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Marleide de Moura Rocha A Arte da Animação Japonesa Em busca dos recursos gerativos de sentidos Recursos estéticos / efeitos estésicos Mestrado em Comunicação e Semiótica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2008

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  • Marleide de Moura Rocha

    A Arte da Animao Japonesa

    Em busca dos recursos gerativos de sentidos Recursos estticos / efeitos estsicos

    Mestrado em Comunicao e Semitica

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    2008

  • 2

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE

    SO PAULO

    PUC - SP

    PS-GRADUAO EM COMUNICAO E SEMITICA - COS

    A Arte da Animao Japonesa

    Em busca dos recursos gerativos de sentidos Recursos estticos / efeitos estsicos

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Comunicao e Semitica - rea de concentrao Anlise das Mdias Sob a Orientao do Professor Doutor ARLINDO MACHADO. Aluna: Marleide de Moura Rocha

    So Paulo 2008

  • 3

    FOLHA DE APROVAO DA BANCA EXAMINADORA:

    _______________________________________________________________

    _______________________________________________________________

    _______________________________________________________________

  • 4

    Autorizo, para fins exclusivamente acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao por processos fotocopiadores ou eletrnicos. Assinatura: _____________________________________________________ So Paulo, 31 de Maro de 2008.

  • 5

    Dedicatria

    Dedico esse trabalho minha famlia e ao meu esposo cujo apoio foi

    fundamental para a realizao desse curso.

  • 6

    Agradecimentos

    Meus sinceros agradecimentos a todas as pessoas queridas que

    percorreram essa longa jornada comigo; que tiveram pacincia com minhas

    faltas e incapacidades; espero estar retribuindo um pouco do muito que me

    deram com o resultado desse trabalho, fruto de esforo e dicao.

    Meus agradecimentos, tambm, ao CNPQ e CAPES.

  • 7

    Tudo comeou com a:

    Candy Candy

    Transmitido pela Rede Record em 1981.

    Eu tinha nove anos e me apaixonei pelas artes visuais.

  • 8

    No tear que tece a nossa vida no h pontas soltas. Todos os fios esto entremeados entre si e revestidos de significado. CLAMP

  • 9

    RESUMO

    Essa pesquisa visa identificar e analisar os processos sincrticos geradores de sentidos intrnsecos nos intertextos presentes na linguagem audiovisual do desenho animado japons, tambm conhecido como anim. Examinando os procedimentos interacionais, intersubjetivos, os percursos narrativos, enunciativos, principalmente os figurativos e passionais pretende-se determinar os regimes de sentidos explorados, bem como, a configurao de valores japoneses que passaram a percorrer o mundo com o anim.

    Esse trabalho tem seu incio com abordagem diacrnica da arte da animao seguida da animao japonesa em seu desenvolvimento na constituio de uma esttica com estilo e caractersticas prprias.

    A cultura pop japonesa vem conquistando pessoas e espaos culturais, sociais e miditicos. Uma das manifestaes dessa influncia a produo da franquia Matrix(1999). Os produtores da trilogia Matrix levaram efeitos visuais, sonoros e temporais dos anims para o texto flmico. Esses efeitos, ento, reproduzidos de volta ao anim em Animatrix (2003), receberam caractersticas estticas e estsicas peculiares motivando esta pesquisa.

    Para estudo de caso foi selecionado o curta-metragem Program (Um Corao de Soldado) da obra Animatrix, com sete minutos de durao, dirigido por Yoshiaki Kawajiri. Animatrix uma obra composta por nove desenhos em curta metragem, com todos os desenhos constitudos por discursos narrativos ligados aos da trilogia Matrix.

    Aps estudos e anlises desenvolvidas com o apoio dos conceitos, teorias e metodologia trabalhados por Algirdas Julien Greimas e seus colaboradores, foi possvel determinar em Program caractersticas pertinentes contendo procedimentos significantes que permitem abord-lo tanto como um agente programador, quanto como instncia resultante dessa programao realizada pelo anim.

    Partindo do pressuposto de que a construo de sentido inerente aos seres humanos, esse trabalho pretende a contribuir com o quadro terico da Comunicao e Semitica fornecendo subsdios como meios de acesso crtico para a apreciao esttica dos textos audiovisuais atravs da arte da animao japonesa.

    Os encaminhamentos finais de nossa pesquisa apontam o desenho animado japons como uma forma expressiva de comunicao de massa que reflete um contexto cultural complexo, variando em tcnicas, temas, imagens, revelando uma estratgia de programao do ser social contemporneo calcado uma tradio milenar.

    Palavras chave: animao, figuratividade, enunciao, sintaxe da composio audiovisual.

  • 10

    ABSTRACT

    This research intends to identify and analise the sincretic processes producers of

    intrnsec feelings in the intertexts present in the audiovisual language of Japanese animated cartoon, also known as anime. Examining interacional, intersubjective procedures, the narrative, enunciative trajectories and specially the figurative and passional trajectories, it is intended to determine the regimes of feelings exploited, as well as the configuraton of Japanese values that travel the world within anim.

    This paper has its beginning with diacronicle approaching of the art of animation, followed by the Japanese animation art through its development concerning to the constitutionn of a sthetics with its own style and characterists.

    The Japanese pop culture has been conquering people and cultural, social and mediatic spaces. One of the manifestation of its influence is the production of the Matrix(1999) franchise. The Matrix trilogy producers took visual, sound, and temporal effects from the anime to the filmic text. These effects, then, reproduced back to the anime in the Animatrix(2003), received peculiar characteristics motivating this research.

    For the study case it was selected the short feature Program from the collection Animatrix; Program is seven minutes lengh and was directed by Yoshiaki Kawajiri. Animatrix is a piece of work composed by nine short features, all of them are constituted by narrative discourse linked to those of the Matrix trilogy.

    After studies and analises developed with the support of the concepts, theories and methodology worked by Algirdas Julien Greimas and his collaborators, it was possible to determine in Program concerning characteristics having significant procedures that allowed us to approach it not only as a programming agent, but also as a resulting instance from the programming performed by the anime.

    Considering as a starting point the presupposition that construction of sense is inherent to human beings, this research intends to contribute to the theoretical board of Communication and Semiotics offering subsidy as means of critical access to the sthetic appreciation of audiovisual texts through the art of Japanese animation.

    Our research final leadings suggest the japanese animated cartoon as an expressive form of mass communication that reflects a complex cultural context ranging in modes, themes, imagery, revealing a programming strategy for the contemporaty social being leashed to millenial tradition.

    Key words: animation, figurativity, enunciation, sintax of audiovisual composition.

  • 11

    SUMRIO

    INTRODUO....................................................................................................................12

    CAPTULO I

    I.1. A Arte da Animao, origem e evoluo............................................................14 A animao para a TV adquire uma esttica diferenciada...............................19

    I.2. A Arte da Animao Japonesa e sua revoluo..................................................21 Mang...............................................................................................................21 Anim...............................................................................................................25 O anim e o mang aps Osamu Tezuka.........................................................26

    CAPTULO II

    O Universo Anim

    II.1. A concepo dos personagens...........................................................................31 Assuntos abordados..........................................................................................34

    II.2. Anims produzidos para a TV...........................................................................37

    II.3. Alguns recursos gerativos de sentidos nos anims............................................42 Efeitosproduzidos pelas expresses faciais......................................................45 O Japo no anim.............................................................................................51

    CAPTULO III

    III.1. Matrix: um projeto que nasceu dos mangs e anims......................................56 Animatrix.......................................................................................................59

    III.2. O Universo Animatrix......................................................................................61

    III.3. Anlise semitica: Program (Um corao de soldado)...................................72 III.3.1. nvel fundamental............................................................................109 III.3.2. nvel narrativo..................................................................................111 III.3.3. nvel discursivo................................................................................116

    CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................120

    ANEXOS Lista de anims assistidos para a pesquisa..........................................................................123

    REFERNCIAS..................................................................................................................127

  • 12

    INTRODUO

    O presente trabalho surgiu da necessidade de aprofundar os estudos sobre o desenho

    animado japons (tambm conhecido como anim) e contribuir para ampliar o quadro de

    pesquisas desenvolvidas no mbito da arte da animao sob o prisma da Semitica.

    Em 1989, Akira1 estreou nos cinemas britnicos e foi seguido do que se acredita ter

    sido a primeira conferncia sobre a Cultura Popular Japonesa organizada no ocidente.

    Susan Napier2 (2005: VII), testemunha que o feedback entusiasmado, sua pesquisa

    apresentada sobre Akira, na conferncia, a fez perceber que esse era um tpico de pesquisa

    digno de prosseguir com estudos mais aprofundados.

    Desde ento, os anims tm sido estudados e trabalhos produzidos nos EUA. No

    entanto, poucas pesquisas a esse respeito foram publicadas em portugus.

    O anim um produto proveniente de intercmbio cultural de massas3, e ao

    produzir e exportar anims o Japo tambm produz e exporta sua influncia cultural.

    Hbitos, conceitos, atividades locais tipicamente japonesas tornam-se referncias

    globalizadas e comuns queles que consomem seus produtos.

    Para a construo do primeiro captulo desse trabalho, nossa busca por compreender

    o fenmeno anim nos levou a traar um percurso diacrnico reconstruindo alguns passos

    principais na constituio da arte da animao desde sua origem cinematogrfica at sua

    migrao para o suporte televisivo. Esse estudo nos permitiu apreender os fundamentos da

    indstria da animao japonesa quanto sua associao com o mang (os quadrinhos

    japoneses) e seus modos de produo voltados para o cinema, os OVAs (Original Video

    Animation) e a TV.

    Nos referimos ao nosso objeto de estudo como a arte da animao japonesa e,

    apesar dos termos arte da animao implicar outros tipos de animao como 3D ou stop

    motion, esses no sero estudados aqui. Nos ateremos s animaes bidimensionais, mesmo

    1 Akira um longa-metragem produzido pelo diretor Katsuhiro Otomo em 1988. 2 Susan Napier professora de literatura e cultura japonesa na Universidade do Texas e uma especialista em anim reconhecida nos EUA e no Japo. 3 A definio intercmbio cultural de massas leva em considerao trs aspctos dos quadrinhos e desenhos animados japoneses: 1) por ser uma cultura de massa difundida globalmente. 2) entre os vrios assuntos abordados, h pesquisas feitas pelos autores em mbitos histricos, folclricos, mitolgicos de vrias culturas inclusive a japonesa. 3) Os japoneses opinam, votam, do nota, criticam e elogiam; h um espao aberto para interatividade entre consumidores e produtores que tentam adaptar-se aos termmetros populares.

  • 13

    quando, em casos especficos, essas envolverem efeitos visuais oriundos de tcnicas

    tridimensionais.

    No segundo captulo, tentamos montar um panorama geral dos modos de aparncia

    caractersticas dos anims, avaliando principalmente aqueles produzidos para a televiso.

    Em sua tentativa de categorizar os anims, Napier (2005:XII) declara que sempre haver

    excees para qualquer a afirmao que venha a fazer. Isso devido natureza plural dessa

    arte em constante ebulio impossibilitando-nos de acompanh-la em sua totalidade. Por

    isso, ao invs de tentar categoriz-los, decidimos por uma abordagem descritiva. A

    relevncia em montar tal cenrio est no fato de que a popularidade dos anims da TV

    indica que eles tm um forte impacto na cultura contempornea, visto que so assistos por

    um grande nmero de pessoas.

    A Japan External Trade Organization divulgou que sessenta por cento de todos os

    desenhos animados para a televiso ao redor do mundo constitudo de anims.

    Quais os valores investidos nesses anims? Quo forte pode ser sua influncia sobre

    os japoneses e pessoas de outras culturas?

    No terceiro captulo, podemos acompanhar o surgimento de uma franquia (Matrix)

    de impacto na cultura cinematogrfica hollywoodyana resultante da influncia dessa cultura

    pop japonesa. Aqui desenvolvemos nossa anlise no campo da scio semitica.

    quando nos aprofundamos em busca de apreender tais investimentos em recursos

    tecnolgicos audiovisuais, primazia artstica, e em como se d a manifestao da volio do

    destinador ao destinatrio, programando-o a um dever e querer ser.

    Iniciamos o captulo descrevendo brevemente Matrix e Animatrix por serem obras

    originrias da atuao dos anims, mangs e games. Oito das nove obras de Animatrix so

    descritas apenas nos aspectos relevantes para as questes levantadas durante a pesquisa e

    para o entendimento do desenho selecionado para a anlise semitica, o Program.

    A anlise de Program nos permite evidenciar a determinao axiolgica, o conflito

    ideolgico instalado na narrativa entre os temas: hierarquia de comando, amizade, morte,

    traio, sexualidade, desenvolvimento do sujeito feminino disposto a superar desafios

    sociais, os valores que esse sujeito assume e suas paixes, sustentadas por formaes

    ideolgicas histricas e tradicionais. Presenciamos no jogo da intertextualidade um

    simulacro da sociedade japonesa. Aprendemos sobre eles e sobre ns mesmos.

  • 14

    CAPTULO I

    I.1. A Arte da Animao, origem e evoluo

    A arte da animao tem sua essncia no movimento. Desenhistas e pintores tm se

    dedicado representao do movimento desde os tempos mais remotos.

    Tentar estabelecer um ponto na linha do tempo capaz de marcar sua origem

    histrica algo difcil de ser feito, visto que inmeros fatores contribuem para o

    estabelecimento de uma determinada tcnica, seu emprego, atividades associadas, e

    impacto numa certa ordem cultural, especialmente no mbito das artes.

    A histria da animao est imbricada na histria do cinema. Ao discutir sobre a

    origem do cinema, Machado (1997:13-14) suscita a hiptese cientfica plausvel de que

    nossos ancestrais se aventuravam em locais inspitos e profundos na escurido das

    cavernas para fazer sesses de cinema e assistir a elas. Ele descreve a presena do

    movimento nos desenhos pr-histricos:

    medida que o observador se locomove nas trevas da caverna, a luz de sua tnue lanterna ilumina e obscurece parte dos desenhos: Algumas linhas se sobressaem, suas cores so realadas pela luz, ao passo que outras desaparecem nas sombras. Ento, possvel perceber que, em determinadas posies, v-se uma determinada configurao do animal representado (por exemplo, um bex com a cabea dirigida para frente), ao passo que, em outras posies, v-se configurao diferente do mesmo animal (por exemplo, o bex em questo vira a cabea para trs, ao perceber a aproximao do homem) e toda a caverna parece se agitar em imagens animadas.

    Em busca da iluso do movimento, inmeros dispositivos foram inventados ao

    longo da histria, como nos mostra Furniss (2000:13). Ela denomina esses modelos pr-

    cinematogrficos de precursores cinemticos. Entre eles esto os slides pintados ou

    fotografados dos shows de lanternas mgicas, e outros tipos de entretenimentos que se

    tornaram populares desde o incio do sculo XIX.

    Vejamos algumas dessas invenes:

  • 15

    A Lanterna Mgica foi inventada por Athanasius Kircher4 em 1645. Tratava-se de

    um dispositivo constitudo por uma caixa com uma fonte de luz (na poca, uma vela) e um

    espelho curvo em seu interior; um equipamento simples que possibilitava a projeo de

    imagens desenhadas em lminas de vidro. Para tanto, era necessria uma sala escura e uma

    superfcie plana (parede) para uma melhor visualizao da projeo. Kircher foi acusado de

    bruxaria e, conseqentemente, no pde aprimorar sua inveno.

    Mais tarde, o francs Etienne Gaspard Robert, estreou um show chamado

    Fantasmagorie em Paris, em 1794, produzido a partir de projees de imagens com a

    Lanterna Mgica. Enquanto ele narrava histrias, ocasionalmente projetava os fantasmas

    diretamente sobre a audincia.

    Em 1877, o professor francs mile Reynaud construiu o praxinoscpio. Tratava-se

    de um pequeno recipiente em forma cilndrica onde ele colocava uma tira de papel com

    desenhos de bichos e pessoas se movimentando. Ao rodar o recipiente, os desenhos eram

    refletidos em fitas transparentes e, assim, eram animados.

    Os olhos conseguem registrar at, no mximo, 12 imagens por segundo. Esse

    aparelho causava a iluso do movimento criando seqncias com mais imagens do que os

    olhos conseguem reter. Esse fenmeno fisiolgico chama-se persistncia retiniana.

    Conforme o praxinoscpio foi sendo aperfeioado, passou a utilizar jogos de

    espelhos para projetar as imagens. No entanto, os desenhos ainda eram repetitivos, pois a

    cada volta do cilindro, as cenas eram as mesmas.

    Ento, Reynaud inventou o Teatro ptico ao elaborar um sistema em que no havia

    reprise das cenas possibilitando contar histrias com cartoon. O Teatro ptico projetava-os

    numa tela ou numa parede branca, ao invs de refleti-los em fitas ou num espelho.

    Estava inventada uma forma narrativa de desenho animado. Mas somente anos

    depois que apareceria a primeira animao feita em tcnica com papel.

    O cinematgrafo, dos irmos franceses Auguste e Louis Lumire, era um aparelho

    porttil trs em um: mquina de filmar, de revelar e projetar. O cinematgrafo possibilitava

    a gravao seqencial de imagens em uma base flmica flexvel. Os irmos Lumire

    realizaram uma exibio pblica de filmes no dia 28 de dezembro de 1895, no Salo do

    4 Athanasius Kircher (1601-1680): Jesuta, matemtico, fsico, alquimista e inventor alemo nascido em Geisa, estava morando em Roma quando inventou a lanterna mgica.

  • 16

    Grand Caf de Paris. As apresentaes nos cafs concertos tinham o acompanhamento

    musical, em geral, de um pianista. A exposio foi um sucesso e, conseqentemente, nos

    prximos vinte anos a produo de filmes se espalhou pela Rssia, Itlia, Alemanha, Japo,

    Estados Unidos entre outros.

    A Frana liderou a produo de filmes nesse perodo inicial, mas foi nos Estados

    Unidos que a arte da animao floresceu.

    A palavra animao tem sua origem no verbo latino animare, significa dar vida , e

    passou a ser empregada para descrever imagens em movimento no sculo XX.

    O primeiro desenho animado em papel, Humorous Phases of Funny Faces, foi

    realizado nos Estados Unidos por um artista plstico ingls, o ilustrador James Stuart

    Blackton em 1906.

    A partir desse momento, foi necessrio conquistar respeito profissional e criar uma

    audincia que apreciasse e aceitasse os personagens animados desenhados em papel.

    Surgiram, ento, os estdios de animao com a finalidade de produzir animao de forma

    rpida e barata, atendendo a prazos e oramentos curtos. Entre eles esto a Paramount

    (fundada em 1912), Universal Studios (1912), Warner Brothers (1923), Walt Disney

    Company (1923) e Metro Goldwyn Mayer (MGM) (1925).

    O talento desses artistas pioneiros propiciou desenvolvimento tcnico e artstico,

    bem como a produo em larga escala da animao entre as dcadas de 1910 e 1940,

    estabelecendo alguns dos modelos e procedimentos que ainda so utilizados nos dias atuais,

    mesmo aps o advento da era digital.

    Devido a Primeira e Segunda Guerra Mundial, no houve concorrncia dos

    produtores europeus acarretando o favorecimento da emergente indstria cinematogrfica

    norte-americana como um todo, estabelecendo hegemonia da produo audiovisual no

    ocidente.

    Walt Disney foi o responsvel pelas realizaes mais importantes na evoluo do

    desenho animado. Ele e seus artistas estabeleceram os conceitos fundamentais da arte da

    animao e, com sua habilidade empresarial viabilizou produtos destinados ao consumo de

    massa.

    Nascido em Chicago em 1901, ele entrou na indstria de animao em parceria com

    seu irmo mais velho, Roy Oliver Disney, em 1923.

  • 17

    Naquela poca, um filme no cinema era precedido por trailers, performances de

    artistas ao vivo, noticirios e um desenho animado.

    A companhia Disney proporcionou arte da animao melhorias que viabilizaram

    almejar o reconhecimento desfrutado pelos filmes de ao.

    Walt Disney definiu a animao como iluso da vida, acreditando ser essa uma

    condio essencial para cativar a audincia. Como relata Lucena (2005:99), para ele

    [Disney], o personagem de animao tinha de atuar, representar convincentemente; parecer

    que pensa, respira; convencer-nos de que portador de um esprito.

    Em 1928, Disney apresentou o primeiro desenho animado em curta-metragem,

    sendo tambm, a primeira animao com trilha sonora, o Steam Boat Willie (Willie o Barco

    Vapor), em preto-e-branco, protagonizado pelo ratinho Mickey Mouse.

    A trilha sonora uma estreita faixa tica onde so registrados os dados sonoros

    contendo a msica, os rudos e os dilogos. Essa banda sonora impressa diretamente na

    pelcula cinematogrfica propiciando a projeo das imagens sincronizadas com o som.

    Essa simultaneidade entre o som e a imagem, conforme expe Silva (2005:32),

    possibilitou exploraes que culminariam em efeitos denominados Mikeymousing, ou seja,

    o ato de se pontuar as aes das personagens com os movimentos musicais, bem como

    pontuar emoes, intenes, etc. Entre os exemplos que o autor cita com esse efeito, est a

    acentuao do movimento e da qualidade de sentido de irritao marcados por instrumentos

    de timbre grave da orquestra executando acordes rpidos sincronizados aos passos de uma

    personagem (zangada) que desce uma escada.

    A prxima realizao da companhia Disney foi o lanamento da primeira animao

    colorida Flowers and Trees (rvores e Flores - 1932). Esse foi o primeiro desenho animado

    com um ser humano como protagonista. Uma personagem feminina produzida como uma

    espcie de laboratrio provendo o aprendizado e a experincia necessria para que os

    desenhistas e animadores pudessem prosseguir para a prxima etapa.

    Apesar do sucesso do Mickey e os curtas-metragens, Disney concluiu que apenas

    filmes e animao poderiam gerar o rendimento necessrio para o crescimento do estdio.

  • 18

    Na primavera de 1934, Walt Disney decidiu produzir Snow White and the Seven

    Dwarfs (Branca de Neve e os Sete Anes), que um conto de fadas dos irmos Grimm5 de

    1812.

    Quando a imprensa anunciou o que ele pretendia fazer, as pessoas comearam a

    dizer que aquilo seria uma loucura, ningum iria ficar sentado durante uma hora e meia

    para assistir a um desenho, o pblico logo ficaria cansado e, alm disso, as cores brilhantes

    do desenho prejudicariam os olhos das pessoas.

    Mais tarde, as manchetes dos jornais anunciaram que Disney estava fazendo

    histria.

    A Branca de Neve e os Sete Anes tornou-se o primeiro sucesso de bilheteria da era

    do som. Foi o primeiro filme a ser lanado internacionalmente, sendo dublado em mais de

    vinte lnguas.

    Esse filme tem quase uma hora e meia de durao. Para dar movimentos aos

    personagens foi feito mais de 100 mil desenhos no decurso de trs anos at a obra ficar

    pronta, de 1934 a 1937.

    No decorrer da criao de Branca de Neve, curiosamente, nasce um novo modo de

    ver o desenho animado associado, conseqentemente, a um novo meio de apreenso tica e

    eidtica.

    Em entrevista, os participantes da produo de Branca de Neve descrevem

    movimentos de personagens no humanos a partir de achatamentos e/ou alongamentos.

    Dizem da maneira ldica de criar acidentes ou situaes possveis apenas num mundo

    imaginrio, como esmagamentos, ao ponto de espessura de papel, comuns a personagens

    como o Pato Donald ou o Pateta, entre tantos outros exemplos.

    5 Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) nasceram em Hanau, na Alemanha. Eles foram professores na rea da literatura na Universidade de Berlim, onde moraram at o fim de suas vidas. Os irmos Grimm so conhecidos por buscar relatos em documentos antigos e recolher contos entre a populao alem para preservar as histrias tradicionais do seu povo. Os primeiros contos recolhidos pelos irmos Grimm foram publicados em 1812. A obra chamava-se Histrias das crianas e do lar e apresentava 51 contos. O nmero cresceu com o tempo e acredita-se que os irmos Grimm tenham recolhido e registrado cerca de 200 histrias. Entre elas, esto: O Pequeno Polegar, A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, Joo e Maria e A Gata Borralheira. H mais informaes com foto no Site: http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/916 (Acessado em 08 de fevereiro de 2008)

  • 19

    Em seguida, eles relatam sua surpresa quando se depararam preocupados com a

    Branca de Neve, como se ela fosse uma pessoa de verdade, em uma cena em que ela cai do

    alto num buraco, e eles se perguntaram se ela no iria morrer ou se machucar.

    H uma mudana de valor tico em relao ao eidos da composio expressiva do

    desenho: a partir daqui, o desenho animado no mais exatamente um mundo onde tudo

    que a imaginao permitir possvel. Se h uma personagem humana, ento esse mundo

    emita a vida nos termos de Walt Disney: a animao torna-se uma iluso da vida.

    A construo da personagem Branca de Neve determinou um padro de princesa,

    correta e bondosa, que seria seguido nas prximas produes, com a seguinte configurao:

    a) fsica: mos e ps pequenos, com movimentos graciosos e delicados;

    b) personalidade: educada, meiga, gentil, sorridente, inteligente, prestativa, honesta

    e tmida;

    Criaram na princesinha, um exemplo de pessoa querida, aceitvel, e admirvel. Esse

    ser um modelo usado para a construo das prximas princesas Disney e muitos

    personagens japoneses. O tipo de personalidade descrita acima caracteriza o que os

    japoneses chamam de pessoa yasashii6. (vide consideraes na pg. 52).

    Lucena Jr. (2005:97) afirma que o sculo XX no teria as feies culturais que o

    caracterizam sem a influncia do imaginrio mundo de fantasia criado a partir dos desenhos

    animados de Walt Disney.

    Essa influncia exerceu seu papel na formao do estilo do desenho animado

    japons, o anim.

    A animao para a televiso adquire uma esttica diferenciada:

    Os exibidores dos cinemas compravam os filmes em pacotes contendo curtas-

    metragens e desenhos animados. Isso acabou na dcada de 50, quando eles passaram a ter a

    opo de comprar os filmes separadamente. Essa mudana afetou o comrcio da animao

    e outros curtas-metragens. Por conseguinte, os estdios voltaram seus esforos para a

    emergente indstria da televiso.

    6 No dicionrio Michaelis (543: 2003), encontramos as possveis tradues para Yasashii: gracioso, delicado, suave, doce, brando, bomdoso, meigo, dcil, afvel, carinhoso, gentil e bondoso. Mas na formao social de um indivduo japons, essa palavra quer dizer muito mais.

  • 20

    At meados da dcada de 50, todavia, as pessoas ainda duvidavam se a televiso

    seria difundida e aceita o suficiente para que fossem feitos grandes investimentos

    financeiros nessa rea.

    Foi nessa poca, quando os meios produtivos de animao eram financeiramente

    inviveis para a televiso, que William Hanna e Joseph Barbera fundaram seu prprio

    estdio, Hanna-Barbera, em 1957.

    Seus mtodos de produo ficaram conhecidos como animao limitada7, ou seja,

    de modo rpido, bsico e sem enfeites, na descrio de Ted Sennet8 em seu livro The Art

    of Hanna Barbera. Sennet manifesta a seguinte opinio sobre os desenhos HB:

    No so meramente desenhos e croquis. Mesmo brotando da imaginao de ilustradores, animadores, atores e diretores, eles residem em um canto das nossas mentes to reais quanto nossos vizinhos da porta ao lado.

    Ao seu ver, no exagero declarar que Bill Hanna e Joe Barbera mudaram para

    sempre a face da nossa TV9.

    Essa declarao fundamenta-se no que ele descreve como o nascimento de um

    mundo divertido de fantasia que, aps tornar-se possvel nas telas de TV, habitou a

    imaginao de muitas geraes de crianas desde a dcada de 60 at os dias atuais (Alguns

    desses desenhos ainda so transmitidos em canais de televiso como no SBT, por exemplo).

    Por outro lado, analisando a atuao da Hanna-Barbera mais objetivamente,

    podemos inferir que a empresa realmente contribuiu para determinar qual formato teria a

    face da programao animada para a TV.

    Os dados levantados por Furniss (2000:144-7) em sua pesquisa, mostram a

    influncia da Hanna-Barbera sobre as prticas da animao feitas para a televiso

    americana, ao instaurar um sistema de animao limitada compatvel com as necessidades

    e interesses dos empresrios do meio televisivo. Outros estdios adotaram esse sistema cujo

    alvo principal consistia de programas para crianas e comerciais. Com o tempo, esse passou 7 Animao limitada um modo econmico de produo que pode ocasionar o comprometimento da qualidade da animao. Vide discusso na pg. 37. 8 Essa informao foi retirada da pgina do livro publicada no site http://www.hannabarbera.com.br acessado em 09/02/2008. 9 A Hanna-Barbera criou desenhos memorveis como Tom & Jerry, Os Flinstones, Os Jetsons, Z Colmia, Famlia Adams, Manda-Chuva, Z Buscap, Scooby-doo, entre tantos outros que preenchiam as tardes da programao semanal da televiso nos canais da Record, Bandeirantes, e antes do Jornal Nacional na Globo, nos anos 70.

  • 21

    a ser um procedimento padro: Os desenhos chamados de made-for-television so

    associados a um produto resultante de um sistema de animao limitada.

    I.2. A Arte da Animao Japonesa e sua revoluo

    Para melhor apreenso da arte da animao japonesa e sua origem, devemos iniciar

    nossa investigao pela arte dos quadrinhos japoneses, isto , pelo mang.

    Mang

    Etimologicamente, Manga uma palavra japonesa utilizada para designar histrias

    em quadrinhos em geral. formada por dois ideogramas chineses10, o man , significa

    humor ou algo que no srio, e o ga , quer dizer imagem ou desenho.

    Aps seu sucesso no exterior, seus admiradores passaram a chamar os quadrinhos

    de origem japonesa de mang diferenciando-os dos outros quadrinhos.

    O pesquisador de mang Frederik L. Schodt define o mang moderno como uma

    fuso do formato ocidental, ou seja, a gramtica do quadrinho moderno que surgiu nos

    Estados Unidos, com uma tradio nativa de centenas, talvez milhares de anos de arte para

    divertir feita com trao.

    Gravett (2006:22) diz que o crtico de quadrinhos Fusanosuke Natsume classificou

    algumas dessas artes como pr-mang. A citar, os desenhos em pergaminhos atribudos por

    um tempo a um monge budista chamado Toba Sojo (1053-1140). Essas pinturas

    humorsticas, conhecidas como Choju Giga11, satirizavam figuras do meio social, com

    animais (coelhos, sapos, macacos, raposas, etc.) e pssaros.

    10 Os ideogramas chineses (Kanji) foram introduzidos no Japo por volta do sculo III. 11 Choju Giga so caricaturas antigas desenhadas em pinturas de pergaminhos durante a Era Heian (794-1185), atribudas ao monge budista Toba Sojo. A Histria japonesa est dividida em eras: As eras que compreendem a Histria japonesa moderna so: Edo (1603-1867), Meiji (1868-1912), Taisho (1912-1926), Showa (1926-1989), e Heisei (1989-). Para facilitar a leirura daqueles que no estiverem familiarizdos com tais datas, continuaremos a cit-las ao longo do trabalho.

  • 22

    As histrias am se revelando conforme os rolos de pergaminhos, de at 6 metros de

    comprimento, eram desenrolados da direita para a esquerda. Seu contedo narrava lendas,

    batalhas e eventos da vida cotidiana.

    Mais tarde, a arte ukiyo-e obteve evidncia entre as artes visuais no fim do sculo

    XVII.

    A palavra ukiyo-e pode ser traduzida como pinturas do mundo flutuante ou

    estampa xilogrfica12. Compreendendo uma ampla produo pictrica manifesta,

    sobretudo atravs da xilogravura, a arte ukiyo-e possui carter reprodutivo que possibilitou

    sua reproduo em grande escala de livros, catlogos, lbuns, cartazes e estampas

    independentes, conforme elenca Hashimoto (2002:129).

    A autora explica que mesmo sendo uma arte que foi mais difundida como estampa

    do que como pintura, seus procedimentos tcnicos ou tpicas no definem ukiyo-e, j que

    possvel diferenciar pintura, estampa, sistema artstico familiar, meio tcnico, tpica e

    forma no estudo de ukiyo-e. Hashimoto (2002:130) descreve, ainda, um outro aspecto

    plural dessa arte afirmando tratar-se de um arte que se deseja refinada, com cdigos e

    metforas especficos, que mudam conforme a moda.

    No incio, suas manifestaes retratavam assuntos da vida urbana como atores

    populares do teatro kabuki, lutas de sum, locais famosos, gueixas, atividades e cenas das

    reas bomias e do entretenimento com belas cortess, cenas erticas e etc. Tambm

    podemos encontrar, como um dos motivos caractersticos de sua composio, elementos

    associados natureza efmera da vida como paisagens podendo estar decoradas por flores

    (sakura) das cerejeiras ou mudanas de estao.

    Um dos artistas marcantes na arte da xilogravura japonesa foi o Katsushika Hokusai

    (1760-1849). Ele era um pintor ukiyo-e, tanto de gravuras monocromticas como

    multicoloridas, durante a Era Edo (1603-1868).

    Em sua pesquisa, Hashimoto (2002:34-5) lista mais de dez nomes diferentes de uma

    lista de sessenta e trs pelos quais Hokusai conhecido. Cada novo nome revela uma

    12 Hashimoto (2002:129) relata que a xilogravura j existia no Japo no perodo Muromachi (1391-1573), ligada a imagens budistas de grandes dimenses, geralmente pintadas a mo (hissai-hanga), com pigmentos vermelhos, amarelos, verdes, azuis, de conchas trituradas e aplicao de folhas, e ps de ouro.

  • 23

    personalidade definida no pincel. Ele tambm produziu trabalhos na arte Shunga13

    (pinturas-primavera).

    Dentre as pinturas de Katsushika Hokusai h vrias retratando paisagens e a

    natureza. Entre seus trabalhos mais importantes est a srie de gravuras Trinta e Seis vistas

    do Monte Fuji.

    Hokusai cunhou a palavra manga ao nomear sua coleo de desenhos humorsticos

    caricatos como Manga Hokusai publicada entre 1814 e 1834.

    O pesquisador japons Katayori Mitsugu14 (2005:48) explica que no incio havia

    duas palavras que significavam mang:

    Uma giga, como em Choju Giga15, e a outra manga, como no Manga Hokusai. Mas os conceitos dos mangs em ambos os casos so bem diferentes dos que temos hoje. Toba Sojo, o autor do Choju Giga, imaginou o giga para ser uma anttese de algo ortodoxo. A palavra mang na frase Manga Hokusai vem da palavra manzen, que significa folhear um livro vagamente ou passar os olhos pelas pginas. H muito tempo atrs, na China, havia um pssaro chamado Mangakucho. Ele tinha pernas longas e comia moluscos do rio. O Hokusai imaginou esse pssaro quando nomeou a sua coleo de desenhos. Ele desenhava rapidamente tantas paisagens quanto possveis, como esse pssaro que apanhava tudo e qualquer coisa vagando no rio. Nem o Toba Sojo, nem o Hokusai empregaram o sentido atual da palavra manga. Quando comecei a desenhar mang, h muito tempo atrs, por volta do comeo da era Showa16, o conceito de manga parecia diferente, tambm, desses dois sentidos. Para ns, o conceito de manga parecia mais prximo de kyoga, desenhos exagerados que eram populares durante a era Edo. Kyoga17 significa literalmente desenhos malucos. Ns imaginvamos manga como algo divertido e leve, como os desenhos do povo na era Edo18.

    Gravett (2006:24) faz uma analogia entre as pinturas xilogrficas e o mang

    moderno:

    13 As gravuras ou pinturas classificadas como shunga so aquelas que retratam mais explicitamente os relacionamentos sexuais da poca 14 Katayori Mitsugu (1921-) um pioneiro nos estudos de mang no Japo. Ao conceder entrevista (supracitada) feita em sua casa em Yokohama, Japo, em agosto de 2004, ele estava com 84 anos, continuando sua pesquisa e a desenhar cartoons polticos. 15 Choju Giga so as pinturas de pergaminhos descritas na nota de rodap na pgina antrerior. 16 Era Showa, de 1926 a 1989. 17 Kyoga um quadrinho com desenhos exagerados que assumiu a tradio do Choju Giga. 18 Essa entrevista foi publicada em ingls e a traduo nossa. (Era Edo de 1603 a 1867).

  • 24

    As linhas precisas, a composio arrojada e o uso meticuloso de padres delicados e repetitivos, caractersticos de todas essas gravuras tm muita proximidade com o mang, em que o trabalho dinmico com o trao a norma e as texturas so aplicadas em tons chapados e sem modulao. A relao ainda mais clara nos mangs modernos ambientados num passado distante. Nesses casos, os artistas freqentemente fazem referncias conscientes ukiyo-e e outras gravuras. Afinal, dessa forma que a histria retratada.

    A animao selecionada para anlise, Program (Um Corao de Soldado), pode ser

    inserida no conjunto de casos descrito acima. Mesmo que o autor tenha se referido

    especificamente ao mang, o anim da anlise pertence a esse conjunto, visto que: os

    produtores do desenho se inspiraram nas pinturas ukiyo-e para compor o ambiente visual da

    era feudal japonesa; utilizaram tons chapados, com predominncia do matiz preto; e, enfim,

    os formantes eidticos e cromticos da pintura ukiyo-e esto presentes na composio dessa

    animao.

    Em 1862, Charles Wirgman estreou a revista The Japan Punch, a primeira revista

    de humor em estilo ocidental no Japo, inspirada na revista semanal britnica Punch.

    Apelidada de punch-e (ou desenhos punch), a revista foi conquistando os artistas japoneses

    aos poucos, at ter seu nome alterado para manga em 1890.

    No final do sculo XIX, os mangaka (os desenhistas de quadrinhos) passaram a

    utilizar tiras de mltiplos quadros inspirados em revistas europias como a Punch britnica,

    LAssiette au Beurre e L Rire francesas, Bilderbongen alem e Puck americana.

    Podemos considerar, ento, que o mang que temos hoje no resultante apenas da

    fuso do formato ocidental com uma tradio nativa japonesa, mas tambm, do xito dos

    esforos e dedicao de todos os artistas comprometidos com esse processo.

    Passaremos agora para o sculo XX, ps-guerra, dcada de 50, quando estudaremos

    as conseqncias da atuao de um artista que condiz com a descrio supracitada: um

    mdico, diante de seu pas em reconstruo, que ajudou a formar a fbrica de sonhos da

    indstria da animao existente hoje no Japo, com o seguinte pensamento:

    Osamu Tezuka: Por que os filmes americanos so to diferentes dos japoneses?

    Como posso desenhar quadrinhos que faam as pessoas rir, chorar e se emocionar como

    aquele filme?

  • 25

    Aps essa cotao, Gravett (2006:30) afirma que foi esse salto de imaginao que

    permitiu a Tezuka transformar os quadrinhos japoneses.

    Anim

    A princpio, anime o termo genrico que designa desenho animado no idioma

    japons. Ele deriva do vocbulo animation (do ingls, animao). Aps o sucesso da

    animao japonesa, seus admiradores passaram a cham-la de anim, distinguindo-a das

    outras animaes.

    Vimos anteriormente que a animao no ocidente teve sua origem no cinema e

    depois passou a ser produzido para a televiso. O mesmo aconteceu com a animao

    japonesa.

    Os desenhos animados chegaram do ocidente ao Japo em 1909, trazendo

    inspirao para a produo cinematogrfica animada.

    O diretor Kenzo Masaoka recebeu o ttulo de pai da animao pelo longa-metragem

    Kumo to Churippu (A Aranha e a Tulipa), pronto em 1943.

    As primeiras animaes foram produzidas em carter experimental, e mais tarde

    passaram a ser realizadas em estdios vinculados s produtoras de cinema em Tquio e

    Kyoto.

    Aps o fim da Segunda Guerra, a animao tornou-se financeiramente invivel,

    principalmente por precisar importar sua matria prima, como celulides, filmes e tintas.

    No entanto, essa atividade retomou seu curso a partir de 1958, com o primeiro longa-

    metragem colorido Hakuja Den (A Lenda da Serpente Branca) do diretor Taiji Yabushita.

    O sucesso dessa obra incentivou o progresso de sua produtora, Toei Animation, que

    veio a tornar-se a maior produtora de animao atualmente.

  • 26

    O Anim e o Mang aps Osamu Tezuka

    Osamu Tezuka (1928-1989) fundou o estilo do trao anim ao escrever e desenhar o

    primeiro mang narrativo Jungle Taitei (O imperador da Selva), em 1950. E por isso, ele

    reverenciado no Japo com o ttulo de manga no kamisama (deus dos quadrinhos).

    Sato (2005:33) define Osamu Tezuka como um divisor de guas em duas mdias

    distintas: nos quadrinhos e na animao. Um dos poucos a ter conseguido equilibrar com

    sucesso o compromisso comercial e a produo artstica em ambas as reas. Sua afirmao

    baseia-se no fato de que durante quarenta anos de carreira, conforme elenca Gravett

    (2006:28), Tezuka escreveu e desenhou 150 mil pginas de quadrinhos, distribudas em 600

    ttulos de mang e 60 trabalhos de animao.

    Tezuka abriu sua prpria empresa de animao, a Mushi Productions em 1961, e

    estreou o primeiro seriado em desenho animado com trinta minutos de durao na TV

    japonesa Tetsuwan Atom (Astro Boy) em 1963. Quando Astro Boy foi animado, ele j era

    um mang popular, portanto, o investimento feito para essa animao, teve um risco

    calculado.

    Em 1965, Jungle Taitei (Kimba, o Leo Branco nome dado srie para a

    transmisso no Brasil) foi a primeira srie de animao colorida no Japo. Nesse mesmo

    ano, Kimba, o Leo Branco e Astro Boy foram vendidos para o exterior, fazendo de Tezuka

    o primeiro produtor de sries a exportar anims.

    Gravett (2006:34) comenta que o sucesso nacional e internacional de Tezuka

    estabeleceu um relacionamento quase simbitico entre mang e anim que tem sustentado

    as duas indstrias desde ento. Essa afirmao justifica-se pelo fato de que uma quantidade

    considervel de anims produzida a partir de mangs j consagrados pelo pblico.

    Para animar Astro Boy, Tezuka levantou patrocnio com a emissora da TV e com as

    empresas fabricantes de produtos licenciados de seus personagens.

    Wong (2006:25-6) reflete sobre as conseqncias de uma indstria da animao

    apoiada a um sistema de mercado sob o ponto de vista de Jiwon Ahn: o anim pode ser

    mais bem compreendido dentro da rede de influncias organizadas em acordo para o

    sucesso de uma estratgia mix mdia.

  • 27

    Essa discuo trata do planejamento prvio feito entre vrios segmentos comerciais,

    para o lanamento de diversos produtos junto estria de um novo anim: o estdio de

    animao, a rede emissora de televiso, fabricantes licenciados, agncias publicitrias,

    distribuidores, indstria dos videogames, fonogrfica, etc.

    No entanto, h produes independentes da indstria do mang, como aquelas feitas

    pelo Estdio Ghibili, entre outras produzidas diretamente para o cinema ou OVAs

    (Original Vdeo Animation). Algumas comeam como anim e tornam-se mang depois

    (por exemplo, Nausica do Vale dos Ventos e A Viagem de Chihito), e h aquelas que so

    provenientes dos jogos de videogame, como Pokemon e Ragnarok, por exemplo.

    Sato (2007:35) prope que todo esse esforo concentrado para envolver

    emocionalmente os espectadores e satisfazer-lhes o mpeto consumista o que garante a

    viabilidade comercial do sistema.

    Tezuka tambm estreou a narrativa longa nos mangs, composta por 200 pginas.

    Isso acarretou a necessidade de segmentar as histrias em vrios captulos, do mesmo modo

    que as novelas transmitidas pela TV. Alguns pesquisadores acreditam ser este um dos

    fatores determinantes da afinidade dos brasileiros com os mangs e anims.

    Essa era uma poca em que a populao necessitava de entretenimento, quando a

    produo cinematogrfica japonesa estava prejudicada no perodo ps-guerra.

    Frederik L. Schodt19 relata que Osamu Tezuka fez experincias com o formato dos

    quadrinhos americanos e desenvolveu um estilo ainda mais visual cativando e empolgando

    o pblico. Susan J. Napier descreve esse estilo ainda mais visual explicando que a ao

    vazava para os quadrinhos adjacentes, impregnando-os e possibilitando aos olhos do leitor

    mover-se de modo mais dinmico, mais rpido.

    Ao mesmo tempo, a utilizao de ngulos de cmera provocava apelo

    dramaticidade das relaes sociais, e intensificavam a proxmica entre o leitor e o universo

    psicolgico das personagens atravs da nfase em gestos ou olhares.

    A principal influncia narrativa de Tezuka, ento, veio do cinema. Ele buscava

    trazer para os quadrinhos efeitos relativos s alteraes de ngulos de cmera, o

    19 As declaraes de Frederik L. Schodt e Susan Napier foram dadas em entrevista para o making of do DVD Animatrix. Ambos so pesquisadores de mang e anim nos EUA.

  • 28

    movimento e a emoo de Hollywood. Ortiz (2000:165) observa que isto significou, da

    parte dos desenhistas, uma busca pelo aperfeioamento de tcnicas cinematogrficas

    adaptadas ao papel. E continua o autor afirmando que, a partir desse momento, as histrias

    japonesas utilizam um conjunto de tcnicas, filmagens com trilho, para dar a impresso de

    movimento, planos longos e ngulos diferenciados das cmeras.

    Por outro lado, Barbosa (2005:109) postula sobre essa origem que os quadrinhos

    japoneses surgem no como uma cpia do trabalho dos norte-americanos ou ingleses, os

    primeiros a levar os conceitos de quadrinhos e humor grfico ao Japo, mas como um

    reflexo da prpria forma japonesa de perceber o mundo.

    Wong (2006:27) explica que para os leitores japoneses, os quadrinhos estrangeiros

    representavam uma cultura extica. Os artistas aprendiam com o formato dos quadrinhos

    estrangeiros e os adaptavam para os leitores. Wong cita uma observao de Schodt: O

    relativo isolamento cultural do Japo sempre permitiu que ele fosse mais criterioso sobre

    influncias estrangeiras e ento adapt-las ao seu prprio gosto.

    Corroborando e argumentando as citaes acima, Kusahara (2003:243-4) relata em

    sua publicao as possveis razes para o segredo da popularidade universal dos mangs e

    anims; ela diz: Se verdade que os temas com os quais eles lidam so

    essencialmente universais e essa uma das razes por que seus trabalhos so altamente apreciados internacionalmente -, muitas vezes o enfoque que esses artistas adotam mostra certas caractersticas nicas em que seus colegas ocidentais no teriam pensado. a fuso de arte, entretenimento e comercializao. Eles trabalham com a idia da identidade; a originalidade e a subjetividade em suas obras de arte tm uma forte relao com o contexto cultural. A ausncia de um limite claro entre arte e entretenimento, ou arte e aplicao na arte tradicional japonesa, desempenhou um papel positivo na produo de produtos inovadores divertidos e artsticos.

    Num certo sentido, a cultura das mdias japonesa tem uma forte natureza ps-moderna, refletindo sua histria, na qual os japoneses introduziram diferentes elementos culturais de vrios pases, sempre mixando-os e reinventando-os dentro da estrutura tradicional.

    Ainda sobre a qualidade das produes japonesas, Ortiz (2000:166) observa que no

    Japo, mang e anim so gneros artisticamente consagrados, e isso faz com que autores

    talentosos possam atuar enquanto profissionais nas reas do cinema e da televiso.

  • 29

    F confesso de Walt Disney, Tezuka afirmou ter produzido uma de suas obras

    primas Ribbon no Kishi (A Princesa e o Cavaleiro mang de 1953, animado para a

    televiso em 1976), inspirado nas produes Disney Branca de Neve e os Sete Anes e A

    Bela Adormecida. Esse mang estreou o gnero dirigido ao pblico feminino. Candy

    Candy, a personagem na abertura desse trabalho (pg. 07), faz parte desse gnero chamado

    shjo monogatari (histrias para meninas).

    Tezuka tinha um elenco de personagens que ele escalava para histrias e papis

    diferentes, com pequenas alteraes em seu visual, como acontecem com os atores no

    cinema. Essa estratgia revela dois objetivos: Seu propsito pragmtico por no ter que

    despender tempo e imaginao criando tantos personagens quanto sua vasta obra exigiria. E

    atuar com o efeito de proxmica envolvendo os leitores e espectadores com personagens j

    familiares e populares, ao invs de arriscar conquist-los com personagens desconhecidos

    ao custo de uma possvel rejeio.

    Uma das caractersticas dos mangs de Tezuka que persiste at hoje o dilogo

    informal e pessoal do mangaka (quadrinista) com seu leitor.

    Alguns mangaka reservam colunas ao longo do encadernado onde eles abordam

    assuntos diversos como, por exemplo: Em Fushigi Ygi20, a Y Watase relata sua viagem

    s runas no Parque Nacional de Nara, ao colher dados para escrever sobre os quatro deuses

    sagrados em sua histria. A Masami Tsuda, de Kareshi Kanojo (Kare Kano as razes dele,

    os motivos dela) se presentifica no mang atravs de uma bonequinha de traos simples,

    deixa o leitor par de sua vida pessoal, das fontes de pesquisas quanto msica, moda,

    decorao, arquitetura, hbitos e dados culturais. J Nobuhiro Watsuke, ao publicar Ruroni

    Kenshin21 reservou pginas inteiras em suas publicaes onde ele esclarece quais pontos da

    narrativa so fico ou fatos da Histria. Quais registros ele consultou, incluindo museus e

    monumentos que visitou, para obter imagens dos personagens histricos.

    Gravett (2006:28, 34) refere-se ao sucesso de Tezuka como resultante, acima de

    tudo, sua nfase na necessidade de uma histria envolvente, sem medo de confrontar as

    questes humanas bsicas: identidade, perda, morte e justia. Ele Cita uma frase de Tezuka:

    20 Uma possvel traduo para Fushigi Ygi Jogo Misterioso. No entanto, Fushigi Ygi foi publicado e transmitido no Brasil com o nome original. 21 A traduo de Ruroni Kenshin seria O Andarilho Kenshin, mas foi publicado e transmitido no Brasil como Samurai X.

  • 30

    Uma histria, assim como uma rvore, precisa de razes fortes para ser envolvente. Se as razes forem fracas, nenhuma quantidade de detalhes bonitos ser suficiente para mant-la de p.

    Tendo vivenciado tempos difceis, suas obras denunciam a arrogncia, intolerncia,

    o preconceito, o descaso com a vida humana e pregam a paz, o amor e o respeito a todas as

    criaturas.

    Charles Solomon22 atesta que com o crescimento da economia e a expresso desse

    mercado, eles foram para todo lado numa variedade de estilos grficos, no uso da cor,

    produo de longas, de filmes lanados para vdeo (OVAs) e projetos para a TV.

    Produziram um volume extraordinrio de obras nos anos 70, 80 e 90.

    Com isso, o Japo constitui o maior mercado de histrias em quadrinhos do mundo

    e tem o maior centro de produo de desenhos animados do mundo situado em Tkio.

    No Japo, anims e mangs, conforme relata Borges (2005:20), constituem um

    grande fenmeno de comunicao japons, ultrapassando as barreiras de mero

    entretenimento e voltando-se como uma forma de aprendizagem.

    Em 2002, o Ministrio da Cultura Japons implantou a matria Manga Visual Pop

    Culture como atividade curricular de educao artstica das 1 e 2 sries ginasiais das

    escolas pblicas.

    Na cultura ocidental ainda prevalece o pensamento de que histrias em quadrinhos e

    desenhos animados so coisas para crianas. No entanto, os anims e os mangs abordam

    temas para todos os gostos e todas as idades e vm atuando para a ruptura desta forma de

    pensar.

    22 Charles Solomon faz essa declarao em entrevista para o making of de Animatrix.

  • 31

    CAPTULO II

    O Universo Anim

    Neste captulo, buscaremos os passos que construram e definiram as caractersticas

    dos anims, descrevendo-os de modo geral abordando sua esttica, gneros, ideologias e

    valores.

    II.1. A concepo dos personagens

    Osamu Tezuka23 cresceu na cidade de Takarazuka, famoso centro turstico com

    grande atividade cultural incluindo a pera Takarazuka fundada em 1914. Esse um teatro

    com o elenco formado apenas por mulheres, com todo um sistema hierrquico onde aquelas

    que representam papel masculino obtm mais privilgios. Sato (2007:129) relata que

    Tezuka inspirou-se na aparncia das atrizes, na maquiagem acentuada que usavam para

    destacar os olhos, para criar o estilo geral dos desenhos no mang e no anim: olhos

    grandes e brilhantes, corpos longilneos e cabelos espetados. O modo de desenhar

    personagens masculinos com caractersticas andrginas tambm espelha esse teatro.

    Alm do padro geral anim descrito, esse modelo permite o colorido dos olhos

    com cores como vermelho, amarelo, lils, bem como cabelos azuis, verdes, dependendo

    apenas do arbtrio e da imaginao do artista criador.

    Cada desenhista tem a liberdade de adaptar o anim ao seu prprio estilo variando,

    assim, de um artista para outro e tornando-se a sua marca. Como conseqncia, para

    aqueles acostumados aos desenhos japoneses, possvel identificar os autores pelo estilo de

    23 H um museu dedicado ao Osamu Tezuka na cidade de Takarazuka. Trata-se de um prdio de trs andares com 1.400m de rea com atraes como exposies, biblioteca, sala de projeo e at uma fbrica de animao. O museu possui um acervo de revistas em quadrinhos e anims, que podem ser lidos e assistidos pelos visitantes vontade.

  • 32

    seus traos, como os de Hayao Miyasaki24, CLAMP25, Akira Toriyama26, Y Watase27, os

    desenhistas que trabalharam em Animatrix, entre outros.

    Na arte visual japonesa prevalece o padro que dita uma esttica com o desenho o

    mais limpo possvel (sem traos extras) para a representao de pessoas jovens, visto que as

    linhas aumentam conforme a idade avana. Nos mangs e anims as linhas extras

    representam idade, sujeira ou ferimento. Acredita-se que as caractersticas de desenhos

    estilizados por poucas linhas compondo personagens magros e longos vm a ser uma

    herana da arte visual chinesa.

    As artes visuais da era Edo (1603 1867) j apresentavam uma esttica com um

    sistema de perspectiva baseado no apenas no perto e longe, mas tambm no que

    importante. Isto , os elementos mais importantes da gravura eram desenhados em

    propores maiores. Esse raciocnio pode ter contribudo para o aumento dos olhos dos

    personagens, atribuindo importncia a certos traos da personalidade, pensamentos ou

    sentimentos deles.

    Um exemplo da atribuio de caractersticas especificas atravs da esttica dos

    olhos a passagem do tempo: Alguns autores, como as meninas do grupo CLAMP,

    utilizam olhos enormes e redondos para as crianas; esses olhos continuam grandes, mas

    no redondos na adolescncia; j na idade adulta, os olhos ficam menores. Isso pode ser

    visto nesse trabalho comparando as figuras da Sakura, criana (pg. 45) e do Kamui,

    adolescente (pg.46).

    Outras produes distinguem os personagens principais com olhos grandes e

    brilhantes, s vezes com traado rebuscado, dos coadjuvantes com olhos simples e rpidos

    de desenhar.

    No entanto, assim como o valor semntico de uma palavra depende do contexto em

    que est inserida, tambm dependemos de um contexto para que possamos identificar qual

    papel narrativo um personagem desempenha, independentemente de sua tessitura visual.

    24 Diretor de animao do prprio Estdio Ghibili criou os longas-metragens A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado que j estiveram em cartaz nos cinemas brasileiros. 25 O grupo CLAMP responsvel pelo seriado Sakura Card Captor, transmitido na R. Globo e no Cartoon Network. 26 Akira Toriyama o autor da saga Dragon Ball. 27 Y Watase autora de Fushigi Yuugi.

  • 33

    Outra caracterstica do anim a produo de desenhos em estilo kawaii, ou seja,

    meigos, fofinhos e bonitinhos, com olhos gigantes e brilhantes, cores fortes e contrastantes,

    com personagens barulhentos para as crianas menores. Um exemplo transmitido por

    emissoras brasileiras Hantaro28.

    As produes tendo os adultos como pblico alvo tm traos menos estilizados no

    sentido kawaii, e mais prximos do real. As produes para o cinema so geralmente assim.

    Acima esto os dois extremos [verso kawaii para crianas e mais realista para

    adultos] quando tentamos descrever a expressividade plstica do anim. Porm, mais uma

    vez, importante considerar a pluralidade dessa forma de arte. H escapes dos padres a

    servio da renovao e da novidade.

    O conceito de iluso da vida de Disney impelia os desenhistas a inserir

    caractersticas de realidade nos personagens. O anim vai levar esse conceito a srio.

    Os mangs e anims tm o fluxo narrativo de suas histrias alongados em vrios

    captulos ou episdios. Essa caracterstica possibilita agregar descries psicolgicas

    profundas e enfatizar aspectos sutis da narrativa. H um crescimento psicolgico,

    amadurecimento dos personagens conforme o desenrolar da histria.

    Cada personalidade traz um conjunto de valores bem construdos. Alguns

    personagens so perfeitos, outros tm defeitos ou hbitos estranhos29. Curiosamente, os

    amigos desses seres exticos no levam suas diferenas em conta. Suas reaes

    demonstram desaprovao, mas tambm, respeito pelo jeito de ser do outro. No h

    discriminao por esse tipo de diferena.

    Mesmo quando esses tm visual irreal (olhos lils, sem pupilas, cabelos azuis,

    corpos exageradamente alongados), e vivem em mundos que no so o nosso, como

    acontece em Dragon Ball, Pokemon, Naruto, nos identificamos com eles porque todos tm

    objetivos, ambio, esperana, sonhos e garra para lutar por eles.

    28 Hantaro um desenho cujos personagens principais so hamsteres fofinhos e inteligentes. 29 O Miroki (InuYasha) um monge pervertido e ladro que pede em casamento toda moa bonita que acaba de conhecer. O Yamazaki (Sakura Card Captors) mentiroso e a Sakura est sempre atrasada. O Hotohori (Fushigi Yuugi) narcisista, a Miaka gulosa e o Tamahome mercenrio. A Serena (Sailor Moon) gulosa, chorona e vai mal na escola. O Broki (Pokemon) se apaixona por todas as garotas bonitas. A Miasawa (Karekano) egosta, ambiciosa e o Arima esconde um lado sombrio em sua personalidade. O Mestre Kami (Dragon Ball) e o sensei do Naruto, o Jiraiya so pervertidos, e etc.

  • 34

    Atravs da construo dos personagens desde a infncia, o enunciador prov meios

    para que o enunciatrio acompanhe a profundidade dos fatos e a intensidade das reaes

    deles na trama. Em alguns casos, os desdobramentos do enredo revelam o vilo como uma

    pessoa igual ao heri da histria, com coragem e determinao, mas cujos acontecimentos

    da vida o levaram para caminhos diversos, tornando seu ponto de vista diferente, at

    mesmo distorcido. Do ponto de vista dele, ele tem razo para as atitudes que est tomando.

    Na verdade, a palavra inimigo define melhor o vilo do anim.

    Os personagens raramente cantam e danam, por isso no comum haver musicais

    nos anims como os desenhos americanos.

    Assuntos abordados

    A animao americana feita dentro de limites estipulados por censura para certos

    tipos de violncia, relacionamentos, atividade sexual, ou ainda, certos contedos

    intelectuais. No Japo, assim como a literatura e filmes, os anims e mangs variam em

    gneros (comdia, drama, fico cientfica, terror, e etc.), alm de serem segregados em

    faixa etria. As possibilidades so infinitas.

    Entre essas possibilidades podemos citar temas relacionados a assuntos em

    evidncia no mundo contemporneo: globalizao, preservao do meio ambiente, avano

    tecnolgico. Histrias baseadas em lendas japonesas, crenas populares e nos clssicos

    contos orientais. Temas histricos: revolues, guerras, misria humana. Viagens espaciais

    ou a outras dimenses. Questes pacifistas, ecolgicas, filosficas, antolgicas, ticas, etc.

    O enunciatrio lanado a um mundo fantstico do imaginrio onde aspectos

    sociais, emocionais e comportamentais das pessoas so refletidos: as relaes afetivas e

    profissionais, problemas sociais como o desemprego, moradores de rua, bullying, vcios,

    violncia, preconceito, descaso com os idosos, e etc.

    As histrias tambm so ambientadas em locais comuns como escolas, ruas,

    ambientes de trabalhos, retratando hbitos corriqueiros das pessoas como levantar cedo, ir

    ao trabalho, adormecer em trens e metrs, estudar, etc.

    Os anims, em geral, apresentam carter apelativo para o emocional. Eles possuem

    trilha sonora bem marcada para cada ocasio da histria. Mesmo as produes para a

  • 35

    televiso tm trilhas musicais elaboradas a ponto de levar os fs, incluindo aqueles que no

    falam japons, a cant-las em karaokes e consumir os CDs musicais, que podem ser vrios

    do mesmo desenho.

    Sato (2007:38-9) constata uma curiosa distoro: Intrpretes e bandas japonesas

    que gravam msicas de abertura e encerramento de anims, como Hironobu Kageyama

    (Dragon Ball Z) e X Japan (X The Movie), acabam sendo mais conhecidos no ocidente que

    astros pop no Japo. Isso acontece por que o anim o principal meio de divulgao da

    msica pop japonesa no exterior.

    As composies musicais atuam efetivamente na construo de clima de vitrias,

    situaes de dificuldades, derrotas e mortes que afetam diretamente os personagens

    principais da histria...Sim, os protagonistas tambm morrem. H toda uma dramaticidade

    em torno da morte do personagem principal para que seja entendido que ele morreu com

    dignidade e por motivos nobres. Com direito a funeral, homenagens em pelo menos um

    episdio inteiro de melancolia. E ento, sem mais nem menos em algumas histrias esse

    ser retorna vida com alguma pendncia ou licena temporria para resolver assuntos no

    terminados. Dragon Ball Z, de Akira Toriama (1989), um exemplo tpico, e em Yu Yu

    Hakusho, de Yoshihiro Togashi (1989), o personagem principal morre logo no primeiro

    episdio.

    Como o anim lida com questes problemticas da vida, comum, em muitas

    histrias, os personagens serem massacrados, judiados, machucados, desacreditados, e s

    vezes at humilhados e aqui est uma marca comum na personalidade desses seres

    imaginados: eles no desistem. No do as costas aos seus sonhos e ideais mesmo estando

    beira da morte. Persistncia, garra, f em si mesmo, esto presentes em todos os tipos mais

    variados de personagens, mesmo que no tenham iniciado a histria assim.

    Essa caracterstica dos mangs e anims surgiu na dcada de setenta com um gnero

    chamado de nekketsu. Significa sangue quente, no sentido de determinao apaixonada e

    entendido como apologia ao esforo. O mang Ashita no Joe, de Tetsuya Chiba (1968), fez

    tanto sucesso no Japo com esse gnero, que essa caracterstica passou a fazer parte de

    quase todos os outros gneros a partir de ento.

    Os anims distinguem-se no apenas no gnero, mas tambm no tipo de produo:

    para a TV, para vdeo OVA (Original Vdeo Animation) e para o Cinema.

  • 36

    As produes para a TV so mais econmicas em termos de recursos visuais, as do

    cinema so as mais caras e elaboradas. Entre esses dois extremos est uma gama variada de

    produes que so os OVAs. Eles passaram a ser comercializados a partir do advento do

    vdeo cassete na dcada de 80. Mais tarde vieram as tecnologias a laser, discos laseres do

    tamanho de eleps, e mesmo agora com os DVDs, eles continuam sendo chamados de

    OVAs, pois a palavra refere-se mais ao estilo da animao do que a sua veiculao

    miditica.

    As produes cinematogrficas so, por vezes, extenses de seriados de anims

    consagrados pelo pblico. Podemos citar dos seguintes casos: Sakura Card Captors, Full

    Metal Alchemist, InuYasha, Dragon Ball, Cavaleiros do Zodaco, Pokemon, Neo Gnesis

    Evangelion, Sailor Moon, Patrulha Estelar, etc.

    Teremos uma idia do potencial das produes cinematogrficas no captulo III.

    Devemos destacar as produes do estdio Ghibili dirigido por Hayao Miyazaki30

    que receberam premiaes por sua primazia artstica, trazendo, ora mundos imaginrios

    visualmente belos e complexos, ora a realidade das crianas que sofreram os horrores da

    Segunda Guerra; em geral, suas histrias trazem mensagens pacifistas e ecolgicas.

    Os desenhos americanos tm os sons das falas gravados primeiro e depois feita a

    animao. No Japo, esse processo feito ao contrrio. Depois dos desenhos prontos so

    feitas as dublagens. O estdio Ghibili no apenas tem seu espao para as dublagens como

    tambm mantem um anfiteatro com acstica preparada para gravar a trilha sonora dos

    desenhos por um maestro e sua orchestra executando a msica assistindo ao desenho para a

    sincronizao.

    Alm das premiaes para os desenhos, os japoneses costumam premiar as

    inovaes tcnicas que permitiram desenvolver os processos de produo.

    O campo de anlise das animaes para cinema muito rico e vasto; porm,

    neste captulo, nos ateremos nos anims para a televiso.

    30 Sen to Chihiro (A Viagem de Chihiro), Kaze no Tani no Naushika (Nausicaa do Vale dos Ventos), Hotaru no Haka (O Tmulo dos Vagalumes), Tonari no Totoro (Meu vizinho Totor), Hauru no Ugoku Shiro (O Castelo Animado), Mononoke Hime (A Princesa Mononoke), etc...

  • 37

    II.2. Anims produzidos para a TV

    A pesquisa desenvolvida por Furniss (1998:135) quanto esttica da animao pode

    nos ajudar a definir a animao limitada e a animao perfeita31. A autora explica que a

    animao bidimensional pode ser descrita como oscilando entre dois plos estticos: full

    animation e limited animation. E continua a autora argumentando que full e limited

    animation so duas tendncias estilsticas que alcanam resultados estticos diferentes, com

    nenhuma sendo inerentemente agradvel nem repelente, mas as duas estando sujeitas a

    aplicaes criativas ou sem arrojo.

    Esses termos no se aplicam a outras formas de animao que no sejam

    bidimensionais, como stop motion ou tridimensionais.

    Furniss (1998:135) enumera quatro critrios que possibilitam comparar os dois

    estilos de animao: o movimento das imagens, a metamorfose das imagens, o nmero de

    imagens, e o controle dos componentes udios e visuais.

    Quando uma obra descrita como animao perfeita, em termos estilsticos,

    significa que nenhum desenho ou cenrio foi repetido, que foi produzido um grande

    nmero de desenhos para garantir a qualidade do movimento constante e da metamorfose

    das imagens. Assim, geralmente, so feitas as animaes para o cinema.

    Se colocarmos os dois estilos de animao em uma linha, os critrios considerados

    como animao perfeita, acima, esto acumulados em um dos extremos. Na outra

    extremidade, encontramos um oposto constituindo a animao limitada com as seguintes

    caractersticas: as imagens so reaproveitadas em seqncias definidas como ciclos, os

    movimentos so descontnuos e h nfase em dilogos com imagem parada.

    Para aqueles que conheceram os desenhos da HannaBarbera fcil lembrar que

    cada um deles possua um cenrio especfico, denunciando seu uso cclico. Era possvel ver

    a emenda na parte do corpo do personagem que estava sendo animada.

    31 Em ingls, os nomes so limited animation e full animation. Furniss (1998:138) contesta o emprego da palavra limited para designar um estilo de animao, pois, segundo a autora, a palavra limited implica estar faltando algo. Ela argumenta que essas so caractersticas quantitativas, mas que adquiriram conotao enganosa como qualitativas. Imagino se ela sabe que a full animation foi traduzida para o portugus como animao perfeita, complicando ainda mais o sentido que motiva a exaltao de uma e crtica da outra.

  • 38

    A produo de anim para a TV surgir como animao limitada, conforme

    descrito acima, e esse sistema de baixo custo32 vai adquirir caractersticas novas graas

    herana cultural japonesa.

    Os anims da TV so marcados em geral pela economia visual, principalmente no

    tocante animao (movimentao) em si. Os movimentos so quebrados e so utilizados

    truques de movimentao de cmera, enquanto personagens pensam o que vo fazer.

    Nesse caso, dada a voz do personagem para podermos acompanhar seu raciocnio,

    enquanto a cmera move-se lentamente mostrando o cenrio, geralmente trabalhado em

    detalhes, cores e elementos de cena, e situando os personagens topologicamente, seguidos

    de trilha musical.

    Em algumas animaes, eles nem sequer piscam, mesmo quando a cmera d um

    close up para efeito de proxmica do espectador em relao ao drama do personagem,

    desnudando assim, seus pensamentos e sentimentos atravs das expresses faciais. Por que

    isso acontece?

    Quanto mais desenhos so utilizados por segundo, mais perfeita33 se torna a

    animao. Por isso, a partir das experincias de Tezuka para reproduzir o mang no sistema

    de desenho animado, os profissionais da rea da animao japonesa inventaram vrias

    maneiras de limitar o tempo em que a animao perfeita necessria, baixando o custo da

    produo. Um bom exemplo para ilustrar essa soluo o seriado Uchsenkan Yamato 34

    (transmitido pela Rede Manchete, com o nome Patrulha Estelar, na dcada de 80). Para a

    produo do Yamato, segundo Gilles Poitras, foram feitos desenhos grandes e longos os

    quais a cmera filmava percorrendo-os e criando movimento sem precisar de vrias

    transparncias pintadas.

    Frederik L. Schodt expe que algumas vezes o desenho parece um mang, o quadro

    est parado e os personagens no se movem de modo contnuo como num desenho da

    Disney.

    32 Iniciamos essa discusso quando abordamos as produes HannaBarbera na pgina 20. 33 Continuamos usando a palavra perfeita em itlico para ressaltar nossa nfase no sentido estilstico da palavra, discutidos nesse trabalho, e no com conotao de primor tcnico ou artstico. 34 Uchyusenkan Yamato foi dirigido por Reiji Matsumoto. O seriado foi produzido para a TV em 1974 e teve uma compilao de seus episdios levada ao cinema no Japo em 1977.

  • 39

    Em Kareshi kanoj no jij35, (1998), de Masami Tsuda, produzido pelo estdio

    Gainax, por exemplo, tm-se literalmente enquadramentos das pginas do mang, ora

    estticos enquanto ouvimos uma narrao, ora com movimentao (apenas) de cmera.

    Mesmo nas produes mais recentes, esses efeitos ainda so utilizados. comum

    ouvirmos pessoas acostumadas a outras produes dizerem que o desenho japons

    parado. Charles Solomon diz que os japoneses exploram as melhores poses, nos melhores

    ngulos dos personagens, usam as falas, montagem e cenrios mais do que um diretor

    americano. E Frederik L. Schodt corrobora alegando maior nfase em closes nos rostos, em

    imagens congeladas, mostrando os olhos, a emoo.

    Consideramos um bom exemplo de produo recente e de baixo custo Tsubasa

    Chronicle (2003) do grupo CLAMP: O estdio construiu cenas de batalhas com

    personagens imveis, supostamente lutando, onde a animao feita pelo movimento de

    cmera panormica sobre um desenho longo e a dinmica da luta efetivada apenas pelos

    efeitos de sonoplastia (guerreiros gritando e armas tilintando (espadas e lanas)) com uma

    trilha sonora vibrante, forte e marcada. Outros desenhos mais antigos, como Records of

    Lodoss War (Yoshihiro Takamoto,1998) j apresentavam esse tipo de construo para

    cenas de batalhas.

    A esse respeito, os animadores japoneses argumentam que ns, ocidentais,

    valorizamos mais a expresso visual do que a histria em si; enquanto para os japoneses, a

    qualidade da histria tem peso preferencial maior em relao ao texto visual. O diretor de

    animao Peter Chung argumenta que a arte ocidental quer criar uma iluso da natureza,

    enquanto a pintura tradicional oriental valoriza mais o gesto do pintor. Ele diz que encara

    cada desenho num filme de animao quase como as pinceladas da pintura.

    Os anims tm seu prprio tempo para a ao:

    Anims com lutas marciais: Os oponentes ficam imveis durante um certo tempo.

    Enquanto isso, medem e estudam um ao outro, tentando prever o movimento alheio para

    escolher as prprias estratgias de batalha. Para os adversrios, concentrao primordial

    35 Kareshi kanoj no jij conhecido pelos fs como KareKano, e teve seu mang publicado no Brasil com o nome KareKano, As razes dele, os motivos dela.

  • 40

    nesse momento. Eles so acompanhados por movimentos de cmeras e trilha sonora, que

    constroem uma ambientao de tenso.

    Anims com transformaes: durante uma situao em que os personagens precisam

    transformar-se em heris ou heronas, eles o fazem durante um tempo que parece destacado

    do tempo contnuo da realidade em que esto inseridos. Em Bishjo Senshi Seera Moon

    (Sailor Moon), de Naoko Takeuchi (1992), no apenas a personagem principal Tsukino

    Usagi (Serena), mas todos que lutam com ela, tm seu momento de transformao antes da

    ao no desenho. Algumas pessoas perguntam o que o vilo fica fazendo, enquanto o heri

    est se transformando. Curiosamente, conheo alguns fs que consideram as

    transformaes como a melhor parte do desenho.

    Invocao de poderes: interessante em alguns anims com lutas, o fato de que

    enquanto um oponente est reunindo energia, (como o Kamehameha do personagem Goku

    em Dragon Ball Z), evocando foras da natureza (o poder Clera do Drago do Shiriu em

    Cavalheiros do Zodaco), conjurando magia (como a Sakura e o Shoran em Card Captors

    Sakura), ou, ainda, efetivando um jutso ninja (Naruto), o seu adversrio fica inerte

    observando, tentando entender e prever o que vai acontecer para se defender, ao invs de

    partir para o ataque e impedir que tais recursos sejam ativados.

    Um outro tpico a respeito do tempo da ao engloba quase todas as animaes

    atuais, ainda mantendo o enfoque nos anims. Nos desenhos transmitidos pela TV nas

    dcadas de 70 e 80, os heris eram aqueles que conseguiam evitar as tragdias. Nas

    animaes atuais, os heris so aqueles que conseguem superar as tragdias. Essa pequena

    mudana aproxima o mundo da imaginao do real e, talvez, inspire seus admiradores a

    encontrar o heri dentro de si ao enfrentar as dificuldades da vida.

    Atravs de anos de observao de vrios anims, pudemos chegar concluso de

    que as cenas paradas, assim como acontece no cinema, so aquelas com funo panormica

    ou dramtica. Com a funo panormica temos a oportunidade de correr os olhos pelos

    detalhes do cenrio e figurino dos personagens sem perder gestos ou olhares. J a funo

  • 41

    dramtica nos permite sofrer ou sorrir com o personagem devido ao prolongamento de

    certos acontecimentos envolvendo emoes (vitrias, derrotas, sustos, suspense e etc).

    Drazen (2007:29) sugere que os japoneses, em sua cultura pop, tm preferncia por

    histrias movidas mais por emoo do que por ao.

    Gilles Poitras cita cenas em que parece estar havendo pouca ao, compondo lindos

    momentos de lentido, muito atmosfricos, que so deliberados.

    Devido caracterstica lacnica inerente ao povo japons, gestos e olhares falam

    mais que palavras nos anims, e quando a cena est parada, apenas com as cmeras em

    movimentao, est, provavelmente, enfocando uma mensagem ou idia atravs de uma

    expresso corporal, facial ou de um objeto.

    Historicamente, no Japo, segundo Frederik L. Schodt, h nfase no no dito, no

    espao vazio e nos elementos estticos. At em romances japoneses a nfase dada ao que

    insinuado. Ele diz que, em parte, isso vem do idioma. O japons usa tanto a insinuao,

    que muitas coisas no so ditas diretamente.

    Essa caracterstica do anim de dizer sem utilizar palavras chama-se laconismo.

    Borges (2005:30) elucida que:

    Laconismo o termo utilizado para descrever a maneira concisa dos japoneses de falar e escrever. O princpio esttico do ideograma de repelir o suprfluo e valorizar o essencial (limitao espacial), pode ser observado na economia de caracteres utilizados para se transmitir mensagens. Esttica que enfoca o olhar no necessrio, atravs da insinuao na composio de sua forma.

    O diretor Mahiro Maeda define essa caracterstica do anim como subtrao. Ele

    argumenta que a Amrica usa mais a adio, e que o modo de expresso usado

    tradicionalmente no Japo valoriza mais a subtrao: Quando muito dito, perde-se o

    charme.

    Vamos investigar agora o fim:

    So poucos os anims que trazem a idia de E assim, viveram felizes para

    sempre!. Os finais costumam indicar que os personagens vo continuar suas vidas com

    suas facilidades e dificuldades, e que a rotina continua, com suas questes do dia a dia, a

  • 42

    citar, Fruit Basket36: (...) passando repetidas vezes por momentos felizes e tristes, s

    assim que todos ns amadurecemos.

    Outro ponto interessante a ser considerado que, com raras excees como

    Pokemon (produzido desde 1997), as histrias acabam. Os heris e heronas se casam,

    envelhecem, morrem, desaparecem, vencem e perdem.

    Os roteiros so escritos de tal maneira a prender o enunciatrio at o fim da trama.

    Conforme os personagens adquirem sabedoria, experincia, e, dependendo da histria,

    poder, os problemas se intensificam e os desafios aumentam proporcionalmente.

    Nos anims com lutas, por exemplo, quando o heri faz treinamento para ficar mais

    forte, assim tambm o faz seu inimigo. Isso contribui para a produo do efeito de

    expectativa pelos prximos episdios.

    Histrias intrigantes, personagens cativantes e esforados, solues e estratgias

    inteligentes, trilha sonora empolgante e uma construo visual que programa os olhos para

    relevar os momentos de animao limitada e reparar os elementos que valorizam o anim,

    ora com animao perfeita, ora com efeitos especiais em constante inovao.

    Vamos visitar alguns desses recursos visuais a seguir.

    36 Fruit Basket, chamado pelos fs de Furuba, uma histria de Natsuki Takaya, e teve sua verso animada encerrada antes da publicao do final do mang. A frase supracitada , portanto, do final do mang, mas ilustra bem a mensagem no final das histrias dos mangs e anims.

  • 43

    II.4. Alguns recursos gerativos de sentidos nos anims

    Veremos agora alguns quadros que ilustram a construo figurativa e temtica que

    concretizam algumas das paixes nos anims.

    Alguns recursos estticos utilizados por Osamu Tezuka continuam at os dias de

    hoje:

    O cenrio que se transfigura em

    um borro em movimento rpido para

    criar um efeito dinmico de velocidade

    do personagem. Esse efeito pode ser

    manifesto com linhas coloridas

    responsveis pela iluso de dinamicidade

    quando o personagem est parado e

    prestes a iniciar uma ao.

    As figuras so do anim A Princesa e o Cavaleiro.

    O efeito de sobreposio de

    planos em transparncia para que o

    enunciatrio possa visualizar os

    pensamentos dos personagens. Na figura

    ao lado, o prncipe Safiri est pensando

    no bem estar de seu reino, a Terra de

    Prata. Podemos ouvir e ver seus

    pensamentos, ao som de fundo musical.

    As duas figuras a seguir so de

    um evento festivo nas ruas do pas da Terra de Prata. O prncipe Safiri (que , na realidade,

    uma princesa), est disfarado de camponesa e danando com o prncipe Frans. o

    primeiro encontro deles. Ele ainda no sabe quem ela .

    A cena construda de modo que o enunciatrio acompanhe o ponto de vista dos

    personagens.

  • 44

    Apesar de ser uma noite limpa

    com cu estrelado, a imagem que a Safiri

    v enfeitada do que parecem ser bolhas

    de sabo coloridas, ou luzes coloridas

    projetadas por um globo espelhado.

    A enunciao do episdio deixa

    claro que esse um acontecimento

    particular aos dois.

    A multido que est festejando na

    rua desaparece. um efeito conveniente

    para os animadores, pois precisam

    apenas animar o casal principal. Ao

    mesmo tempo, enfatiza-se um momento

    estsico das paixes do encantamento,

    fascinao, figurativizando o fato de que,

    para esses dois, ningum mais importa.

    Quando um personagem chora, e assumimos o ponto de vista dele, vemos a imagem

    embaada como se as lgrimas estivessem nos nossos olhos. Esse jogo de cmeras na

    enunciao constante nos anims, ora estamos em posio de espectadores, ora

    assumimos a perspectiva dos personagens.

    Essa uma das delcias do desenho animado japons37, trocar de lugar com o

    protagonista da cena: em A Viagem de Chihiro, na cena em que a Yubaba sai de sua mesa e

    parte para cima da Chihiro, feito um furaco, gritando de forma ameaadora, a cmera

    assume o ponto de vista da Chihiro e, conseqentemente, visualizamos a Yubaba vindo em

    nossa direo. Nessa ocasio, no cinema, algumas pessoas reagiram dizendo Credo!,

    Nossa!. Isso exemplifica a intensidade desse efeito de sentido.

    37 Nas palavras de Carlo MacCormick (crtico de arte e historiador da cultura pop) quando descreve os efeitos dos jogos de ngulos de cmeras nos anims.

  • 45

    Efeitos produzidos pelas alteraes faciais:

    H uma infinidade de variaes na fisionomia dos

    personagens.

    Um olhar atento acompanha, em um minuto de

    animao, desde mudanas sutis at expresses

    exageradas conforme as alteraes de idias e dos

    pensamentos deles. A seqncia ao lado mostra as

    alteraes no semblante, principalmente, da personagem

    Sakura, no ltimo episdio de Card Captors Sakura, A

    Carta Selada (CLAMP, 2000).

    As variaes nas expresses dependem do estilo

    do desenho, e se ele foi feito para o cinema (as alteraes

    limitam-se a um sistema expressivo mais srio), se uma

    produo para OVA (nesse caso, a variedade depende

    exclusivamente do estilo da obra), ou para a TV.

    H algumas produes em estilo mais srio para a TV. Mas em sua maioria, as

    expresses faciais variam at o ponto da caricatura ou deformao.

    Em Zatch Bell, por exemplo, os personagens ficam quase irreconhecveis e horrveis

    quando esto em apuros. um estilo mais cmico.

    Quando o brilho dos olhos praticamente toma

    conta deles, como acontece com os olhos da Tomoyo, na

    figura ao lado, eles presentificam a paixo de extrema

    felicidade, um arrebatamento.

    Na primeira figura a Sakura est feliz, na segunda

    ela no entendeu alguma coisa e na terceita est feliz

    (bochechas em cor-de-rosa) e sem jeito.

    Quando aparece uma gota gigante ao lado de um

    personagem, ela pode indicar que o personagem est sem

    jeito (esse o caso da situao ao lado), encrencado ou

    no est entendendo o que est se passando.

    Os pequenos riscos vermelhos, em diagonal, na

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    bochecha simulam o blush e transmitem a paixo da vergonha. Apenas se o personagem

    estiver muito envergonhado ficar com o rosto vermelho.

    Esse traje semelhante ao de um marinheiro um

    uniforme escolar no Japo. Em vermelho est uma

    representao da raiva. Assim como a gota, esse smbolo

    pode aparecer na fronte do personagem ou na parte do

    corpo disponvel no enquadramento. s vezes temos, por

    exemplo, o p do personagem em cena e um desses

    smbolos. No precisamos do rosto, ou do verbal, para

    saber o que se passa com ele.

    As variaes faciais so um divertimento a parte.

    Tudo possvel.

    Ao lado, a reao da Sakura ao ser contrariada.

    Seu irmo fez uma provocao bem sucedida. Essa

    forma estilizada de vermelho e amarelo ao lado do rosto,

    parecendo ter sado dos quadrinhos, aparece na tela, rapidamente, com a funo de mostrar

    visualmente o sentimento repentino de abalo causado pelas palavras do irmo.

    Sakura um desenho voltado para crianas e adolescentes. Vejamos o que acontece

    se o desenho apresentar uma atmosfera mais pesada e sombria como em algumas produes

    para adolescentes e adultos.

    Abaixo, a imagem do Kamui, protagonista de X38 (CLAMP). Um personagem que

    ele ainda