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A arqueologia como semiologia da cultura material Jorge de Alarcão Revista de Guimarães, n.º 105, 1995, pp. 21-44 Umberto Eco, numa definição. preliminar do signo, definição que privilegia a função em detrimento da natureza do signo, e a Semiologia da comunicação sobre a Semiologia da significação, diz que o signo “é usado para transmitir uma informação” (1990:21). Prieto, na mesma linha, diz que os sinais (os “sinais” de Prieto e os “signos” de Eco são a mesma coisa) têm por função transmitir mensagens (1973:10); e ainda que o sinal “é um índice artificial, isto é,... um facto que fornece uma indicação e foi produzido expressamente para isso” (1973:20). A teoria do signo como mensagem intencional é a Semiologia da comunicação. Esta estuda a linguagem mas também sistemas de comunicação não linguística, de que os sinais de trânsito constituem um exemplo recorrente nas obras de Semiologia. Os semiólogos da comunicação distinguem o emissor, que produz a mensagem, do receptor ou destinatário, que a recebe. A mensagem implica dois actos: o da produção, de que é responsável o emissor, e o da recepção ou leitura, que é efectuado pelo destinatário. Mas a mensagem é produzida num contexto, tem um conteúdo e recorre a signos, de que se serve de acordo com códigos. Os objectos, de que a cultura material se compõe, podem ser produzidos para transmitir mensagens. Tomemos o caso da moeda romana. Esta moeda, emitida por Augusto (emissor) e destinada à população do Império (destinatária) foi produzida num contexto (o da paz social introduzida pelo Imperador, que pôs fim às guerras civis do fim da República). A moeda tem um conteúdo ou transmite uma mensagem: apresenta Augusto © Jorge de Alarcão | Sociedade Martins Sarmento | Casa de Sarmento 1

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A arqueologia como semiologia da cultura material Jorge de Alarcão Revista de Guimarães, n.º 105, 1995, pp. 21-44

Umberto Eco, numa definição. preliminar do signo, definição que privilegia a função em detrimento da natureza do signo, e a Semiologia da comunicação sobre a Semiologia da significação, diz que o signo “é usado para transmitir uma informação” (1990:21). Prieto, na mesma linha, diz que os sinais (os “sinais” de Prieto e os “signos” de Eco são a mesma coisa) têm por função transmitir mensagens (1973:10); e ainda que o sinal “é um índice artificial, isto é,... um facto que fornece uma indicação e foi produzido expressamente para isso” (1973:20).

A teoria do signo como mensagem intencional é a Semiologia da comunicação. Esta estuda a linguagem mas também sistemas de comunicação não linguística, de que os sinais de trânsito constituem um exemplo recorrente nas obras de Semiologia.

Os semiólogos da comunicação distinguem o emissor, que produz a mensagem, do receptor ou destinatário, que a recebe. A mensagem implica dois actos: o da produção, de que é responsável o emissor, e o da recepção ou leitura, que é efectuado pelo destinatário. Mas a mensagem é produzida num contexto, tem um conteúdo e recorre a signos, de que se serve de acordo com códigos.

Os objectos, de que a cultura material se compõe, podem ser produzidos para transmitir mensagens.

Tomemos o caso da moeda romana. Esta moeda, emitida por Augusto (emissor) e destinada à população do Império (destinatária) foi produzida num contexto (o da paz social introduzida pelo Imperador, que pôs fim às guerras civis do fim da República). A moeda tem um conteúdo ou transmite uma mensagem: apresenta Augusto

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como pacificador. E fá-lo por meio de signos: apresenta a efígie do imperador no anverso e a figura alegórica da Pax no reverso. Se o emissor quisesse transmitir outra mensagem, por exemplo, falar de si como restaurador da religiosidade tradicional, usaria outros signos: representaria no reverso, por exemplo, a figura alegórica da Pietas, um templo, um altar, um sacrifício, um instrumento litúrgico. Os signos obedecem a um código: neste caso, o código determinava que a figura do emissor se apresentasse no anverso, acompanhada de uma legenda que o nomeasse e que indicasse os seus títulos, estes mesmos abreviados segundo normas; e que no reverso se apresentasse, não o referente, isto é, não o indivíduo de quem se queria falar (neste caso, Augusto), mas aquilo que dele se queria dizer ou predicar.

O signo pode ser polissémico, isto é, pode ter vários sentidos. Num famoso baixo-relevo romano encomendado pelo censor Ahenobarbus, vêem-se Poseídon e Anfitrite no seu carro, acompanhados por centauros marinhos e Nereides. Talvez o cortejo aluda simultaneamente a uma vitória naval do censor e à pretensão genealógica da família, que se considerava descendente de Poseídon.

A mensagem tem assim um referente, que é aquele ou aquilo de que se fala. Neste sentido, pode ser auto ou hetero-referencial, consoante o emissor fala de si ou de outrem (ou ainda de outra coisa). Mas o emissor não afirma ou não fala indiferente ao que diz: o emissor adere ou distancia-se do que diz, di-lo com sentimento. É o que Jakobson designa por função emotiva da comunicação (l963:213 s.). E o emissor não pretende apenas informar, mas influenciar, persuadir, mobilizar o receptor, fazê-lo tomar uma atitude. É o que o mesmo autor, na sua teoria das funções da linguagem, designa por função conativa ou injuntiva. A linguagem pode ser modulada de modo a desvelar o sentimento do emissor e a provocar a reacção do receptor. Posso dizer “Aceito” em diversos tons ou com diversas ênfases, exprimindo alegria ou apenas conformação. E posso dizer “Aguarda- -me” de modo mais ou menos imperativo, suscitando no outro receio ou curiosidade.

Talvez, na comunicação por meio de signos não verbais, e com excepção feita ao domínio artístico, seja difícil ao emissor deixar transparecer ou modular a emoção. Como podia Augusto, através das suas moedas, exprimir a sua satisfação pelo seu próprio papel, a sua adesão ao seu próprio programa político? E o imperador que

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representava a Pietas no reverso das suas moedas limitava-se a afirmar a sua religiosidade ou conseguia persuadir os destinatários?

A função emotiva jakobsoniana talvez esteja ausento da cultura material enquanto mensagem; talvez o emissor não possa exprimir na cultura material o sentimento que o afecta. Mas, se o exemplo da moeda de Augusto nos deixa na dúvida sobre a capacidade emotiva e sobre o êxito injuntivo da mensagem que a cultura material transporta, outros exemplos confirmam que essa cultura pode eventualmente exprimir os sentimentos do emissor e comunicar de maneira persuasiva.

Tomemos o caso de uma taça de terra sigillata da produção industrial de Perennius, de Arezzo. O contexto histórico é o da propaganda contra Marco António após o desentendimento deste com Augusto (então apenas ainda Octaviano). Um dos oradores que mais se distinguiram pelas suas diatribes contra Marco António foi M. Valério Messala Corvino, cujos discursos, aliás, e infelizmente, se perderam. Naquelas taças de Perennius, produzidas em série, Marco António figura reclinado num carro puxado por centauros, vestido de trajos transparentes que um homem não usaria. Segue-se-lhe num outro carro, Cleópatra, coberta com a pele de leão de Hércules e segurando na mão a maça deste herói. Claramente, há aqui uma alusão ao episódio em que Ónfale dominou Hércules, episódio que aliás era frequentemente representado em pintura, na época. Marco António é aqui representado como um homem que se deixou dominar por uma mulher e se efeminou (ZANKER, 1990:59). Há, portanto, aqui, uma tomada de posição pelo emissor do signo, que assumiu uma atitude crítica relativamente a Marco António e a proclamou. Casos como este não são todavia frequentes. os signos/mensagens da cultura material são geralmente incapazes de exprimirem a emoção ou atitude do emissor.

Tomemos outro caso, o das ombreiras e vergas decoradas das casas castrejas, que nos exemplifica a função injuntiva dos signos. Nem todas as portas eram decoradas. A decoração era um signo/mensagem que comunicava o status social elevado do ocupante; tinha uma função injuntiva ou conativa, porque concitava o respeito da restante população. A decoração era susceptível de modulação (podia ser mais rica ou mais simples) e modulava a reacção (de maior respeito pelo proprietário da casa mais decorada).

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Retiremos, agora da modernidade, ainda um outro exemplo. No Lago Baringo (Quénia), duas tribos, Tugen e Njemps, repartem o território. Os brincos das mulheres são diferentes, tendo cada etnia o seu tipo (HODDER, 1982:78). Assim, os brincos são signos/mensagens que comunicam a que etnia pertence esta ou aquela mulher. Uma mulher, vendo na outra brincos que a identificam como pertencente a outra etnia, toma uma atitude de distanciamento diferente da atitude de solidariedade que assume para com a mulher que, através dos brincos, identifica como sendo da mesma etnia.

Os signos têm assim um poder persuasivo, de tal forma que Paul ZANKER pôde intitular uma das suas obras The power of images in the age of Augustus (na versão inglesa) e afirmar que “uma nova linguagem visual contribuiu significativamente para o processo de mudança (da sociedade)” (1990:V). E Christine PÉREZ, aplicando uma perspectiva semiológica, escreveu Monnaie du pouvoir. Pouvoir de la monnaie.

Jakobson distingue ainda, na comunicação verbal, as funções fática, poética ou estética e metalinguística. Poderemos distinguir também estas funções na cultura material?

A função fática cabe àqueles elementos do discurso que servem para chamar ou sustentar a atenção do destinatário, como por exemplo, a expressão “Está a ouvir-me?” ou “Alô, está lá”. Ora, dimensionando os signos/mensagens (os brincos podem ser maiores ou menores mais visíveis ou mais discretos), o emissor chama mais ou menos a atenção do receptor. Nos finais da República e nos inícios do Império romano observa-se uma escalada na dimensão dos túmulos, que aliás assumiam por vezes formas exóticas, como a do rico industrial de panificação Eurysaces. Que outro sentido tinha este sobredimensionamento ou exotismo do túmulo, senão o de chamar a atenção para a mensagem que se pretendia transmitir, mensagem essa que era a comunicação da importância social ou do êxito económico que o morto tinha tido em vida? Os túmulos sobredimensionados ou exóticos constituíam um discurso hiperfrástico que tinha por função chamar a atenção.

Se a linguagem pode ser mais ou menos poética ou estética, também os signos/mensagens podem ser elaborados com mais ou menos arte. A função poética é a arte de agradar – o homem não é apenas um homo loquens, que fala, mas um homo poeticus, no sentido de que é capaz de dar aos signos uma forma mais ou menos

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agradável. Talvez esta função se possa chamar também retórica, porque o esforço de agradar e um esforço para persuadir. Talvez a função poética de Jakobson sirva a função conativa ou injuntiva do mesmo autor. A função poética é uma função dominada por uma função dominante, que é a injuntiva. A inventio e a dispositio são partes da Retórica. Na invenção ou descoberta dos sinais que hão-de veicular a mensagem, na disposição deles quando são feitos de vários elementos, reside a póiesis. Se um colar, que transmite a riqueza ou o status social do utilizador, é feito de várias peças, há na composição ou dispositio delas uma arte poética. Voltando à cerâmica de Perennius, o que este pretendia transmitir era a ideia da subjugação da vontade de Marco António a Cleópatra e dos efeitos nocivos dessa subjugação. Tratou de representar o primeiro como Hércules e a rainha do Egipto como Ónfale e dispôs as figuras num como as poderia ter disposto de um lado e do outro de uma figura alegórica representando o rio Nilo, o que daria. um contexto geográfico ao facto referendado. A maneira de compor o signo é uma poética.

A função metalinguística tem por finalidade definir o sentido dos signos que podem não ser compreendidos pelo destinatário. Na comunicação verbal, o sentido das palavras pode ser esclarecido por outras palavras, sejam estas simples sinónimos, sejam perífrases. No plano da cultura material, os signos não podem ser esclarecidos por outros signos visuais, mas apenas por meio de uma explicação verbal dada ao receptor. se este não compreendia que este templo, nesta moeda de Augusto, comunicava a pietas do imperador, não se podia substituir o signo por outro signo com significado mais directo ou evidente; só explicando verbalmente ao receptor o que é que significava o templo é que se podia conseguir que este compreendesse a mensagem do signo.

C. Manílio Limetano cunhou, em 82 a.C. um denário com a cabeça de Mercúrio no anverso e a imagem de Ulisses no reverso. Que mensagem pretendia transmitir este monetalis? Que pretendia dizer? Que a sua família descendia de Ulisses e Mercúrio. Em Roma, a população que conhecia o homem e as pretensões genealógicas da família, compreendia a mensagem. Mas, fora de Roma, onde a família era talvez desconhecida, quem é que a compreendia? Este caso não foi um caso isolado, obedeceu a um código frequente na época, segundo o qual os monetales representavam nas suas moedas deuses ou heróis de quem pretendiam descender. Conhecendo o código, mesmo sem

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conhecer as pretensões da família, cidadãos fora de Roma poderiam ainda compreender a mensagem. Mas que poderia entender dela um cidadão que nem o código conhecesse? A esse cidadão, ninguém poderia explicar a mensagem por meio de outros signos visuais: só através de uma explicação verbal. Não há, portanto, metalinguagens visuais que possam corresponder às metalinguagens verbais de Jakobson.

A cultura material é, pois, parcialmente feita de objectos que são criados para comunicar e os conceitos operacionais da Semiologia podem ser aplicados à análise arqueológica. Mas serão todos os objectos intencionalmente comunicantes? Serão todos eles criados para comunicarem uma mensagem?

Há sinais que têm um significado não intencional: comunicam sem terem sido feitos para isso. Uma mancha descolorida redonda no tampo da minha mesa significa que esteve ali um copo (ou uma chávena ou talvez uma jarra). Um milharal destroçado significa que veio ali um javali. O cheiro a urina que em certas ruas das cidades romanas antigas se sentia indiciava ou significava a presença de fullonicae ou officinae lanifricariae, isto é, oficinas de preparação de tecidos, que aliás podiam ser anunciadas por formas expressas ou intencionais de signos, como tabuletas. O guarda-chuva foi feito para abrigar da chuva, não para comunicar que vai chover; mas se eu saio de casa e vejo alguém com um guarda-chuva, este objecto útil informa-me sobre o receio do outro, que saiu com o guarda-chuva porque receia que vá chover. Os objectos úteis não foram feitos expressamente para significar, mas frequentemente significam alguma coisa e são, por isso, signos ou sinais não intencionais que comunicam.

A teoria dos objectos significantes que não são mensagens intencionais é a Semiologia da significação. Talvez possamos considerar Barthes como o seu primeiro teorizador, aliás sem consciência clara de que fundava um novo ramo da semiologia. “Buyssens e Prieto, diz Mounin (1970:11), foram os primeiros a perceber – mesmo antes do interessado, que o que Roland Barthes chamava Semiologia, a partir de 1956, em Mythologies, e depois nos Éléments de Sémiologie, em 1964, era uma coisa completamente diferente”. Diferente da Semiologia da comunicação.

“Qualquer objecto do mundo, diz Barthes, pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral” (1988:181); isto é, qualquer objecto pode falar. E pode fazê-lo porque os objectos são

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socialmente úteis. O objecto é aquilo de que o homem se serve para alguma coisa; o objecto está aí, em situação de ser usado ou à espera de alguém que se sirva dele. O objecto remete por conseguinte para um utilizador, de quem fala: este cinzeiro, em cima da minha mesa, diz que eu fumo; este livro, em cima da cadeira, na sala do amigo que visito, diz-me que ele lê e o que lê.

Barthes, em Elementos de Semiologia (1989:21-24), considera a moda, a alimentação, os automóveis e o mobiliário como “objectos semânticos ou sistemas de significação”. Mais interessado em mostrar que neles há uma língua e uma fala, não define com muita clareza onde estão o emissor e o receptor, o referente e o conteúdo, as funções emotiva, conativa, fática, poética e metalinguística. Mas é clara a afirmação de que os objectos podem tornar-se fala (1988:182), isto é, podem comunicar alguma coisa a alguém. O vestuário serve para o homem ou a mulher se cobrirem; mas se eu vejo uma mulher sair de casa de vestido comprido, sei que vai a uma festa; e se a vejo sair de shorts, fico a saber que não vai a uma festa, mas talvez à praia. O que não é feito para comunicar é todavia ainda um signo, isto é, algum composto de significante e significado.

Na medida em que os objectos são úteis, servem para alguma coisa e portanto indicam a presença de alguém que se serve deles e anunciam o acto de que eles são instrumentos. Na percepção do objecto perfila-se, mais ou menos recuadamente, um agente, um proprietário do objecto, um utilizador; este agente tem, ou teve ou vai ter um comportamento que utiliza, utilizou ou vai utilizar esse objecto. Assim, na percepção do objecto útil, este objecto é ultrapassado em relação a um agente ou é sinal da existência de um agente que nos aparece não como mero sujeito lógico, mas como um outro concreto, um ser situado no mundo, um ser que actua. E se o objecto remete para qualquer coisa que ele não é, o objecto é um signo ou sinal, porque o que é próprio de um sinal é exactamente remeter para outra coisa que ele não é, como o fumo que se vê remete para um fogo que não se presencia. Na definição da Escolástica, stat aliquid pro aliquo: no signo, qualquer coisa está por outra coisa. Segundo Santo Agostinho (citado por BARTHES, 1989:29), “um signo é uma coisa que... faz afluir por si própria ao pensamento qualquer outra coisa”.

A cultura material engloba, portanto, dois tipos de sinais: os

sinais/mensagens e os sinais não intencionalmente significativos.

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Dêmos ainda, destes últimos, um exemplo. Certas pedras perfuradas que se encontravam nas paredes das casas castrejas e que serviam para prender o gado significavam para os castrejos alguma coisa, ou eram meros objectos úteis que não comunicavam coisa nenhuma? Se o habitante de um castro via numa casa uma dessas pedras, mesmo que nenhum animal estivesse preso nela, isso comunicava-lhe que o proprietário da casa tinha gado; talvez ainda que o proprietário tinha saído com o gado. Mesmos os objectos úteis comunicam, pois, alguma coisa, isto é, são significativos.

Poderá depreender-se do que dissemos que há, na cultura material, duas categorias de objectos: os signos/mensagens e os signos/significantes. Na realidade, numa exploração semiológica da cultura material, temos de ir mais fundo e distinguir signos/funções, objectos sinaléticos, índices, ícones e símbolos.

Os signos/funções são aqueles objectos úteis que transmitem uma informação sem que haja, da parte do utilizador ou do produtor, a intenção de comunicar seja o que for.

Drewett escavou, em Black Patch (Sussex, Inglaterra), um conjunto de cinco cabanas da Idade do Bronze (1060±100 a.C.) (1979:3-11). A cabana 3, que proporcionou, entre outros materiais, uma navalha de barba e duas sovelas de bronze para trabalhar o couro, tomou-a Drewett como a casa do chefe da família, porque os instrumentos achados são instrumentos de que o homem, e não a mulher, se serviam. A cabana 1, com abundantes fragmentos de cerâmica (raros na cabana 3) e um moinho de rebolo, interpretou-a como a casa onde a mulher preparava e servia as refeições, o que aliás parece confirmado pela presença de dois anéis de bronze espiralados, adereços de mulher. Não tendo achado nem cerâmica nem outros instrumentos nas cabanas 2 e 5, concluiu, hipoteticamente, tratar-se de currais. Aqui temos um exemplo de que como os objectos úteis, lidos como sinais, permitem a interpretação de um sítio, neste caso um casal onde vivia uma família. Chamemos a atenção para o facto de, numa interpretação superficial, o conjunto das cinco cabanas poder ser tomado como uma aldeia com cinco famílias residentes.

A reconhecida reinterpretação que David Clarke fez do povoado da idade do Ferro inglesa de Glastonbury é ainda um excelente exemplo do que se pode deduzir quando se tomam os objectos úteis como signos ou sinais; neste caso, os objectos foram também tomados

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como sinais da funcionalidade das diversas cabanas ou estruturas e permitiram um interessante estudo sobre a organização do espaço naquele povoado, também com unidades familiares constituídas por diversas cabanas, cada uma com sua serventia principal, umas, domínio do homem, outras, da mulher (CLARKE, 1972: 801-870).

Os objectos sinaléticos comunicam uma ordem. Temos, como exemplo de signos desta natureza, os sinais de trânsito. Podemos interpretar também como objectos sinaléticos os monumentos megalíticos porque, para além de servirem para enterrar os mortos, marcavam uma propriedade, avisavam quem quer que fosse que aquele território tinha donos ou ocupantes e ordenavam a um eventual grupo que se deslocasse à procura de terra onde se fixar, que se afastasse daquela.

Nas montanhas Kjölen (na fronteira entre a Noruega e a Suécia) encontram-se lugares, comummente chamados stallo, cons-tituídos por 3 a 8 cabanas, lugares que a datação radiocarbónica permitiu atribuir ao período de 800 a 1400 d.C. Têm sido tomados como acampamentos de verão de caçadores de renas que, de inverno, viveriam junto aos fiordes e, na estação quente, se deslocariam para as montanhas a fim de caçarem renas cujas peles venderiam aos chefes escandinavos. Inger Störli (1993:1-48) contestou esta interpretação, devido à ausência dos sinais que deveriam existir se os stallo fossem habitações de caçadores de renas: fossas armadilhadas e montões de ossos provenientes do esfolamento e abandono dos animais. Störli tomou os stallo como acampamentos de pastores transumantes. Mas não é isso que nos interessa agora aqui. O que importa é que, na parte posterior das lareiras dessas cabanas, se encontram pedras alçadas. Que significam? Numa explicação funcionalista, não semiológica, diríamos que protegiam o fogo, do vento. Mas a etno-história dá-nos uma explicação diferente. Nas cabanas dos Saami encontram-se essas mesmas pedras, que dividiam o espaço das cabanas numa área masculina (boassu) e num espaço feminino (uksa) (YATES, 1989:249-262). As pedras eram, pois, objectos sinaléticos, que vedavam, às mulheres, um espaço reservado aos homens.

Os Romanos representavam por vezes, na parede ou no chão das casas, olhos ou falos. Podemos tomá-los também como objectos sinaléticos, se bem que o destinatário, neste caso, fosse uma divindade malfazeja, Invidus, a quem olho ou falo obrigava a afastar-

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se. Temos aqui objectos sinaléticos com um receptor especifico, que é a divindade; e a esta que se destina ou dirige a função injuntiva. Por isso falaríamos com mais propriedade de uma função mântica do sinal (GUIRAUD, 1993:56 s.).

Os índices significam alguma coisa por serem parte dessa mesma coisa. Os buracos cheios de terra negra, dispostos em círculo, permitem ao arqueólogo identificar uma cabana circular, porque são o que resta dessa estrutura. Alguns vagos vestígios de ossos numa sepultura são índices de um corpo inumado que a acidez do terreno roeu quase por completo. Este fragmento cerâmico é índice de uma ânfora romana.

Os ícones são objectos que representam outros e formalmente configurados de forma a assemelharem-se ao representado. A representação de uma divindade é um ícone. Os cilindros de calcário do Calcolítico peninsular, oculados, são sinais representativos de uma Deusa-mãe que as populações daquele tempo adoravam. Mas os guerreiros galaicos do Noroeste, toscas estátuas de granito que representavam príncipes, são também ícones. Neste campo dos ícones encontramos as mais variadas escalas de realismo ou abstracção.

Os símbolos, finalmente, são objectos que comunicam uma qualidade de outrem ou materializam uma ideia. O torque da Idade do Ferro simbolizava o poder do chefe. As ombreiras e vergas decoradas das casas castrejas simbolizavam a preeminência social dos residentes. A representação do abutre, em Çatal Hüyük, simbolizava a morte (HODDER, 1987:43-46 e 1990:4-11). Na ourivesaria trácia do séc. IV a.C. encontram-se representados alces cujos chifres se unem a uma fila de aves. Trata-se de um simples procedimento estilístico sem significado ou de um procedimento simbólico? Provavelmente, esta união dos chifres às aves era um procedimento simbólico para exprimir a rapidez do alce que corria tão depressa quanto voam as aves. Um artista realista traduziria a capacidade de o alce ser veloz representando-o a correr. Os artistas trácios traduziam a mesma ideia por um processo simbólico. As aves eram a representação de uma qualidade do alce ou a representação material da ideia de que o alce era veloz (TAYLOR, 1987:117-132).

A arqueologia, mesmo sem uma explícita compreensão dos

objectos como signos, compreensão que só se pôde desenvolver depois da emergência da Semiologia, sempre tratou, na prática, os

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objectos como signos, porque sempre cuidou da significação deles. “Ora, postular uma significação é recorrer a Semiologia” (BARTHES, 1988:183). Parafraseando Barthes, podemos dizer que a Arqueologia não se contentou nunca em deparar com factos; sempre os definiu e explorou como algo que vale por, no sentido de algo que fala. Quando Binford (1972:33-51) interpretou certas fossas de Toothsame (Illinois), cheias de material carbonizado, como fossas destinadas a produzir fumo para curtir peles, tomou as fossas como signos/funções de uma actividade: a do curtimento de peles. Quando certos autores discutem a origem de certos objectos nas estejas estremenhas do Bronze Final (o pente, a fíbula, o carro, o escudo), apontando para uma origem mediterrânica oriental desses objectos, estão a procurar-lhes o significado e a tomar aquelas representações icónicas como prova de contactos peninsulares com os Fenícios anteriores a uma colonização que não parece ter começado antes da primeira metade do séc. VIII a.C.

A distinção que Binford, pouco ou nada conhecedor da semiologia, fez dos objectos em itens tecnómicos, sociotécnicos e ideotécnicos corresponde, afinal, à distinção semiológica entre signos/funções, símbolos e ícones. Os itens tecnómicos são os objectos úteis, significativos das actividades económicas que se podem deduzir deles. Os itens sociotécnicos são objectos que significam ou simbolizam categorias sociais, como o torque. Os itens ideotécnicos são ícones, embora nesta categoria de objectos ideotécnicos Binford tenha incluído também as alfaias rituais. A Nova Arqueologia não ignora, pois, a dimensão sémica da cultura material, embora tenha talvez limitado a mensagem dos símbolos à comunicação de categorias sociais.

A famosa discussão entre Binford e Bordes sobre o Mustierense (BINFORD, 1973:237-254) foi uma discussão semiológica. Bordes tomava os diferentes mustierenses como indicativos de diferentes unidades socioculturais e Binford considerava-os como indústrias correspondentes a diferentes actividades, escalonadas no tempo e no espaço, da mesma unidade étnica. O que estava em causa era um problema de significação. Um e outro tomaram os instrumentos mustierenses como sinais, divergindo, no entanto, na interpretação do seu significado.

É justo, porém, reconhecer, com Shanks e Tilley (1993:88), que “o significado simbólico e social da produção e do uso dos artefactos

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tem sido pouco considerado, e que há necessidade de aprofundar a leitura das mensagens de que os objectos são portadores.

A Arqueologia contextual veio chamar a atenção para o facto de a cultura material não ser apenas constituída por signos/funções ou índices, mas por objectos sinaléticos e símbolos, que pretendem mesmo comunicar. Particularmente a análise dos símbolos é tanto mais importante quanto é certo que o homem, como disse Leslie A. White, é criador de símbolos, tanto quanto de utensílios (cit. por MOLINO, 1992:18).

A diversidade da cultura não pode explicar-se, como o fez a Nova Arqueologia, numa perspectiva funcionalista, isto é, a forma não se explica totalmente pela função. Como explicar a decoração dos vasos cerâmicos? Um vaso decorado não é, obviamente, mais funcional que um vaso liso. Confrontada com o problema de uma diversidade formal que não pode explicar-se funcionalmente, a Nova Arqueologia, processualista e funcionalista, recorreu ainda a ideia de função, agora alargada. As formas da cultura material divergem porque as unidades socioculturais precisam de marcar fronteiras: uma tribo tem necessidade de assinalar, através da cultura material, a sua identidade e a sua diferença relativamente a outra tribo. Desta forma, decorar um vaso é distinguirmo-nos nós, dos outros, a nossa tribo, de outra tribo, que usa uma decoração diferente. A diversidade formal cumpre, por isso, ainda uma função, que poderemos apelidar de social. A Arqueologia processualista superou assim uma posição inicial que explicava as formas por coacções ambientais e funcionais e introduziu um elemento de liberdade social na escolha de uma cultura material que se destina a definir e manter categorias e fronteiras sociais.

Apesar desta explicação ter constituído um passo em frente, ainda não resolve todos os problemas. Em certos pontos da África, os indígenas decoram os fornos de fundição de minério com representações de seios e com ocre vermelho. Mesmo que essa decoração seja uma maneira de distinguir uma tribo de outra (o que não parece ser o caso), como explicar o uso de seios em vez de falos e de ocre vermelho em vez de ocre amarelo? O plano dos símbolos é um domínio insuficientemente explorado, que a Arqueologia contextual ou simbólica se propõe sistematicamente analisar, formulando as seguintes teses:

1. Os objectos úteis podem ser manipulados como símbolos 2. Os símbolos não são estocásticos

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3. Os símbolos são culturalmente específicos 4. Há simbolismo onde a Arqueologia tradicional ou a Nova Arqueologia vêem simples variação isocréstica

5. Há, para além dos significados conscientes, significados não intencionais

6. Os símbolos são manipulados em relações de poder. Analisemos, uma a uma, estas teses:

1. Os objectos úteis podem ser manipulados como símbolos

No túmulo megalítico de Mané-er-Hroek (Bretanha, França), sobre o pavimento e quase no centro da câmara, encontrou-se um grande machado polido de cloromelanite apoiado numa argola de serpentina polida. A associação de machados e argolas repete-se em depósitos do Morbihan. Trata-se de objectos aparentemente úteis, ou de um útil (machado) e um adereço (argola). Mas num dos esteios do túmulo de Gavrinis (Morbihan), a representação de um machado aparece associada ao que talvez se possa interpretar como a representação de uma vulva. Noutros túmulos de Armórica, alguns esteios apresentam representações de machados, enquanto outros mostram figuras femininas. Ainda que com reservas, o machado pode ser interpretado como um símbolo do falo e a argola como símbolo do sexo feminino. “A oposição espacial de machados e figuras femininas em representações insculpidas de áleas cobertas e túmulos cavados na rocha sugere que, em termos simbólicos, o machado pode, em certo sentido, ser visto como um atributo «masculino», enquanto os dados do depósito de Mané-er-Hroek e da inscultura de Gavrinis sugerem uma associação mais explícita do machado com o falo” (PATTON, 1991:70). Assim, um objecto aparentemente útil podia ser tomado como simbólico e eventualmente usado em rituais propiciatórios de fecundidade. 2. Os símbolos não são estocásticos

Os objectos escolhidos como símbolos não são inteiramente arbitrários e inexplicáveis; podiam tem sido outros, mas há sempre uma razão pela qual se escolheu este e não aquele objecto como símbolo.

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Os Visigodos usaram, para prenderem os mantos, fíbulas que tinham a forma de águias estilizadas, de asas abertas, ornamentadas com esmaltes brilhantes. A raridade e riqueza dessas fíbulas convence-nos de que se trata de adereços só usados pelos chefes e respectivas famílias, e que simbolizavam o poder. Mas porque é que os chefes visigodos escolheram a águia e não outro animal, por exemplo, o cisne? É que eles procuravam emular os imperadores romanos e a águia era para estes também um símbolo do poder. Resta explicar porque é que a águia foi um símbolo do poder também para os Romanos. Talvez porque era o animal de Júpiter; ou então, porque a águia foi primeiro uma insígnia militar que os imperadores, como chefes do poder militar, apropriaram. Mas porque é que a águia era o animal de Júpiter? E porque é que foi escolhida como insígnia militar? Talvez porque era a mais poderosa das aves do céu, como Júpiter, o mais poderoso dos deuses. Talvez a insígnia militar tenha sido escolhida porque a águia era uma ave veloz e de rapina, invencível, como as legiões romanas pretendiam sê-lo.

Aparentemente, porém, os Visigodos, que conservavam a sua identidade nacional e não se misturavam com os Romanos, embora sediados no interior do império, deviam ter escolhido outro símbolo do poder para marcar a diferença. Aqui, porém, esta intenção de assinalar a distância social tinha de ser ponderada com outra intenção: a de demonstrar que os chefes visigodos tinham boas relações com os imperadores romanos. Terá sido este o pensamento preponderante que levou à adopção da águia (GREENE, 1987:117-131).

Em Çatal Hüyük, o abutre era o símbolo da morte. Porquê o abutre e não o leão? Talvez porque, em Çatal Hüyük, se usava expor os cadáveres, que eram comidos por abutres. Assim se explicaria a formação da associação abutre/morte (HODDER, 1990:8). 3. Os símbolos são culturalmente específicos

Os símbolos variam de cultura para cultura: em Çatal Hüyük, o abutre era o símbolo da morte, mas, na chamada cultura ibérica, o mesmo papel era desempenhado pelo leão, que frequentemente encimava monumentos funerários turriformes.

Há, é certo, símbolos transculturais, partilhados por diversas culturas; mas, quando isso sucede, nem sempre os significados dos símbolos são idênticos. Em capacetes trácios do séc. IV a.C., que não cobriam a face, mas apenas a nuca e a testa, encontram-se

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representados olhos na zona do capacete que protegia a testa. Os soldados gregos usavam também olhos nos seus escudos, e talvez a origem dos olhos nos capacetes trácios esteja no armamento grego. Mas enquanto, na Grécia, o olho era um símbolo que protegia contra o perigo, nos elmos trácios, a representação dos olhos sobre os olhos reais significava talvez que os portadores viam excepcionalmente bem. os alces a que atrás nos referimos, a propósito dos chifres ligados a filas de aves, tinham também oito em vez de quatro patas. A duplicação das patas deve tomar-se como representação simbólica da excepcional capacidade de correr. A duplicação dos olhos, como símbolo da excepcional capacidade de visão (TAYLOR, 1987:127). 4. Há simbolismo onde a Arqueologia tradicional ou a Nova Arqueologia vêem simples variação isocréstica

O adjectivo «isocréstico», que se aplica às formas, significa que há sempre várias formas possíveis para um dado tipo de objecto. Uma ponta de lança, por exemplo, pode assumir várias formas. Um artífice tem à sua escolha múltiplas formas isocrésticas para fabricar a ponta de lança, isto é, várias formas que se equivalem ou que são todas funcionalmente eficazes (SACKETT, 1993:33). Escolhe uma.

A Arqueologia tradicional e a Nova Arqueologia não fazem intervir o simbolismo para explicar a opção por uma forma ou outra. A razão que leva uma unidade sociocultural a escolher esta forma é simplesmente o desejo de fazer diferente para marcar a distância, a diferença, a identidade relativamente a outra unidade sociocultural da qual pretende distinguir-se.

Entre os Celtas, encontramos fíbulas com o pé rematado em cabeça de pato ou em cabeça de bovino. A escolha há-de ter uma razão, porque não há nada que seja gratuito. Temos de procurar, pois, as razões da escolha. Talvez um artista tenha escolhido o bovídeo para distinguir a sua produção da de um outro, que tinha escolhido o pato. Mas mesmo admitindo que o primeiro quis distinguir a sua produção da do segundo, porque é que escolheu o boi e não o burro? E porque é que o primeiro escolheu o pato e não o cisne? A pergunta é legitima; a resposta é seguramente difícil. Poderíamos dizer que os dois artífices escolheram no leque de animais domesticados com valor económico. Mas porque é que hão-de ter escolhido neste campo e não no dos animais selvagens ou míticos? E terão escolhido os animais pelos animais, ou esses animais por serem simbólicos?

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De igual modo, encontramos diversos animais rematando monumentos funerários ibéricos turriformes. Porquê o touro e o leão nesses monumentos e não a cabra ou o porco? Temos que admitir, como princípio metódico de investigação, que as formas dadas aos objectos possam ser simbólicas. O leão foi escolhido no monumento funerário ibérico porque simbolizava a morte. Mas porquê o touro? Tinha o mesmo significado simbólico?

No Quénia, os jovens guerreiros dos Tugen e dos Njemps usam similares pontas de lança, não obstante as duas tribos marcarem as respectivas identidades sociais noutros aspectos da cultura material. O que é mais surpreendente é que essas pontas de lança são idênticas às dos Maasai, apesar de, durante muito tempo, Tugen e Njemps terem lutado contra aqueles. Esperaríamos, dada a situação de conflito, uma distinção nas pontas de lança (HODDER, 1982:66 s.).

As lanças não são, para Tugen e Njemps, armas fundamentais de combate; estas são o arco e a flecha. A lança, mais do que um objecto útil, é um objecto simbólico que representa pertença à categoria social dos jovens guerreiros: os velhos não usam lanças. Mas porque é que Tugen e Njemps copiaram a forma das lanças dos Maasai? É que estes eram temidos e admirados como excelentes guerreiros. Aquela particular ponta de lança tornou-se, assim, um símbolo de denodo, de audácia, e foi por isso que foi escolhida pelos jovens guerreiros dos Tugen e dos Njemps, que desejavam afirmar-se como possuidores de idênticas qualidades. A escolha das formas não pode, pois, explicar-se recorrendo à ideia de que, para cada tipo de objecto, há múltiplas formas possíveis, formas isocrésticas, e que a opção por uma se explica pelo desejo de, fazendo diferente, marcar distancias étnicas ou distancias entre produtores. Há mais razões, e mais profundas, envolvidas numa escolha que se não entende enquanto o valor simbólico das formas não for analisado. Esta é uma das mensagens da Arqueologia contextual. 5. Há, para além dos significados conscientes, significados não intencionais

É possível ler relações sociais na cultura material, ainda que os seus produtores e utilizadores não tenham tido intenção de exprimir ou representar essas relações nos seus objectos. No caso de Çatal Hüyük, talvez os seus habitantes soubessem dizer claramente que o abutre

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representava a morte e porquê. Mas há objectos significativos sem que os seus produtores e utilizadores tenham consciência do significado.

As sociedades megalíticas estavam divididas em unidades que correspondiam a linhagens. No interior de cada linhagem havia conflitos entre os sexos e entre os jovens e os adultos. “Para manter a coesão social interna... a distinção entre «nós» e «os outros» é uma estratégia eficaz porque dirige os antagonismos e os conflitos de interesses para o exterior do grupo” (SHANKS e TILLEY, 1992:170). As relações intergrupais são todavia dialécticas, intrinsecamente contraditórias, porque, se as unidades sociais se opõem, por outro lado elas têm de entender-se para trocarem cônjuges e bens. Esta dialéctica pode exprimir-se (inconscientemente, não intencionalmente) na estrutura dos motivos decorativos da cerâmica. Analisando a cerâmica do monumento megalítico de Fjälkinge (Suécia), Shanks e Tilley (1992: 155-171) distinguem os motivos entre compartimentados e não compartimentados: um ziguezague que se desenvolve sem interrupção a toda a volta da peça é um motivo não compartimentado; painéis rectangulares preenchidos com traços oblíquos separados por painéis lisos constituem um motivo compartimentado. A decoração compartimentada pode ser tomada como expressão simbólica de uma sociedade que acentuava as diferenças entre nós e os outros. O que se verifica em Fjälkinge é que, em todas as fases (Shanks e Tilley distinguem quatro), há sempre uma combinação das duas estruturas, reflexo, num plano simbólico, da situação dialéctica da unidade social. A medida que o tempo passa, há todavia uma enfatização da compartimentação, o que corresponderá, na reali-dade, a uma acentuação das distâncias sociais entre os grupos (ou apenas a uma expressão estilística mais clara dessas distâncias?). Provavelmente, o grupo social de Fjälkinge não tinha consciência de que exprimia ou simbolizava os seus senti-mentos através da decoração da cerâmica; mas fazia-o, apesar de não intencionalmente. É possível, pois, ler relações sociais na cultura material, ainda que os seus produtores e utilizadores não tenham tido intenção de representar essas relações nos seus objectos. 6. Os símbolos são manipulados em relações de poder

A Arqueologia contextual perspectiva as relações sociais como relações de poder: os homens sujeitam as mulheres, os adultos sujeitam os jovens, os chefes sujeitam os dependentes; mulheres,

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jovens e dependentes procuram inverter as relações de dependência, reivindicam uma importância que lhes não é dada.

“O que nós sublinhamos, dizem Shanks e Tilley (1993:70), é a centralidade do poder na vida social”. “As sociedades, dizem ainda os mesmos autores (l993:86), são entidades intrinsecamente contraditórias”. A inspiração marxista é aqui evidente.

Ora, nessas relações de poder, a cultura material é um meio de criar posições, de as conquistar, de as inverter. Entre os Njemps e os Tugen, aos quais já nos referimos, os adultos, que praticam a poligamia e pretendem reservar-se as mulheres, não podendo impedir os jovens de casarem (nem o querendo, porque nesse caso as tribos extinguir-se-iam), adiam pelo menos a idade núbil dos varões, que muitas vezes não casam antes dos 30 anos (HODDER, 1982:75). Desconsiderados, os jovens auto-exaltam a sua audácia nas proezas guerreiras e, como vimos, simbolizam essa qualidade pela adopção das pontas de lança idênticas às dos Maasai. As lanças são símbolos e são usadas para reivindicar importância social.

Os mais ricos pretendem distinguir-se dos mais pobres e fazem-no ainda através da cultura material, que desta forma simboliza posições sociais. como vimos, na cultura castreja, os mais ricos ornamentavam as ombreiras e padieiras das suas casas, para se distinguirem dos mais pobres, que tinham portas de pés-direitos e vergas lisos. Recorria-se a símbolos para reforçar as relações sociais ou acentuar as distâncias.

Talvez a Arqueologia contextual, insistindo naquilo que chama o carácter activo da cultura material, exagere o papel que esta joga na criação das distâncias sociais. Em rigor, não é a cultura material que cria as verdadeiras distâncias; mas seguramente que as reforça e pode criar distâncias (ou aproximações) falsas ou ilusórias. O mercado actual dos carros conhece bem esse fenómeno, com famílias de baixos rendimentos adquirindo carros de gama alta para se promoverem, isto é, para darem de si um falsa imagem, todavia susceptível de alterar as relações com os outros, mais reverenciadores para quem tem um carro de luxo.

A breve análise que acabámos de fazer procurou demonstrar que os povos primitivos se moviam (e nós também nos movemos, evidentemente) num mundo carregado de sinais, cujo entendimento é necessário para compreendermos o funcionamento dessas sociedades.

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É na medida em que a Arqueologia procura desvendar o significado dos sinais que ela pode ser dita uma Semiologia da cultura material.

A análise semiológica desta cultura, contraposta a uma análise meramente funcional (que procura definir a função dos objectos) ou tipológica (que pretende classificar, integrar os objectos em tipos), introduz-nos num universo de inter-subjectividades ou de relações sociais, deslocando a Arqueologia do estudo dos objectos para o estudo dos homens. A Arqueologia tradicional e mesmo a Nova Arqueologia têm em vista o homo habilis; a Arqueologia marxista e a Arqueologia contextual procuram outros homens, que se relacionam entre eles e estabelecem relações de poder, exprimem o seu modo de estar no mundo através de símbolos que são ideias em matéria, constituem o seu próprio espaço, dominam a natureza não por meios meramente instrumentais ou técnicos, mas por meios simbólicos que são eles mesmos garantes da eficácia das técnicas.

Não ignorando, de todo em todo, o significado dos objectos, a Arqueologia tradicional preocupa-se mais com classificá-los em apologias e com definir-lhes as funções, quer dizer, com o ser primário dos objectos. Primariamente, o torque é um certo objecto, com uma certa forma, feito de um certo metal. Mas à descrição tem de acrescentar-se a análise do significado. Um ramo de rosas numa florista é um ramo de rosas; mas se eu o compro e o dou a alguém, o ramo adquire um significado, de afecto. A análise do significado conduz-nos do plano da percepção ao da compreensão.

Não podemos analisar o significado de um objecto sem remetermos para uma consciência que o investe de significado e transforma o objecto numa fala, em algo que diz algo. A análise da cultura material como fala conduz-nos à procura do homem que fala, que se exprime, que manifesta ideias, ao homem como liberdade e imaginação e não ao homem como joguete de forças naturais, determinadas pelo ambiente, tal como a Nova Arqueologia, pelo menos numa fase inicial, o via. O homem não é apenas homo habilis, mas também homo loquens; e os objectos são coisas que falam.

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