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Marleide de Moura Rocha
A Arte da Animao Japonesa
Em busca dos recursos gerativos de sentidos Recursos estticos / efeitos estsicos
Mestrado em Comunicao e Semitica
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
2008
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE
SO PAULO
PUC - SP
PS-GRADUAO EM COMUNICAO E SEMITICA - COS
A Arte da Animao Japonesa
Em busca dos recursos gerativos de sentidos Recursos estticos / efeitos estsicos
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Comunicao e Semitica - rea de concentrao Anlise das Mdias Sob a Orientao do Professor Doutor ARLINDO MACHADO. Aluna: Marleide de Moura Rocha
So Paulo 2008
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FOLHA DE APROVAO DA BANCA EXAMINADORA:
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Autorizo, para fins exclusivamente acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao por processos fotocopiadores ou eletrnicos. Assinatura: _____________________________________________________ So Paulo, 31 de Maro de 2008.
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Dedicatria
Dedico esse trabalho minha famlia e ao meu esposo cujo apoio foi
fundamental para a realizao desse curso.
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Agradecimentos
Meus sinceros agradecimentos a todas as pessoas queridas que
percorreram essa longa jornada comigo; que tiveram pacincia com minhas
faltas e incapacidades; espero estar retribuindo um pouco do muito que me
deram com o resultado desse trabalho, fruto de esforo e dicao.
Meus agradecimentos, tambm, ao CNPQ e CAPES.
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Tudo comeou com a:
Candy Candy
Transmitido pela Rede Record em 1981.
Eu tinha nove anos e me apaixonei pelas artes visuais.
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No tear que tece a nossa vida no h pontas soltas. Todos os fios esto entremeados entre si e revestidos de significado. CLAMP
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RESUMO
Essa pesquisa visa identificar e analisar os processos sincrticos geradores de sentidos intrnsecos nos intertextos presentes na linguagem audiovisual do desenho animado japons, tambm conhecido como anim. Examinando os procedimentos interacionais, intersubjetivos, os percursos narrativos, enunciativos, principalmente os figurativos e passionais pretende-se determinar os regimes de sentidos explorados, bem como, a configurao de valores japoneses que passaram a percorrer o mundo com o anim.
Esse trabalho tem seu incio com abordagem diacrnica da arte da animao seguida da animao japonesa em seu desenvolvimento na constituio de uma esttica com estilo e caractersticas prprias.
A cultura pop japonesa vem conquistando pessoas e espaos culturais, sociais e miditicos. Uma das manifestaes dessa influncia a produo da franquia Matrix(1999). Os produtores da trilogia Matrix levaram efeitos visuais, sonoros e temporais dos anims para o texto flmico. Esses efeitos, ento, reproduzidos de volta ao anim em Animatrix (2003), receberam caractersticas estticas e estsicas peculiares motivando esta pesquisa.
Para estudo de caso foi selecionado o curta-metragem Program (Um Corao de Soldado) da obra Animatrix, com sete minutos de durao, dirigido por Yoshiaki Kawajiri. Animatrix uma obra composta por nove desenhos em curta metragem, com todos os desenhos constitudos por discursos narrativos ligados aos da trilogia Matrix.
Aps estudos e anlises desenvolvidas com o apoio dos conceitos, teorias e metodologia trabalhados por Algirdas Julien Greimas e seus colaboradores, foi possvel determinar em Program caractersticas pertinentes contendo procedimentos significantes que permitem abord-lo tanto como um agente programador, quanto como instncia resultante dessa programao realizada pelo anim.
Partindo do pressuposto de que a construo de sentido inerente aos seres humanos, esse trabalho pretende a contribuir com o quadro terico da Comunicao e Semitica fornecendo subsdios como meios de acesso crtico para a apreciao esttica dos textos audiovisuais atravs da arte da animao japonesa.
Os encaminhamentos finais de nossa pesquisa apontam o desenho animado japons como uma forma expressiva de comunicao de massa que reflete um contexto cultural complexo, variando em tcnicas, temas, imagens, revelando uma estratgia de programao do ser social contemporneo calcado uma tradio milenar.
Palavras chave: animao, figuratividade, enunciao, sintaxe da composio audiovisual.
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ABSTRACT
This research intends to identify and analise the sincretic processes producers of
intrnsec feelings in the intertexts present in the audiovisual language of Japanese animated cartoon, also known as anime. Examining interacional, intersubjective procedures, the narrative, enunciative trajectories and specially the figurative and passional trajectories, it is intended to determine the regimes of feelings exploited, as well as the configuraton of Japanese values that travel the world within anim.
This paper has its beginning with diacronicle approaching of the art of animation, followed by the Japanese animation art through its development concerning to the constitutionn of a sthetics with its own style and characterists.
The Japanese pop culture has been conquering people and cultural, social and mediatic spaces. One of the manifestation of its influence is the production of the Matrix(1999) franchise. The Matrix trilogy producers took visual, sound, and temporal effects from the anime to the filmic text. These effects, then, reproduced back to the anime in the Animatrix(2003), received peculiar characteristics motivating this research.
For the study case it was selected the short feature Program from the collection Animatrix; Program is seven minutes lengh and was directed by Yoshiaki Kawajiri. Animatrix is a piece of work composed by nine short features, all of them are constituted by narrative discourse linked to those of the Matrix trilogy.
After studies and analises developed with the support of the concepts, theories and methodology worked by Algirdas Julien Greimas and his collaborators, it was possible to determine in Program concerning characteristics having significant procedures that allowed us to approach it not only as a programming agent, but also as a resulting instance from the programming performed by the anime.
Considering as a starting point the presupposition that construction of sense is inherent to human beings, this research intends to contribute to the theoretical board of Communication and Semiotics offering subsidy as means of critical access to the sthetic appreciation of audiovisual texts through the art of Japanese animation.
Our research final leadings suggest the japanese animated cartoon as an expressive form of mass communication that reflects a complex cultural context ranging in modes, themes, imagery, revealing a programming strategy for the contemporaty social being leashed to millenial tradition.
Key words: animation, figurativity, enunciation, sintax of audiovisual composition.
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SUMRIO
INTRODUO....................................................................................................................12
CAPTULO I
I.1. A Arte da Animao, origem e evoluo............................................................14 A animao para a TV adquire uma esttica diferenciada...............................19
I.2. A Arte da Animao Japonesa e sua revoluo..................................................21 Mang...............................................................................................................21 Anim...............................................................................................................25 O anim e o mang aps Osamu Tezuka.........................................................26
CAPTULO II
O Universo Anim
II.1. A concepo dos personagens...........................................................................31 Assuntos abordados..........................................................................................34
II.2. Anims produzidos para a TV...........................................................................37
II.3. Alguns recursos gerativos de sentidos nos anims............................................42 Efeitosproduzidos pelas expresses faciais......................................................45 O Japo no anim.............................................................................................51
CAPTULO III
III.1. Matrix: um projeto que nasceu dos mangs e anims......................................56 Animatrix.......................................................................................................59
III.2. O Universo Animatrix......................................................................................61
III.3. Anlise semitica: Program (Um corao de soldado)...................................72 III.3.1. nvel fundamental............................................................................109 III.3.2. nvel narrativo..................................................................................111 III.3.3. nvel discursivo................................................................................116
CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................120
ANEXOS Lista de anims assistidos para a pesquisa..........................................................................123
REFERNCIAS..................................................................................................................127
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INTRODUO
O presente trabalho surgiu da necessidade de aprofundar os estudos sobre o desenho
animado japons (tambm conhecido como anim) e contribuir para ampliar o quadro de
pesquisas desenvolvidas no mbito da arte da animao sob o prisma da Semitica.
Em 1989, Akira1 estreou nos cinemas britnicos e foi seguido do que se acredita ter
sido a primeira conferncia sobre a Cultura Popular Japonesa organizada no ocidente.
Susan Napier2 (2005: VII), testemunha que o feedback entusiasmado, sua pesquisa
apresentada sobre Akira, na conferncia, a fez perceber que esse era um tpico de pesquisa
digno de prosseguir com estudos mais aprofundados.
Desde ento, os anims tm sido estudados e trabalhos produzidos nos EUA. No
entanto, poucas pesquisas a esse respeito foram publicadas em portugus.
O anim um produto proveniente de intercmbio cultural de massas3, e ao
produzir e exportar anims o Japo tambm produz e exporta sua influncia cultural.
Hbitos, conceitos, atividades locais tipicamente japonesas tornam-se referncias
globalizadas e comuns queles que consomem seus produtos.
Para a construo do primeiro captulo desse trabalho, nossa busca por compreender
o fenmeno anim nos levou a traar um percurso diacrnico reconstruindo alguns passos
principais na constituio da arte da animao desde sua origem cinematogrfica at sua
migrao para o suporte televisivo. Esse estudo nos permitiu apreender os fundamentos da
indstria da animao japonesa quanto sua associao com o mang (os quadrinhos
japoneses) e seus modos de produo voltados para o cinema, os OVAs (Original Video
Animation) e a TV.
Nos referimos ao nosso objeto de estudo como a arte da animao japonesa e,
apesar dos termos arte da animao implicar outros tipos de animao como 3D ou stop
motion, esses no sero estudados aqui. Nos ateremos s animaes bidimensionais, mesmo
1 Akira um longa-metragem produzido pelo diretor Katsuhiro Otomo em 1988. 2 Susan Napier professora de literatura e cultura japonesa na Universidade do Texas e uma especialista em anim reconhecida nos EUA e no Japo. 3 A definio intercmbio cultural de massas leva em considerao trs aspctos dos quadrinhos e desenhos animados japoneses: 1) por ser uma cultura de massa difundida globalmente. 2) entre os vrios assuntos abordados, h pesquisas feitas pelos autores em mbitos histricos, folclricos, mitolgicos de vrias culturas inclusive a japonesa. 3) Os japoneses opinam, votam, do nota, criticam e elogiam; h um espao aberto para interatividade entre consumidores e produtores que tentam adaptar-se aos termmetros populares.
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quando, em casos especficos, essas envolverem efeitos visuais oriundos de tcnicas
tridimensionais.
No segundo captulo, tentamos montar um panorama geral dos modos de aparncia
caractersticas dos anims, avaliando principalmente aqueles produzidos para a televiso.
Em sua tentativa de categorizar os anims, Napier (2005:XII) declara que sempre haver
excees para qualquer a afirmao que venha a fazer. Isso devido natureza plural dessa
arte em constante ebulio impossibilitando-nos de acompanh-la em sua totalidade. Por
isso, ao invs de tentar categoriz-los, decidimos por uma abordagem descritiva. A
relevncia em montar tal cenrio est no fato de que a popularidade dos anims da TV
indica que eles tm um forte impacto na cultura contempornea, visto que so assistos por
um grande nmero de pessoas.
A Japan External Trade Organization divulgou que sessenta por cento de todos os
desenhos animados para a televiso ao redor do mundo constitudo de anims.
Quais os valores investidos nesses anims? Quo forte pode ser sua influncia sobre
os japoneses e pessoas de outras culturas?
No terceiro captulo, podemos acompanhar o surgimento de uma franquia (Matrix)
de impacto na cultura cinematogrfica hollywoodyana resultante da influncia dessa cultura
pop japonesa. Aqui desenvolvemos nossa anlise no campo da scio semitica.
quando nos aprofundamos em busca de apreender tais investimentos em recursos
tecnolgicos audiovisuais, primazia artstica, e em como se d a manifestao da volio do
destinador ao destinatrio, programando-o a um dever e querer ser.
Iniciamos o captulo descrevendo brevemente Matrix e Animatrix por serem obras
originrias da atuao dos anims, mangs e games. Oito das nove obras de Animatrix so
descritas apenas nos aspectos relevantes para as questes levantadas durante a pesquisa e
para o entendimento do desenho selecionado para a anlise semitica, o Program.
A anlise de Program nos permite evidenciar a determinao axiolgica, o conflito
ideolgico instalado na narrativa entre os temas: hierarquia de comando, amizade, morte,
traio, sexualidade, desenvolvimento do sujeito feminino disposto a superar desafios
sociais, os valores que esse sujeito assume e suas paixes, sustentadas por formaes
ideolgicas histricas e tradicionais. Presenciamos no jogo da intertextualidade um
simulacro da sociedade japonesa. Aprendemos sobre eles e sobre ns mesmos.
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CAPTULO I
I.1. A Arte da Animao, origem e evoluo
A arte da animao tem sua essncia no movimento. Desenhistas e pintores tm se
dedicado representao do movimento desde os tempos mais remotos.
Tentar estabelecer um ponto na linha do tempo capaz de marcar sua origem
histrica algo difcil de ser feito, visto que inmeros fatores contribuem para o
estabelecimento de uma determinada tcnica, seu emprego, atividades associadas, e
impacto numa certa ordem cultural, especialmente no mbito das artes.
A histria da animao est imbricada na histria do cinema. Ao discutir sobre a
origem do cinema, Machado (1997:13-14) suscita a hiptese cientfica plausvel de que
nossos ancestrais se aventuravam em locais inspitos e profundos na escurido das
cavernas para fazer sesses de cinema e assistir a elas. Ele descreve a presena do
movimento nos desenhos pr-histricos:
medida que o observador se locomove nas trevas da caverna, a luz de sua tnue lanterna ilumina e obscurece parte dos desenhos: Algumas linhas se sobressaem, suas cores so realadas pela luz, ao passo que outras desaparecem nas sombras. Ento, possvel perceber que, em determinadas posies, v-se uma determinada configurao do animal representado (por exemplo, um bex com a cabea dirigida para frente), ao passo que, em outras posies, v-se configurao diferente do mesmo animal (por exemplo, o bex em questo vira a cabea para trs, ao perceber a aproximao do homem) e toda a caverna parece se agitar em imagens animadas.
Em busca da iluso do movimento, inmeros dispositivos foram inventados ao
longo da histria, como nos mostra Furniss (2000:13). Ela denomina esses modelos pr-
cinematogrficos de precursores cinemticos. Entre eles esto os slides pintados ou
fotografados dos shows de lanternas mgicas, e outros tipos de entretenimentos que se
tornaram populares desde o incio do sculo XIX.
Vejamos algumas dessas invenes:
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A Lanterna Mgica foi inventada por Athanasius Kircher4 em 1645. Tratava-se de
um dispositivo constitudo por uma caixa com uma fonte de luz (na poca, uma vela) e um
espelho curvo em seu interior; um equipamento simples que possibilitava a projeo de
imagens desenhadas em lminas de vidro. Para tanto, era necessria uma sala escura e uma
superfcie plana (parede) para uma melhor visualizao da projeo. Kircher foi acusado de
bruxaria e, conseqentemente, no pde aprimorar sua inveno.
Mais tarde, o francs Etienne Gaspard Robert, estreou um show chamado
Fantasmagorie em Paris, em 1794, produzido a partir de projees de imagens com a
Lanterna Mgica. Enquanto ele narrava histrias, ocasionalmente projetava os fantasmas
diretamente sobre a audincia.
Em 1877, o professor francs mile Reynaud construiu o praxinoscpio. Tratava-se
de um pequeno recipiente em forma cilndrica onde ele colocava uma tira de papel com
desenhos de bichos e pessoas se movimentando. Ao rodar o recipiente, os desenhos eram
refletidos em fitas transparentes e, assim, eram animados.
Os olhos conseguem registrar at, no mximo, 12 imagens por segundo. Esse
aparelho causava a iluso do movimento criando seqncias com mais imagens do que os
olhos conseguem reter. Esse fenmeno fisiolgico chama-se persistncia retiniana.
Conforme o praxinoscpio foi sendo aperfeioado, passou a utilizar jogos de
espelhos para projetar as imagens. No entanto, os desenhos ainda eram repetitivos, pois a
cada volta do cilindro, as cenas eram as mesmas.
Ento, Reynaud inventou o Teatro ptico ao elaborar um sistema em que no havia
reprise das cenas possibilitando contar histrias com cartoon. O Teatro ptico projetava-os
numa tela ou numa parede branca, ao invs de refleti-los em fitas ou num espelho.
Estava inventada uma forma narrativa de desenho animado. Mas somente anos
depois que apareceria a primeira animao feita em tcnica com papel.
O cinematgrafo, dos irmos franceses Auguste e Louis Lumire, era um aparelho
porttil trs em um: mquina de filmar, de revelar e projetar. O cinematgrafo possibilitava
a gravao seqencial de imagens em uma base flmica flexvel. Os irmos Lumire
realizaram uma exibio pblica de filmes no dia 28 de dezembro de 1895, no Salo do
4 Athanasius Kircher (1601-1680): Jesuta, matemtico, fsico, alquimista e inventor alemo nascido em Geisa, estava morando em Roma quando inventou a lanterna mgica.
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Grand Caf de Paris. As apresentaes nos cafs concertos tinham o acompanhamento
musical, em geral, de um pianista. A exposio foi um sucesso e, conseqentemente, nos
prximos vinte anos a produo de filmes se espalhou pela Rssia, Itlia, Alemanha, Japo,
Estados Unidos entre outros.
A Frana liderou a produo de filmes nesse perodo inicial, mas foi nos Estados
Unidos que a arte da animao floresceu.
A palavra animao tem sua origem no verbo latino animare, significa dar vida , e
passou a ser empregada para descrever imagens em movimento no sculo XX.
O primeiro desenho animado em papel, Humorous Phases of Funny Faces, foi
realizado nos Estados Unidos por um artista plstico ingls, o ilustrador James Stuart
Blackton em 1906.
A partir desse momento, foi necessrio conquistar respeito profissional e criar uma
audincia que apreciasse e aceitasse os personagens animados desenhados em papel.
Surgiram, ento, os estdios de animao com a finalidade de produzir animao de forma
rpida e barata, atendendo a prazos e oramentos curtos. Entre eles esto a Paramount
(fundada em 1912), Universal Studios (1912), Warner Brothers (1923), Walt Disney
Company (1923) e Metro Goldwyn Mayer (MGM) (1925).
O talento desses artistas pioneiros propiciou desenvolvimento tcnico e artstico,
bem como a produo em larga escala da animao entre as dcadas de 1910 e 1940,
estabelecendo alguns dos modelos e procedimentos que ainda so utilizados nos dias atuais,
mesmo aps o advento da era digital.
Devido a Primeira e Segunda Guerra Mundial, no houve concorrncia dos
produtores europeus acarretando o favorecimento da emergente indstria cinematogrfica
norte-americana como um todo, estabelecendo hegemonia da produo audiovisual no
ocidente.
Walt Disney foi o responsvel pelas realizaes mais importantes na evoluo do
desenho animado. Ele e seus artistas estabeleceram os conceitos fundamentais da arte da
animao e, com sua habilidade empresarial viabilizou produtos destinados ao consumo de
massa.
Nascido em Chicago em 1901, ele entrou na indstria de animao em parceria com
seu irmo mais velho, Roy Oliver Disney, em 1923.
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Naquela poca, um filme no cinema era precedido por trailers, performances de
artistas ao vivo, noticirios e um desenho animado.
A companhia Disney proporcionou arte da animao melhorias que viabilizaram
almejar o reconhecimento desfrutado pelos filmes de ao.
Walt Disney definiu a animao como iluso da vida, acreditando ser essa uma
condio essencial para cativar a audincia. Como relata Lucena (2005:99), para ele
[Disney], o personagem de animao tinha de atuar, representar convincentemente; parecer
que pensa, respira; convencer-nos de que portador de um esprito.
Em 1928, Disney apresentou o primeiro desenho animado em curta-metragem,
sendo tambm, a primeira animao com trilha sonora, o Steam Boat Willie (Willie o Barco
Vapor), em preto-e-branco, protagonizado pelo ratinho Mickey Mouse.
A trilha sonora uma estreita faixa tica onde so registrados os dados sonoros
contendo a msica, os rudos e os dilogos. Essa banda sonora impressa diretamente na
pelcula cinematogrfica propiciando a projeo das imagens sincronizadas com o som.
Essa simultaneidade entre o som e a imagem, conforme expe Silva (2005:32),
possibilitou exploraes que culminariam em efeitos denominados Mikeymousing, ou seja,
o ato de se pontuar as aes das personagens com os movimentos musicais, bem como
pontuar emoes, intenes, etc. Entre os exemplos que o autor cita com esse efeito, est a
acentuao do movimento e da qualidade de sentido de irritao marcados por instrumentos
de timbre grave da orquestra executando acordes rpidos sincronizados aos passos de uma
personagem (zangada) que desce uma escada.
A prxima realizao da companhia Disney foi o lanamento da primeira animao
colorida Flowers and Trees (rvores e Flores - 1932). Esse foi o primeiro desenho animado
com um ser humano como protagonista. Uma personagem feminina produzida como uma
espcie de laboratrio provendo o aprendizado e a experincia necessria para que os
desenhistas e animadores pudessem prosseguir para a prxima etapa.
Apesar do sucesso do Mickey e os curtas-metragens, Disney concluiu que apenas
filmes e animao poderiam gerar o rendimento necessrio para o crescimento do estdio.
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Na primavera de 1934, Walt Disney decidiu produzir Snow White and the Seven
Dwarfs (Branca de Neve e os Sete Anes), que um conto de fadas dos irmos Grimm5 de
1812.
Quando a imprensa anunciou o que ele pretendia fazer, as pessoas comearam a
dizer que aquilo seria uma loucura, ningum iria ficar sentado durante uma hora e meia
para assistir a um desenho, o pblico logo ficaria cansado e, alm disso, as cores brilhantes
do desenho prejudicariam os olhos das pessoas.
Mais tarde, as manchetes dos jornais anunciaram que Disney estava fazendo
histria.
A Branca de Neve e os Sete Anes tornou-se o primeiro sucesso de bilheteria da era
do som. Foi o primeiro filme a ser lanado internacionalmente, sendo dublado em mais de
vinte lnguas.
Esse filme tem quase uma hora e meia de durao. Para dar movimentos aos
personagens foi feito mais de 100 mil desenhos no decurso de trs anos at a obra ficar
pronta, de 1934 a 1937.
No decorrer da criao de Branca de Neve, curiosamente, nasce um novo modo de
ver o desenho animado associado, conseqentemente, a um novo meio de apreenso tica e
eidtica.
Em entrevista, os participantes da produo de Branca de Neve descrevem
movimentos de personagens no humanos a partir de achatamentos e/ou alongamentos.
Dizem da maneira ldica de criar acidentes ou situaes possveis apenas num mundo
imaginrio, como esmagamentos, ao ponto de espessura de papel, comuns a personagens
como o Pato Donald ou o Pateta, entre tantos outros exemplos.
5 Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) nasceram em Hanau, na Alemanha. Eles foram professores na rea da literatura na Universidade de Berlim, onde moraram at o fim de suas vidas. Os irmos Grimm so conhecidos por buscar relatos em documentos antigos e recolher contos entre a populao alem para preservar as histrias tradicionais do seu povo. Os primeiros contos recolhidos pelos irmos Grimm foram publicados em 1812. A obra chamava-se Histrias das crianas e do lar e apresentava 51 contos. O nmero cresceu com o tempo e acredita-se que os irmos Grimm tenham recolhido e registrado cerca de 200 histrias. Entre elas, esto: O Pequeno Polegar, A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, Joo e Maria e A Gata Borralheira. H mais informaes com foto no Site: http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/916 (Acessado em 08 de fevereiro de 2008)
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Em seguida, eles relatam sua surpresa quando se depararam preocupados com a
Branca de Neve, como se ela fosse uma pessoa de verdade, em uma cena em que ela cai do
alto num buraco, e eles se perguntaram se ela no iria morrer ou se machucar.
H uma mudana de valor tico em relao ao eidos da composio expressiva do
desenho: a partir daqui, o desenho animado no mais exatamente um mundo onde tudo
que a imaginao permitir possvel. Se h uma personagem humana, ento esse mundo
emita a vida nos termos de Walt Disney: a animao torna-se uma iluso da vida.
A construo da personagem Branca de Neve determinou um padro de princesa,
correta e bondosa, que seria seguido nas prximas produes, com a seguinte configurao:
a) fsica: mos e ps pequenos, com movimentos graciosos e delicados;
b) personalidade: educada, meiga, gentil, sorridente, inteligente, prestativa, honesta
e tmida;
Criaram na princesinha, um exemplo de pessoa querida, aceitvel, e admirvel. Esse
ser um modelo usado para a construo das prximas princesas Disney e muitos
personagens japoneses. O tipo de personalidade descrita acima caracteriza o que os
japoneses chamam de pessoa yasashii6. (vide consideraes na pg. 52).
Lucena Jr. (2005:97) afirma que o sculo XX no teria as feies culturais que o
caracterizam sem a influncia do imaginrio mundo de fantasia criado a partir dos desenhos
animados de Walt Disney.
Essa influncia exerceu seu papel na formao do estilo do desenho animado
japons, o anim.
A animao para a televiso adquire uma esttica diferenciada:
Os exibidores dos cinemas compravam os filmes em pacotes contendo curtas-
metragens e desenhos animados. Isso acabou na dcada de 50, quando eles passaram a ter a
opo de comprar os filmes separadamente. Essa mudana afetou o comrcio da animao
e outros curtas-metragens. Por conseguinte, os estdios voltaram seus esforos para a
emergente indstria da televiso.
6 No dicionrio Michaelis (543: 2003), encontramos as possveis tradues para Yasashii: gracioso, delicado, suave, doce, brando, bomdoso, meigo, dcil, afvel, carinhoso, gentil e bondoso. Mas na formao social de um indivduo japons, essa palavra quer dizer muito mais.
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At meados da dcada de 50, todavia, as pessoas ainda duvidavam se a televiso
seria difundida e aceita o suficiente para que fossem feitos grandes investimentos
financeiros nessa rea.
Foi nessa poca, quando os meios produtivos de animao eram financeiramente
inviveis para a televiso, que William Hanna e Joseph Barbera fundaram seu prprio
estdio, Hanna-Barbera, em 1957.
Seus mtodos de produo ficaram conhecidos como animao limitada7, ou seja,
de modo rpido, bsico e sem enfeites, na descrio de Ted Sennet8 em seu livro The Art
of Hanna Barbera. Sennet manifesta a seguinte opinio sobre os desenhos HB:
No so meramente desenhos e croquis. Mesmo brotando da imaginao de ilustradores, animadores, atores e diretores, eles residem em um canto das nossas mentes to reais quanto nossos vizinhos da porta ao lado.
Ao seu ver, no exagero declarar que Bill Hanna e Joe Barbera mudaram para
sempre a face da nossa TV9.
Essa declarao fundamenta-se no que ele descreve como o nascimento de um
mundo divertido de fantasia que, aps tornar-se possvel nas telas de TV, habitou a
imaginao de muitas geraes de crianas desde a dcada de 60 at os dias atuais (Alguns
desses desenhos ainda so transmitidos em canais de televiso como no SBT, por exemplo).
Por outro lado, analisando a atuao da Hanna-Barbera mais objetivamente,
podemos inferir que a empresa realmente contribuiu para determinar qual formato teria a
face da programao animada para a TV.
Os dados levantados por Furniss (2000:144-7) em sua pesquisa, mostram a
influncia da Hanna-Barbera sobre as prticas da animao feitas para a televiso
americana, ao instaurar um sistema de animao limitada compatvel com as necessidades
e interesses dos empresrios do meio televisivo. Outros estdios adotaram esse sistema cujo
alvo principal consistia de programas para crianas e comerciais. Com o tempo, esse passou 7 Animao limitada um modo econmico de produo que pode ocasionar o comprometimento da qualidade da animao. Vide discusso na pg. 37. 8 Essa informao foi retirada da pgina do livro publicada no site http://www.hannabarbera.com.br acessado em 09/02/2008. 9 A Hanna-Barbera criou desenhos memorveis como Tom & Jerry, Os Flinstones, Os Jetsons, Z Colmia, Famlia Adams, Manda-Chuva, Z Buscap, Scooby-doo, entre tantos outros que preenchiam as tardes da programao semanal da televiso nos canais da Record, Bandeirantes, e antes do Jornal Nacional na Globo, nos anos 70.
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a ser um procedimento padro: Os desenhos chamados de made-for-television so
associados a um produto resultante de um sistema de animao limitada.
I.2. A Arte da Animao Japonesa e sua revoluo
Para melhor apreenso da arte da animao japonesa e sua origem, devemos iniciar
nossa investigao pela arte dos quadrinhos japoneses, isto , pelo mang.
Mang
Etimologicamente, Manga uma palavra japonesa utilizada para designar histrias
em quadrinhos em geral. formada por dois ideogramas chineses10, o man , significa
humor ou algo que no srio, e o ga , quer dizer imagem ou desenho.
Aps seu sucesso no exterior, seus admiradores passaram a chamar os quadrinhos
de origem japonesa de mang diferenciando-os dos outros quadrinhos.
O pesquisador de mang Frederik L. Schodt define o mang moderno como uma
fuso do formato ocidental, ou seja, a gramtica do quadrinho moderno que surgiu nos
Estados Unidos, com uma tradio nativa de centenas, talvez milhares de anos de arte para
divertir feita com trao.
Gravett (2006:22) diz que o crtico de quadrinhos Fusanosuke Natsume classificou
algumas dessas artes como pr-mang. A citar, os desenhos em pergaminhos atribudos por
um tempo a um monge budista chamado Toba Sojo (1053-1140). Essas pinturas
humorsticas, conhecidas como Choju Giga11, satirizavam figuras do meio social, com
animais (coelhos, sapos, macacos, raposas, etc.) e pssaros.
10 Os ideogramas chineses (Kanji) foram introduzidos no Japo por volta do sculo III. 11 Choju Giga so caricaturas antigas desenhadas em pinturas de pergaminhos durante a Era Heian (794-1185), atribudas ao monge budista Toba Sojo. A Histria japonesa est dividida em eras: As eras que compreendem a Histria japonesa moderna so: Edo (1603-1867), Meiji (1868-1912), Taisho (1912-1926), Showa (1926-1989), e Heisei (1989-). Para facilitar a leirura daqueles que no estiverem familiarizdos com tais datas, continuaremos a cit-las ao longo do trabalho.
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As histrias am se revelando conforme os rolos de pergaminhos, de at 6 metros de
comprimento, eram desenrolados da direita para a esquerda. Seu contedo narrava lendas,
batalhas e eventos da vida cotidiana.
Mais tarde, a arte ukiyo-e obteve evidncia entre as artes visuais no fim do sculo
XVII.
A palavra ukiyo-e pode ser traduzida como pinturas do mundo flutuante ou
estampa xilogrfica12. Compreendendo uma ampla produo pictrica manifesta,
sobretudo atravs da xilogravura, a arte ukiyo-e possui carter reprodutivo que possibilitou
sua reproduo em grande escala de livros, catlogos, lbuns, cartazes e estampas
independentes, conforme elenca Hashimoto (2002:129).
A autora explica que mesmo sendo uma arte que foi mais difundida como estampa
do que como pintura, seus procedimentos tcnicos ou tpicas no definem ukiyo-e, j que
possvel diferenciar pintura, estampa, sistema artstico familiar, meio tcnico, tpica e
forma no estudo de ukiyo-e. Hashimoto (2002:130) descreve, ainda, um outro aspecto
plural dessa arte afirmando tratar-se de um arte que se deseja refinada, com cdigos e
metforas especficos, que mudam conforme a moda.
No incio, suas manifestaes retratavam assuntos da vida urbana como atores
populares do teatro kabuki, lutas de sum, locais famosos, gueixas, atividades e cenas das
reas bomias e do entretenimento com belas cortess, cenas erticas e etc. Tambm
podemos encontrar, como um dos motivos caractersticos de sua composio, elementos
associados natureza efmera da vida como paisagens podendo estar decoradas por flores
(sakura) das cerejeiras ou mudanas de estao.
Um dos artistas marcantes na arte da xilogravura japonesa foi o Katsushika Hokusai
(1760-1849). Ele era um pintor ukiyo-e, tanto de gravuras monocromticas como
multicoloridas, durante a Era Edo (1603-1868).
Em sua pesquisa, Hashimoto (2002:34-5) lista mais de dez nomes diferentes de uma
lista de sessenta e trs pelos quais Hokusai conhecido. Cada novo nome revela uma
12 Hashimoto (2002:129) relata que a xilogravura j existia no Japo no perodo Muromachi (1391-1573), ligada a imagens budistas de grandes dimenses, geralmente pintadas a mo (hissai-hanga), com pigmentos vermelhos, amarelos, verdes, azuis, de conchas trituradas e aplicao de folhas, e ps de ouro.
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personalidade definida no pincel. Ele tambm produziu trabalhos na arte Shunga13
(pinturas-primavera).
Dentre as pinturas de Katsushika Hokusai h vrias retratando paisagens e a
natureza. Entre seus trabalhos mais importantes est a srie de gravuras Trinta e Seis vistas
do Monte Fuji.
Hokusai cunhou a palavra manga ao nomear sua coleo de desenhos humorsticos
caricatos como Manga Hokusai publicada entre 1814 e 1834.
O pesquisador japons Katayori Mitsugu14 (2005:48) explica que no incio havia
duas palavras que significavam mang:
Uma giga, como em Choju Giga15, e a outra manga, como no Manga Hokusai. Mas os conceitos dos mangs em ambos os casos so bem diferentes dos que temos hoje. Toba Sojo, o autor do Choju Giga, imaginou o giga para ser uma anttese de algo ortodoxo. A palavra mang na frase Manga Hokusai vem da palavra manzen, que significa folhear um livro vagamente ou passar os olhos pelas pginas. H muito tempo atrs, na China, havia um pssaro chamado Mangakucho. Ele tinha pernas longas e comia moluscos do rio. O Hokusai imaginou esse pssaro quando nomeou a sua coleo de desenhos. Ele desenhava rapidamente tantas paisagens quanto possveis, como esse pssaro que apanhava tudo e qualquer coisa vagando no rio. Nem o Toba Sojo, nem o Hokusai empregaram o sentido atual da palavra manga. Quando comecei a desenhar mang, h muito tempo atrs, por volta do comeo da era Showa16, o conceito de manga parecia diferente, tambm, desses dois sentidos. Para ns, o conceito de manga parecia mais prximo de kyoga, desenhos exagerados que eram populares durante a era Edo. Kyoga17 significa literalmente desenhos malucos. Ns imaginvamos manga como algo divertido e leve, como os desenhos do povo na era Edo18.
Gravett (2006:24) faz uma analogia entre as pinturas xilogrficas e o mang
moderno:
13 As gravuras ou pinturas classificadas como shunga so aquelas que retratam mais explicitamente os relacionamentos sexuais da poca 14 Katayori Mitsugu (1921-) um pioneiro nos estudos de mang no Japo. Ao conceder entrevista (supracitada) feita em sua casa em Yokohama, Japo, em agosto de 2004, ele estava com 84 anos, continuando sua pesquisa e a desenhar cartoons polticos. 15 Choju Giga so as pinturas de pergaminhos descritas na nota de rodap na pgina antrerior. 16 Era Showa, de 1926 a 1989. 17 Kyoga um quadrinho com desenhos exagerados que assumiu a tradio do Choju Giga. 18 Essa entrevista foi publicada em ingls e a traduo nossa. (Era Edo de 1603 a 1867).
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As linhas precisas, a composio arrojada e o uso meticuloso de padres delicados e repetitivos, caractersticos de todas essas gravuras tm muita proximidade com o mang, em que o trabalho dinmico com o trao a norma e as texturas so aplicadas em tons chapados e sem modulao. A relao ainda mais clara nos mangs modernos ambientados num passado distante. Nesses casos, os artistas freqentemente fazem referncias conscientes ukiyo-e e outras gravuras. Afinal, dessa forma que a histria retratada.
A animao selecionada para anlise, Program (Um Corao de Soldado), pode ser
inserida no conjunto de casos descrito acima. Mesmo que o autor tenha se referido
especificamente ao mang, o anim da anlise pertence a esse conjunto, visto que: os
produtores do desenho se inspiraram nas pinturas ukiyo-e para compor o ambiente visual da
era feudal japonesa; utilizaram tons chapados, com predominncia do matiz preto; e, enfim,
os formantes eidticos e cromticos da pintura ukiyo-e esto presentes na composio dessa
animao.
Em 1862, Charles Wirgman estreou a revista The Japan Punch, a primeira revista
de humor em estilo ocidental no Japo, inspirada na revista semanal britnica Punch.
Apelidada de punch-e (ou desenhos punch), a revista foi conquistando os artistas japoneses
aos poucos, at ter seu nome alterado para manga em 1890.
No final do sculo XIX, os mangaka (os desenhistas de quadrinhos) passaram a
utilizar tiras de mltiplos quadros inspirados em revistas europias como a Punch britnica,
LAssiette au Beurre e L Rire francesas, Bilderbongen alem e Puck americana.
Podemos considerar, ento, que o mang que temos hoje no resultante apenas da
fuso do formato ocidental com uma tradio nativa japonesa, mas tambm, do xito dos
esforos e dedicao de todos os artistas comprometidos com esse processo.
Passaremos agora para o sculo XX, ps-guerra, dcada de 50, quando estudaremos
as conseqncias da atuao de um artista que condiz com a descrio supracitada: um
mdico, diante de seu pas em reconstruo, que ajudou a formar a fbrica de sonhos da
indstria da animao existente hoje no Japo, com o seguinte pensamento:
Osamu Tezuka: Por que os filmes americanos so to diferentes dos japoneses?
Como posso desenhar quadrinhos que faam as pessoas rir, chorar e se emocionar como
aquele filme?
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Aps essa cotao, Gravett (2006:30) afirma que foi esse salto de imaginao que
permitiu a Tezuka transformar os quadrinhos japoneses.
Anim
A princpio, anime o termo genrico que designa desenho animado no idioma
japons. Ele deriva do vocbulo animation (do ingls, animao). Aps o sucesso da
animao japonesa, seus admiradores passaram a cham-la de anim, distinguindo-a das
outras animaes.
Vimos anteriormente que a animao no ocidente teve sua origem no cinema e
depois passou a ser produzido para a televiso. O mesmo aconteceu com a animao
japonesa.
Os desenhos animados chegaram do ocidente ao Japo em 1909, trazendo
inspirao para a produo cinematogrfica animada.
O diretor Kenzo Masaoka recebeu o ttulo de pai da animao pelo longa-metragem
Kumo to Churippu (A Aranha e a Tulipa), pronto em 1943.
As primeiras animaes foram produzidas em carter experimental, e mais tarde
passaram a ser realizadas em estdios vinculados s produtoras de cinema em Tquio e
Kyoto.
Aps o fim da Segunda Guerra, a animao tornou-se financeiramente invivel,
principalmente por precisar importar sua matria prima, como celulides, filmes e tintas.
No entanto, essa atividade retomou seu curso a partir de 1958, com o primeiro longa-
metragem colorido Hakuja Den (A Lenda da Serpente Branca) do diretor Taiji Yabushita.
O sucesso dessa obra incentivou o progresso de sua produtora, Toei Animation, que
veio a tornar-se a maior produtora de animao atualmente.
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O Anim e o Mang aps Osamu Tezuka
Osamu Tezuka (1928-1989) fundou o estilo do trao anim ao escrever e desenhar o
primeiro mang narrativo Jungle Taitei (O imperador da Selva), em 1950. E por isso, ele
reverenciado no Japo com o ttulo de manga no kamisama (deus dos quadrinhos).
Sato (2005:33) define Osamu Tezuka como um divisor de guas em duas mdias
distintas: nos quadrinhos e na animao. Um dos poucos a ter conseguido equilibrar com
sucesso o compromisso comercial e a produo artstica em ambas as reas. Sua afirmao
baseia-se no fato de que durante quarenta anos de carreira, conforme elenca Gravett
(2006:28), Tezuka escreveu e desenhou 150 mil pginas de quadrinhos, distribudas em 600
ttulos de mang e 60 trabalhos de animao.
Tezuka abriu sua prpria empresa de animao, a Mushi Productions em 1961, e
estreou o primeiro seriado em desenho animado com trinta minutos de durao na TV
japonesa Tetsuwan Atom (Astro Boy) em 1963. Quando Astro Boy foi animado, ele j era
um mang popular, portanto, o investimento feito para essa animao, teve um risco
calculado.
Em 1965, Jungle Taitei (Kimba, o Leo Branco nome dado srie para a
transmisso no Brasil) foi a primeira srie de animao colorida no Japo. Nesse mesmo
ano, Kimba, o Leo Branco e Astro Boy foram vendidos para o exterior, fazendo de Tezuka
o primeiro produtor de sries a exportar anims.
Gravett (2006:34) comenta que o sucesso nacional e internacional de Tezuka
estabeleceu um relacionamento quase simbitico entre mang e anim que tem sustentado
as duas indstrias desde ento. Essa afirmao justifica-se pelo fato de que uma quantidade
considervel de anims produzida a partir de mangs j consagrados pelo pblico.
Para animar Astro Boy, Tezuka levantou patrocnio com a emissora da TV e com as
empresas fabricantes de produtos licenciados de seus personagens.
Wong (2006:25-6) reflete sobre as conseqncias de uma indstria da animao
apoiada a um sistema de mercado sob o ponto de vista de Jiwon Ahn: o anim pode ser
mais bem compreendido dentro da rede de influncias organizadas em acordo para o
sucesso de uma estratgia mix mdia.
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Essa discuo trata do planejamento prvio feito entre vrios segmentos comerciais,
para o lanamento de diversos produtos junto estria de um novo anim: o estdio de
animao, a rede emissora de televiso, fabricantes licenciados, agncias publicitrias,
distribuidores, indstria dos videogames, fonogrfica, etc.
No entanto, h produes independentes da indstria do mang, como aquelas feitas
pelo Estdio Ghibili, entre outras produzidas diretamente para o cinema ou OVAs
(Original Vdeo Animation). Algumas comeam como anim e tornam-se mang depois
(por exemplo, Nausica do Vale dos Ventos e A Viagem de Chihito), e h aquelas que so
provenientes dos jogos de videogame, como Pokemon e Ragnarok, por exemplo.
Sato (2007:35) prope que todo esse esforo concentrado para envolver
emocionalmente os espectadores e satisfazer-lhes o mpeto consumista o que garante a
viabilidade comercial do sistema.
Tezuka tambm estreou a narrativa longa nos mangs, composta por 200 pginas.
Isso acarretou a necessidade de segmentar as histrias em vrios captulos, do mesmo modo
que as novelas transmitidas pela TV. Alguns pesquisadores acreditam ser este um dos
fatores determinantes da afinidade dos brasileiros com os mangs e anims.
Essa era uma poca em que a populao necessitava de entretenimento, quando a
produo cinematogrfica japonesa estava prejudicada no perodo ps-guerra.
Frederik L. Schodt19 relata que Osamu Tezuka fez experincias com o formato dos
quadrinhos americanos e desenvolveu um estilo ainda mais visual cativando e empolgando
o pblico. Susan J. Napier descreve esse estilo ainda mais visual explicando que a ao
vazava para os quadrinhos adjacentes, impregnando-os e possibilitando aos olhos do leitor
mover-se de modo mais dinmico, mais rpido.
Ao mesmo tempo, a utilizao de ngulos de cmera provocava apelo
dramaticidade das relaes sociais, e intensificavam a proxmica entre o leitor e o universo
psicolgico das personagens atravs da nfase em gestos ou olhares.
A principal influncia narrativa de Tezuka, ento, veio do cinema. Ele buscava
trazer para os quadrinhos efeitos relativos s alteraes de ngulos de cmera, o
19 As declaraes de Frederik L. Schodt e Susan Napier foram dadas em entrevista para o making of do DVD Animatrix. Ambos so pesquisadores de mang e anim nos EUA.
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movimento e a emoo de Hollywood. Ortiz (2000:165) observa que isto significou, da
parte dos desenhistas, uma busca pelo aperfeioamento de tcnicas cinematogrficas
adaptadas ao papel. E continua o autor afirmando que, a partir desse momento, as histrias
japonesas utilizam um conjunto de tcnicas, filmagens com trilho, para dar a impresso de
movimento, planos longos e ngulos diferenciados das cmeras.
Por outro lado, Barbosa (2005:109) postula sobre essa origem que os quadrinhos
japoneses surgem no como uma cpia do trabalho dos norte-americanos ou ingleses, os
primeiros a levar os conceitos de quadrinhos e humor grfico ao Japo, mas como um
reflexo da prpria forma japonesa de perceber o mundo.
Wong (2006:27) explica que para os leitores japoneses, os quadrinhos estrangeiros
representavam uma cultura extica. Os artistas aprendiam com o formato dos quadrinhos
estrangeiros e os adaptavam para os leitores. Wong cita uma observao de Schodt: O
relativo isolamento cultural do Japo sempre permitiu que ele fosse mais criterioso sobre
influncias estrangeiras e ento adapt-las ao seu prprio gosto.
Corroborando e argumentando as citaes acima, Kusahara (2003:243-4) relata em
sua publicao as possveis razes para o segredo da popularidade universal dos mangs e
anims; ela diz: Se verdade que os temas com os quais eles lidam so
essencialmente universais e essa uma das razes por que seus trabalhos so altamente apreciados internacionalmente -, muitas vezes o enfoque que esses artistas adotam mostra certas caractersticas nicas em que seus colegas ocidentais no teriam pensado. a fuso de arte, entretenimento e comercializao. Eles trabalham com a idia da identidade; a originalidade e a subjetividade em suas obras de arte tm uma forte relao com o contexto cultural. A ausncia de um limite claro entre arte e entretenimento, ou arte e aplicao na arte tradicional japonesa, desempenhou um papel positivo na produo de produtos inovadores divertidos e artsticos.
Num certo sentido, a cultura das mdias japonesa tem uma forte natureza ps-moderna, refletindo sua histria, na qual os japoneses introduziram diferentes elementos culturais de vrios pases, sempre mixando-os e reinventando-os dentro da estrutura tradicional.
Ainda sobre a qualidade das produes japonesas, Ortiz (2000:166) observa que no
Japo, mang e anim so gneros artisticamente consagrados, e isso faz com que autores
talentosos possam atuar enquanto profissionais nas reas do cinema e da televiso.
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F confesso de Walt Disney, Tezuka afirmou ter produzido uma de suas obras
primas Ribbon no Kishi (A Princesa e o Cavaleiro mang de 1953, animado para a
televiso em 1976), inspirado nas produes Disney Branca de Neve e os Sete Anes e A
Bela Adormecida. Esse mang estreou o gnero dirigido ao pblico feminino. Candy
Candy, a personagem na abertura desse trabalho (pg. 07), faz parte desse gnero chamado
shjo monogatari (histrias para meninas).
Tezuka tinha um elenco de personagens que ele escalava para histrias e papis
diferentes, com pequenas alteraes em seu visual, como acontecem com os atores no
cinema. Essa estratgia revela dois objetivos: Seu propsito pragmtico por no ter que
despender tempo e imaginao criando tantos personagens quanto sua vasta obra exigiria. E
atuar com o efeito de proxmica envolvendo os leitores e espectadores com personagens j
familiares e populares, ao invs de arriscar conquist-los com personagens desconhecidos
ao custo de uma possvel rejeio.
Uma das caractersticas dos mangs de Tezuka que persiste at hoje o dilogo
informal e pessoal do mangaka (quadrinista) com seu leitor.
Alguns mangaka reservam colunas ao longo do encadernado onde eles abordam
assuntos diversos como, por exemplo: Em Fushigi Ygi20, a Y Watase relata sua viagem
s runas no Parque Nacional de Nara, ao colher dados para escrever sobre os quatro deuses
sagrados em sua histria. A Masami Tsuda, de Kareshi Kanojo (Kare Kano as razes dele,
os motivos dela) se presentifica no mang atravs de uma bonequinha de traos simples,
deixa o leitor par de sua vida pessoal, das fontes de pesquisas quanto msica, moda,
decorao, arquitetura, hbitos e dados culturais. J Nobuhiro Watsuke, ao publicar Ruroni
Kenshin21 reservou pginas inteiras em suas publicaes onde ele esclarece quais pontos da
narrativa so fico ou fatos da Histria. Quais registros ele consultou, incluindo museus e
monumentos que visitou, para obter imagens dos personagens histricos.
Gravett (2006:28, 34) refere-se ao sucesso de Tezuka como resultante, acima de
tudo, sua nfase na necessidade de uma histria envolvente, sem medo de confrontar as
questes humanas bsicas: identidade, perda, morte e justia. Ele Cita uma frase de Tezuka:
20 Uma possvel traduo para Fushigi Ygi Jogo Misterioso. No entanto, Fushigi Ygi foi publicado e transmitido no Brasil com o nome original. 21 A traduo de Ruroni Kenshin seria O Andarilho Kenshin, mas foi publicado e transmitido no Brasil como Samurai X.
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Uma histria, assim como uma rvore, precisa de razes fortes para ser envolvente. Se as razes forem fracas, nenhuma quantidade de detalhes bonitos ser suficiente para mant-la de p.
Tendo vivenciado tempos difceis, suas obras denunciam a arrogncia, intolerncia,
o preconceito, o descaso com a vida humana e pregam a paz, o amor e o respeito a todas as
criaturas.
Charles Solomon22 atesta que com o crescimento da economia e a expresso desse
mercado, eles foram para todo lado numa variedade de estilos grficos, no uso da cor,
produo de longas, de filmes lanados para vdeo (OVAs) e projetos para a TV.
Produziram um volume extraordinrio de obras nos anos 70, 80 e 90.
Com isso, o Japo constitui o maior mercado de histrias em quadrinhos do mundo
e tem o maior centro de produo de desenhos animados do mundo situado em Tkio.
No Japo, anims e mangs, conforme relata Borges (2005:20), constituem um
grande fenmeno de comunicao japons, ultrapassando as barreiras de mero
entretenimento e voltando-se como uma forma de aprendizagem.
Em 2002, o Ministrio da Cultura Japons implantou a matria Manga Visual Pop
Culture como atividade curricular de educao artstica das 1 e 2 sries ginasiais das
escolas pblicas.
Na cultura ocidental ainda prevalece o pensamento de que histrias em quadrinhos e
desenhos animados so coisas para crianas. No entanto, os anims e os mangs abordam
temas para todos os gostos e todas as idades e vm atuando para a ruptura desta forma de
pensar.
22 Charles Solomon faz essa declarao em entrevista para o making of de Animatrix.
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CAPTULO II
O Universo Anim
Neste captulo, buscaremos os passos que construram e definiram as caractersticas
dos anims, descrevendo-os de modo geral abordando sua esttica, gneros, ideologias e
valores.
II.1. A concepo dos personagens
Osamu Tezuka23 cresceu na cidade de Takarazuka, famoso centro turstico com
grande atividade cultural incluindo a pera Takarazuka fundada em 1914. Esse um teatro
com o elenco formado apenas por mulheres, com todo um sistema hierrquico onde aquelas
que representam papel masculino obtm mais privilgios. Sato (2007:129) relata que
Tezuka inspirou-se na aparncia das atrizes, na maquiagem acentuada que usavam para
destacar os olhos, para criar o estilo geral dos desenhos no mang e no anim: olhos
grandes e brilhantes, corpos longilneos e cabelos espetados. O modo de desenhar
personagens masculinos com caractersticas andrginas tambm espelha esse teatro.
Alm do padro geral anim descrito, esse modelo permite o colorido dos olhos
com cores como vermelho, amarelo, lils, bem como cabelos azuis, verdes, dependendo
apenas do arbtrio e da imaginao do artista criador.
Cada desenhista tem a liberdade de adaptar o anim ao seu prprio estilo variando,
assim, de um artista para outro e tornando-se a sua marca. Como conseqncia, para
aqueles acostumados aos desenhos japoneses, possvel identificar os autores pelo estilo de
23 H um museu dedicado ao Osamu Tezuka na cidade de Takarazuka. Trata-se de um prdio de trs andares com 1.400m de rea com atraes como exposies, biblioteca, sala de projeo e at uma fbrica de animao. O museu possui um acervo de revistas em quadrinhos e anims, que podem ser lidos e assistidos pelos visitantes vontade.
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seus traos, como os de Hayao Miyasaki24, CLAMP25, Akira Toriyama26, Y Watase27, os
desenhistas que trabalharam em Animatrix, entre outros.
Na arte visual japonesa prevalece o padro que dita uma esttica com o desenho o
mais limpo possvel (sem traos extras) para a representao de pessoas jovens, visto que as
linhas aumentam conforme a idade avana. Nos mangs e anims as linhas extras
representam idade, sujeira ou ferimento. Acredita-se que as caractersticas de desenhos
estilizados por poucas linhas compondo personagens magros e longos vm a ser uma
herana da arte visual chinesa.
As artes visuais da era Edo (1603 1867) j apresentavam uma esttica com um
sistema de perspectiva baseado no apenas no perto e longe, mas tambm no que
importante. Isto , os elementos mais importantes da gravura eram desenhados em
propores maiores. Esse raciocnio pode ter contribudo para o aumento dos olhos dos
personagens, atribuindo importncia a certos traos da personalidade, pensamentos ou
sentimentos deles.
Um exemplo da atribuio de caractersticas especificas atravs da esttica dos
olhos a passagem do tempo: Alguns autores, como as meninas do grupo CLAMP,
utilizam olhos enormes e redondos para as crianas; esses olhos continuam grandes, mas
no redondos na adolescncia; j na idade adulta, os olhos ficam menores. Isso pode ser
visto nesse trabalho comparando as figuras da Sakura, criana (pg. 45) e do Kamui,
adolescente (pg.46).
Outras produes distinguem os personagens principais com olhos grandes e
brilhantes, s vezes com traado rebuscado, dos coadjuvantes com olhos simples e rpidos
de desenhar.
No entanto, assim como o valor semntico de uma palavra depende do contexto em
que est inserida, tambm dependemos de um contexto para que possamos identificar qual
papel narrativo um personagem desempenha, independentemente de sua tessitura visual.
24 Diretor de animao do prprio Estdio Ghibili criou os longas-metragens A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado que j estiveram em cartaz nos cinemas brasileiros. 25 O grupo CLAMP responsvel pelo seriado Sakura Card Captor, transmitido na R. Globo e no Cartoon Network. 26 Akira Toriyama o autor da saga Dragon Ball. 27 Y Watase autora de Fushigi Yuugi.
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Outra caracterstica do anim a produo de desenhos em estilo kawaii, ou seja,
meigos, fofinhos e bonitinhos, com olhos gigantes e brilhantes, cores fortes e contrastantes,
com personagens barulhentos para as crianas menores. Um exemplo transmitido por
emissoras brasileiras Hantaro28.
As produes tendo os adultos como pblico alvo tm traos menos estilizados no
sentido kawaii, e mais prximos do real. As produes para o cinema so geralmente assim.
Acima esto os dois extremos [verso kawaii para crianas e mais realista para
adultos] quando tentamos descrever a expressividade plstica do anim. Porm, mais uma
vez, importante considerar a pluralidade dessa forma de arte. H escapes dos padres a
servio da renovao e da novidade.
O conceito de iluso da vida de Disney impelia os desenhistas a inserir
caractersticas de realidade nos personagens. O anim vai levar esse conceito a srio.
Os mangs e anims tm o fluxo narrativo de suas histrias alongados em vrios
captulos ou episdios. Essa caracterstica possibilita agregar descries psicolgicas
profundas e enfatizar aspectos sutis da narrativa. H um crescimento psicolgico,
amadurecimento dos personagens conforme o desenrolar da histria.
Cada personalidade traz um conjunto de valores bem construdos. Alguns
personagens so perfeitos, outros tm defeitos ou hbitos estranhos29. Curiosamente, os
amigos desses seres exticos no levam suas diferenas em conta. Suas reaes
demonstram desaprovao, mas tambm, respeito pelo jeito de ser do outro. No h
discriminao por esse tipo de diferena.
Mesmo quando esses tm visual irreal (olhos lils, sem pupilas, cabelos azuis,
corpos exageradamente alongados), e vivem em mundos que no so o nosso, como
acontece em Dragon Ball, Pokemon, Naruto, nos identificamos com eles porque todos tm
objetivos, ambio, esperana, sonhos e garra para lutar por eles.
28 Hantaro um desenho cujos personagens principais so hamsteres fofinhos e inteligentes. 29 O Miroki (InuYasha) um monge pervertido e ladro que pede em casamento toda moa bonita que acaba de conhecer. O Yamazaki (Sakura Card Captors) mentiroso e a Sakura est sempre atrasada. O Hotohori (Fushigi Yuugi) narcisista, a Miaka gulosa e o Tamahome mercenrio. A Serena (Sailor Moon) gulosa, chorona e vai mal na escola. O Broki (Pokemon) se apaixona por todas as garotas bonitas. A Miasawa (Karekano) egosta, ambiciosa e o Arima esconde um lado sombrio em sua personalidade. O Mestre Kami (Dragon Ball) e o sensei do Naruto, o Jiraiya so pervertidos, e etc.
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Atravs da construo dos personagens desde a infncia, o enunciador prov meios
para que o enunciatrio acompanhe a profundidade dos fatos e a intensidade das reaes
deles na trama. Em alguns casos, os desdobramentos do enredo revelam o vilo como uma
pessoa igual ao heri da histria, com coragem e determinao, mas cujos acontecimentos
da vida o levaram para caminhos diversos, tornando seu ponto de vista diferente, at
mesmo distorcido. Do ponto de vista dele, ele tem razo para as atitudes que est tomando.
Na verdade, a palavra inimigo define melhor o vilo do anim.
Os personagens raramente cantam e danam, por isso no comum haver musicais
nos anims como os desenhos americanos.
Assuntos abordados
A animao americana feita dentro de limites estipulados por censura para certos
tipos de violncia, relacionamentos, atividade sexual, ou ainda, certos contedos
intelectuais. No Japo, assim como a literatura e filmes, os anims e mangs variam em
gneros (comdia, drama, fico cientfica, terror, e etc.), alm de serem segregados em
faixa etria. As possibilidades so infinitas.
Entre essas possibilidades podemos citar temas relacionados a assuntos em
evidncia no mundo contemporneo: globalizao, preservao do meio ambiente, avano
tecnolgico. Histrias baseadas em lendas japonesas, crenas populares e nos clssicos
contos orientais. Temas histricos: revolues, guerras, misria humana. Viagens espaciais
ou a outras dimenses. Questes pacifistas, ecolgicas, filosficas, antolgicas, ticas, etc.
O enunciatrio lanado a um mundo fantstico do imaginrio onde aspectos
sociais, emocionais e comportamentais das pessoas so refletidos: as relaes afetivas e
profissionais, problemas sociais como o desemprego, moradores de rua, bullying, vcios,
violncia, preconceito, descaso com os idosos, e etc.
As histrias tambm so ambientadas em locais comuns como escolas, ruas,
ambientes de trabalhos, retratando hbitos corriqueiros das pessoas como levantar cedo, ir
ao trabalho, adormecer em trens e metrs, estudar, etc.
Os anims, em geral, apresentam carter apelativo para o emocional. Eles possuem
trilha sonora bem marcada para cada ocasio da histria. Mesmo as produes para a
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televiso tm trilhas musicais elaboradas a ponto de levar os fs, incluindo aqueles que no
falam japons, a cant-las em karaokes e consumir os CDs musicais, que podem ser vrios
do mesmo desenho.
Sato (2007:38-9) constata uma curiosa distoro: Intrpretes e bandas japonesas
que gravam msicas de abertura e encerramento de anims, como Hironobu Kageyama
(Dragon Ball Z) e X Japan (X The Movie), acabam sendo mais conhecidos no ocidente que
astros pop no Japo. Isso acontece por que o anim o principal meio de divulgao da
msica pop japonesa no exterior.
As composies musicais atuam efetivamente na construo de clima de vitrias,
situaes de dificuldades, derrotas e mortes que afetam diretamente os personagens
principais da histria...Sim, os protagonistas tambm morrem. H toda uma dramaticidade
em torno da morte do personagem principal para que seja entendido que ele morreu com
dignidade e por motivos nobres. Com direito a funeral, homenagens em pelo menos um
episdio inteiro de melancolia. E ento, sem mais nem menos em algumas histrias esse
ser retorna vida com alguma pendncia ou licena temporria para resolver assuntos no
terminados. Dragon Ball Z, de Akira Toriama (1989), um exemplo tpico, e em Yu Yu
Hakusho, de Yoshihiro Togashi (1989), o personagem principal morre logo no primeiro
episdio.
Como o anim lida com questes problemticas da vida, comum, em muitas
histrias, os personagens serem massacrados, judiados, machucados, desacreditados, e s
vezes at humilhados e aqui est uma marca comum na personalidade desses seres
imaginados: eles no desistem. No do as costas aos seus sonhos e ideais mesmo estando
beira da morte. Persistncia, garra, f em si mesmo, esto presentes em todos os tipos mais
variados de personagens, mesmo que no tenham iniciado a histria assim.
Essa caracterstica dos mangs e anims surgiu na dcada de setenta com um gnero
chamado de nekketsu. Significa sangue quente, no sentido de determinao apaixonada e
entendido como apologia ao esforo. O mang Ashita no Joe, de Tetsuya Chiba (1968), fez
tanto sucesso no Japo com esse gnero, que essa caracterstica passou a fazer parte de
quase todos os outros gneros a partir de ento.
Os anims distinguem-se no apenas no gnero, mas tambm no tipo de produo:
para a TV, para vdeo OVA (Original Vdeo Animation) e para o Cinema.
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As produes para a TV so mais econmicas em termos de recursos visuais, as do
cinema so as mais caras e elaboradas. Entre esses dois extremos est uma gama variada de
produes que so os OVAs. Eles passaram a ser comercializados a partir do advento do
vdeo cassete na dcada de 80. Mais tarde vieram as tecnologias a laser, discos laseres do
tamanho de eleps, e mesmo agora com os DVDs, eles continuam sendo chamados de
OVAs, pois a palavra refere-se mais ao estilo da animao do que a sua veiculao
miditica.
As produes cinematogrficas so, por vezes, extenses de seriados de anims
consagrados pelo pblico. Podemos citar dos seguintes casos: Sakura Card Captors, Full
Metal Alchemist, InuYasha, Dragon Ball, Cavaleiros do Zodaco, Pokemon, Neo Gnesis
Evangelion, Sailor Moon, Patrulha Estelar, etc.
Teremos uma idia do potencial das produes cinematogrficas no captulo III.
Devemos destacar as produes do estdio Ghibili dirigido por Hayao Miyazaki30
que receberam premiaes por sua primazia artstica, trazendo, ora mundos imaginrios
visualmente belos e complexos, ora a realidade das crianas que sofreram os horrores da
Segunda Guerra; em geral, suas histrias trazem mensagens pacifistas e ecolgicas.
Os desenhos americanos tm os sons das falas gravados primeiro e depois feita a
animao. No Japo, esse processo feito ao contrrio. Depois dos desenhos prontos so
feitas as dublagens. O estdio Ghibili no apenas tem seu espao para as dublagens como
tambm mantem um anfiteatro com acstica preparada para gravar a trilha sonora dos
desenhos por um maestro e sua orchestra executando a msica assistindo ao desenho para a
sincronizao.
Alm das premiaes para os desenhos, os japoneses costumam premiar as
inovaes tcnicas que permitiram desenvolver os processos de produo.
O campo de anlise das animaes para cinema muito rico e vasto; porm,
neste captulo, nos ateremos nos anims para a televiso.
30 Sen to Chihiro (A Viagem de Chihiro), Kaze no Tani no Naushika (Nausicaa do Vale dos Ventos), Hotaru no Haka (O Tmulo dos Vagalumes), Tonari no Totoro (Meu vizinho Totor), Hauru no Ugoku Shiro (O Castelo Animado), Mononoke Hime (A Princesa Mononoke), etc...
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II.2. Anims produzidos para a TV
A pesquisa desenvolvida por Furniss (1998:135) quanto esttica da animao pode
nos ajudar a definir a animao limitada e a animao perfeita31. A autora explica que a
animao bidimensional pode ser descrita como oscilando entre dois plos estticos: full
animation e limited animation. E continua a autora argumentando que full e limited
animation so duas tendncias estilsticas que alcanam resultados estticos diferentes, com
nenhuma sendo inerentemente agradvel nem repelente, mas as duas estando sujeitas a
aplicaes criativas ou sem arrojo.
Esses termos no se aplicam a outras formas de animao que no sejam
bidimensionais, como stop motion ou tridimensionais.
Furniss (1998:135) enumera quatro critrios que possibilitam comparar os dois
estilos de animao: o movimento das imagens, a metamorfose das imagens, o nmero de
imagens, e o controle dos componentes udios e visuais.
Quando uma obra descrita como animao perfeita, em termos estilsticos,
significa que nenhum desenho ou cenrio foi repetido, que foi produzido um grande
nmero de desenhos para garantir a qualidade do movimento constante e da metamorfose
das imagens. Assim, geralmente, so feitas as animaes para o cinema.
Se colocarmos os dois estilos de animao em uma linha, os critrios considerados
como animao perfeita, acima, esto acumulados em um dos extremos. Na outra
extremidade, encontramos um oposto constituindo a animao limitada com as seguintes
caractersticas: as imagens so reaproveitadas em seqncias definidas como ciclos, os
movimentos so descontnuos e h nfase em dilogos com imagem parada.
Para aqueles que conheceram os desenhos da HannaBarbera fcil lembrar que
cada um deles possua um cenrio especfico, denunciando seu uso cclico. Era possvel ver
a emenda na parte do corpo do personagem que estava sendo animada.
31 Em ingls, os nomes so limited animation e full animation. Furniss (1998:138) contesta o emprego da palavra limited para designar um estilo de animao, pois, segundo a autora, a palavra limited implica estar faltando algo. Ela argumenta que essas so caractersticas quantitativas, mas que adquiriram conotao enganosa como qualitativas. Imagino se ela sabe que a full animation foi traduzida para o portugus como animao perfeita, complicando ainda mais o sentido que motiva a exaltao de uma e crtica da outra.
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A produo de anim para a TV surgir como animao limitada, conforme
descrito acima, e esse sistema de baixo custo32 vai adquirir caractersticas novas graas
herana cultural japonesa.
Os anims da TV so marcados em geral pela economia visual, principalmente no
tocante animao (movimentao) em si. Os movimentos so quebrados e so utilizados
truques de movimentao de cmera, enquanto personagens pensam o que vo fazer.
Nesse caso, dada a voz do personagem para podermos acompanhar seu raciocnio,
enquanto a cmera move-se lentamente mostrando o cenrio, geralmente trabalhado em
detalhes, cores e elementos de cena, e situando os personagens topologicamente, seguidos
de trilha musical.
Em algumas animaes, eles nem sequer piscam, mesmo quando a cmera d um
close up para efeito de proxmica do espectador em relao ao drama do personagem,
desnudando assim, seus pensamentos e sentimentos atravs das expresses faciais. Por que
isso acontece?
Quanto mais desenhos so utilizados por segundo, mais perfeita33 se torna a
animao. Por isso, a partir das experincias de Tezuka para reproduzir o mang no sistema
de desenho animado, os profissionais da rea da animao japonesa inventaram vrias
maneiras de limitar o tempo em que a animao perfeita necessria, baixando o custo da
produo. Um bom exemplo para ilustrar essa soluo o seriado Uchsenkan Yamato 34
(transmitido pela Rede Manchete, com o nome Patrulha Estelar, na dcada de 80). Para a
produo do Yamato, segundo Gilles Poitras, foram feitos desenhos grandes e longos os
quais a cmera filmava percorrendo-os e criando movimento sem precisar de vrias
transparncias pintadas.
Frederik L. Schodt expe que algumas vezes o desenho parece um mang, o quadro
est parado e os personagens no se movem de modo contnuo como num desenho da
Disney.
32 Iniciamos essa discusso quando abordamos as produes HannaBarbera na pgina 20. 33 Continuamos usando a palavra perfeita em itlico para ressaltar nossa nfase no sentido estilstico da palavra, discutidos nesse trabalho, e no com conotao de primor tcnico ou artstico. 34 Uchyusenkan Yamato foi dirigido por Reiji Matsumoto. O seriado foi produzido para a TV em 1974 e teve uma compilao de seus episdios levada ao cinema no Japo em 1977.
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Em Kareshi kanoj no jij35, (1998), de Masami Tsuda, produzido pelo estdio
Gainax, por exemplo, tm-se literalmente enquadramentos das pginas do mang, ora
estticos enquanto ouvimos uma narrao, ora com movimentao (apenas) de cmera.
Mesmo nas produes mais recentes, esses efeitos ainda so utilizados. comum
ouvirmos pessoas acostumadas a outras produes dizerem que o desenho japons
parado. Charles Solomon diz que os japoneses exploram as melhores poses, nos melhores
ngulos dos personagens, usam as falas, montagem e cenrios mais do que um diretor
americano. E Frederik L. Schodt corrobora alegando maior nfase em closes nos rostos, em
imagens congeladas, mostrando os olhos, a emoo.
Consideramos um bom exemplo de produo recente e de baixo custo Tsubasa
Chronicle (2003) do grupo CLAMP: O estdio construiu cenas de batalhas com
personagens imveis, supostamente lutando, onde a animao feita pelo movimento de
cmera panormica sobre um desenho longo e a dinmica da luta efetivada apenas pelos
efeitos de sonoplastia (guerreiros gritando e armas tilintando (espadas e lanas)) com uma
trilha sonora vibrante, forte e marcada. Outros desenhos mais antigos, como Records of
Lodoss War (Yoshihiro Takamoto,1998) j apresentavam esse tipo de construo para
cenas de batalhas.
A esse respeito, os animadores japoneses argumentam que ns, ocidentais,
valorizamos mais a expresso visual do que a histria em si; enquanto para os japoneses, a
qualidade da histria tem peso preferencial maior em relao ao texto visual. O diretor de
animao Peter Chung argumenta que a arte ocidental quer criar uma iluso da natureza,
enquanto a pintura tradicional oriental valoriza mais o gesto do pintor. Ele diz que encara
cada desenho num filme de animao quase como as pinceladas da pintura.
Os anims tm seu prprio tempo para a ao:
Anims com lutas marciais: Os oponentes ficam imveis durante um certo tempo.
Enquanto isso, medem e estudam um ao outro, tentando prever o movimento alheio para
escolher as prprias estratgias de batalha. Para os adversrios, concentrao primordial
35 Kareshi kanoj no jij conhecido pelos fs como KareKano, e teve seu mang publicado no Brasil com o nome KareKano, As razes dele, os motivos dela.
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nesse momento. Eles so acompanhados por movimentos de cmeras e trilha sonora, que
constroem uma ambientao de tenso.
Anims com transformaes: durante uma situao em que os personagens precisam
transformar-se em heris ou heronas, eles o fazem durante um tempo que parece destacado
do tempo contnuo da realidade em que esto inseridos. Em Bishjo Senshi Seera Moon
(Sailor Moon), de Naoko Takeuchi (1992), no apenas a personagem principal Tsukino
Usagi (Serena), mas todos que lutam com ela, tm seu momento de transformao antes da
ao no desenho. Algumas pessoas perguntam o que o vilo fica fazendo, enquanto o heri
est se transformando. Curiosamente, conheo alguns fs que consideram as
transformaes como a melhor parte do desenho.
Invocao de poderes: interessante em alguns anims com lutas, o fato de que
enquanto um oponente est reunindo energia, (como o Kamehameha do personagem Goku
em Dragon Ball Z), evocando foras da natureza (o poder Clera do Drago do Shiriu em
Cavalheiros do Zodaco), conjurando magia (como a Sakura e o Shoran em Card Captors
Sakura), ou, ainda, efetivando um jutso ninja (Naruto), o seu adversrio fica inerte
observando, tentando entender e prever o que vai acontecer para se defender, ao invs de
partir para o ataque e impedir que tais recursos sejam ativados.
Um outro tpico a respeito do tempo da ao engloba quase todas as animaes
atuais, ainda mantendo o enfoque nos anims. Nos desenhos transmitidos pela TV nas
dcadas de 70 e 80, os heris eram aqueles que conseguiam evitar as tragdias. Nas
animaes atuais, os heris so aqueles que conseguem superar as tragdias. Essa pequena
mudana aproxima o mundo da imaginao do real e, talvez, inspire seus admiradores a
encontrar o heri dentro de si ao enfrentar as dificuldades da vida.
Atravs de anos de observao de vrios anims, pudemos chegar concluso de
que as cenas paradas, assim como acontece no cinema, so aquelas com funo panormica
ou dramtica. Com a funo panormica temos a oportunidade de correr os olhos pelos
detalhes do cenrio e figurino dos personagens sem perder gestos ou olhares. J a funo
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dramtica nos permite sofrer ou sorrir com o personagem devido ao prolongamento de
certos acontecimentos envolvendo emoes (vitrias, derrotas, sustos, suspense e etc).
Drazen (2007:29) sugere que os japoneses, em sua cultura pop, tm preferncia por
histrias movidas mais por emoo do que por ao.
Gilles Poitras cita cenas em que parece estar havendo pouca ao, compondo lindos
momentos de lentido, muito atmosfricos, que so deliberados.
Devido caracterstica lacnica inerente ao povo japons, gestos e olhares falam
mais que palavras nos anims, e quando a cena est parada, apenas com as cmeras em
movimentao, est, provavelmente, enfocando uma mensagem ou idia atravs de uma
expresso corporal, facial ou de um objeto.
Historicamente, no Japo, segundo Frederik L. Schodt, h nfase no no dito, no
espao vazio e nos elementos estticos. At em romances japoneses a nfase dada ao que
insinuado. Ele diz que, em parte, isso vem do idioma. O japons usa tanto a insinuao,
que muitas coisas no so ditas diretamente.
Essa caracterstica do anim de dizer sem utilizar palavras chama-se laconismo.
Borges (2005:30) elucida que:
Laconismo o termo utilizado para descrever a maneira concisa dos japoneses de falar e escrever. O princpio esttico do ideograma de repelir o suprfluo e valorizar o essencial (limitao espacial), pode ser observado na economia de caracteres utilizados para se transmitir mensagens. Esttica que enfoca o olhar no necessrio, atravs da insinuao na composio de sua forma.
O diretor Mahiro Maeda define essa caracterstica do anim como subtrao. Ele
argumenta que a Amrica usa mais a adio, e que o modo de expresso usado
tradicionalmente no Japo valoriza mais a subtrao: Quando muito dito, perde-se o
charme.
Vamos investigar agora o fim:
So poucos os anims que trazem a idia de E assim, viveram felizes para
sempre!. Os finais costumam indicar que os personagens vo continuar suas vidas com
suas facilidades e dificuldades, e que a rotina continua, com suas questes do dia a dia, a
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citar, Fruit Basket36: (...) passando repetidas vezes por momentos felizes e tristes, s
assim que todos ns amadurecemos.
Outro ponto interessante a ser considerado que, com raras excees como
Pokemon (produzido desde 1997), as histrias acabam. Os heris e heronas se casam,
envelhecem, morrem, desaparecem, vencem e perdem.
Os roteiros so escritos de tal maneira a prender o enunciatrio at o fim da trama.
Conforme os personagens adquirem sabedoria, experincia, e, dependendo da histria,
poder, os problemas se intensificam e os desafios aumentam proporcionalmente.
Nos anims com lutas, por exemplo, quando o heri faz treinamento para ficar mais
forte, assim tambm o faz seu inimigo. Isso contribui para a produo do efeito de
expectativa pelos prximos episdios.
Histrias intrigantes, personagens cativantes e esforados, solues e estratgias
inteligentes, trilha sonora empolgante e uma construo visual que programa os olhos para
relevar os momentos de animao limitada e reparar os elementos que valorizam o anim,
ora com animao perfeita, ora com efeitos especiais em constante inovao.
Vamos visitar alguns desses recursos visuais a seguir.
36 Fruit Basket, chamado pelos fs de Furuba, uma histria de Natsuki Takaya, e teve sua verso animada encerrada antes da publicao do final do mang. A frase supracitada , portanto, do final do mang, mas ilustra bem a mensagem no final das histrias dos mangs e anims.
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II.4. Alguns recursos gerativos de sentidos nos anims
Veremos agora alguns quadros que ilustram a construo figurativa e temtica que
concretizam algumas das paixes nos anims.
Alguns recursos estticos utilizados por Osamu Tezuka continuam at os dias de
hoje:
O cenrio que se transfigura em
um borro em movimento rpido para
criar um efeito dinmico de velocidade
do personagem. Esse efeito pode ser
manifesto com linhas coloridas
responsveis pela iluso de dinamicidade
quando o personagem est parado e
prestes a iniciar uma ao.
As figuras so do anim A Princesa e o Cavaleiro.
O efeito de sobreposio de
planos em transparncia para que o
enunciatrio possa visualizar os
pensamentos dos personagens. Na figura
ao lado, o prncipe Safiri est pensando
no bem estar de seu reino, a Terra de
Prata. Podemos ouvir e ver seus
pensamentos, ao som de fundo musical.
As duas figuras a seguir so de
um evento festivo nas ruas do pas da Terra de Prata. O prncipe Safiri (que , na realidade,
uma princesa), est disfarado de camponesa e danando com o prncipe Frans. o
primeiro encontro deles. Ele ainda no sabe quem ela .
A cena construda de modo que o enunciatrio acompanhe o ponto de vista dos
personagens.
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Apesar de ser uma noite limpa
com cu estrelado, a imagem que a Safiri
v enfeitada do que parecem ser bolhas
de sabo coloridas, ou luzes coloridas
projetadas por um globo espelhado.
A enunciao do episdio deixa
claro que esse um acontecimento
particular aos dois.
A multido que est festejando na
rua desaparece. um efeito conveniente
para os animadores, pois precisam
apenas animar o casal principal. Ao
mesmo tempo, enfatiza-se um momento
estsico das paixes do encantamento,
fascinao, figurativizando o fato de que,
para esses dois, ningum mais importa.
Quando um personagem chora, e assumimos o ponto de vista dele, vemos a imagem
embaada como se as lgrimas estivessem nos nossos olhos. Esse jogo de cmeras na
enunciao constante nos anims, ora estamos em posio de espectadores, ora
assumimos a perspectiva dos personagens.
Essa uma das delcias do desenho animado japons37, trocar de lugar com o
protagonista da cena: em A Viagem de Chihiro, na cena em que a Yubaba sai de sua mesa e
parte para cima da Chihiro, feito um furaco, gritando de forma ameaadora, a cmera
assume o ponto de vista da Chihiro e, conseqentemente, visualizamos a Yubaba vindo em
nossa direo. Nessa ocasio, no cinema, algumas pessoas reagiram dizendo Credo!,
Nossa!. Isso exemplifica a intensidade desse efeito de sentido.
37 Nas palavras de Carlo MacCormick (crtico de arte e historiador da cultura pop) quando descreve os efeitos dos jogos de ngulos de cmeras nos anims.
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Efeitos produzidos pelas alteraes faciais:
H uma infinidade de variaes na fisionomia dos
personagens.
Um olhar atento acompanha, em um minuto de
animao, desde mudanas sutis at expresses
exageradas conforme as alteraes de idias e dos
pensamentos deles. A seqncia ao lado mostra as
alteraes no semblante, principalmente, da personagem
Sakura, no ltimo episdio de Card Captors Sakura, A
Carta Selada (CLAMP, 2000).
As variaes nas expresses dependem do estilo
do desenho, e se ele foi feito para o cinema (as alteraes
limitam-se a um sistema expressivo mais srio), se uma
produo para OVA (nesse caso, a variedade depende
exclusivamente do estilo da obra), ou para a TV.
H algumas produes em estilo mais srio para a TV. Mas em sua maioria, as
expresses faciais variam at o ponto da caricatura ou deformao.
Em Zatch Bell, por exemplo, os personagens ficam quase irreconhecveis e horrveis
quando esto em apuros. um estilo mais cmico.
Quando o brilho dos olhos praticamente toma
conta deles, como acontece com os olhos da Tomoyo, na
figura ao lado, eles presentificam a paixo de extrema
felicidade, um arrebatamento.
Na primeira figura a Sakura est feliz, na segunda
ela no entendeu alguma coisa e na terceita est feliz
(bochechas em cor-de-rosa) e sem jeito.
Quando aparece uma gota gigante ao lado de um
personagem, ela pode indicar que o personagem est sem
jeito (esse o caso da situao ao lado), encrencado ou
no est entendendo o que est se passando.
Os pequenos riscos vermelhos, em diagonal, na
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bochecha simulam o blush e transmitem a paixo da vergonha. Apenas se o personagem
estiver muito envergonhado ficar com o rosto vermelho.
Esse traje semelhante ao de um marinheiro um
uniforme escolar no Japo. Em vermelho est uma
representao da raiva. Assim como a gota, esse smbolo
pode aparecer na fronte do personagem ou na parte do
corpo disponvel no enquadramento. s vezes temos, por
exemplo, o p do personagem em cena e um desses
smbolos. No precisamos do rosto, ou do verbal, para
saber o que se passa com ele.
As variaes faciais so um divertimento a parte.
Tudo possvel.
Ao lado, a reao da Sakura ao ser contrariada.
Seu irmo fez uma provocao bem sucedida. Essa
forma estilizada de vermelho e amarelo ao lado do rosto,
parecendo ter sado dos quadrinhos, aparece na tela, rapidamente, com a funo de mostrar
visualmente o sentimento repentino de abalo causado pelas palavras do irmo.
Sakura um desenho voltado para crianas e adolescentes. Vejamos o que acontece
se o desenho apresentar uma atmosfera mais pesada e sombria como em algumas produes
para adolescentes e adultos.
Abaixo, a imagem do Kamui, protagonista de X38 (CLAMP). Um personagem que
ele ainda