ach-lo, expressam sua gratido redobrando sua fria.
"No caminho do guerreiro, mulheres no julgam. Elas se reduzem
furiosamente a nada para poder ouvir e ver; s assim podero vencer, sendo humildes
pela sua conquista, ou perder, sendo realadas pela sua derrota".
"No caminho do guerreiro, mulheres no se rendem. Elas podem ser
derrotadas milhares de vezes, mas nunca rendidas. No caminho do guerreiro, acima de
tudo, as mulheres so livres."
Incapaz de interromp-la, fiquei olhando de maneira fixa para Florinda,
completamente fascinada, embora no pudesse captar o que ela dizia. Senti-me
profundamente desesperada quando ela parou de falar parecendo que no tinha mais
nada a dizer. No consegui me controlar e comecei a chorar de forma compulsiva.Sabia que o que ela acabara de dizer no me ajudaria a resolver meus problemas.
Ela me deixou chorar por um bom tempo e, ento, comeou a rir.
Voc est realmente chorando! disse ela com incredulidade.
Voc a pessoa mais sem corao e insensvel que j conheci disse
entre soluos. Voc est prestes a me mandar para sabe-se l Deus onde e no quer
me dizer o que devo fazer.
Mas eu disse falou ainda rindo. O que voc acabou de dizer no tem nenhum valor em uma situao real
retruquei com raiva. Voc soa como um ditador proferindo slogans.
Florinda observou-me alegremente.
Voc ser surpreendida pelo quanto usar destes slogans estpidos
falou. Mas, por agora, vamos chegar a um entendimento. No estou mandando
voc para um lugar qualquer. Voc uma mulher no caminho do guerreiro e livre
para fazer o que desejar. Voc sabe disto. Voc ainda no entendeu o que o mundo
do nagual. No sou sua professora, nem sua mentora, ou mesmo responsvel por
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voc. Voc a responsvel por si prpria. O ensinamento mais difcil de entender no
mundo do nagual que ele oferece liberdade irrestrita. Mas liberdade no significa
estar livre.
"Cuido de voc porque voc tem uma habilidade natural para ver as coisas
como elas so, tem a capacidade de se afastar de uma situao e ver a beleza em tudo
isso. Isto um presente, voc nasceu assim. A maior parte das pessoas que se
envolvem com o mundo do nagual leva anos para conseguir afastar-se das situaes
nas quais est envolvida e ser capaz de ver a beleza disso tudo."
Apesar de seu elogio, estava prestes a ter um ataque de nervos. Ela
finalmente me acalmou, prometendo que antes de meu avio partir me daria as
informaes especficas e detalhadas que eu tanto queria.
Esperei no corredor de embarque da companhia area, mas Florinda no
apareceu. Desapontada e desanimada, dei liberdade para o sentimento de desespero e
desapontamento que crescia dentro de mim. Sem me importar com os olhares curiosos
em volta de mim, sentei-me e comecei a chorar. Nunca havia me sentido to sozinha.
A nica coisa na qual pensava era que ningum havia vindo se despedir de mim,
ningum havia vindo me ajudar com minha bagagem. Estava acostumada a me
despedir dos meus parentes e amigos.
Florinda tinha me advertido que qualquer um que escolhesse o mundo donagual deveria estar preparado para uma solido forada. Ela deixou claro que, para
ela, solido no significa estar sozinho, mas sim um estado fsico de solido.
Captulo 3
Nunca poderia imaginar que minha vida se tornaria to montona. Em um
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quarto de hotel de Caracas, sozinha e sem ter noo do que fazer, experimentei, pela
primeira vez, a solido da qual Florinda havia falado. Tudo que gostava de fazer era
sentar-me na cama do hotel e assistir TV No queria tocar na minha bagagem.
Cheguei a pensar em pegar um avio de volta para Los Angeles. Meus pais no
estavam na Venezuela neste perodo e tambm no conseguia telefonar para meus
irmos.
Depois de um esforo tremendo, comecei a desfazer minha mala. Escondido
no meio de uma cala dobrada, encontrei um pedao de papel com a letra de Florinda,
que comecei a ler avidamente.
No se preocupe com detalhes. Detalhes tendem a se ajustar para servir as
circunstncias, se algum tiver uma convico. Seus planos devem ser como pegadas.
Escolha alguma coisa e a chame de comeo. Ento v e encare o incio. Quando
estiver cara a cara com o comeo, deixe que ele a leve para qualquer lugar possvel.
Confio que suas convices no deixaro que voc escolha um incio excntrico. Seja
realista e simples para poder selecionar com sensatez. Faa isso agora! P. S.: Qualquer
coisa pode ser um comeo.
Possuda pelas palavras de Florinda, tirei o telefone do gancho e disquei para
o nmero de uma velha amiga. No tinha certeza se ela ainda estaria em Caracas. A
educada senhora que atendeu minha ligao me passou outros possveis nmeros detelefone, pois minha amiga no estava mais naquele endereo. Liguei para todos. No
podia parar, o comeo estava tomando conta de mim. Finalmente, localizei um casal
de amigos de meus pais que conhecia desde a infncia. Eles queriam me ver
imediatamente, mas estavam indo a um casamento, que aconteceria dali a uma hora.
Insistiram que eu os acompanhasse, assegurando-me que no haveria problema.
No casamento, conheci um ex-padre jesuta que era um antroplogo amador.
Conversamos durante horas. Falei do meu interesse sobre os estudos antropolgicos.Como se estivesse esperando por mim para dizer uma palavra mgica, ele comeou a
falar sobre o controvertido valor dos curandeiros populares e sobre as regras sociais
que praticam em suas sociedades.
Eu no havia mencionado curandeiros ou cura em geral como um possvel
tpico para meu estudo, embora isto estivesse em primeiro lugar na minha mente. Em
vez de me sentir feliz por ele estar se dirigindo aos meus pensamentos mais secretos,
comecei a ser tomada por um sentimento de apreenso que logo se transformou em
medo. Quando ele me disse que eu no deveria ir a cidade de Sortes, embora l fosse
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o maior centro espiritualista do oeste da Venezuela, comecei a ficar realmente
chateada com ele. Ele parecia estar antecipando-se a mim de todas as formas. Era
exatamente para esta pequena cidade que eu estava planejando ir se nada mais
acontecesse.
J estava quase me despedindo e deixando a festa quando ele me disse que eu
deveria considerar seriamente a possibilidade de ir para a cidade de Curmina, no
nordeste da Venezuela, onde poderia ter um sucesso fenomenal, pois a cidade era um
novo e verdadeiro centro de espiritualismo e cura.
Eu no sei como descobri isso, apenas sei que voc est morta de vontade
de estar com as bruxas de Curmina disse num tom de voz seco e prtico.
Ele pegou um pedao de papel e desenhou um mapa da regio, dando-me as
distncias exatas de Caracas aos vrios pontos na regio onde espiritualistas, bruxos,
feiticeiras e curandeiros viveriam. Deu uma nfase especial a um nome: Mercedes
Peralta. Primeiro sublinhou-o e, no satisfeito com isso, circulou o nome, depois
desenhou um quadrado e escreveu novamente o nome.
Ela uma espiritualista, uma feiticeira e uma curandeira disse
sorrindo. V at l e veja-a. Voc far isso?
Sabia sobre o que ele estava falando. Sob a orientao de Florinda, conheci e
trabalhei com espiritualistas, bruxos, feiticeiras e curandeiros do norte do Mxico etambm com a populao latina do sul da Califrnia. Desde o incio, Florinda me
ensinou como classific-los. Espiritualistas so profissionais que rogam aos espritos e
santos para que, com uma ordem superior, intercedam por eles em benefcio de seus
pacientes. Sua funo estabelecer contato com os espritos e interpretar seus
conselhos. Tais conselhos so obtidos em sesses, nas quais os espritos so
chamados. Bruxos e feiticeiras so profissionais que afetam seus pacientes
diretamente. Atravs de seus conhecimentos de artes ocultas, eles so capazes detrazer elementos desconhecidos e imprevisveis para se relacionarem com os dois
tipos de pessoas que os procuram: doentes em busca de ajuda e clientes em busca de
servios de feitiaria. Curandeiros so profissionais que se empenham,
exclusivamente, em restaurar a sade e o bem-estar.
Florinda tambm fez questo de incluir em sua classificao uma possvel
combinao destas trs prticas.
Como em um jogo, mas sendo absolutamente sria a respeito daquilo tudo,
ela sustentou que, na tentativa de restaurar a sade, eu estava predisposta a acreditar
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que as prticas de cura no-ocidentais eram mais holsticas que a medicina ocidental.
Ela me fez ver que eu estava errada, porque a cura depende do profissional e no de
um conjunto de conhecimentos. Ela argumentou que no existe nada como as prticas
de cura no-ocidentais, desde que a cura, ao contrrio da medicina, no seja uma
disciplina formalizada. Ela costumava gozar do meu prprio caminho. Fazia-me ver
que meu preconceito era como o daquelas pessoas que acreditam que, se um doente
foi curado pelo tratamento com plantas medicinais, por massagens ou por rezas, a
doena seria psicossomtica ou a cura seria resultado de uma sorte acidental que o
profissional no conseguiria entender.
Florinda estava convencida de que uma pessoa que recuperasse a sade, tanto
pelas mos de um mdico quanto de um curandeiro, seria algum capaz de alterar em
si prprio os sentimentos fundamentais do corpo e tambm suas ligaes com o
mundo seria ento, algum capaz de oferecer o corpo, assim como a mente, a
novas possibilidades, que quebrariam o habitual molde que o corpo e a mente tinham
aprendido a obedecer. Uma outra dimenso de conhecimento tornar-se-ia acessvel e
as expectativas de doena e cura do senso comum poderiam comear a ser traduzidas
como novos conhecimentos corporais que se tornaram cristalizados.
Florinda comeou a gargalhar quando demonstrei uma surpresa genuna ao
ouvir seus pensamentos que, naquele momento, eram revolucionrios demais paramim. Ela me disse que tudo o que havia falado surgiu do conhecimento
compartilhado com seus companheiros no mundo do nagual.
Seguindo as instrues do bilhetes de Florinda, deixei os acontecimentos me
guiarem. Deixei-os desenvolverem-se sem a menor interferncia de minha parte.
Sentia que deveria ir para Curmina e conhecer a mulher sobre a qual o ex-jesuta
havia falado.
Quando fui, pela primeira vez, casa de Mercedes Peralta, no tive queesperar durante muito tempo no sombrio corredor antes que uma voz me chamasse
por detrs da cortina que servia como porta. Subi os dois degraus que levavam a uma
sala larga e pouco iluminada, que cheirava a fumaa de charuto e amnia. Centenas de
velas, queimando em um slido altar encostado na parede, iluminavam imagens e
retratos de santos dispostos em volta do manto azul da Virgem de Coromoto. Era uma
esttua cuidadosamente esculpida, com lbios vermelhos que sugeriam um sorriso,
bochechas rosadas e olhos que pareciam me encarar com um olhar bondoso e
inesquecvel.
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Cheguei mais perto. Em um canto, quase escondida entre o altar e uma alta
mesa retangular, estava sentada Mercedes Peralta.
Ela parecia dormir, sua cabea estava recostada no encosto da cadeira e seus
olhos estavam fechados. Ela aparentava ser extremamente velha. Nunca havia visto
um rosto como aquele. Embora estivesse imvel, revelava uma fora assustadora. Ao
contrrio de amenizar seus traos asperamente esculpidos, as chamas das velas apenas
acentuavam a determinao traada pela rede de rugas.
Vagarosamente, ela abriu os olhos. Eram largos e amendoados. A parte
branca de seus olhos estava ligeiramente descolorida. A princpio, eles estavam quase
vazios, mas ento ganharam vida e me encararam com o enervante olhar fixo de uma
criana. Segundos se passaram e comecei a me sentir desconfortvel sob seu olhar
firme, que no era nem amigvel nem antagnico.
Boa-tarde, dona Mercedes saudei-a antes que comeasse a perder toda
coragem e sasse correndo daquela casa. Meu nome Florinda Donner e serei bem
direta a fim de que a senhora no perca seu tempo valioso.
Ela piscou repetidas vezes, ajustando seu olhar para mim.
Vim para a Venezuela para estudar mtodos de cura continuei,
ganhando cada vez mais confiana. Estudo em uma universidade norte-americana,
mas gostaria, realmente, de ser uma curandeira. Posso pagar-lhe se me aceitar comosua aluna. Mas mesmo que no queira me ter como aluna, posso pagar por qualquer
informao que me queira dar.
A velha mulher no disse uma s palavra. Fez um sinal para que eu me
sentasse em um banquinho, ento se levantou e fixou o olhar em um instrumento de
metal que estava sobre a mesa. Pude ver uma expresso cmica em seu rosto quando
ela se virou para me olhar.
Que objeto esse? uma bssola nutica falou casualmente. Ela me diz todo o tipo de
coisa. Ento, pegou-a e colocou-a na prateleira mais alta de um armrio de vidro,
na parede oposta da sala. Aparentemente envolvida por um pensamento engraado,
ela comeou a rir. Vou tornar uma coisa muita clara para voc agora falou.
Sim, vou dar a voc todo o tipo de informao sobre cura. E no porque voc me
tenha pedido, mas sim porque voc sortuda. Agora sei isso com certeza. O que eu
no sei se voc igualmente forte.
A velha mulher ficou em silncio e ento recomeou a falar, sussurrando
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forosamente sem me olhar. Sua ateno estava voltada para algo dentro do armrio
de vidro.
Sorte e fora so tudo o que importam disse Na noite em que a vi
na praa, soube que voc tinha sorte e que estava procurando por mim.
Sobre o que est falando? No consigo entender disse.
Mercedes Peralta virou seu rosto na minha direo e, ento, comeou a rir de
uma maneira to desconcertante que comecei a achar que ela era louca. Ela abriu tanto
a boca que pude ver os poucos molares que ainda possua. Ela parou abruptamente,
sentou-se na cadeira e insistiu que havia me visto h duas semanas exatamente, tarde
da noite, na praa. Mercedes explicou que estava sendo deixada em casa por um
amigo depois de uma sesso esprita em uma das cidades do litoral. Embora seu
amigo tenha ficado perplexo ao me ver sozinha to tarde da noite, ela no ficou nem
um pouco surpresa.
Voc me fez recordar instantaneamente algum que uma vez conheci
falou. J passava da meia-noite. Voc sorriu para mim.
No me lembrava de t-la visto ou mesmo de ter estado sozinha na praa to
tarde. Mas isto poderia ter acontecido na noite em que cheguei a Curmina. Depois de
esperar em vo para que a chuva que caa h uma semana parasse, finalmente
arrisquei viajar de Caracas a Curmina. Sabia que, provavelmente, encontrariadeslizamentos de terras pelo caminho; esses contratempos transformaram uma viagem
de duas horas em uma de quatro. Na hora em que cheguei toda a cidade dormia e tive
dificuldade para encontrar a pousada prxima praa, que me havia sido
recomendada por aquele padre.
Enfeitiada pela certeza dela em saber que eu estava vindo para v-la, falei
sobre ele e sobre o que ele me tinha dito na cerimnia de casamento em Caracas.
Ele insistiu bastante para que eu a conhecesse disse. Mencionou queseus antepassados foram bruxos e curandeiros famosos durante o perodo colonial e
que eles foram perseguidos pela Inquisio.
Voc sabia que, naquele tempo, as feiticeiras acusadas eram mandadas
para Cartagena, na Colmbia, onde eram julgadas? perguntou e imediatamente
continuou a falar. A Venezuela no era suficientemente importante para ter um
tribunal da Inquisio.
Fez uma pausa e, olhando direto nos meus olhos, perguntou:
Originalmente, onde voc planejava estudar os mtodos de cura?
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No estado de Yaracuy eu disse vagamente.
Sortes? indagou. Maria Lionza?
Balancei a cabea concordando. A cidade de Sortes o principal local de
culto a Maria Lionza. Dizem que ela nasceu do relacionamento entre uma princesa
indiana e um conquistador espanhol, e foi reconhecida por ter tido poderes
sobrenaturais. Hoje, reverenciada por milhes de venezuelanos como uma santa
milagrosa.
Mas eu segui o conselho do ex-padre e vim para Curmina disse.
Tambm conversei com duas curandeiras. Ambas concordaram que voc a mais
sbia, a nica que poderia explicar-me os mtodos da cura.
Impensadamente, pois tinha acabado de cri-los naquele momento, falei
sobre os mtodos que queria seguir: observao direta e participao em algumas das
sesses de cura ao mesmo tempo em que as gravaria e, mais importante de tudo,
entrevistar sistematicamente os pacientes que tivesse observado.
A velha mulher concordava com a cabea, rindo de vez em quando. Para
minha grande surpresa, ela aceitou todos os mtodos propostos. Com uma ponta de
orgulho, contou-me que havia sido entrevistada, h alguns anos, por uma psicloga da
Universidade de Caracas, que permanecera em sua casa por uma semana.
Para tornar isto mais fcil sugeriu , voc pode vir para c e morarconosco. Ns temos vrios quartos vazios.
Aceitei seu convite, mas aproveitei para dizer que planejava ficar ali durante
seis meses, no mnimo. Ela no demonstrou qualquer sinal de perturbao. Por ela,
poderia ficar l durante anos.
Estou feliz que esteja aqui,Musia complementou docemente.
Sorri. Embora tenha nascido na Venezuela, durante toda minha vida fui
chamada de musia (moo-see-yua). Normalmente, um termo depreciativo, mas,dependendo da entonao em que dito, pode tornar-se uma expresso carinhosa para
se referir a uma pessoa que seja loura e de olhos azuis.
Captulo 4
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Assustada com o ligeiro toque de uma saia em mim, abri meus olhos e, na
semi-escurido da sala, fixei meu olhar em uma vela que queimava no altar. A chama
bruxuleante deixava um rastro solitrio de fumaa negra. Na parede, surgiu a sombra
de uma mulher com uma bengala na mo, que parecia empalar a cabea dos homens e
das mulheres que, mantendo os olhos fechados, ocupavam, ao meu lado, as velhas
cadeiras de madeira dispostas em crculo pela sala. Poderia, francamente, ter
disfarado uma risadinha nervosa ao descobrir que era Mercedes Peralta quem
colocava grandes charutos artesanais na boca de cada um. Depois disso, ela apanhou
uma vela no altar e acendeu cada charuto com a chama e, ento, retomou seu lugar no
centro do crculo. Com uma voz extremamente montona, comeou a entoar um
ininteligvel e repetitivo cntico.
Contendo um acesso de tosse, tentei sincronizar a fumaa de meu charuto
com as baforadas rpidas das pessoas em volta de mim. Atravs de meus olhos
marejados vi rostos srios, como mscaras, tornarem-se animados com cada baforada,
dissolvidas na fumaa espessa da sala. Como um objeto desincorporado, a mo de
Mercedes Peralta materializou-se naquela nvoa. Estalando os dedos, ela tracejou,
repetidas vezes, linhas imaginrias no ar, ligando os quatro pontos cardeais.
Imitando os outros, comecei a balanar minha cabea de um lado para o
outro, acompanhando o ritmo do estalar de dedos e os encantamentos dela. Ignorandominha nusea crescente, forcei-me a manter meus olhos abertos para no perder
nenhum detalhe do que estava acontecendo a minha volta. Essa foi a primeira vez que
tive permisso para acompanhar um encontro de espiritualistas. Dona Mercedes
estava ali como mdium e iria contactar os espritos.
A definio de Mercedes para espiritualistas, curandeiros e feiticeiras era a
mesma de Florinda, com uma exceo: ela reconhecia um outro grupo independente,
os mdiuns. Ela define mdium como um intrprete intermedirio conduzido pelosespritos para que eles se expressem. Para ela, mdiuns eram to independentes que
no poderiam pertencer a nenhuma das outras trs categorias. Entretanto, eles
poderiam ser os quatro em uma s pessoa.
Existe uma fora perturbadora na sala disse uma voz masculina,
interrompendo os cnticos de dona Mercedes.
A brasa vermelha dos charutos perfurou a escurido enevoada como olhos
acusadores esperando a concordncia do resto do grupo.
Estou vendo ela concordou levantando-se da cadeira e passando por
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cada uma das pessoas da sala, parando por um instante diante de cada uma.
Berrei de dor ao sentir alguma coisa afiada perfurando meu ombro.
Venha comigo ela murmurou em meu ouvido. Voc no est em
transe. Com medo de que eu fosse resistir, ela me pegou com firmeza pelo brao e
me encaminhou cortina vermelha que servia como porta.
Mas voc me pediu que viesse insisti antes que fosse posta para fora da
sala. No vou aborrecer ningum se puder ficar sentada em um canto.
Voc est aborrecendo os espritos murmurou enquanto puxava a
cortina sem fazer barulho.
Andei at a cozinha no fundo da casa, onde, normalmente, trabalhava noite
transcrevendo as fitas e organizando os dados de campo, que gradualmente
aumentavam. Um enxame de insetos rondava a nica lmpada, que pendia do teto da
cozinha. Essa luz fraca iluminava a mesa de madeira armada no meio do aposento,
mas deixava os cantos s escuras, onde as pulgas reinavam e cachorros sarnentos
dormiam. Um dos lados da cozinha, que tinha um formato retangular, se abria para o
jardim. Encostados nas outras trs paredes, escuras pela fuligem, erguiam-se um
reservatrio para comida feito de barro, um fogo de querosene e um tubo de metal
redondo cheio de gua.
Andei pelo jardim enluarado. A laje de cimento, onde Candelria aacompanhante de dona Mercedes colocava a roupa para quarar ao sol todos os dias,
parecia uma poa d'gua prateada. As cordas do varal pareciam uma mancha branca
contra a escurido das paredes de gesso que cercavam o jardim. Delineadas pela lua,
rvores frutferas, plantas medicinais e o canteiro de vegetais formavam uma escura
massa uniforme, movimentada apenas pelos insetos e pelo barulho estridente dos
grilos.
Voltei para a cozinha e fui at o fogo ver a panela que j estava fervendo. Aqualquer hora do dia ou da noite, sempre havia alguma coisa para comer l.
Normalmente, havia uma sopa reforada feita de carne, galinha ou peixe, dependendo
do que estava disponvel, e todo tipo de vegetais e razes.
Procurei por um prato de sopa entre a loua empilhada em uma das amplas
prateleiras de barro construdas na parede. Havia dzias de pratos de porcelana, metal
e plstico. Servi-me de um prato cheio de sopa de galinha mas, antes de me sentar,
lembrei-me de tirar com uma concha um pouco de gua do tubo para repor a que tinha
usado na panela. No levei muito tempo para me familiarizar com os estranhos
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hbitos daquele lar excntrico.
Comecei a escrever o que tinha acontecido naquela sesso. Tentar recordar
todos os detalhes de um evento e todas as palavras de uma conversa era sempre o
melhor exerccio para lutar contra o sentimento de solido que, invariavelmente, me
atingia.
O nariz gelado de um cachorro roou minha perna. Procurei por pedaos de
po e, depois de d-los ao cachorro, voltei s minhas anotaes.
Trabalhei at sentir sono, meus olhos ardiam, por causa da fora que fazia
para ler sob a luz fraca. Guardei meu gravador e meus papis e, ento, me dirigi para
meu quarto, situado no outro extremo da casa. Parei um momento no ptio interno,
completamente inundado pelo luar. Uma ligeira brisa farfalhava as folhas da videira.
Esses recortes de sombras desenhavam nos tijolos do quintal uma espcie de renda.
Senti a presena dela, antes mesmo de realmente v-la. Ela estava agachada
no ptio, quase escondida por grandes potes de cermica espalhados pela rea. Um
tufo de cabelo envolvia sua cabea como um halo branco, mas seu rosto continuava
indistinguvel, em harmonia com a escurido em volta dela.
Nunca a havia visto antes na casa. Dissipei meu temor inicial, imaginando
que ela, provavelmente, deveria ser uma amiga de dona Mercedes ou, talvez, uma de
suas pacientes, ou, ento, uma parente de Candelria, esperando que ela sasse dasesso.
Desculpe disse. Sou nova aqui. Trabalho com dona Mercedes.
A mulher ia concordando com a cabea enquanto eu falava. Ela me deu a
impresso de saber sobre o que eu estava falando. Possuda por uma inexplicvel
inquietao, tentei no me apavorar. Continuei repetindo para mim mesma que no
havia motivo para pnico s porque uma velha mulher estava agachada no ptio.
Estava na sesso? perguntei hesitante. A mulher balanou a cabeaafirmativamente.
Eu estava l tambm falei , mas dona Mercedes me tirou de l.
De repente, me senti aliviada e quis fazer graa da situao.
Voc est com medo de mim? a velha mulher me perguntou
abruptamente. Sua voz tinha um tom glido, grosso e vigoroso.
Ri. Com um ar petulante, estava prestes a dizer no, quando alguma coisa me
fez voltar. Ouvi a mim mesma dizendo que eu estava com medo dela.
Venha comigo a mulher me ordenou prosaicamente. Novamente,
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minha primeira reao foi segui-la, mas, em vez disso, ouvi a mim mesma dizendo
que no deveria acompanh-la.
Tenho que terminar meu trabalho. Se no se incomodar, pode falar aqui e
agora.
Eu mandei voc me acompanhar! a voz dela ressonou. Toda a energia
do meu corpo parecia esvair-se de mim de uma s vez, mas ainda exclamei:
Por que voc no manda a si prpria para ficar!
No podia acreditar que havia dito aquilo. Estava prestes a me desculpar,
quando um resto de energia brotou em meu corpo e me senti quase sob controle.
Faa como quiser a mulher falou enquanto se erguia. Sua altura era
incomensurvel. Ela crescia e crescia, at seus joelhos ficarem na altura dos meus
olhos.
Neste momento, comecei a sentir minha energia se esvaindo e deixei escapar
uma srie de gritos furiosos e penetrantes.
Candelria veio correndo para onde eu estava. Ela percorreu a distncia entre
a sala, na qual estava acontecendo a sesso esprita, e o ptio antes que eu tivesse
tempo de tomar algum ar e gritar mais uma vez.
Est tudo bem agora ela ficou repetindo num tom de voz reconfortante,
que parecia vir de longe dali.Gentilmente, acariciou minha cabea mas no consegui parar de tremer. E,
sem querer, comecei a chorar.
No devia ter deixado voc sozinha desculpou-se. Mas quem
poderia imaginar que uma musia seria capaz de v-la?
Antes que os outros participantes da sesso sassem para ver o que estava
acontecendo, ela me levou para a cozinha. Ajudou-me a sentar e me deu um copo de
rum. Bebi e, ento, contei a ela o que havia acontecido no ptio. No instante em queterminei de beber a dose e de contar o meu relato, senti-me sonolenta, distrada, mas
longe de estar bbada.
Deixe-nos a ss, Candelria disse dona Mercedes, ao entrar em meu
quarto. Alm de me colocar na cama, Candelria havia posto um colchonete ao lado
para estar junto de mim quando eu acordasse.
No sei como dizer isso dona Mercedes comeou a falar depois de um
longo silncio , mas voc uma mdium. Sempre soube disso. Seus olhos
agitados pareciam estar suspensos em uma substncia cristalina ao estudar
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atentamente meu rosto.
A nica razo para eles terem deixado voc participar da sesso porque
voc tem sorte. Mdiuns tm boa sorte.
Apesar da minha apreenso, comecei a rir.
No ria disso repreendeu-me. Isso srio. No ptio, voc chamou
um esprito sozinha. E o mais importante dos espritos, o esprito de um dos meus
antepassados, veio at voc. Ela quase no aparece, mas, quando o faz por algum
motivo importante.
Ela um fantasma? fiz esta pergunta estpida.
Claro que ela um fantasma respondeu com firmeza.
Ns entendemos as coisas da maneira como fomos ensinados. No h
desvios disto. Nossa convico de que voc viu o mais assustador dos espritos e de
que somente um mdium vivo pode comunicar-se com o esprito de um mdium
morto.
Por que este esprito veio at mim? perguntei.
No sei. Uma vez ela veio para me alertar, mas eu no segui seu conselho
replicou. Seus olhos tornaram-se gentis e sua voz ficou mais doce ao
complementar: A primeira coisa que disse quando voc chegou foi que voc tinha
boa sorte. Eu tambm tinha sorte, at que algum rompeu com ela. Voc me fazlembrar desta pessoa. Ele era louro como voc. O nome dele era Federico e ele
tambm tinha sorte mas no tinha qualquer fora. O esprito me disse para deix-lo
sozinho. No deixei e continuo pagando por isso.
Sem saber como lidar com esta recente reviravolta dos fatos e com a tristeza
que transparecia nela, coloquei minhas mos entre as dela.
Ele no tinha nenhuma fora repetiu. O esprito sabia disso.
Embora Mercedes sempre estivesse disposta a discutir qualquer coisa sobreseus mtodos, ela desencorajou, bem enfaticamente, minha curiosidade a respeito de
seu passado. Uma vez, no sei se a peguei desprevenida ou se foi um gesto deliberado
da parte dela, Mercedes me contou que havia sofrido uma grande perda muitos anos
atrs.
Antes de ter a chance de decidir se ela estava me encorajando, na verdade, a
fazer perguntas pessoais, ela levou minha mo sua face e segurou-a contra a
bochecha.
Sinta estas cicatrizes sussurrou.
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O que aconteceu com voc? perguntei, percorrendo com meus dedos a
spera marca da cicatriz em sua bochecha e pescoo. At toc-las, as cicatrizes
passavam despercebidas entre as rugas. Sua pele escura parecia to frgil. Estava com
medo de que ela pudesse desintegrar-se em minhas mos. Uma vibrao misteriosa
emanava de todo o seu corpo. No consegui desviar meu olhar dos seus olhos.
Ns no vamos falar a respeito do que voc viu no ptio ela disse
enfaticamente. Coisas como essa somente pertencem ao mundo dos mdiuns e
voc nunca deve discutir esse mundo com mais ningum. Eu, com certeza, poderia ter
avisado que no tivesse medo daquele esprito, mas no acene para ela tolamente.
Ela me ajudou a sair da cama e foi me levando para fora da casa, at o ponto
onde eu havia visto a mulher. Ao ficar ali, em p, observando a escurido que nos
cercava, me dei conta de que no tinha a menor idia se eu havia dormido durante
algumas horas ou uma noite e um dia inteiros.
Dona Mercedes parecia adivinhar minha dvida.
So quatro da manh falou. Voc dormiu cerca de cinco horas.
Ela se abaixou no mesmo local onde a mulher esteve. Agachei-me ao seu
lado, entre os arbustos de jasmins que pendiam
das venezianas de madeira como se fossem uma cortina perfumada.
Nunca me ocorreu que voc no soubesse fumar disse e comeou a riraquela gargalhada seca e estridente. Ela alcanou o bolso da saia, apanhou um charuto
e acendeu-o. Em um encontro de espiritualistas, ns fumamos charutos enrolados
mo. Espiritualistas sabem que o cheiro do tabaco ajuda os espritos. Depois de
uma pequena pausa, ela colocou o charuto aceso em minha boca. Tente fumar
ordenou.
Traguei, inalando profundamente. A grossa fumaa me fez tossir.
No inale disse sem pacincia. Deixe-me mostrar como . Elapegou o charuto, tragando-o repetidamente, inspirando e expirando em um curto
espao de tempo. Voc no quer que a fumaa v para seus pulmes mas sim para
sua cabea
explicou. Essa a maneira como os mdiuns chamam os espritos. A
partir de agora, voc estar chamando os espritos deste local. E no fale sobre isso at
voc ser capaz de conduzir sozinha uma sesso esprita.
Mas eu no quero chamar os espritos protestei sorrindo. Tudo o
que quero ter um lugar em um desses encontros e assistir.
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Ela retrucou com uma assustadora determinao:
Voc uma mdium e mdiuns no vo a uma sesso para assistir.
Qual a razo da sesso? perguntei, mudando o assunto.
Fazer perguntas aos espritos respondeu prontamente.
Alguns espritos do grandes conselhos. Outros so maus. E
acrescentou com um toque de malcia: Qual esprito ir aparecer? Depende do
estado de ser do mdium.
Os mdiuns esto merc dos espritos? perguntei. Olhando para mim,
ela ficou em silncio durante um longo
tempo sem deixar transparecer qualquer sentimento em seu rosto. Ento, em
um tom de voz provocador disse:
No, se eles forem fortes. Continuou a me encarar furiosamente e, logo
depois, fechou seus olhos. Quando ela os abriu de novo, eles estavam sem qualquer
expresso.
Ajude-me a ir para meu quarto murmurou. Segurando na minha
cabea, ela se endireitou. Sua mo desceu at meu ombro e depois at meu brao. Os
dedos rijos envolviam meu pulso como razes carbonizadas.
Silenciosamente, nos arrastamos pelo corredor escuro, no qual bancos de
madeira e cadeiras cobertas com couro de cabra erguiam-se inflexveis contra aparede. Ela caminhou para dentro do quarto. Antes de fechar a porta, me disse mais
uma vez que mdiuns no falam sobre seu mundo.
Sabia, desde o instante em que a vi na praa, que voc era uma mdium e
que viria me ver afirmou. Um sorriso, cujo significado no entendi, cruzou seu
rosto. Voc teve que vir para me trazer alguma coisa do meu passado.
O qu?
Eu no me conheo por completo. Memrias, talvez disse vagamente. Ou talvez esteja trazendo a minha velha sorte de volta. Ela acariciou minha face
com o dorso da mo e suavemente foi fechando a porta.
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Captulo 5
Embalada por uma brisa suave e pela risada de uma criana que brincava na
rua, cochilei durante toda a tarde em uma rede pendurada entre dois ps de fruta-do-
conde. Tambm me distraa com o odor do sabo em p misturado ao forte odor de
creolina com o qual Candelria lavava o cho duas vezes por dia, no importando o
quanto estivesse sujo.Esperei at quase seis horas. Ento, quando Mercedes Peralta me chamou, fui
at seu quarto e bati na porta. No obtive nenhuma resposta. Em silncio, entrei.
Normalmente, a essa hora, ela estava com as pessoas que vinham para ser tratadas por
ela de uma ou outra doena. Ela no atendia mais de dois pacientes por dia. Nos dias
ruins, que eram cada vez mais freqentes, ela no via nenhum. Nessas ocasies, eu a
levava, no meu jipe, para dar uma longa volta pelas montanhas prximas casa.
voc, musia? perguntou, estirada em uma longa rede, presa porduas argolas de metal fixadas na parede.
Saudei-a e sentei-me na cama de casal perto da janela. Ela nunca dormia
nela. Ela afirmava que de uma cama, apesar do seu tamanho, havia o risco de algum
levar um tombo fatal. Esperando que ela se levantasse, olhei em volta do quarto
estranhamente mobiliado e que nunca chegou a me encantar. As coisas pareciam estar
arrumadas l com uma intencional incongruncia. As duas mesinhas-de-cabeceira e o
mvel ao p da cama, repletos de velas e figuras de santos, serviam de altar. Um
pequeno guarda-roupa de madeira, pintado de azul e rosa, bloqueava a porta que dava
para a rua. Imaginei o que havia l dentro, pois as roupas de dona Mercedes, ela no
usava outra cor alm de preto, estavam espalhadas por todos os lugares, nos ganchos
presos na parede e atrs da porta, na cabeceira e no p da cama de metal e at nas
cordas que sustentavam a rede. Um lampio de cristal, que parecia no funcionar,
balanava precariamente preso ao teto de bambu. Estava cinzento de poeira e as
aranhas confeccionaram suas teias em volta dos prismas. Um calendrio, daqueles que
se arranca uma pgina a cada dia, cobria a parte de trs da porta. Passando os dedos
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pelos cabelos brancos desalinhados, Mercedes Peralta deu um profundo suspiro,
colocou suas pernas para fora da rede e procurou por seus chinelos de pano. Sentou-se
por um momento, ento se dirigiu uma janela muito estreita e ficou observando a
rua, abrindo os painis de madeira. Piscou seguidamente at que seus olhos se
adaptassem luz de final de tarde que invadia sua sala. Atentamente, ela fixou o olhar
no cu, como se estivesse esperando alguma mensagem do pr-do-sol.
Vamos dar uma volta? perguntei. Devagar, ela se virou.
Uma volta? repetiu, arqueando surpresa suas sobrancelhas. Como
posso dar uma volta quando h uma pessoa esperando por mim?
Abri minha boca prestes a inform-la de que no havia ningum l fora, mas
a expresso de escrnio de seus olhos cansados compeliram-me a ficar calada. Ela
pegou minha mo e juntas caminhamos para fora do quarto.
Com o queixo encostado no peito, um velho homem, que parecia bem fraco,
cochilava em um banco de madeira na parte de fora do quarto onde ela tratava as
pessoas que procuravam ajuda. Percebendo nossa presena, ele se esticou.
No me sinto bem disse numa voz quase imperceptvel, apanhando seu
chapu de palha e a bengala estendida ao seu lado.
Octavio Cant Mercedes falou e se dirigiu a mim ao mesmo tempo em
que apertava a mo dele. Ela o fez subir os dois degraus at a sala. Segui-os bem deperto. Ele se virou e ao me encarar, percebi uma expresso indagadora em seus olhos.
Ela tem me ajudado falou. Mas, se voc no quiser que ela fique
conosco, ela vai l para fora.
Mexendo os ps nervosamente, ele parou por um momento. Deu um sorriso
torto.
Se ela vem ajudando voc murmurou com um toque de desamparo ,
suponho que est tudo bem.Com um rpido movimento de cabea, Mercedes Peralta indicou que eu
colocasse meu banco perto do altar e que, ento, ajudasse o velho homem a sentar-se
em uma cadeira em frente grande mesa retangular. Ela se sentou direita dele,
observando-o.
Onde poder estar? resmungou repetidamente, procurando entre uma
variedade imensa de jarros, velas e charutos, razes secas e restos de material
espalhados por sobre a mesa. Suspirou aliviada ao encontrar sua bssola nutica, que
colocou na frente de Octavio Cant. Atentamente, ela estudou a caixa redonda de
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metal.
Olhe isso! gritou, acenando para que eu chegasse mais perto.
Era a mesma bssola que eu a havia visto examinar to intensamente no
primeiro dia em que entrei na sala. A agulha, pouco visvel atravs do vidro opaco e
muito arranhado, movia-se vigorosamente para frente e para trs, como se estivesse
sendo animada por uma fora invisvel emanada de Octavio Cant.
Mercedes Peralta utilizava a bssola como um aparelho de diagnstico
apenas quando acreditava que a pessoa estava sofrendo de uma enfermidade espiritual
e no de uma doena orgnica. At aqui, no era capaz de determinar os critrios que
ela usava para diferenciar os dois tipos de males. Para ela, uma enfermidade espiritual
pode manifestar-se na forma de uma mar de azar ou como um simples resfriado que,
dependendo da circunstncia, tambm pode ser diagnosticado como uma doena
orgnica.
Esperando encontrar algum dispositivo mecnico que ativasse a agulha,
examinei a bssola em todas as oportunidades. Como no havia nenhum, aceitei a
explicao dela como uma verdade absoluta: sempre que uma pessoa estiver centrada,
ou seja, quando esprito, corpo e alma estiverem em harmonia, a agulha no ir se
mover. Para provar sua afirmao, ela colocou a bssola em frente de si prpria, de
Candelria e de mim. Para minha grande surpresa, a agulha s moveu quando abssola foi colocada na minha frente. Octavio Cant esticou seu pescoo para
examinar o instrumento.
Estou doente? perguntou suavemente, olhando para dona Mercedes.
O seu esprito que est resmungou. Seu esprito est em um
grande turbilho. Ela colocou a bssola de volta no armrio de vidro e, ento,
postou-se por trs do velho homem, repousou suas mos na cabea dele. Permaneceu
nesta posio durante um longo tempo. Depois, com movimentos rpidos e seguros,foi correndo os dedos at os seus ombros e braos. Rapidamente, ela foi para a frente
dele, suas mos roavam suavemente o peito, descendo pelas pernas e por todo o
caminho at alcanar os ps. Recitando uma prece parte litania sacra, parte
encantamento (ela dizia que os bons curandeiros sabiam que o catolicismo e o
espiritualismo complementavam um ao outro) , ela alternou massagens no peito e
nas costas dele por quase meia hora. De vez em quando, para dar um alvio
momentneo s suas mos cansadas, ela as balanava vigorosamente para trs,
dizendo que estava jogando fora a energia negativa acumulada.
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Para indicar o final da primeira parte do tratamento, ela batia seu p direito
trs vezes no cho. Octavio Cant tremia incontrolavelmente. Ela puxou a cabea dele
para trs, pressionando a palma da mo contra sua tmpora at que ele comeasse a
tomar flego. Murmurando uma prece, ela andou at o altar, acendeu uma vela e um
charuto artesanal, que comeou a fumar em rpidas baforadas.
Posso estar sendo usado por ele agora? o velho homem perguntou,
quebrando o silncio.
Sobressaltada pela voz dele, ela comeou a tossir at que lgrimas rolassem
por suas bochechas. Fiquei imaginando se ela, acidentalmente, havia engolido a
fumaa.
Octavio Cant, sem ligar para a tosse dela, continuou a falar:
J disse a voc muitas, muitas vezes que eu sonho apenas um sonho, no
importa que eu esteja sbrio ou bbado. Estou em p na minha choupana. Est vazia.
Sinto o vento e vejo sombras se movendo por todos os lados. Mas no existe mais
nenhum cachorro para latir no vazio e na escurido. Acordo com uma terrvel falta de
ar, como se algum estivesse sentado em cima do meu peito, e, quando abro meus
olhos, vejo as pupilas amarelas de um cachorro. Elas se abrem cada vez mais e mais,
at que me engolem... Sua voz sumiu. Arfando, ele olhou por toda a sala. Parecia
no saber onde estava.Mercedes Peralta deixou o charuto cair no cho. Jogando sua cadeira para
trs, ela rapidamente o virou para que ele pudesse olhar para o altar. Com movimentos
lentos e repetitivos, ela comeou a massagear a regio em volta dos olhos dele.
Estava sozinha na sala, provavelmente devo ter cochilado. Avela no altar
estava quase apagada. Acima de mim, direita, na quina do teto, havia uma mariposa
do tamanho de um pequeno pssaro. Ela tinha dois enormes crculos negros nas asas,
que pareciam me encarar como dois olhos curiosos.Um inesperado sussurro me fez virar. Mercedes Peralta estava sentada em
uma cadeira perto do altar. Abafei um grito. Poderia jurar que ela no estava l um
minuto atrs.
No sabia que estava a disse. Veja esta grande mariposa acima da
minha cabea. Procurei pelo inseto mas eleja tinha ido embora.
Alguma coisa, na maneira como ela me olhou, me fez estremecer.
Estava muito cansada e ca no sono expliquei. Tambm no
descobri o que havia de errado com Octavio Cant.
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Ele vem me ver de tempos em tempos falou. Ele precisa de mim
como uma espiritualista e curandeira. Aliviei o fardo que pesava em sua alma. Ela
se voltou para o altar e acendeu trs velas. Sob esta luz trmula, os olhos dela eram da
cor das asas da mariposa. Voc deveria dormir sugeriu. Lembre-se de que
ns vamos dar uma volta ao amanhecer.
Captulo 6
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Certa de que eu havia dormido demais novamente, vesti-me rpido e corri
corredor abaixo. Ciente de que as dobradias iriam ranger, abria porta do quarto deMercedes Peralta cuidadosamente e, na ponta dos ps, fui em direo rede.
Est acordada? sussurrei, puxando para o lado o mosquiteiro,
confeccionado com um material transparente como gaze. Voc ainda quer dar um
passeio?
Seus olhos se abriram no mesmo instante, mas ela no estava totalmente
acordada. Ficou olhando tranqilamente para a frente.
Quero finalmente disse com a voz rouca, puxando o mosquiteiro
totalmente para o lado. Limpou a garganta, cuspiu em um balde no cho e, ento,
chegou para o lado para me dar um lugar na rede. Estou feliz que voc tenha se
lembrado de nosso passeio resmungou ao fazer o sinal-da-cruz. Fechando os olhos,
ela juntou as mos e rezou para a Virgem Maria e para inmeros santos dos cus.
Agradeceu a cada um deles pela disposio em ajud-la com as pessoas que ela trata
e, ento, pediu perdo a eles.
Por que voc pede perdo a eles? inquiri assim que ela terminou sua
longa prece.
Olhe as linhas em minhas palmas falou, colocando a mo virada no
meu colo.
Com meu dedo indicador, percorri duas claras e delineadas linhas, uma das
letras tinha o formato de um V a outra de um M, que pareciam ter sido marcados a
ferro. O V estava na palma da mo esquerda e o M, na da direita.
V significa vida. M significa muerte, morte explicou, pronunciando as
palavras com uma deliberada preciso. Eu nasci com o poder de curar e de
prejudicar. Ela tirou as mos do meu colo e comeou a balan-las no ar, como se
quisesse apagar as palavras que acabara de dizer. Comeou a olhar em volta da sala e,
ento, deliberadamente movimentou suas pernas magras e descarnadas para fora da
rede e enfiou os ps num velho sapato rasgado, que deixava o dedo do p para fora.
Seus olhos piscavam alegremente, ao endireitar a blusa e a saia preta com que havia
dormido.
Segurando no meu brao, levou-me para fora.
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Deixe-me mostrar-lhe uma coisa antes de sairmos para dar uma volta
falou, dirigindo-se para a sala de trabalho. Ela foi direto ao altar macio, todo feito de
cera derretida. Comeou com uma simples vela disse por minha tatarav,
que tambm era uma curandeira. Suavemente, ela correu suas mos pela lustrosa,
quase transparente superfcie. Procure pela cera negra no meio das camadas
coloridas me estimulou. a evidncia de que feiticeiras acendem velas negras
quando usam seu poder para fazer o mal.
Havia poucas linhas de cera negra nas camadas coloridas.
Aquela mais prxima ao topo minha falou. Seus olhos brilharam com
estranha fria ao acrescentar: Uma curandeira de verdade tambm uma feiticeira.
Por um momento, um esboo de sorriso ocupou seus lbios, depois comeou
a contar que no era conhecida apenas naquela regio de Curmina; as pessoas que se
tratavam com ela vinham de lugares distantes como Caracas, Maracaibo, Mrida e
Cuman. Fora do pas ela tambm era conhecida em Trinidad, Cuba, Colmbia, Brasil
e Haiti. Fotografias espalhadas pela casa comprovavam que algumas dessas pessoas
eram ministros de Estado, embaixadores e at bispos.
Ela me olhou enigmaticamente e, depois, balanou os ombros.
Minha sorte e fora eram incomparveis naquele tempo falou. Perdi
as duas, e agora s posso curar. Abriu um grande sorriso e seus olhos tinham umbrilho gozador. Seu trabalho est progredindo? perguntou com a inocente
curiosidade de uma criana. Antes que eu tivesse chance de falar a respeito, ela
completou: No importa o nmero de curandeiros e pacientes que voc entreviste,
voc nunca aprender desta maneira. Um curandeiro de verdade precisa primeiro ser
um mdium e um espiritualista, e, depois, um feiticeiro. Um sorriso maravilhado
iluminou seu rosto. No fique chateada se um dia desses eu queimar o seu bloco de
anotaes falou casualmente. Voc est perdendo seu tempo com essa coisasem sentido.
Comecei a ficar seriamente preocupada. No gostei da perspectiva de ver
meu trabalho virar cinza.
Voc sabe o que realmente importa? perguntou e em seguida
respondeu sua prpria pergunta. As coisas que esto por trs dos aspectos
superficiais da cura. Coisas que no podem ser explicadas mas podem ser
experimentadas. Existiram muitas pessoas que estudaram os curandeiros. Eles
acreditavam que apenas olhando e fazendo perguntas conseguiriam entender o que
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mdiuns, feiticeiras e curandeiros fazem. Partindo do princpio de que no h nada
para discutir com eles, melhor deix-los sozinhos para fazerem o que quiserem.
"No tem que ser assim no seu caso ela continuou. No vou deixar
voc se perder. Ento, em vez de estudar os curandeiros como faz agora, voc vai
chamar todas as noites, no ptio da casa, pelo esprito de meu ancestral. Voc no
poder tomar notas durante o encontro porque os espritos contam o tempo de uma
maneira diferente. Voc ver. Lidar com os espritos como entrar no centro do
universo."
A lembrana da mulher que vira no ptio me perturbou terrivelmente. Por um
momento pensei em abandonar toda a minha misso, esquecer os planos de Florinda e
sair correndo dali.
Repentinamente, dona Mercedes explodiu uma gargalhada que dissipou
meus receios.
Musia, voc deveria ver seu rosto disse. Esteve prestes a desmaiar.
Entre outras coisas, voc uma covarde. Apesar do tom de zombaria, senti
simpatia e amabilidade em seu sorriso. No posso for-la. Mas vou dar uma coisa
da qual voc ir gostar, uma coisa mais valiosa do que seus planos de estudo. Um
vislumbre da vida de alguns personagens de minha preferncia. Vou contar histrias
para voc. Histrias sobre f. Histrias sobre sorte. Histrias sobre amor. Elaencostou sua cabea perto da minha e, num suspiro suave, completou: Histrias
sobre fora e histrias sobre fraqueza. Esse ser meu presente para voc se manter
calma. Ela pegou meu brao e me levou para fora. Vamos dar o nosso passeio.
Nossos passos ecoavam solitrios na rua deserta, margeada por altas caladas
de concreto. Murmurando baixinho, obviamente preocupada em no acordar as
pessoas que dormiam pelas casas por onde ns passvamos, Mercedes Peralta contou
que, durante o tempo em que era uma jovem curandeira, sua casa a maior da rua permaneceu isolada no que era ento considerado o limite da cidade.
Mas agora falou, gesticulando os braos como se fosse abraar tudo
em volta de ns parece que eu vivo no centro da cidade.
Dobramos na rua principal e andamos at a praa, onde descansamos em um
banco, olhando para uma esttua de Bolvar em cima de um cavalo. A prefeitura se
erguia em um dos lados da praa, no outra estava a igreja, que tinha uma torre e um
sino. Muitos dos prdios originais foram postos abaixo dando lugar a construes em
forma de caixa. No entanto, as velhas casas que ainda existiam, com grades de ferro
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forjado, com telhados vermelhos que com o tempo se tornaram cinzentos e amplos
beirais que permitiam que a gua da chuva corresse por sobre as paredes pintadas,
davam ao centro da cidade uma distinta atmosfera colonial.
Esta cidade no a mesma desde o dia em que o relgio na torre da
prefeitura foi consertado lamentou.
Ela explicou que h muito tempo o relgio, como se estivesse se ressentindo
dos avanos do progresso, parou quando marcava meio-dia. O farmacutico local viu
o defeito e o relgio foi consertado. Logo depois, como se a cidade tivesse sido
conjurada por um ato de mgica, postes de iluminao foram colocados na cidade e
irrigadores de gua foram colocados na praa, fazendo com que a grama
permanecesse verde durante o ano inteiro. E antes que algum soubesse o que estava
acontecendo, centros industriais cresceram rapidamente por todos os lados.
Ela parou de falar por um instante para tomar flego e, depois, apontou para
os barracos que cobriam os morros que envolviam a cidade.
E estes posseiros formaram uma nova cidade completou. Ela se
levantou e caminhou at o final da rua principal, onde
os morros comeavam. Barracos construdos com folhas de metal enrugado,
grades e pedaos de papelo pendiam dos degraus da ladeira. Os proprietrios dos
barracos prximos s ruas da cidade faziam ligaes clandestinas nos postes de luz. Oisolamento dos fios era feito grosseiramente com fitas coloridas. Ns viramos em uma
rua lateral, depois em uma viela e, finalmente, seguimos um estreito caminho que
desembocava no nico morro da regio que ainda no havia sido ocupado pelos
posseiros.
O ar, ainda mido do orvalho da madrugada, cheirava a alecrim silvestre.
Escalamos at quase o topo, onde crescia uma rvore solitria. Sentamo-nos no cho
mido, coberto de pequenas margaridas amarelas. Voc consegue ouvir o barulho do mar? Mercedes Peralta perguntou.
A brisa suave, farfalhando pelos confusos cumes tecidos pelas rvores,
espalhava uma chuva de p dourado vindo das flores das rvores. Elas pousavam nos
ombros dela como se fossem borboletas. Seu rosto cobria-se de uma calma
incomensurvel.
Abriu a boca ligeiramente, revelando os poucos dentes, amarelados pelo
tabaco e pelos anos.
Voc consegue ouvir o mar? repetiu, virando seus olhos sonhadores e
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um pouco enevoados na minha direo.
Disse a ela que o mar estava muito distante, alm das montanhas.
Sei que o mar est muito longe falou docemente. Mas, quando est
cedo como agora e a cidade ainda no acordou, consigo ouvir o barulho das ondas
sendo empurradas pelo vento. Fechando seus olhos, ela se recostou no tronco da
rvore como se fosse dormir.
O silncio da manh foi quebrado pelo barulho de um jipe a dobrar uma
estreita rua abaixo. Fiquei imaginando se era o padeiro portugus entregando bisnagas
frescas ou se era a polcia recolhendo os ltimos bbados da madrugada.
Descubra quem recomendou.
Desci alguns metros e avistei um senhor deixando um jipe verde estacionado
ao p do morro. O casaco dele pendia sobre os ombros e ele usava um chapu de
palha. Percebendo que estava sendo observado, ele olhou para cima e balanou sua
bengala como se estivesse me cumprimentando. Acenei de volta.
o velho homem que voc tratou ontem disse a ela.
Que sorte! murmurou. Chame-o. Diga para ele vir at aqui. Diga
que quero v-lo. Meu presente para voc comea agora.
Desci at onde o jipe estava estacionado e pedi ao velho homem que me
acompanhasse at o alto do morro. Ele me seguiu sem dizer uma palavra. Nenhum cachorro hoje ele disse para Mercedes Peralta enquanto a
cumprimentava e se sentava ao seu lado.
Deixe-me contar um segredo para voc, musia ela falou, indicando
que eu me sentasse na sua frente. Sou uma mdium, uma feiticeira e uma
curandeira. Das trs, prefiro a segunda porque feiticeiras tm uma maneira particular
de entender os mistrios da f. Por que algumas pessoas so ricas, bem-sucedidas e
felizes, enquanto outras s encontram dificuldades e sofrimento? O que decide essascoisas no o que vocs chamam de f, algo mais misterioso do que isso. E somente
feiticeiras sabem o que .
Ao se virar para Octavio Cant, suas feies se contorceram, por um
instante, de uma forma que no consegui compreender.
Algumas pessoas dizem que ns nascemos com nossa f. Outras
asseguram que ns criamos nossa f com nossas aes. Feiticeiras no dizem
nenhuma das duas. Para elas, f algo que nos apanha como um caador de cachorros
pega um destes animais. O segredo estar l se quisermos ser apanhados ou no estar
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se no quisermos ser apanhados.
Seu olhar perdeu-se pelo cu, do lado onde o sol nascia por trs de
montanhas distantes. Depois de alguns minutos, ela encarou o velho homem mais
uma vez. Seus olhos pareciam ter absorvido o esplendor do sol, pois eles brilhavam
como se estivessem pintados com fogo.
Octavio Cant est indo at minha casa para seu tratamento peridico
ela falou. Talvez, aos poucos, ele possa contar uma histria para voc. Uma
histria sobre como a oportunidade junta a vida das pessoas e como algo que s as
feiticeiras conhecem pode prend-las em um s fardo.
Octavio Cant balanou a cabea concordando. Uma tentativa de sorriso
partiu de seus lbios. A barba rala em seu queixo era branca como os cabelos que
sobravam para fora do chapu de palha.
Octavio Cant j fora oito vezes at a casa de dona Mercedes.
Aparentemente, ela o vem tratando de tempos em tempos desde que ele era jovem.
Alm de ser velho e fraco, ele era um alcolatra. Entretanto, dona Mercedes enfatizou
que todas as doenas dele eram provenientes do esprito. Ele precisava de
encantamentos e no de medicina.
No incio, ele dificilmente falava comigo, mas ento, talvez por sentir mais
confiana em mim, comeou a falar. Ficamos conversando sobre a vida dele durantehoras. No comeo de cada uma de nossas sesses, ele, invariavelmente, parecia que
iria sucumbir ao desespero, solido e culpa. Insistia em saber por que eu estava
interessada na sua vida. Mas ele sempre se controlava e recuperava a confiana. No
restante do encontro, que podia ser de uma hora ou uma tarde inteira, falava sobre si
mesmo como se ele fosse uma outra pessoa.
Octavio puxou um pedao do papelo liso para o lado, dando lugar a um
buraco que servia como porta do barraco. No havia luz l dentro e a fumaapungente do fogo minguado da lareira de pedra fez com que os olhos dele
lacrimejassem. Apertou-os e foi tateando o caminho pela escurido. Tropeou em
algumas latas e bateu com a canela em um engradado de madeira.
Maldito lugar fedorento xingou ao sentir o cheiro. Sentou-se por um
momento no cho sujo de papis e esticou as pernas. No canto mais distante do
miservel barraco, ele viu um homem velho cochilando em um pudo banco traseiro,
retirado de um carro. Apesar dos caixotes, cordas, farrapos e latas espalhados pelo
cho, ele foi andando vagarosamente, desviando-se dos entulhos, at o lugar onde o
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homem estava deitado.
Octavio acendeu um fsforo. Sob a luz fraca, o velho parecia morto. Os
movimentos de seu peito eram to leves que ele parecia no estar respirando. As
bochechas eram grandes e se destacavam no rosto magro e negro. A cala cqui, suja
e rasgada, estava enrolada na altura da panturrilha. A blusa de manga comprida,
tambm cqui, estava abotoada at bem perto de seu pescoo enrugado.
Victor Julio! Octavio gritou, sacudindo-o vigorosamente. Acorde,
meu velho!
Ele se mexeu, abrindo, por um momento, os olhos cercados de rugas. O
branco descolorado de seus olhos foi a nica coisa que deu para ver antes que ele os
fechasse novamente.
Acorde! Octavio berrou exasperado. Ele tateou por um chapu de
palha que estava jogado no cho perto dele e enfiou com fora na cabea do homem
de cabelos brancos e desleixados.
Quem voc pensa que ? grunhiu. O que quer?
Sou Octavio Cant. Fui designado pelo prefeito para ser seu ajudante
ele explicou com um certo ar de importncia.
Ajudante? falou sem convico enquanto se sentava. No preciso
de ajuda.Ele calou os velhos sapatos sem cadaro e andou pela sala escura at
encontrar uma lanterna a gasolina. Acendeu-a. Esfregou os olhos e, piscando vrias
vezes, estudou atentamente o jovem.
Octavio Cant tinha uma altura mediana e msculos fortes, deixados
mostra pela jaqueta azul-escura sem botes. A cala, que parecia ser grande demais
para ele, cobria parte das suas botinas novas e engraxadas. Victor Julio deu um
risinho, imaginando se Octavio Cant as roubara. Ento voc o novo homem? disse rispidamente, tentando determinar
a cor dos olhos de Octavio, escondidos por um bon vermelho de beisebol. Eram
olhos astutos, da cor da terra molhada. Victor Julio viu que havia alguma coisa
decididamente suspeita a respeito daquele jovem. Nunca vi voc por aqui disse.
De onde voc vem?
Paraguan Octavio deu uma resposta curta. Estive aqui algumas
vezes. Cheguei a v-lo na praa.
Paraguan... o velho repetiu pensativamente. J vi as dunas de areia
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de Paraguan. Ele balanou a cabea e com voz spera exigiu uma explicao:
O que voc est fazendo neste lugar esquecido por Deus? Voc sabe que no h futuro
nesta cidade? Nunca foi avisado de que os jovens esto migrando para outras cidades?
Tudo isto vai mudar Octavio falou, tentando manter a conversa para
longe de si prprio. Esta cidade vai crescer. Estrangeiros esto comprando ps de
cacau e plantaes de cana-de-acar. Eles vo construir indstrias, pessoas vo voltar
aos bandos para c. Pessoas vo ficar milionrias.
Victor Julio chegou a dobrar-se ao dar uma risada zombeteira.
Indstrias no so para gente como ns. Se voc insistir em ficar aqui por
muito tempo, vai terminar igual a mim. Ele colocou a mo no brao de Octavio.
Sei que voc est muito longe de Paraguan. Voc est fugindo de alguma coisa, no
est? perguntou, encarando profundamente os olhos inquietos do jovem.
E se eu estiver? Octavio retrucou desconfortavelmente. Ele percebeu
que no precisava dar nenhuma explicao a ele. Ningum sabia a seu respeito na
cidade. Mas alguma coisa nos olhos do velho homem o enervavam. Tenho alguns
problemas para voltar para casa murmurou evasivamente.
Victor Julio arrastou-se at a porta do barraco, apanhou um saco de estopa
pendurado em um prego enferrujado e tirou dele uma garrafa de rum barato. Suas
mos, cobertas de veias protuberantes, tremiam incontrolavelmente enquanto eledesenroscava a tampa da garrafa. Foi tomando goles ininterruptamente, sem se
importar com as gotas do lquido mbar que escorriam por sua barba malcuidada.
H muito trabalho a ser feito Octavio falou. melhor que
comecemos.
Era jovem como voc quando fui indicado por outro prefeito para ser o
assistente de um idoso Victor Julio recordou.
Estava decidido e impaciente para comear a trabalhar. Olhe para mimagora. O rum j no queima mais minha garganta. Agachando-se no cho, Victor
Julio procurou por sua bengala. Ela pertencia quele velho homem. Ele me deu
antes de morrer.
Levantou a bengala escura e muito polida para Octavio. Ela foi feita
com madeira de lei da floresta amaznica. Nunca quebrar.
Octavio olhou de relance para a bengala e perguntou impacientemente:
As coisas de que ns precisamos j esto aqui? Ou ainda teremos que
apanh-las?
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Julio deu um sorriso forado.
A carne est sendo macerada desde ontem. J deve estar pronta. Est fora
do barraco num tonel de ao.
Voc vai me mostrar como apurar a carne? Octavio perguntou.
Victor Julio riu. Ele perdera todos os dentes da parte da frente de sua boca.
Os dois molares amarelados que lhe restavam pareciam dois pilares em sua boca
cavernosa.
No h nada para mostrar falou entre dois risinhos.
Apenas vou at o farmacutico todas as vezes que quero preparar a carne.
Ele o nico que a amassa at que ela fique tenra. Na verdade, explicou, para que
fique mais com um marinado.
Deu um grande sorriso. Sempre apanho a carne no matadouro, uma
cortesia do prefeito. Tomou outro gole da bebida. O rum me ajuda a me
preparar. Coou o queixo seco.
Os cachorros vo me pegar um dia desses murmurou, oferecendo a
garrafa pela metade a Octavio. melhor voc ter uma tambm.
No, obrigado. Octavio recusou polidamente. No bebo com o
estmago vazio.
Victor Julio abriu a boca, pronto para falar alguma coisa. Em vez disso,apanhou sua bengala e o saco de estopa e indicou a Octavio que o acompanhasse para
fora do barraco. Introspectivo, ele parou por um momento e ficou olhando para o cu,
que no estava nem escuro nem claro, mas trazia um estranho e opressivo tom
cinzento. Ele ouviu o latido de um cachorro longe dali.
Ali est a carne disse apontando com o queixo o tonel de ao, em cima
de um toco de rvore. Ele entregou a Octavio um rolo de corda. Ser mais fcil
carregar o tonel se voc amarr-lo nas costas.Experiente, Octavio envolveu o tonel de ao com as cordas, colocou-o nas
costas, cruzou as cordas pelo peito e, por fim, amarrou-as seguramente abaixo do
umbigo.
Isto tudo de que precisamos? perguntou, evitando o olhar fixo do
velho homem.
Tenho algumas cordas sobressalentes e uma lata de querosene no meu
saco Victor explicou e tomou outro gole de rum. Distraidamente, colocou a garrafa
no bolso.
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Um atrs do outro, eles seguiram os sulcos secos que dividiam os canteiros
de cana-de-acar. Tudo estava quieto, com exceo do sussurrar dos grilos e da leve
brisa que atravessava as folhas da cana. Victor Julio tinha problemas para respirar.
Seu peito doa. Ele se sentia to cansado que queria parar para descansar no cho
duro. Voltou-se e fitou seu barraco a distncia. Um pressentimento atravessou sua
mente, o fim estava prximo. Eleja sabia h tempos que estava muito velho e fraco
para suportar todo trabalho que deveria fazer. Era uma questo de tempo para que
arrumassem um novo homem.
Venha, Julio Octavio chamou impacientemente. Est ficando tarde.
A cidade continuava dormindo. Apenas poucas mulheres, a caminho da
igreja, estavam acordadas. Com suas cabeas cobertas por vus negros, elas passaram
correndo pelos dois homens e no responderam a seus cumprimentos. Nas estreitas
caladas de concreto, ces de rua esquelticos e aparentemente doentes se esticavam
em frente das portas fechadas, aproveitando a proteo das casas silenciosas.
Sob o comando de Victor Julio, Octavio arriou o tonel de ao no cho e abriu
a tampa apertada. Utilizando um longo alicate de madeira que havia trazido no saco
de estopa, o velho homem retirou pedaos de carne do tonel. E, como em todo o
caminho que