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A APLICAÇÃO DO FAZER ANTROPOLÓGICO: UM OLHAR SOBRE A ELABORAÇÃO DE LAUDOS PARA O RECONHECIMENTO DE COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS NA AMAZÔNIA Erika Giuliane Andrade Souza Beser 1 Raquel Araújo Amaral 2 INTRODUÇÃO A região do Baixo Amazonas paraense abriga diversas comunidades remanescentes das comunidades de quilombos que romperam com sua condição social ao fugirem dos cacoais, das fazendas de criar, das propriedades dos senhores de Óbidos, Santarém, Alenquer, mesmo de Belém e outros centros urbanos. Parte destas comunidades, especialmente nos municípios de Santarém e Óbidos já obtiveram título definitivo de suas terras outras detém apenas a Certidão de Auto- reconhecimento fornecida pela Fundação Cultural Palmares. Conforme dados obtidos no Serviço Quilombola do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA (SR30), atualmente há 23 comunidades quilombolas certificadas no Baixo Amazonas com procedimentos administrativos instaurados para titulação como “território quilombola”. A Constituição Federal de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias garante aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras a emissão, pelo Estado brasileiro, do respectivo título de propriedade. A partir deste dispositivo constitucional outras legislações emergiram objetivando instrumentalizar os procedimentos administrativos que assegurassem esta garantia constitucional (Decreto 4.887/2003 e Instrução Normativa 57/2009 do INCRA). Na historiografia oficial o termo quilombo foi popularizado no período colonial da história brasileira como “lugar de escravo fugido”, na atualidade corresponde a uma estratégia de territorialização étnica acionada por grupos negros descendentes de africanos, como resposta a processos continuados de dominação e expropriação material e simbólica (LEITE, 2008). As comunidades quilombolas ao requererem a regularização de suas terras contam com forte oposição de grupos políticos representantes da bancada ruralista, de madeireiros, pecuaristas, especuladores de terras, de grupos ligados ao agronegócio e de pessoas cuja única motivação para ser oposição é a ausência de informação e o preconceito. Esta aversão à implementação do direito de regularização fundiária dos remanescentes de quilombos, tem um 1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Sociedade, Natureza e Desenvolvimento – Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e Analista em desenvolvimento e reforma agrária especialista em antropologia do INCRA. 2 Cientista Social e Analista em desenvolvimento e reforma agrária especialista em antropologia do INCRA.

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A APLICAÇÃO DO FAZER ANTROPOLÓGICO: UM OLHAR SOBRE A ELABORAÇÃO DE

LAUDOS PARA O RECONHECIMENTO DE COMUNIDADES REMANESCENTES DE

QUILOMBOS NA AMAZÔNIA

Erika Giuliane Andrade Souza Beser1

Raquel Araújo Amaral2

INTRODUÇÃO

A região do Baixo Amazonas paraense abriga diversas comunidades remanescentes das

comunidades de quilombos que romperam com sua condição social ao fugirem dos cacoais, das

fazendas de criar, das propriedades dos senhores de Óbidos, Santarém, Alenquer, mesmo de Belém

e outros centros urbanos. Parte destas comunidades, especialmente nos municípios de Santarém e

Óbidos já obtiveram título definitivo de suas terras outras detém apenas a Certidão de Auto-

reconhecimento fornecida pela Fundação Cultural Palmares. Conforme dados obtidos no Serviço

Quilombola do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA (SR30), atualmente

há 23 comunidades quilombolas certificadas no Baixo Amazonas com procedimentos

administrativos instaurados para titulação como “território quilombola”.

A Constituição Federal de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias garante aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas

terras a emissão, pelo Estado brasileiro, do respectivo título de propriedade. A partir deste

dispositivo constitucional outras legislações emergiram objetivando instrumentalizar os

procedimentos administrativos que assegurassem esta garantia constitucional (Decreto 4.887/2003 e

Instrução Normativa 57/2009 do INCRA). Na historiografia oficial o termo quilombo foi

popularizado no período colonial da história brasileira como “lugar de escravo fugido”, na

atualidade corresponde a uma estratégia de territorialização étnica acionada por grupos negros

descendentes de africanos, como resposta a processos continuados de dominação e expropriação

material e simbólica (LEITE, 2008). As comunidades quilombolas ao requererem a regularização de

suas terras contam com forte oposição de grupos políticos representantes da bancada ruralista, de

madeireiros, pecuaristas, especuladores de terras, de grupos ligados ao agronegócio e de pessoas

cuja única motivação para ser oposição é a ausência de informação e o preconceito. Esta aversão à

implementação do direito de regularização fundiária dos remanescentes de quilombos, tem um

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Sociedade, Natureza e Desenvolvimento – Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e Analista em desenvolvimento e reforma agrária especialista em antropologia do INCRA.

2 Cientista Social e Analista em desenvolvimento e reforma agrária especialista em antropologia do INCRA.

efeito negativo sobre a construção da identidade, etnicidade e habitus destes povos, que possuem

uma história de vida marcada pelo sofrimento e expropriação.

A comunidade quilombola Arapucu é habitada por, aproximadamente, 150 famílias. Devido

à relativa proximidade da sede municipal esta comunidade tem sido alvo do processo de expansão

urbana, nela tem se fixado diversos novos moradores, fato que tem contribuído para aumentar o

nível de oposição ao processo de regularização quilombola, que encontra-se aberto no INCRA de

Santarém, desde 2006, sob o número 54501.016341/2006-89, a requerimento da Associação

Remanescente de Quilombos da Comunidade Arapucu – ARQUICA. Como estratégia para

contenção dessa oposição ao processo de regularização, a escola municipal de Arapucu desenvolve

a cada bimestre, eixos temáticos voltados para o debate de temas peculiares à causa quilombola e à

diversidade cultural. No ano de 2013 foram abordados temas como: meio ambiente, cultura

quilombola, identidade e cultura quilombola e consciência negra.Paralelo a esta ação, através da

educação não-formal, as associações quilombolas ARQMOB e ARQUICA desenvolvem ações

objetivando o respeito e a promoção da diversidade cultural e o fortalecimento da identidade

quilombola na comunidade

A comunidade do Arapucu, localizada no município de Óbidos, este município está inserido

na região do Baixo Amazonas, estado do Pará. Arapucu, dista 17 km do município de Óbidos. O

trajeto entre a comunidade Arapucu é Óbidos geralmente é feito de canoa ou rabeta (embarcação

pequena com motor).

IDENTIDADE E CONFLITO

Durante o trabalho de campo para coleta de dados com finalidade de elaboração do laudo

antropológico, colocamos algumas reflexões como antropólogas do INCRA que tem como função a

identificação e delimitação de territórios quilombola da região oeste do Pará. O processo de

reconhecimento é iniciado com uma solicitação da comunidade para seu reconhecimento identitário

e territorial, acompanhado do reconhecimento oficial como comunidade remanescente de quilombo

da Fundação Palmares. Até então, são nomes, cópias de documentos e formalização de um pedido

de uma garantia jurídica.

A primeira vez que estivemos na comunidade foi para dar início ao RTID, sendo geralmente

esse momento marcado por uma reunião para abertura e apresentação geral do trabalho, para tanto,

escolhemos a data e horário juntamente com o presidente da associação da comunidade

remanescente de quilombo. O presidente da associação, por sua vez, comunicou a data e horário da

reunião com todos os moradores do bairro. Assim, não compareceram apenas os interessados a

favor do trabalho de identificação da comunidade quilombola. Ao contrário, a maioria das pessoas

que estavam nessa reunião se posicionaram contra o início dos trabalhos, expondo o seguinte: “em

nossa região não há pessoas remanescentes de quilombo, aqui sempre foi uma comunidade

indígena por isso não aceitamos que nosso bairro seja reconhecido como quilombo”.

(Figura 2) Foto durante exposição da antropóloga Raquel Amaral na comunidade Arapucu/PA.

A antropóloga Raquel ao perceber que as pessoas ali estavam majoritariamente se posicionando

contra o trabalho de reconhecimento quilombola, perguntou se ali, estavam presentes as pessoas que

fizeram o cadastro realizado pelo INCRA meses anteriores a reunião, justamente com a finalidade

de mapear a quantidade de famílias interessadas. As pessoas se alvoroçaram e um clima tenso se

instaurou. Como muitos falavam ao mesmo tempo, foi preciso dar um tempo até que cada pessoa

pudesse falar ordenadamente. Assim, ouvimos as seguintes falas: “sou professora aqui há quase

trinta anos e nunca vi nenhum traço de remanscente de quilombo aqui. Inclusive o nome da

comunidade é de língua indígena”; “assinei esse documento sem saber o que estava sendo

cadastrado, só sabia que era para benefício do governo”.

Após um período ouvimos essas falas em diferentes vozes e perguntei ao presidente da

associação onde estavam no salão as pessoas interessadas. Ele me apontou com certo desanimo

poucas pessoas no salão. Então, resolvi perguntar para todos que levantassem as mãos quem ali

estava interessado no reconhecimento, as poucas pessoas, ali presentes, esclareceram que não tinha

sido possível que todos os interessados estivem na reunião por motivo de trabalho. A fala dessas

pessoas dizia o seguinte: “Nós não estamos obrigando ninguém a se reconhecer como quilombo,

mas queremos respeito pela nossa opção em nos reconhecer!”. Após o termino da reunião, a equipe

do INCRA retornou para o hotel na cidade.

Retornamos para a comunidade passados quase três meses, quando foi liberado orçamento

para marcar viagem à campo. Nessa nova visita, ficamos instalados na residência da família da

secretária da associação. Visitamos algumas residências e também fomos visitados. Inicicou-se o

trabalho de campo com tudo o que se tem direito, trocas entre antropólogas e inforamnetes, de

afetos, de curiosidades e anthropological blues3 também. Logo que chegamos, mostramos ao

presidente da associação uma lista de cadastro realizado anteriormente, por outra equipe do INCRA,

para que fosse apontado os atuais associados. Percebi que ao mostrar a lista o presidente e as

pessoas que estavam em volta manifestaram desejo em ter acesso a tal documento. Entre um café e

outro, conversando na cozinha, deixei a lista de cadastro de famílias interessadas, junto ao meu

caderno de campo, e quando retornei, a lista estava sendo analisada pelas pessoas que eu estava

entrevistando. Dai surgiram as seguintes falas: “Ah! Agora vamos saber quem é quem!” dizia um

homem que se diz a favor da identificação quilombola. Por sua vez, a tesoureira da associação

falava: “esse aqui nunca pagou uma mensalidade, provavelmente não é a favor”. As pessoas que

estão a favor se baseam nos seguintes discursos:“traz melhorias para a comunidade”, “quem não

quer está perdendo benefícios”, “somos bem recebidos onde vamos, em Santarém, secretarias do

governo, hospital”.

BASE TEÓRICA E O OLHAR SOBRE O TRABALHO DE CAMPO

A comunidade atualmente está dividida, e apesar da pesquisa ainda estar em fase inicial, nos

remete a um problema analisado pelo antropólogo Maurício Arruti, no livro Mocambo (2005), onde

descreveu o processo de divisão social que seu uma comunidade rural em Sergipe, que parte se

identificou como indígenas – etnia Xocó, e outra parte se identificou como descendentes de negros

quilombolas – tomou nome de Mocambo. Essa comunidade apesar dessa divisão, possui estreitas

relações de parentesco e cooperação. Nessa perspectiva, apresentamos propomos uma discussão

sobre como é a prática do fazer antropólogico na elaboração de laudo para órgão estatal.

3 Referência ao termo utilizado por Roberto DaMatta ao se referir aos multiplos sentimentos em situação de trabalho de campo onde o pesquisador está disntante de sua comunidade originária, tendo que se familiarizar com o exótico.

A Instrução Normativa nº57/2008 do INCRA conceitua:

“Art.3° - Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos etnicos-

raciais, segundo critérios de auto-definição, com trajetória histórica própria, dotados de relações

territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência a

opressão histórica sofrida”.

“Art. 4°- Consideram-se terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombo

toda a terra utilizada para a garantia de sua reprodução física, social,econômica e cultural”.

Partindo desses conceitos objetivos é que o antropológo deve elaborar o laudo sobre a

comunidade. Nesse ponto, buscamos dialogar com o texto da antropologa Eliano Cantarino

O'Dwyer (2010), onde a autora criticou a Instrução Normativa n°49/2008, por o relatório

antropológico estar subordinado a critérios estranhos à disciplina, fundamentando o relatório em

elementos ditos subjetivos aos olhos do Direito, porém esses mesmos itens só fazem sentido quando

englobados em uma prática disciplinar da Antropologia. Dessa maneira, como o antropólogo pode

realizar um laudo antropólogico que possa atender as determinações jurídicas, e ao mesmo tempo,

praticar antropólogia baseada em seu metódo específico?

Tomando outra perspectiva teórica sobre os dados empíricos apresentados, refletimos sobre

o texto da antropológa Paula Monteiro (2012) onde a autora dialóga com Arruti (2005) e French

(2009) sobre o complexo processo social e político que diferenciou etnicamente os Xocó dos

Mocambos embora tenham permanecido muito semelhantes em todos os aspectos relativos ao seu

modo de vida. Os Xocó foram se tornando índios ao serem colocados, nos anos 1980, sob o guarda-

chuva institucional da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) (…), e os Mocambos foram

reconhecidos, anos mais tarde, descendentes de escravos sob o guarda-chuva institucional do

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Nesse sentindo, perguntamos se o auto-reconhecimento é construído para atender uma

formalização jurídica? Se sim, como se consideram essas pessoas? Se é índio quem se sente índio,

quem se sente o quê é quilombola? Durante esse processo de construção identitária, qual é o papel

do antropólogo?

Para o laudo antropológico é importante captar esse tipo de dado, pois é objetivo capaz de

atender os critérios determinados na IN 57/2009. Porém, como “encaixar” nos critérios desse

normatização identidades que não estão de acordo com o texto legal?

As comunidades remanescentes de quilombo na Amazônia possuem dinâmica específica de

acordo com a sazonalidade. Essa situação ecológica diferenciada também não se encaixa nos

parâmetros do texto normativo da IN 57/2009 pois a construção de território também não é

delimitada de forma objetiva. Para Nugent (1997), apesar das grandes diferenças entre as

sociedades “não-urbanas” contemporâneas da Amazônia, os índios são absorvidos pela

representação da Amazônia como um ecossistema tropical, os camponeses históricos representam

um esforço não sucedido de integração nacional com o passado, e os neocamponeses são excluidos

do projeto desenvolvimentista das insdústrias extrativistas altamente capitalizadas, sendo essas

populações invisíveis para o Estado.

Como diz Geertz: “As interconexões entre normas e acontecimentos em algum tipo de

manual” pode ser uma forma não de gerenciar as diferenças, mas de eliminá-las por uma

uniformidade jurídica que se sobrepõe a outros saberes e tradições” (1999:323,325). A questão

principal é se os grupos étnicos e sociais, mediante o Direito e a Antropologia, poderão reproduzir e

recriar formas organizacionais e padrões culturais que possam na prática ser por eles

vividos(O'Dwyer, 2010).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Alfredo W. Berno de. Os quilombos e as novas etnias, In: O’DWYER, Eliane

Cantarino (org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2002.

ARRUTI, José Maurício. Mocambo. Antropologia e história do processo de formação quilombola.

São Paulo: Anpocs, 2005.

FRENCH, Jan Hoffman. Legalizing identities. Becoming Black or Indian in Brazil’s Northeast.

Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2009.

GEERTZ, Clifford. O saber local. Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa. 2. ed. Rio de

Janeiro: Vozes, 1999.

LEITE, Ilka Boaventura. O projeto político quilombola: desafios, conquistas e impasses atuais.

Estudos feministas, 16 (3), 2008.

MONTEIRO, Paula. Multiculturalismo, Identidades discursivas e espaço Público. In:

Sociologia&Antropologia.Vol.02/04. 81-101. 2012.

O'DWYER, Eliane Cantarino. O papel social do antropólogo. Aplicação do fazer antropológico e do

conhecimento disciplinar nos debates públicos do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: E-

papers,2010.