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1 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ JAQUELINI SOUZA CARDOSO A ANENCEFALIA E O DIREITO À ANTECIPAÇÃO DO PARTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Biguaçu 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

JAQUELINI SOUZA CARDOSO

A ANENCEFALIA E O DIREITO À ANTECIPAÇÃO DO PARTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Biguaçu 2008

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JAQUELINI SOUZA CARDOSO

A ANENCEFALIA E O DIREITO À ANTECIPAÇÃO DO PARTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Monografia apresentada à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial a obtenção do grau em Bacharel em Direito.

Orientadora: Profª. Dra. Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori.

Biguaçu 2008

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JAQUELINI SOUZA CARDOSO

A ANENCEFALIA E O DIREITO À ANTECIPAÇÃO DO PARTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de Bacharel, e

aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de

Ciências Sociais e Jurídicas.

Área de Concentração: Penal

Biguaçu, 10 de novembro de 2008.

Profª. Dra. Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori UNIVALI – Campus de Biguaçu

Orientador

Profª. MSc. Helena Paschoal Nastassya Pítsica UNIVALI – Campus de Biguaçu

Membro

Prof. Esp. Carlos Alberto Luz Gonçalves UNIVALI – Campus de Biguaçu

Membro

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Dedico esta monografia aos meus Pais Neri Carlos

Martins Cardoso (in memoriam), que mesmo longe se

fez presente e Eunice de Souza Cardoso, que me deu

força no momento que mais precisei de seu apoio, e

ainda, dando incentivo para realização de meu futuro

próximo.

Ao meu namorado Vinícius Antônio Calazans, por ter

sido muitas vezes paciente ao escutar e entender

minhas ausências em função desta.

Aos meus afilhados Marina Cardoso Schroeder e

Gustavo Victorino Cardoso, que só me deram alegria

e força para eu seguir minha caminhada.

A todos os Familiares e amigos que contribuirão para

finalização de minha pesquisa.

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AGRADECIMENTO

Agradeço primeiramente à DEUS, por ter me dado

força, coragem, nos momentos mais difíceis desta

caminhada.

A professora Helena Paschoal Nastassya Pítsica,

pela amizade, carinho, conselho e dedicação que tem

me dado durante todo período de minha formação.

A professora orientadora Daniela Mesquita Leutchuk

de Cademartori, pela amizade e contribuição de minha

pesquisa.

A TODOS que me deram força e incentivo para a

elaboração da pesquisa.

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade

pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade

do Vale do Itajaí, a Coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e a

Orientadora de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Biguaçu, 10 de novembro de 2008

Jaquelini Souza Cardoso

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RESUMO

O presente trabalho tem como objeto de estudo a possibilidade de interrupção da gravidez na hipótese de feto portador de anencefalia, devidamente comprovada por método adequado no Ordenamento Jurídico Brasileiro, frente ao Estado Constitucional de Direito e ao Principio da Dignidade da Pessoa Humana. Para tanto, analisa a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, que tem como objetivo geral a não incidência do Código Penal, possibilitando a gestante, sem qualquer preocupação, ter livre arbítrio para tomar ou não a decisão de interrupção deste tipo de gestação e, como objetivos específicos primeiramente a discussão da anencefalia, como sendo algo que poderá ser resolvido de forma mais simples, fazendo a regularização em lei, tornando tal decisão mais célere. Segundo objetivo específico é a caracterização de que a vida do ser humano depende não somente da existência do corpo, mas sim dos prazeres da vida, como se divertir, ter sua maneira de pensar e expor suas opiniões, e ainda, poder ter livre arbítrio para fazer suas escolhas. Trata-se do Direito à Vida, e por fim, a apresentação do princípio fundamental do tema em questão, o Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. O tema é atual e merece ser objeto de estudos mais aprofundados, uma vez que o Supremo Tribunal Federal está diretamente interligado nas decisões proferidas. Para relatar os resultados da pesquisa, empregou-se o Método Dedutivo, em conjunto com técnicas de pesquisa bibliográfica. O trabalho acha-se dividido em três capítulos. O primeiro trata-se do Estado democrático de direito e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; o segundo, Anencefalia: aborto ou antecipação do parto?, e finalmente, o terceiro, A solução proposta pela Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental de n. 54. Palavras chave: Aborto por Anencefalia. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Estado Democrático de Direito. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental.

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ABSTRACT

This work has as its object of study the possibility of termination of pregnancy in the event that the bearer of anencephalic fetus, duly attested by an appropriate method in Brazilian law, as opposed to constitutional rule of law and the principle of human dignity. To this end, analyze the accusation of breach of fundamental precept n. 54, which aims to not impact the general Penal Code, allowing the pregnant woman, without any concern, have free will to make the decision whether or not this kind of interruption of pregnancy, and as specific goals the first discussion of anencephaly, as something that can be solved more simply, making the settlement into law, making such a decision more quickly. According specific objective is the characterization that the lives of human beings depends not only the existence of the body, but the pleasures of life, as have fun, have your way of thinking and expose their views, and yet, to have free will to make your choices. This is the Right to Life, and finally, presenting the fundamental principle of the matter in question, the constitutional principle of human dignity. The theme is timely and deserves to be the subject of further studies, since the Supreme Court is directly linked to decisions made. To report the results of the research, using the deductive method, together with technical literature search. The study finds itself divided into three chapters. The first is the democratic state of law and the principle of human dignity; second, Anencephaly: early abortion or giving birth?, And finally, the third, the solution proposed by the action of breach of fundamental precept of n. 54. Key words: Abortion by Anencephaly. Principle of human dignity. Democratic rule of law. Action of breach of fundamental precept.

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ROL DE ABREVIATURAS OU DE SIGLAS

ADPF Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

Art. Artigo

CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

N. Número

STF Supremo Tribunal Federal

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ROL DE CATEGORIAS

Rol de categorias que a Autora considera estratégicas à

compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.

Aborto

“[...] do latim ‘ab’ = privação + ‘ortus’ = nascimento, que significa a interrupção do

processo natural da gestação, resultando na morte pré-natal da vida humana intra-

uterina, isto é, a morte de um ser humano antes que estivesse em condições de

sobreviver fora do útero materno”.1

Anencefalia

“É uma malformação congênita, caracterizada pela ausência parcial ou total do

encéfalo e da caixa craniana, procedente de defeito do fechamento do tubo neural

durante a formação embrionária”.2

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

“[...] é a lei fundamental e suprema do Brasil, servindo de parâmetro de validade a

todas as demais espécies normativas, situando-se no topo da pirâmide normativa.

É a sétima a reger o Brasil desde a sua Independência.” 3

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

1 SILVA, Reinaldo Pereira e. Introdução ao biodireito: investigação político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana. São Paulo: Ltr, 2002. p . 255. 2 PINHEIRO, Larissa. O Aborto do Feto Anencefálico frente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e aos princípios bioéticos. apud Andalaft Neto, Jorge. Anencefalia: posição da Febrasgo. Disponível em <www.bioeticaefecrista.med.br/textos/anencefalia_febrasgo.pdf>. Acesso em: 10 set. 2007. 3 WIKIPÉDIA. Desenvolvido pela Wikimedia Foundation. Apresenta conteúdo enciclopédico. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Constitui%C3%A7%C3%A3o_brasileira_de_1988&oldid=10175022>. Acesso em: 24 Abr 2008.

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“[...] a dignidade efetivamente constitui qualidade inerente de cada pessoa

humana que faz destinatária do respeito e proteção tanto do estado, quanto das

demais pessoas, impedindo que ela seja alvo não só de quaisquer situações

desumanas ou degradantes, como também lhe garantindo direito de acesso a

condições existenciais mínimas”.4

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

“Trata-se de uma ação em que o órgão competente para processar e julgar é o

Supremo Tribunal Federal com o fim de evitar ou reparar lesão a preceito

fundamental, decorrente de ato praticado pelo Poder Público. Todavia, somente é

cabível quando não houver outro meio capaz de sanar a lesividade”.5

4 MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003. p. 120. 5 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p . 664-665.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------- 13

1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

----------------------------------------------------------------------------------------------------------- 16

1.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ----------------------------------------------- 16

1.1.1 Distinção Entre Estado De Direito e Estado Democrático De Direito --------- 16

1.2 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ------------------------------- 23

2 ANECEFALIA: ABORTO OU ANTECIPAÇÃO DO PARTO ------------------------- 31

2.1 CONCEITO DE ANENCEFALIA ----------------------------------------------------------- 31

2.2 DISTINÇÃO ENTRE FETO MALFORMADO E FETO INVIÁVEL ----------------- 38

2.3 O QUE VEM A SER VIDA ------------------------------------------------------------------- 39

2.4 ABORTO OU ANTECIPAÇÃO DO PARTO --------------------------------------------- 43

2.4.1 ASPECTOS CONCEITUAIS SOBRE ABORTO ------------------------------------ 43

2.4.2 ESPÉCIES DE ABORTO E TIPICIDADE PENAL ---------------------------------- 46

3 A SOLUÇÃO PROPOSTA PELA AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE

PRECEITO FUNDAMENTAL N. 54 ----------------------------------------------------------- 51

3.1 LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL ---------------------------------------------- 51

3.1.1 Breve Histórico do Aborto na Legislação Brasileira -------------------------------- 53

3.2 ASPECTOS CONCEITUAIS EM TORNO DA AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO

DE PRECEITO FUNDAMENTAL --------------------------------------------------------------- 55

3.2.1 Fundamentos Jurídicos -------------------------------------------------------------------- 61

3.2.2 Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental ------------------------- 63

CONCLUSÃO---------------------------------------------------------------------------------------- 65

REFERÊNCIA --------------------------------------------------------------------------------------- 69

ANEXO ------------------------------------------------------------------------------------------------ 76

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INTRODUÇÃO

A presente Monografia tem como objeto o estudo a

possibilidade de introdução no ordenamento jurídico pátrio da interrupção da

gravidez de feto anencefálico, em face Do Estado Democrático de Direito e do

Princípio da Dignidade Humana.

O seu objetivo é investigar e demonstrar, conforme o

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que permeia nossa Constituição, a

procedência da antecipação do parto de feto anencefálico no ordenamento jurídico

brasileiro.

Para tanto, principia – se, no Capítulo 1, com a definição do

que é o Estado Democrático de Direito, especificando as diferenças existentes

entre Esse Estado e o Estado de Direito (e estado democrático de direito).

Também não se pode falar em antecipação terapêutica do parto, objeto dessa

monografia, sem Trazer à tona a Dignidade da Pessoa Humana, já que ela está

diretamente ligada à condição de vida da pessoa, sendo, portanto indispensável

às considerações em torno do tema, e por fim, qual a sua finalidade no

ordenamento jurídico Brasileiro.

No Capítulo 2, serão abordadas questões relacionadas ao

aborto, será analisado o que vem a ser vida, desvendando as mais diversas

dúvidas que ocorrem em nossa sociedade, também será feito um breve histórico

do aborto na legislação brasileira, e posteriormente, será definido o termo a

respeito do desenvolvimento embrionário, ou seja, sua formação, e ainda,

apresenta as espécies e a tipicidade penal do aborto, com destaque para o

abortamento de feto anencefálico.

No mesmo capítulo, será analisada também a distinção entre

feto malformado e inviável, e por fim, será exposto o conceito da anencefalia.

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No Capítulo 3, tratando de apresentar a previsão legal do

abortamento de feto anencefálico no ordenamento jurídico, apresentando a

legislação infraconstitucional para mostrar a importância Da não-subsunção Desta

hipótese de antecipação do parto aos dispositivos do Código Penal sobre o aborto.

Neste caso, será explorada a ação de argüição de descumprimento de preceito

fundamental, e para finalizar, será analisada a Argüição de Descumprimento de

Preceito Fundamental de n. 54.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com a

Conclusão, na qual serão apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos

da estimulação à continuidade dos estudos de acadêmicos e professores do ramo,

e das reflexões sobre a autorização relacionado a antecipação do parto de feto

anencefálico no ordenamento jurídico brasileiro.

Para a presente monografia foram levantadas as seguintes

hipóteses:

a) O Ordenamento Jurídico Brasileiro Possibilita a prática de

aborto/Antecipação do parto terapêutico do parto por anencefalia diante do

fundamento no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e através de

interpretações doutrinárias.

b) As questões relacionada o que vem a ser vida com o fim

de demonstrar o posicionamento adotado pelos doutrinadores do momento que se

inicia a proteção constitucional relacionada a gestante.

c) O conceito de anencefalia, mostrando a impossibilidade de

sobrevivência extra-uterina.

d) A distinção entre feto malformado e inviável, para que de

alguma forma, seja evitado de colocá-los em uma mesma discussão.

Quanto à Metodologia empregada no desenvolvimento do

trabalho, foi utilizado o método dedutivo, por ter sido usado técnicas de consulta

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bibliográfica e pesquisa jurisprudencial, para que de alguma forma, exista a

sustentabilidade do tema em questão.

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1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Neste capítulo estudar-se-á o Estado Democrático de Direito

e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, ambos localizados na CRFB/88,

dando-se ênfase à sua supremacia no ordenamento jurídico brasileiro, o que

acarreta na subordinação das demais normas em relação a ela. Além disso,

buscar-se-á demonstrar a distinção entre Estado de Direito e Estado Democrático

de Direitos, o que será relevante para a presente pesquisa.

1.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Sabe-se que a democracia está totalmente ligada a

convivência humana, através de realizações de valores conforme será

demonstrado a seguir. É bom frisar que o Estado Democrático de Direito é amplo,

ou seja, os princípios envolvidos são relacionados ao Estado Democrático de

Direito e do Estado de Direito. Para um melhor entendimento, será analisada a

distinção entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito.6

1.1.1 Distinção entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito

6 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2000. p.116.

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Primeiramente, é necessário enfatizar que para uma melhor

compreensão do Estado Democrático de Direito é indispensável a compreensão a

distinção entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito. Para tanto,

será abordado os ensinamentos do doutrinador José Afonso da Silva. Segundo

afirma este doutrinador, tanto o Estado de Direito como o Estado Democrático de

Direito são relacionado aos valores de cada ser humano, embora cada um possui

sua abrangência específica.7

Configura-se o Estado Democrático de Direito com a máxima

da democracia e, portanto, realizando os valores de igualdade, liberdade e

dignidade da pessoa, em sua convivência no território nacional. “É mais

abrangente do que Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica de

democracia liberal”8. José Afonso da Silva considera que e o Estado de Direito é

um conceito dinâmico já que se modifica e aprimora com o passar do tempo.

Nesse diapasão as transformações graduais, receberam a

denominação de Estado Social de Direito e, por fim, nossa CFRB/88 o acolheu

com a denominação de Estado Democrático de Direito, para expressar “um

conceito chave do regime adotado no país” 9, fruto de uma evolução gradual.

Como Estado de Direito, sua tipicidade atinha-se ao

liberalismo, basicamente determinava ao Estado a submissão à lei, e para tanto

estabelecer a divisão de poderes e promovera materialização dos direitos e

garantias individuais. Tal conceito, porém, podia tornar-se bastante vago em suas

interpretações e significados. Sendo assim após várias deturpações chegou-se ao

Estado Social de Direito, que explica o seguinte:

[...] é onde o individualismo e o abstencionismo ou neutralismo do Estado Liberal provocaram imensas injustiças, e os movimentos

7 SILVA, José Afonso da. O Estado Democrático de Direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, v. 30, dez. 1988. p. 7-8. 8 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo p.7. 9 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo p.8.

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dos séculos passados desvelaram a insuficiência das liberdades burguesas, o que permitiu o desenvolvimento do pensamento da necessidade do estabelecimento da justiça social.10

A falta de confiança na especificidade do termo Estado

Social de Direito, necessitava de um elemento que poderia aumentar sua

credibilidade em função da sua interpretação. Assim também, José Afonso da

Silva leciona que Estado de Direito ou Estado Liberal nem sempre dão idéia de

Estado Democrático, segundo ele:

Este se funda no princípio da soberania popular que impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure, como verá, na simples formação das instituições representativas, a que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento. Visa, assim, realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana11.

Assim, é necessária a participação popular para que o

Estado reflita em suas vontades e anseios e decisões, no voto popular.

Para configurar-se o Estado Democrático de Direito,

assevera José Afonso ser o bastante “juntar”, os dois conceitos anteriores. Assim

se expressa:

Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. É ai que se entremostra a extrema importância do art. 1º da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, não como mera

10 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. p.11. 11 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. p.13.

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promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já está proclamando e fundando12.

Salienta este autor o fato de que a Constituição de 1988

obteve sua importância no que diz respeito ao Estado Democrático de Direito, em

face de seu art. 1º, determinando sua fundamentação relacionado a organização

do Estado.

Este autor faz ainda importante colocação quando afirma

que a Constituição de 1988 não chegou a estruturar um Estado Democrático de

Direito de conteúdo socialista. Entende-se que:

[...] abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social fundado na dignidade da pessoa humana.13

Percebe-se que para ocorrer uma estrutura democrática do

Estado é necessário as realizações sociais através de direitos sociais, fazendo

com que cada cidadão tenha sua cidadania digna, diante de qualquer situação.

Dentro do art. 1º cabe salientar os fundamentos, II – a

cidadania e, III – a dignidade da pessoa humana, que mantém intima conexão

entre si. Para que haja cidadania há que existir o respeito à dignidade da pessoa

humana, representando segundo José Afonso ”o núcleo de irradiação” dos

restantes dos direitos fundamentais da pessoa humana, sendo que o desrespeito

à dignidade da pessoa humana implica diretamente em desrespeito a sua

cidadania:

12 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. p.15. 13 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. p.17.

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O Estado Democrático de Direito configura-se por realizar um conjunto de princípios. Se tais princípios não efetivam ou não tendem a efetivar-se, igualmente esse tio de Estado não se concretizará. [...] O segundo é o princípio democrático, que nos termos da Constituição há de constituir uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja garantia geral da vigência dos direitos fundamentais. [...] O terceiro princípio é exatamente a garantia da efetividade dos direitos fundamentais individuais, coletivos, sociais e culturais. Em parte o princípio vem sendo realizado no que tange aos direitos individuais e coletivos. Contudo, os direitos sociais e culturais não se têm efetivado na prática por falta de implementação de normas constitucionais que os contemplam. A falta de políticas públicas responde pela ausência dessa implementação. Faltam ações positivas que dêem efetividade aos direitos sociais14.

Refere-se o autor a uma luta para que tais direitos não

sejam desmantelados por correntes de desconstitucionalização, que tem como

conseqüência o desmantelamento axiológico do Estado Democrático de Direito.

Salienta o autor o fato de que sob a luz do princípio da

legalidade pode o Estado Democrático de Direito ficar prejudicado, visto que:

“ninguém pode fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Lei aqui é o ato formal emanado do exercício do Poder Legislativo composto de

representantes do povo.”15 Critica o autor o exercício legislativo através de

medidas provisórias, tão comuns na atualidade. Von Ihering afirma que “todos os

direitos da humanidade foram conquistados na luta”, ao citar Shakespeare16,

demonstra que no Estado de Direito, em nome da legalidade se pode

14 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. p. 20. 15 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. p. 22. 16 Ato III, c. 3ª Antônio: “o Doge não pode suspender o cumprimento da lei, porque”... Ato IV, c. I. o Doge a Antônio: “Estou aflito por uma causa. “Antônio: “visto que... nenhum meio legal pode subtrair-me aos ataques do seu rancor... Portia... tu estás em tão regular situação que a lei de Veneza não pode opor obstáculos às tuas preensões. Isso não deve ser:não há autoridade em Veneza que possa alterar um decreto estabelecido... A glosa e o espírito da lei harmonizam perfeitamente com a penalidade estipulada claramente neste título... Tu tens direito a uma libra de carne deste mercador, o tribunal ta adjudica e a lei ta

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submetendo a pessoa à Lei, cometer absurdos e indignidades. Silva acredita

que “quando se trata de abrir espaço para a realização dos direitos fundamentais

da pessoa humana, a luta se torna ainda mais árdua” 17. Nesse sentido a Magna

Carta deve refletir a soberana vontade do povo que se abriga sob sua proteção,

sem, contudo, esquecer de que esta está para servi-lo.

A acepção “novo direito constitucional” – de acordo de Luís

Roberto Barroso18 – ou neoconstitucionalismo, designa um conjunto amplo de

mudanças ocorridas no Estado e no direito constitucional, que podem ser

percebidas a partir dos marcos histórico, filosófico e teórico.

O marco histórico se dá com a formação do Estado

Constitucional de Direito, consolidado a partir das décadas finais do século XX,

especificamente após a 2ª. Guerra Mundial19. A partir desta última,

[...] verificou-se a necessidade de criarem catálogos de direitos e garantias fundamentais para a defesa do cidadão frente aos abusos que poderiam a ser cometidos pelo Estado ou por quaisquer detentores do poder em quaisquer de suas manifestações (político, econômico, intelectual etc.), bem como mecanismos efetivos de controle da Constituição (jurisdição constitucional.20

dá”.... In. VON IHERING, Rudolf. A Luta Pelo Direito. Tradução de João de Vasconcelos. Rio de Janeiro. Forense. 2003. 17 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. p. 23. 18 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 851. Disponível em: <http://www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acesso em: 15 ago. 2008. 19 “Com a superação dos regimes totalitários, da opressão política e da violação reiterada dos direitos fundamentais, durante o século XX, diversos países decidiram introduzir em seus textos constitucionais elementos relacionados a valores e a opções políticas fundamentais, na esperança de que eles formassem um consenso mínimo a ser observado pelas maiorias.” In. BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Disponível em: <http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/artigo%20controle%20pol%C3%ADticas%20p%C3%BAblicas.pdf.>. Acesso em: 15 ago. 2008. 20 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44. Disponível em: <http//:www.panoptica.org.>. Acesso em: 14 set. 2008.

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22

Já, por marco filosófico, o pós-positivismo21 enuncia que os

princípios jurídicos deixam de ter aplicação meramente secundária, colmatando

lacunas, e passam a ter relevância jurídica na conformação judicial dos direitos.

Finalmente, o marco teórico estabelece três características,

quais sejam: “reconhecimento da força normativa da Constituição”, “expansão da

jurisdição constitucional” e o “desenvolvimento de uma nova dogmática da

interpretação constitucional”.

Afirmar que a Constituição tem força normativa é reconhecer

que ela tem caráter jurídico imperativo, isto é, não representa uma mera carta de

intenções políticas. O reconhecimento desta característica representa uma ruptura

com o direito constitucional clássico que apresentava “normas constitucionais

programáticas” enquanto proposições futuras, sem expectativas de concretização

e sem eficácia vinculativa.

É assim que, gradativamente a jurisdição constitucional

ampliou-se dando maior realce aos direitos fundamentais e a proteção destes

passou a ser incumbência do Poder Judiciário, em detrimento do Poder

Legislativo. Este último perde a supremacia estabelecida por influência dos ideais

de Montesquieu.22

De acordo com Eduardo Cambi, esta expansão resultou em

uma simplificação do acesso à Justiça com a criação dos Juizados Especiais

21 “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas.” In. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44. Disponível em: <http//:www.panoptica.org.>. Acesso em: 13 set. 2008. 22 Para Montesquieu “a decisão do juiz deve ser uma reprodução fiel da lei; ao juiz não deve ser deixada qualquer liberdade de exercer sua fantasia legislativa, porque se ele pudesse modificar as leis com base em critérios equitativos ou outros, o princípio da separação dos poderes seria negado pela presença de dois legisladores; o verdadeiro próprio e o juiz que poria sub-repticiamente suas normas, tornando assim vãs as do

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Cíveis e Criminais, dispensando muitas vezes a presença do advogado; na

modificação das funções do Ministério Público que passaram a ter legitimidade

para proteger os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos e na

ampliação dos mecanismos de controle abstrato de constitucionalidade, com

inserção de novos legitimados e com a criação de outros instrumentos. Sendo

assim diante de tudo que foi falado a cima, entra a questão da ADPF, que serve

para solucionar o problema estabelecido por alguns magistrados.

1.2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A CFRB/88 é a primeira CF Brasileira a tratar a respeito do

Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

A Constituição Brasileira fala a respeito da Dignidade da

Pessoa Humana como princípio fundamental, conforme o artigo 1º, III, da CF que

diz:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: III- a dignidade da pessoa humana.

Segundo Rizzatto Nunes, o Princípio da Dignidade da

Pessoa Humana “[...] é o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional

posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais. É a dignidade que

dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete”.23

José Afonso da silva acrescenta:

legislador.” In. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. p. 40. 23 NUNES, Luiz Antonio Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 45.

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[...] a dignidade da pessoa humana não é criação constitucional, mas um dado preexistente a toda experiência especulativa que, em face de sua relevância e conteúdo filosófico, foi constitucionalizada como fundamento da CRFB/88, a qual se constitui em estado democrático de direito.24

Segundo Ingo Sarlet, a dignidade já existe há muito tempo

em nossos pensamentos, como sendo uma qualidade essencial da pessoa

humana, tornando-se “irrenunciável e inalienável, constituindo elementos que

qualificam o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que

não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma

pretensão a que lhe seja concedida a dignidade”.25

Neste contexto Ingo Sarlet afirma que todo ser humano

nasce livre e ainda, possui dignidade, e conseqüentemente, usufrui de direitos

fundamentais, como por exemplo, a dignidade da pessoa humana, que no caso

em questão é relacionado à gestante. Fala-se em irrenunciável e inalienável,

porque não podem ser passados para outra pessoa.26

A palavra dignidade designa “[...] um valor espiritual e moral

inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação

consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao

respeito por parte dos demais”.27

24 SILVA, José Afonso da. O estado democrático de direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, p. 91. 25 SARLET, Ingo Wolfgang. dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição da República de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 40. 26 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição da República de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 40. 27 RUBIO LLORENTE, Francisco. Derechos fundamentales y princípios constitucionales : doctrina jurisprudencial. Barcelona-Espanha: Ariel, 1995, p. 72.

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25

O doutrinador Paulo Bonavides entende o seguinte: “[...] os

princípios são os valores, são também normas, como uma dimensão de

juridicidade máxima”.28

Ainda de acordo com Bonavides, o Princípio da Dignidade

da Pessoa Humana está consagrado expressa ou tacitamente por todas as

pessoas democráticas que vivem no mundo contemporâneo.

Para uma melhor compreensão, Fernando Ferreira dos

Santos define o que é ser pessoa humana digna, e firma-se no entendimento de

Kant, que diz: “a moralidade significa a libertação do homem e o constitui como

ser livre. [...] é o que faz da pessoa um ser de dignidade própria [...]”.29

Como fica caracterizado que o Principio da Dignidade da

Pessoa Humana é o maior princípio fundamental, acaba se tornando como valor

de referência em tudo que envolve a Constituição.

Segundo Flademir Martins, o doutrinador Tomás30 foi o

primeiro a utilizar o termo dignidade humana, que definindo pessoa como

“substância individual de natureza racional”, o que lhe confere substância,

diferenciando-o dos demais seres, como único, racional e intelectual. Tal definição

atrela o ser a uma qualidade inerente a toda pessoa humana.31

Já a definição de Immanuel Kant32 permanece atualmente, já

que aborda duas facetas da questão que considerava fundamental, sendo uma

delas o estabelecimento dos limites da aplicação do conhecimento humano e a

28 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 582. 29 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril, 1993. p. 77. Apud. SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, p. 23. 30 AQUINO, Tomás de – (santo) 1225-1274, de família Lombrada, nac. em el castillo de roccasecca, em lãs cercanias de Aquino, al norte de Nápoles. In. MORA, Ferraltr. Diccionario de filosofia. 1998. p. 3527). 31 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. 1. ed., 4 tir. Curitiba: Juruá, 2006. p. 24. 32 KANT, Immanuel 1724-1804, nac. em konigrberg, donde permanecia hasta su muerti, (MORA, Ferraltr. Diccionario de filosofia. 1998 p. 1989).

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outra os problemas morais advindos dessa aplicação. Defende Kant o papel da

racionalidade na ética. “O homem como sujeito do conhecimento é ativo e criador,

capaz de se sentir responsável por seus próprios atos e de ter consciência de

seus deveres.”33

Sartre34 segundo Martins, empresta a definição um enfoque

marxista de dignidade da pessoa humana, reflexo do momento em que visionava

o homem dentro de um contexto existencialista.35

Segundo Flademir Martins, o pensamento de Hanna Arendt,

que através de suas reflexões, percebeu-se que existia uma grave ofensa a

dignidade da pessoa humana, em função do enfraquecimento do Estado. A perda

da noção dos valores inerentes à pessoa humana foi a tônica da atuação destes

estados totalitários. Para o autor com base na observação desses fenômenos

sociais se podem vislumbrar os contornos do que se entende por dignidade da

pessoa humana.36

No Brasil só em 1988 com o advento da nova Constituição,

pela primeira vez, de forma expressa, se tratou de usar o Princípio da Dignidade

da Pessoa Humana, foi mencionado como fundamento da República e do Estado

Democrático de Direito, influencia direta da constituição alemã, espanhola e

portuguesa, isto é, pela primeira vez se fazia à previsão de um Estado que

permitia a todos uma existência digna. O Estado servindo aos interesses dos seus

cidadãos.37

33 KANT, Immanuel. Apud MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. 1. ed., 4 tir. Curitiba: Juruá, 2006. p. 26. 34 SARTRE, Jean Paul 1905-1980, nac. em paris. Estúdio em la écola normale supérieure, recibindo em 1929 la agrégation de filosofia. (MORA, Ferraltr. Diccionario de filosofia. 1998. p. 3170). 35 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. 1. ed., 4 tir. Curitiba: Juruá, 2006. p. 29. 36 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2006. p. 32. 37 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. P. 32.

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27

No caso da história Constitucional Brasileira, pode-se

observar que ao tempo da Constituição de 1934, já era expressa a necessidade

de organização da ordem econômica, com a finalidade de proporcionar a todos

uma existência digna (art.115). Em 1937 a Constituição, de caráter autoritário não

se refere ao tema, só sendo retomada em 1946, todavia, sem a força tão

necessária ao tema. A menção do termo “dignidade humana” somente ocorreu na

Constituição de 1967 (art. 157, II) como princípio.38

Salienta Flademir Martins que a Revolução de 1964

pretendeu dar ao país um regime que pudesse assegurar a ordem democrática,

contudo, em nome dessa mesma ordem se ofendeu de maneira brutal o que se

propunha em termos de liberdade e respeito à dignidade da pessoa humana.

Como se observou no Ato Institucional nº. 5, em função da repressão política que

gerou, transgrediu de forma inaceitável os direitos fundamentais, e por extensão a

Dignidade da Pessoa Humana.39

Com a Constituição de 1988, devolvia-se assim ao cidadão

sua liberdade e dignidade. Tais direitos necessitam ser assegurados.

No que tange a dignidade da pessoa humana, como valor

supremo da ordem jurídica, o artigo 1º, inciso III da CRFB, diz:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: [...] III – a dignidade da pessoa humana.40

Flademir Martins assim se pronuncia:

38 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea, p. 43-49. Apud MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. p. 48. 39 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. p. 49. 40 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Vade Mecum Acadêmico de Direito/Organização Anne Joyce Angher. 3. ed. São Paulo: Rideel, 2006. p. 43.

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O constituinte não se preocupou apenas com a positivação deste ‘valor fonte’ (usando a expressão de Celso Lafer – grifo nosso) do pensamento ocidental, buscou acima de tudo estruturar a dignidade da pessoa humana de forma a lhe atribuir plena normatividade, projetando-a por todo sistema político, jurídico e social instituído.41

Salienta o fato de o constituinte ter feito questão de dar

tratamento especial mencionando a dignidade da pessoa humana em vários

outros artigos de forma direta ou indireta.42

Percebe-se atualmente que a Dignidade da Pessoa Humana

tem dois grandes fundamentos: consiste em norma fundamental, voltada a garantir

as faculdades jurídicas necessárias à existência digna do ser humano. Nesse

sentido, Ingo Sarlet explica a intenção do legislador ao inserir a idéia de Dignidade

Humana na Lei Fundamental:

Com o reconhecimento expresso, no título dos princípios fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito; (art. 1º, inc. III da CF), o constituinte de 1987/88, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário. O homem constitui a finalidade precípua e não o meio da atividade estatal43.

Ingo Sarlet ainda acrescenta que a Constituição aborda o

tema Dignidade da Pessoa Humana, como sendo um ordenamento objetivo de

valores essenciais do sujeito, para que todos possuam uma vida digna de seus

direitos e deveres, podendo assim, exercer seus valores de forma livre.

41 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. p. 50. 42 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. p. 50. 43 SARLET. Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 102-103.

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As transformações desses valores construídos historicamente

se refletem no texto constitucional, que, portanto, deve moldar-se aos anseios da

comunidade a que serve e seus princípios devem contaminar toda a legislação

infraconstitucional.

A cerca dos valores constitucionais José Afonso da silva

assevera que possuem uma tríplice dimensão:

a) fundamentadora do conjunto de disposições e instituições constitucionais, assim como do ordenamento jurídico em seu conjunto, o que acentua sua significação de núcleo básico e informador de todo o sistema jurídico-político; b) orientadora da ordem jurídico-política para metas ou fins determinados, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos ou que obstaculize a consecução daqueles enunciados pelo sistema axiológico constitucional; c) crítica, já que sua função, como a de qualquer outro valor, reside em sua idoneidade para servir de critério ou parâmetro de valoração para avaliar fatos ou condutas. Isso implica ser possível um controle jurisdicional de todas as demais normas do ordenamento. 44

Daí o fato de estas normas infraconstitucionais estarem

repletas do conteúdo dos preceitos ditados no texto constitucional, fazendo-se

elementos de materialização dos princípios arrolados na CF. Bonavides afirma

que “As liberdades assentam na pessoa, independentemente do Estado; as

garantias reportam-se ao Estado em atividade de relação com a pessoa.

Acrescenta ainda que as chamadas liberdades são formas de a pessoa agir”,45

deste modo pode-se entender que o Estado sempre deve colocar-se em defesa

das liberdades individuais. É necessário para este autor “afirmar e proteger a

liberdade perante o Estado, aí surgiram às locuções de direitos individuais,

expressões como garantias constitucionais, na busca da salvaguarda dos direitos

fundamentais.”

44 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. p. 58. 45 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 528.

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A rigor, considerar a Constituição como ordem objetiva de valores implica admitir também que sempre haverá valores que, histórica e objetivamente, em face de sua relevância para a comunidade, são dotados de primazia axiológica sobre os demais. E quando analisarmos a Constituição brasileira percebe que o valor fonte do nosso sistema constitucional radica na dignidade da pessoa humana46.

Percebe-se que o Estado é construído a partir da pessoa

humana, e ainda, o Estado é utilizado justamente para servi-la, propiciando

condições mínimas materiais de vida, para que os seres humanos tenham

dignidade. 47

Visto o Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa

Humana, no próximo Capítulo adentrar-se-á no objeto principal da presente

Monografia que é a anencefalia: aborto ou antecipação do parto.

46 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. p. 61. 47 MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. p. 61.

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2 ANENCEFALIA: ABORTO OU ANTECIPAÇÃO DO PARTO?

Neste capítulo estudar-se-á o conceito de aborto nos casos

de Anencefalia, além disso, buscar-se-á demonstrar a distinção entre feto

malformado e feto inviável, chegando a fazer uma explanação a cerca do que vem

a ser vida, para que assim, possa se chegar a uma concretização a respeito do

aborto/antecipação terapêutica do parto.

2.1 CONCEITO DE ANENCEFALIA

Para que de alguma forma se tenha um domínio a respeito

do tema em questão, é imprescindível à conceituação da palavra anencefalia.

Neste diapasão, o termo anencefalia, conforme a Federação

Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia consiste:

[...] na formação caracterizada pela ausência total ou parcial do

encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de

fechamento do tubo neural durante a formação embrionária, entre

os dias 23 e 28 da gestação. Ocorre com maior freqüência em

fetos femininos, pois, parece estar ligado ao cromossomo X.48

Para uma melhor entendimento a respeito do conceito de

anencefalia, faz-se necessário á observação das figuras abaixo:

Visualização do Cérebro

48 ANDALAFT NETO, Jorge. Anencefalia: Posição da FEBRASGO. Disponível em: <http://www.bioefecrista.med.br/textos/anecefalia_febrasgo.pdf>. Acesso em: 16 out. 2007.

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32

Figuras 01 e 02: Visualização do encéfalo e das meninges.49

Observa-se que o encéfalo fica localizado na parte interior do

crânio central e é caracterizado pela ligação do cerebelo, cérebro e do tronco

encefálico.50

49 SISTEMA NERVOSO. Disponível em <http://copavetsozuera.blogspot.com/2007_04_01_archive.html>. Acesso em: 31 out 2008.

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Ao falar em tronco encefálico é importante dar a sua

definição, conforme ensina a Biblioteca virtual em saúde, tronco encefálico é a

parte do cérebro responsável por fazer o ligamento dos hemisférios cerebrais à

medula espinhal, e ainda, é bom frisar que o mesmo é formado pelo mesencéfalo,

ponte e bulbo.51

Figura 03: Medula espinhal. 52

50 MACHADO, Ângelo apud QUEIROZ, Eduardo Gomes de. Abortamento de feto anencefálico e a inexigilibidade de conduta diversa: a influencia das circunstâncias concomitantes no comportamento humano. Revista IOB de Direito Penal e Processo Penal, Porto Alegre, v. 7, n. 40, out./Nov. 2006. P. 76. 51 BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE: Descritores em Ciências da Saúde. Disponível em: HTTP://decs.bvs.br/cgi-bin/wxis1660.exe/decsserver/. Acesso em: 02 nov. 2008. 52 SISTEMA NERVOSO. Disponível em <http://copavetsozuera.blogspot.com/2007_04_01_archive.html>. Acesso em: 31 out 2008.

A medula espinhal, a principal via de comunicação entre o cérebro e o restante do organismo, é uma estrutura tubuliforme e macia formada por nervos que se estendem a partir da base do cérebro em direção descendente.

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Figura 04: Composição do Tronco encefálico. 53

Sendo assim, Luiz Roberto Barroso afirma que a anencefalia

é conceituada na área médica com o fechamento do tubo neural durante o estado

gestacional, de tal forma que o feto não apresenta o córtex e nem os hemisférios

cerebrais. Podendo ser chamada de ausência de cérebro.54

Segundo Manuel Sabino Pontes:

Anencefalia é uma alteração na formação cerebral resultante de falha no início do desenvolvimento embrionário do mecanismo de fechamento do tubo neural e que se caracteriza pela falta dos ossos cranianos (frontal, occipital e parietal), hemisférios e do córtex cerebral.55

53 SISTEMA NERVOSO. Disponível em <http://copavetsozuera.blogspot.com/2007_04_01_archive.html>. Acesso em: 31 out 2008. 54 BARROSO, Luiz Roberto. Artigos, Pareceres, Memoriais e Petições: Anencefalia, inviabilidade do feto e antecipação terapêutica do parto – Petição Inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS ao Supremo Tribunal Federal – STF. Disponível em: HTTP://planalto.gov.br/ccivil_03/revista; Acesso em: 31 out. 2008. 55 PONTES, Manuel Sabino. Disponível em: <http//www.jusnavigandi.com.br>, Acesso em: 25 ago. 2007.

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Sendo assim, é evidente para alguns que ocorrendo uma má

formação do tubo neural do feto, torna-se uma vida inviável, no útero ou até

mesmo, nos primeiros dias após o nascimento, tratando-se de um problema

extremamente complexo. Sem contar que esta criança somente sobreviverá

alguns minutos, ou até mesmo horas, através de aparelhos, e ainda, aparelhos

que muitas vezes o próprio Estado não tem para fornecer. “A viabilidade para a

vida extra-uterina depende do suporte tecnológico disponível (oxigênio,

assistência respiratória mecânica, assistência vasomotora, nutrição, hidratação).”56

Diante de tal situação, será demonstrado a seguir algumas

complicações no processo gestacional, durante e após a gravidez (observando-se

que são listados não apenas argumentos médicos, mas também argumentos

sobre inconvenientes práticos), como:

a) a manutenção da gestação de feto anencefálico tende a se prolongar além de 40 (quarenta) semanas; b) sua associação com polihidrâminio (aumento do volume de líquido amniótico) é muito freqüente; c) associação com doença hipertensiva específica da gestação (DHEG); d) associação com vasculopatia periférica de estase; e) alterações do comportamento e psicológicas de grande monta para a gestante; f) dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo; g) necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério; h) necessidade de registro de nascimento e sepultamento desses recém-nascidos; i) necessidade de bloqueio de lactação (interromper a amamentação); j) puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina; k) maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstetrícias do parto de termo.57

56 PONTES, Manoel Sabino. Anencefalia. Disponível em: <http://www.jusnavigandi.com.br>. Acesso em: 25 ago. 2007. 57 MARTINS Guylene Vasques Moreira. A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencefálico. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9190&p=2>. Acesso em: 31 out.2008.

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Para a Medicina, existem dois processos que evidenciam o

momento morte: a “morte cerebral e a morte clínica”. A morte cerebral é a parada

total e irreversível das funções encefálicas, e tem como resultado o processo

irreversível, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionando. A

morte clínica ou biológica é a parada irreversível das funções cardio-respiratórias,

com parada cardíaca e conseqüente morte cerebral, por falta de irrigação

sanguínea, levando a posterior necrose celular. Os exames complementares a

serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de

forma clara: “ausência de atividade elétrica cerebral, ou ausência de atividade

metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral”. Segundo o

Conselho Federal de Medicina - CFM, em sua Resolução n° 1.752/04, os

anencefálicos são natimortos cerebrais, e por não possuírem o córtex, mas

apenas o tronco encefálico, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de

morte encefálica.58.

Percebe-se que o anencefálico nada mais é do que um

resultado de um processo irreversível, como foi abordado anteriormente, de causa

conhecida e sem qualquer possibilidade de vida extra - uterina, pelo fato de não

existir a parte principal do cérebro, correspondente a vida do ser humano, é

considerado desde o útero um feto morto cerebral.

Ao falar em diagnósticos, não restam dúvidas que não se

pode falar em aborto, porque o aborto é a morte do feto causada pela interrupção

da gravidez. Se o feto já estava morto, não é lesado o interesse protegido pela lei

penal. Percebe-se que a conduta realizada tornar-se-á atípica a conduta da

interrupção da gravidez do anencefálico.59

Sobre o tema, de um ponto de vista médico, os doutores

Carlos Gherardi e Isabel Kurlat, segundo Manuel Sabino Pontes, entendem que os

58 SOUZA, Lara Gomides de. Legalização do abortamento anencefálico Disponível em: <http://www.r2learning.com.br/_site/artigos/curso_oab_concurso_artigo_694_Legalizacao_do_Abortamento_Anencefalico>. Acesso em: 31 out. 2008.

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problemas relacionado a anencefalia acabam diminuindo muito a permanência

deste ser no útero ou até mesmo, na vida extra-uterina, conforme explica:

Aproximadamente 75% dos fetos afetados morrem dentro do útero, enquanto que, dos 25% que chegam a nascer, a imensa maioria morre dentro de 24 horas e o resto dentro da primeira semana.60

Com estas porcentagens estabelecidas, está caracterizada

a importância do aborto neste tipo de situação. Não é apenas o caso do feto /

bebe, que está em questão, mas sim, o sofrimento dos pais, ao detectarem o

problema.

Para uma melhor compreensão, O Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul, tem o seguinte entendimento:

APELAÇÃO CRIME. ABORTO EUGENÉSICO. ANENCEFALIA. Inviabilizada a vida do feto, prenunciada sua morte por malformação – anencefalia comprovada –, hão de volver-se, os cuidados, àquela que o gera, então permitindo-se a interrupção da gravidez, que nestes casos a faz exposta a risco. Inteligência do artigo 128, do Código Penal. PROVIDO O RECURSO. (TJ/RS, AC n. 70016858235, Rel. Des. Newton Brasil de Leão, Julgado em 28/12/2006).

Diante disso, passa-se agora a apresentação a respeito da

distinção entre feto malformado e feto inviável.

59 FAYET, Fábio Agne. Existe aborto de anencéfalos? Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6467>. Acesso em: 31 out.2008 60 GHERARDI, Carlos; KURLAT, Isabel. Apud PONTES, Manuel Sabino, Disponível em: <http//www.jusnavigandi.com.br>, acesso em 25 ago 2008.

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2.2 DISTINÇÃO ENTRE FETO MALFORMADO E FETO INVIÁVEL

É indispensável distinguir o conceito de feto malformado e de

feto inviável, para que se possa chegar no conceito de anencefalia.

Tanto o feto malformado, como o feto inviável, ocorre a

interrupção da gravidez, embora, cada um refere-se a conceitos diferentes.61

Sendo assim, será debatido a respeito das anomalias fetais

compatíveis e incompatíveis com a vida fora do ventre materno.

É importante saber que depende do estado gravitacional,

para assim, saber se existe ou não a possibilidade de vida extra-uterina, ou seja,

nos casos em que a morte não é certa. Mesmo que ocorra a anomalia congênita,

o feto malformado possui expectativa de vida ainda que com certas limitações no

que tange a sua qualidade de vida.62

Segundo Anelise Tessaro, esta malformação fetal com vida

que podem ser sanadas ou atenuadas através de cirurgias ou tratamentos

clínicos.63

Já relacionado a malformação de feto inviável é diferente, a

“[...] anomalia é severa ou está associada a outra anomalia, que acaba tornando o

feto inviável, ou seja, o prognóstico morte é certo e irreversível”. Desta forma, tem-

se como exemplo a anencefalia.64

61 TESSARO, Anelise. A anomalia fetal incompatível com a vida como causa de justificação para o abortamento. Ajuris. p. 46. 62 TESSARO, Anelise. A anomalia fetal incompatível com a vida como causa de justificação para o abortamento. Ajuris. p. 46. 63 TESSARO, Anelise. A anomalia fetal incompatível com a vida como causa de justificação para o abortamento. Ajuris. p. 46. 64 TESSARO, Anelise. A anomalia fetal incompatível com a vida como causa de justificação para o abortamento. Ajuris. p. 46.

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Sendo assim, é evidente que existem distinção entre feto

malformado e feto inviável, conforme ensina Anelise Tessaro:

[...] apesar das anomalias, é impossível que o feto malformado se

mantenha vivo. Ao passo que, nos fetos inviáveis, a anomalia

incompatibiliza sua sobrevivência extra-uterina, a criança não

viverá nem bem ou mal, vindo a falecer logo após o parto.65

Assim sendo, considerando os conceitos expostos

anteriormente, passar-se-á a expor acerca do conceito de anencefalia.

2.3 O QUE VEM A SER VIDA

Para se chegar à definição de vida, é importante saber como

se dá o início da vida, e que para que se chegue a uma formação completa de um

ser humano, existem algumas etapas devem ser cumpridas.

A vida surge a partir do momento que ocorre a formação do

zigoto, ou seja, pró-núcleo masculino juntamente com o feminino, acontecendo de

tal forma um desenvolvimento embrionário, onde o zigoto carrega em si um novo

projeto-programa individualizado, ou seja, uma vida individual, e ainda, é

importante salientar que cada etapa a ser realizada no transcorrer deste

desenvolvimento é totalmente dependente da etapa anterior, porque só assim,

65 TESSARO, Anelise. A anomalia fetal incompatível com a vida como causa de justificação para o abortamento. Ajuris. p. 46.

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teria uma formação correta sem problemas com qualquer parte do organismo ou

até mesmo estrutural.66

Com a mesma linha de pensamento, Maria Helena Diniz

expõe:

[...] o aparecimento de um novo ser humano, ocorre com a fusão dos gametas femininos e masculino, dando origem ao zigoto, com o código genético distinto do óvulo e do espermatozóide.67

Reinaldo Pereira e Silva enfatiza a formação da vida da

seguinte maneira:

[...] do momento do encontro do espermatozóide com o óvulo até a geração do zigoto transcorre um período de tempo de aproximadamente doze horas, apenas após esse período é que se deve falar da concepção de uma vida humana geneticamente distinta da dos genitores.68

Primeiramente, é sempre bom lembrar que a definição do

que é ser vida existem vários entendimentos diferenciados, estando totalmente

ligado a questões de convicções religiosas, filosófico, morais e até mesmo

jurídicas.69

A definição de vida segundo Francisco Fernandes é o

“tempo que decorre entre o nascimento e a morte”.70

66 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética: I-Fundamento e Ética Biomédica. Trad. Orlando Soares Moreira. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 342. 67 Diniz, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva 2001. p . 27. 68 SILVA, Reinaldo Pereira e. Biodireito: a nova fronteira dos direitos humanos. 2003. p. 115. 69 MELARÉ, Márcia Regina machado. Inicio da vida começa? Revista super interessante. 219. ed. Disponível em: <http://super.abril.com.br/superarquivo/2005/conteudo_102861.shtml>. Acesso em: 14 set. 2007. 70 FERNANDES, Francisco. Dicionário brasileiro contemporâneo. Porto Alegre: Globo, 1970. p.1100.

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Com a mesma linha de pensamento, o doutrinador Fernando

Barcellos de Almeida, entende que:

[...] a vida é essencialmente da pessoa humana, considerada

como tal a existência da pessoa natural ou física, desde o

nascimento com vida [...] até o exato momento de sua morte

cerebral embora alguns a estendam até a finalização das demais

funções vitais.71

Para uma melhor compreensão do assunto, é interessante

ressaltar o entendimento da doutrinadora Débora Diniz, “pessoa é tudo aquilo que

não é coisa e, portanto, capaz de viver”, observa-se que nos casos de anomalia

fetal incompatível com a vida, o feto anencefálico não seria uma pessoa,

justamente por não ter capacidade de viver, ou seja, direito de pensar e agir. A

razão é a seguinte: "somente alguém vivo ou potencialmente vivo é pessoa e tem

direito à vida [e sendo assim, o] feto inviável não tem potencialidade de viver [logo,

o] feto inviável não é pessoa e não tem direito à vida". Conclui-se que o aborto de

feto anencefálico, não haveria propriamente um aborto, mas apenas um

procedimento médico comum, chamado de "antecipação terapêutica do parto".72

Para fundamentar ainda mais o posicionamento feito

anteriormente pela doutrinadora Débora Diniz, Márcia Regina Machado Melaré

afirma:

O momento do início da vida deve ser caracterizado pelo início da atividade cerebral, base da vida humana racional. A vida somente pode ser entendida iniciada com o início das atividades cerebrais do feto, após o início dos batimentos cardíacos, ou seja, a partir da

71 ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria geral dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996. p. 54. 72 MARTINS Guylene Vasques Moreira. A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencefálico. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9190&p=2>. Acesso em: 31 out.2008.

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8ª semana da fecundação, perdendo-se quando constatada a morte encefálica ou ausência da atividade encefálica do ser.73

Verifica-se que para ocorrer o início da vida, é fundamental

a existência das atividades cerebrais, considerando as informações a cima

expostas, a partir da 8ª semana gestacional.74

A mesma análise feita anteriormente a respeito de qual

momento seria caracterizada a vida, os filósofos da Grécia antiga entendiam que a

vida iniciaria após o nascimento.75

Como se percebe, existem diversos questionamentos a

respeito de quando começa o surgimento da vida, em virtude dos avanços do

conhecimento humano, como por exemplo, aparelhos especializados na

descoberta de má formação de um ser, ocasionando uma dificuldade no

entendimento a respeito do começo da vida.76

Sendo assim, o acontecimento relacionado a sistemática

jurídica da definição do que vem a ser vida, obrigatoriamente é necessário

basear-se no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, para que certas

condutas realizadas por gestantes, como por exemplo antecipação do parto de

feto anencefálico, são sejam consideradas crime.77

Diante disso, na próxima fase da pesquisa, dar-se-á

especial atenção ao aborto ou antecipação do parto.

73 MELARÉ, Márcia Regina Machado. Inicio da vida digna e racional. Justilex, Brasília, v. 43, jul. p. 24. 74 MELARÉ, Márcia Regina Machado. Inicio da vida digna e racional. Justilex, p. 24. 75 SCOSTEGUY, Diego; BRITO, Ricardo. Quando começa a vida? Veja, editora abril, 2005, a. 40, n. 16, 25 abr 2007. p. 57. 76 ESCOSTEGUY, Diego; BRITO, Ricardo. Quando começa a vida? Veja. p. 55.

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2.4 ABORTO OU ANTECIPAÇÃO DO PARTO?

Nesta parte do trabalho científico serão estudados os

aspectos conceituais referente ao aborto, cuja importância reflete-se no “saber” de

cada ser humano até onde irão seus limites relacionados a tal ato praticado, e

posteriormente, serão analisadas as espécies de aborto previstas no Código

Penal.

2.4.1 Aspectos Conceituais sobre o Aborto

O aborto é uma conduta realizada tanto por parte da

gestante como por terceiro, sendo definida como crime contra a vida, relacionado

aos artigos 124 ao 128, previsto no Capítulo I, Título I do Código Penal, e ainda,

está inserido na parte especial desde código.78

É importante determinar de forma integral e correta a palavra

aborto no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista a complexidade e as

variações relacionadas ao entendimento a respeito do assunto. 79

Tendo essa probabilidade, buscar-se-á explicar a diferença ao

estabelecer a definição do vocábulo aborto.

77 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. O aborto sob a perspectiva da bioética. Revista dos Tribunais, São Paulo, RT, v. 807, jan. 2003. p. 483. 78 SIQUEIRA, Geraldo batista de. Aborto, Anencefalia: autorização judicial ou consentimento da gestante. Revista Síntese de Direito Penal e Direito Processual Penal, jun-jul. 2005. p. 5. 79 BAHIA, Claudio Jose Amaral; PANHOZZI, Aline. A ADPF e a possibilidade de antecipação terapêutica do parto: um estudo jurídico-constitucional sobre a anencefalia fetal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006. p. 422.

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Referente a etimologia da palavra aborto, Reinaldo Pereira e

Silva assegura:

[...] do latim ‘ab’ = privação + ‘ortus’ = nascimento, significa a interrupção do processo natural de gestante, resultante na morte pré-natal da vida humana intra-uterina, isto é, a morte de um ser humano antes que estivesse em condições de sobreviver fora do útero materno.80

Da mesma forma, Claudio José Amaral Bahia expõe:

Etimologicamente, aborto significa privação do nascimento. A palavra aborto advém do latim abortus, onde ab expressa privação e ortus, nascimento.81

Maria Helena Diniz, define a etimologia da palavra aborto

com palavras diferentes, embora tenha o mesmo posicionamento:

[...] aborto, originária do latim abortus, advindo de aboriri (morrer), vem sendo empregado para designar a interrupção da gravidez antes de seu termo normal, seja ela espontãnea ou provocada, tenha havido ou não expulsão do feto destruído.82

Para o doutrinador Romeu de Almeida Salles Junior, será

considerado aborto nos casos em que ocorrer a interrupção da gestação com a

morte do feto, ou até mesmo com a destruição do produto da concepção, como é

o caso do óvulo, embrião ou feto, alegando ainda, que não é necessário a saída

forçada do feto do útero materno.83

80 SILVA, Reinaldo Pereira e. Introdução ao biodireito: investigação político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana. São Paulo: LTr. 2002. p . 255. 81 BAHIA, Claudio Jose Amaral. Revista dos Tribunais. a. 95 v. 843. Jan/06, São Paulo: RT, p. 422. 82 DINIZ, maria helena. O estado atual do biodireito.. p. 31. 83 SALLES JÚNIOR, Romeu de Almeida. Curso completo de direito penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva. 1999. p. 185

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Para Francisco Fernandes, a palavra aborto significa

“produção imperfeita, anomalia”.84

Para Tardieu, segundo Genival Veloso de França, aborto é:

A expulsão prematura e violentamente provocada do produto da concepção, independentemente de todas as circunstancias de idade, viabilidade e mesmo de formação regular.85

Complementando a origem da palavra aborto, Julio Fabbrini

Mirabete estabelece que o aborto seja:

[...] a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão.86

Alega ainda, que “o produto de concepção pode ser

dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mesmo mumificação, ou

pode a gestante morrer antes da sua expulsão”.87

Para o doutrinador Celso Delmanto, não há diferente dos

entendimentos a cima citados e define o aborto como sendo “ [...] a interrupção do

processo de gravidez, com a morte do feto”.88

Com o mesmo entendimento, Luiz Regis Prado garante que

somente a interrupção do processo gestacional, não evidencia o aborto, pois “[...]

84 FERNANDES, Francisco. Dicionário brasileiro contemporâneo. Porto Alegre: Globo, 1970. p. 9. 85 Tardieu apud FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. 7. ed. Rio de janeiro: Guanabara Koagan, 2003. p . 261. 86 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 18. ed. v. 3. São Paulo: Atlas, 2003. p. 93. 87 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial, 17. ed. São Paulo: Atlas, v. 2. São Paulo: Atlas, 2001. p. 93. 88 DELMANTO, Celso et al. Codigo penal comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 268.

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o feto pode ser expulso do ventre materno e sobreviver ou, embora com vida, ser

morto por outra conduta punível [...]”.89

Luiz Regis Prado ainda afirma que a morte, exclusivamente,

do feto não caracteriza o aborto, é necessário que a morte resulte “dos atos

praticados ou dos meios utilizados para a interrupção da gravidez ou da própria

imaturidade do feto, que não sobrevive à expulsão prematura provocada por

aqueles atos ou meios”.90

Igualmente, é o explicação de Fernando Capez quando fala

que aborto é a “interrupção da gravidez, com a consequência destruição do

produto da concepção, quer dizer, na eliminação da vida intra-uterina”.91

É extremamente necessário o estudo relacionado ao aborto,

por tratar-se de feto, na qual é portador de anomalia fetal, tornando-se impossível

a vida extra-uterina.

Sendo assim, diante das definições de aborto, no próximo

ponto será abordado a respeito às espécies e a tipicidade expressa deste no

Código Penal Brasileiro.

2.4.2 ESPÉCIES DE ABORTO E TIPICIDADE PENAL

Partindo dos conceitos convergentes acerca do aborto, é

possível classificá-lo em algumas categorias. Tais categorias diferenciam muito

mais as formas e técnicas utilizadas do que propriamente espécies distintas.

89 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial – arts 121 a 183. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,v. 2. 2006. p. 110. 90 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial p. 111.

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Dentre as categorias descritas na doutrina tem-se:

Dilatação ou corte: Uma faca, em forma de foice, dilacera o corpo do feto que é retirado em pedaços. Sucção ou Aspiração: O aborto por sucção pode ser feito até a 12ª semana após o último período menstrual (amenorréia). Este aborto pode ser feito com anestesia local ou geral. Com a local a paciente toma uma injeção intramuscular de algum analgésico. Já na mesa de operação faz um exame para determinar o tamanho e a posição do útero. Se for anestesia geral, toma-se uma hora antes da operação uma injeção intramuscular de Thionembutal. Inicia então uma infusão intravenosa. O Thionembutal adormece o paciente e um anestésico geral por inalação como o Óxido de Nitroso é administrado através de uma máscara. A partir daí o procedimento é o mesmo da anestesia geral e local. O colo do útero é imobilizado por uma tenáculo, e lentamente dilatado pela inserção de uma série de dilatadores cervicais. Depois está relacionada a quantidade de semanas de gestação. Liga-se esta ponta ao aparelho de sucção, no qual irá evacuar completamente os produtos da concepção. A sucção afrouxa delicadamente o tecido da parte uterina e aspira-o, provocando contrações do útero, o que diminui a perda de sangue. Com a anestesia local, usa-se uma injeção de Ergotrate para contrair, o que pode causar náusea e vômitos. Curetagem : Na curetagem é feita a dilatação do colo do útero e com uma cureta (instrumento de aço semelhante a uma colher) é feita a raspagem suave do revestimento uterino do embrião, da placenta e das membranas que envolvem o embrião. A curetagem pode ser realizada até a 15ª semana após a última menstruação. Este tipo de aborto é muito perigoso, por que pode ocorrer perfuramento da parede uterina, tendo sangramento abundante. Outro fator importante é que se pode tirar muito tecido, causando a esterilidade. Drogas e Plantas : Existem muitas substâncias que quando tomadas causam o aborto. Algumas são tóxicos inorgânicos, como arsênio, antimônio, chumbo, cobre, ferro, fósforo e vários ácidos e sais. As plantas são: absinto (losna, abuteia, alecrim, algodaro, arruba, cipómil – homens, esperradura e várias ervas amargas).Todas estas substâncias tem de ser tomadas em grande quantidade para que ocorra o aborto. O risco de abortar é tão grande como o de morrer, ou quase. Mini-aborto : É feito quando a mulher está a menos de 7 semanas sem menstruar. O médico faz um exame manual interno para determinar o tamanho do feto e a posição do útero. Lava-se a vagina com uma solução anti-séptica e com uma agulha fina, anestesia o útero em três pontos, prende-se o órgão com um tipo de fórceps chamado tenáculo, uma sonda de plástico fino e flexível é introduzida no útero. A esta sonda liga-se um aparelho de sucção e remove-se o endométrio e os produtos de concepção. A mulher que faz o mini-aborto, depois da operação pode ter cólicas uterinas, náuseas, suor e reações de fraqueza. A mesma não pode ter relações sexuais e nem usar tampão nas 3 ou 4 semanas seguintes para evitar complicações ou infecções. Envenenamento por sal : É feito do 16ª à 24ª semana de gestação. O médico aplica anestesia local num ponto situado entre o umbigo e a vulva, no qual irá ultrapassar a parede do abdome, do útero e do âmnio ( bolsa d’água). Com esta seringa aspira-se o fluído amniótico, no qual

91 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. v. 2. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p . 109.

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será substituído por uma solução salina ou uma solução de prostraglandina. Após um prazo de 24 à 48 horas, por efeito de contrações do feto é expulso pela vagina, como num parto normal. O risco apresentado por este tipo de aborto é a aplicação errada da anestesia, e a solução ter sido injetada fora do âmnio, causando a morte instantânea. Sufocamento: Este método de aborto é chamado de "parto parcial". Nesse caso, puxa-se o bebê para fora deixando apenas a cabeça dentro, já que ela é grande demais. Daí introduz-se um tubo em sua nuca, que sugará a sua massa cerebral, levando-o à sua morte. Só então o bebê consegue ser totalmente retirado. Esquartejamento: O feto é esquartejado ainda dentro da mãe. Deixando-o em pedaços. Retirada do liquido amniótico: Esta é uma das maneiras mais lentas de praticar o aborto: O abortista retira o liquido amniótico de dentro do útero e coloca uma substância contendo sal.92

Para que de alguma forma se possa entender o que foi visto

anteriormente, é necessária uma breve explicação acerca dos dispositivos legais

previstos no Código Penal Vigente.

Primeiramente, deve-se destacar que a chamada

criminalização do aborto esta prevista no Capítulo “Dos Crimes Contra a Vida”, na

qual se encontra inserido no Título “Dos Crimes Contra a Pessoa”, da Parte

Especial do Código Penal Brasileiro.93

Ao explanar a respeito do Código penal brasileiro, é

importante citar quais os tipos de aborto. O aborto provocado, que está previsto no

artigo 12494, tem-se o aborto sofrido, aquele realizado por terceiro sem o

consentimento da gestante, disposto no artigo 12595. E, o aborto consentido, que

92 O abortamento e aspectos éticos e jurídicos. Disponível em <http://br.geocities.com/ekleticapage/aborto.htm>. Acesso em 31 de outubro de 2008. 93 El TASSE, ADEL. Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por atipicidade. v. 322. Revista jurídica, são Paulo, Notadez Informações., ago. 2004. p. 106. 94 CP, Art. 124 – provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: pena – detenção de um a três anos. (Delmanto, Celso et al. Código Penal Comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 267). 95 CP, Art. 125 – provocar aborto, sem o consentimento da gestante: pena – reclusão, de três a dez anos. (Delmanto, Celso et al. Código Penal Comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p . 267).

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também é realizado por terceiro, mas que existe a aceitação da gestante no

procedimento realizado, conforme o art. 126.96

Por fim, nos termos do artigo 128 do código penal, está

previsto as formas de aborto considerado normais no ordenamento jurídico

brasileiro, como sendo: o aborto necessário, disposto no inciso I deste artigo, é

praticado em decorrência do risco de vida para a mãe, e o aborto sentimental,

decorrente de gravidez conseqüência de estupro, prevista no inciso II, deste

mesmo artigo.97

Configura-se o seguinte artigo:

Art. 128 – não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.98

O aborto necessário segundo Fernando Capez é:

[...] a interrupção da gravidez realizada pelo médico quando a gestante estiver correndo perigo de vida e inexistindo outro meio de necessidade, mas sem a exigência de que o perigo de vida seja atual. Assim, a dois bens jurídicos (a vida do feto e da genitora) depende da destruição do outro (vida do feto). O legislador optou pela preservação do bem maior, que, no caso, é a vida da mãe, diante do sacrifício de um bem menor, no caso, um ser que ainda não foi totalmente formado.99

96 CP, art. 126- provocar aborto com consentimento da gestante: pena – reclusão, de um a quatro anos. (Delmanto, Celso et al. Código Penal Comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 267). 97 DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 267. 98 Delmanto, Celso et al. Código penal comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar 2002. p . 267 99 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, v. 2, 2005. p. 124-125.

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Relacionado ao aborto sentimental, leva-se muito em

consideração a questão emocional da gestante.

Com um entendimento bastante aguçado, Soraya Tavera

Gaya diz que para fundamentar o aborto nos casos de gravidez resultante de

estupro, é o abalo a saúde mental da mulher em ter que prosseguir com uma

gestação indesejada.100

Percebe-se que em ambos os casos relacionados

anteriormente, sempre o legislador tentou proteger a vida humana,

especificamente da gestante, por se tratar de bem maior.

Por fim, se for considerado o tempo que foi promulgado o

Código Penal (1940), é questionável a solicitação de uma nossa Legislação ,

prevendo a aceitação de outros tipos de aborto, como por exemplo o caso da

anencefalia, em decorrência da “evolução da sociedade, dos costumes, da ciência

e da tecnologia, posto que o direito penal não deve ficar alheio a este

desenvolvimento”.101

Não existem dúvidas que os debates a respeito do aborto,

envolvem, além de aspectos jurídicos, os psíquicos, religiosos, políticos, motivos

pelo qual sempre será polêmico.

Desta forma, diante das espécies de aborto e sua tipicidade,

no próximo ponto será explicado à solução proposta pela Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 para uma melhor compreensão.

100 GAYA, Soraya Taveira. Aspectos jurídicos e médicos da anencefalia. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, v. 20, jul. 2004. p. 213. 101 BITENCOURT, Cezar Roberto. A tipicidade do aborto anencefálico: respeito à dignidade humana da gestante. Disponível em: <http://aidpbrasil.org.br/ABORTO%20%20ANENCEFÁLICO%20-%20Cezar%20Bitencourt.pdf >. Acesso em: 28 fev. 2008.

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51

3 A SOLUÇÃO PROPOSTA PELA AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO

DE PRECEITO FUNDAMENTAL N. 54

Neste capítulo estudar-se-á a Legislação Infraconstitucional,

mesmo não estando previsto em lei, merece estar apresentado no Ordenamento

Jurídico Brasileiro, mais precisamente no art. 128 do Código Penal, justamente por

estar indo contra a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Além disso, buscar-se-á demonstrar um breve histórico do

aborto na Legislação Brasileira, e posteriormente será explanado a respeito de

aspectos conceituais relacionado à ação de Descumprimento de Preceito

Fundamental, o que será relevante para a presente pesquisa.

3.1 LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

O crime de aborto está ligado ao Direito Penal Brasileiro, em

virtude de está relacionado diretamente a criminalidade.

Segundo Código Penal, o aborto é crime, exceto em dois

casos relevantes: O primeiro estado de necessidade, quando ocorrer risco de vida

para gestante, e o segundo é no caso de estupro. Ambos os casos, é algo

marcante para a vida da gestante, em virtude disto, ficará aceito o aborto, quando

tiver este entendimento. É considerado excludente de ilicitude, ou seja, se a

gestante por meios legais praticar este tipo de aborto, não será penalizada.

Conforme reza o artigo 128, do Código Penal:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

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II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Este trabalho relacionado à vida tem grande importância

para as pessoas, pois, este tipo de crime, está a cada dia mais presente, ou até

mesmo, pode-se dizer mais freqüente em nossa sociedade. Em se tratando de

acontecimentos tão importantes, precisa-se urgentemente de uma alteração no

CP.

Como diz o Adel El Tasse:

Após a morte encefálica, não há mais a possibilidade de existência autônoma do ser, não apresentando as mesmas condições de retorno a um quadro de existência normal, fato que faz com que seja precisa a caracterização desse momento como o da morte.102

Ao analisar esta questão, é sempre bom destacar quais são

os sujeitos que praticam este tipo de crime. O sujeito ativo conforme o artigo 124

do Código Penal é a gestante, quando se tratar de crime especial e quando for

falar nos demais casos, poderá ser o autor do delito, e até mesmo, qualquer

pessoa.103

Doutrinariamente, o sujeito passivo é o feto.104 O sujeito

passivo, portanto é o Estado ou a comunidade.105

Já em relação ao tipo, são dois: o objetivo e o subjetivo. O

objetivo é quando o objeto material do delito é o produto da fecundação. O crime

102 Ausência de crime, Disponível em <http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=808523&tit=Ausencia-de-crime>. Acesso em 16 set. 2008. 103 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 94. 104 CAPEZ, Fernando. Direito penal: parte especial. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 29. 105 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 94.

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de aborto sempre deixará vestígios e isto será detectado através de um exame de

corpo de delito. Será feito através de peritos. Caso não for possível este tipo de

exame, valerá o testemunhal ou documental. O segundo é o subjetivo, o aborto é

considerado um crime doloso. Será sempre necessário que o agente em questão,

queira o resultado.106

3.1.1 BREVE HISTÓRICO DO ABORTO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

É impossível falar qual é a definição de aborto sem ao menos

fazer uma leve explanação a respeito da evolução histórica do aborto, tendo em

vista a realização desta prática desde há muito tempo, e ainda, percebe-se o

aumento deste tipo de ocorrência, a cada dia que passa.

No Brasil, desde o período colonial, as ordenações

Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, bem como, as leis extravagantes desta época

não faziam previsão a respeito do aborto.107

Logo em seguida, no ano de 1830 foi promulgado o código

criminal do império. Percebe-se que somente a partir deste código que o aborto

começou a ser punido. É sempre bom deixar em evidência que anteriormente a

gestante que tivesse executado o aborto não era considerado crime, somente era

punido nos casos em que era praticado por terceiros.108

106 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de direito penal. p. 94-96. 107 PAPALEO, Celso Cezar. Aborto e contracepção: atualidade e complexidade da questão. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 43. 108 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, v. 2, 2005. p. 110.

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Verifica-se que a conduta praticada pela gestante, ou seja, o

auto-aborto, não era considerado uma forma de punição, somente aquele

praticado por terceiro, tornava-se punível.109

Já no período republicado, com a promulgação do código

penal de 1890, o aborto que era provocado pela gestante passou a ser previsto no

código.110

Por fim, pode-se destacar o código penal vigente no

momento.111

O atual código penal foi promulgada em 1940, neste são

punidos o auto-aborto e o aborto com ou sem consentimento da gestante.112

Nesta acepção, Fernando Capez reza o seguinte:

[...] o código penal tipificou as figuras do aborto provocado (CP, art. 124 – a gestante assume a responsabilidade pelo abortamento), aborto sofrido (CP, art. 125 – aborto é realizado por terceiro sem o consentimento da gestante) e o aborto consentido (CP, art. 126 – o aborto é realizado por terceiro com o consentimento da gestante).113

Nota-se que com a nova legislação a cima citada, as

discussões relacionado ao aborto tornou-se assunto do dia-a-dia das pessoas,

esta discussão chegou até ser demonstrada em projetos de lei na câmara federal

desde 1949 até o ano. No entanto, observa-se que a questão do aborto é um

tema muito polêmico, e ainda, possui momentos de maior amplitude, como

109 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. p. 110. 110 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. p. 110. 111 BRASIL. Código Penal. Vade Mecum Acadêmico de Direito/Organização Anne Joyce Angher. 3. ed. São Paulo: Rideel, 2006. p. 43. 112 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. p. 110. 113 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. p. 110

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aconteceu com o advento da democracia, após a promulgação da Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988.114

3.2 ASPECTOS CONCEITUAIS EM TORNO DA AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO

DE PRECEITO FUNDAMENTAL

Primeiramente, antes de iniciar um sucinto resumo do que é

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, far-se-á necessário a

análise de como se procede ao instrumento jurídico tanto questionado.

Segundo a CFRB, em seu artigo 102, § 1º dispõe que:

Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: §1º a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.

Neste dispositivo explorado a cima, percebe-se que é de

Competência do STF, através da guarda Constitucional a argüição de

descumprimento de preceito fundamental.

Segundo a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos

Sexuais e Direitos Reprodutivos, percebe-se a necessidade de uma ação para

poder de alguma forma, dar cumprimento ao pedido das gestantes, anteciparem o

parto nos casos de anencefalia. A ação impetrada foi a ADPF, onde “defende a

114 DINIZ, Débora. Um espelho das moralidades: o debate sobre o aborto no congresso nacional brasileiro. 2001. Disponível em: <http://www.anis.org.br/serie/artigos/sa23(diniz)abortocongressonacional.pdf.> Acesso em: 24 maio.2008.

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possibilidade da mulher interromper a gravidez em caso de anencefalia fetal e terá

seu mérito analisado em audiência pelo Supremo Tribunal Federal”.115

Para uma melhor compreensão é imprescindível saber que

o preceito fundamental é os princípios escritos nos artigos 1º ao 4º da

Constituição:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: I – A soberania; II – A cidadania; III – A dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político.

115 Centro Latino – Americano em sexualidade e Direitos Humanos. Disponível em: http://www.clam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=102&sid=8 Acesso em 31 out 2008.

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Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

No entendimento de Celso Bastos, a ADPF não é discutida

qualquer norma constitucional. É claro ao dizer que este tipo de “ação só ocorrerá

quando ocorrer desrespeito a preceito fundamental”. Não restam dúvidas de que

não será objeto de argüição de preceito fundamental a lesão a qualquer norma

constitucional.116

A argüição de descumprimento de preceito fundamental

será imposta perante o Supremo Tribunal federal, tendo por objetivo evitar ou

reparar certas lesões relacionadas ao preceito fundamental, resultante de ato de

poder público, “[...] quando for relevante o fundamento da controvérsia

constitucional sobre a lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos

os anteriores à constituição”.117

Em 03 de Dezembro de 1999, o congresso nacional editou a

lei n. 9.882 que dispõe a respeito do processo e julgamento da argüição de

preceito fundamental, e ainda, entende-se que é uma complementação ao artigo

102 §1º da CFRB.118

Ao analisar o artigo 2º da lei anteriormente citada, explica: Art. 2o Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade; II - (VETADO) § 1o Na hipótese do inciso II, faculta-se ao interessado, mediante representação, solicitar a propositura de argüição de descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da

116 BASTOS, Celso. Apud VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Revista Diálogo Jurídico, salvador, CAJ – centro de atualização jurídica, n. 12, março, 2002. Disponível em: <http//www.direitopublico.com.br>. Acesso em 16 set. 2008. 117 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2003. p. 642. 118 BRASIL. Lei 9.882 de 3 de dezembro de 1999. Disponível em <https://www.planalto.gov.br>. Acesso em 10 de set. de 2007.

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República, que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento do seu ingresso em juízo. § 2o (VETADO)119

A lei 9.882 de 3.de dezembro de 1999 considerou duas

modalidades para adaptar a argüição de descumprimento de preceito

fundamental, a chamada “argüição autônoma e a argüição incidental”. 120

A argüição de preceito fundamental é uma ação, “análoga à

ações diretas já instituídas na Constituição, por via da qual se suscita a jurisdição

constitucional abstrata e concentrada do Supremo Tribunal Federal”.121 tem por

singularidade, o parâmetro de controle constitucional mais restrito, ou seja, não é

qualquer norma constitucional, mas apenas um preceito fundamental, que no caso

é o da dignidade da pessoa humana, relacionado a gestante.

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana reúne a

integridade moral a ser assegurada a todas as pessoas por existir no mundo e a

liberdade e valores do espírito quanto às condições materiais de subsistência.122

Como foi analisado no capítulo anterior, o feto é inviável,

portanto não haverá vida extra-uterina, caracterizando a não existência de vida

humana. Conforme explicação de Nelson Hungria entende o seguinte:

119 BRASIL. Lei 9.882 de 3 de dezembro de 1999. Disponível em <https://www.planalto.gov.br>. Acesso em 10 de set. de 2007. 120 VELLOSO, Carlos Mário. A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Disponível em <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 16. Set 2008. 121BARROSO, Luís Roberto. Artigos, Pareceres. Memoriais e Petições: Anencefalia, inviabilidade do feto e antecipação terapêutica do parto – Petição Inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS ao Supremo Tribunal Federal – STF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_70/artigos/art_luiz.htm> Acesso em: 31 out 2008. 122BARROSO, Luís Roberto. Artigos, Pareceres. Memoriais e Petições: Anencefalia, inviabilidade do feto e antecipação terapêutica do parto – Petição Inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS ao Supremo Tribunal Federal – STF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_70/artigos/art_luiz.htm> Acesso em: 31 out 2008.

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Não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as conseqüências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para caracterizar o aborto) deve ser um produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há de falar em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto.123

São três pressupostos de cabimento relacionado a argüição

autônoma, a primeira é a “ameaça ou violação a preceito fundamental”, a segunda

é o “ato do poder público capaz de provocar a lesão” e a terceira a “inexistência de

qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”.124

Desta forma entende-se que a ADPF pode ser proposta por

alguns entes do poder público, conforme o artigo 103, inciso I ao inciso IX da

Constituição, que são os seguintes:

Podem propor a ação de inconstitucionalidade: I – p presidente da república; II – a mesa do senado federal; III – a mesa da câmara dos deputados; IV – a mesa da assembléia legislativa; V – o governo do estado; VI – o procurador-geral da república; VII – o conselho federal da ordem dos advogados do Brasil; VIII – partido político com representação no congresso nacional; IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

É evidente que ao ocorrer uma violação a constituição,

poderá qualquer pessoa indicada no artigo supracitado, recorrer ao STF, propondo

uma ação de inconstitucionalidade diante de tal decisão, pois só assim, existiria

justiça.

123 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. vol.v ,1958, p. 297-298. 124 BARROSO, Luís Roberto. Artigos, Pareceres. Memoriais e Petições: Anencefalia, inviabilidade do feto e antecipação terapêutica do parto – Petição Inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS ao Supremo Tribunal Federal – STF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_70/artigos/art_luiz.htm> Acesso em: 31 out 2008.

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Quando ação de inconstitucionalidade entra em

favorecimento de algum conflito, seja este conflito familiar ou não, logo deverá vir

em mente, a possibilidade de poder solucionar o problema através da ADPF.

O entendimento que está sendo prevalecido no STF é que

“não sendo cabível qualquer espécie de processo objetivo, como por exemplo, a

ação direta de inconstitucionalidade, caberá a ADPF”.125

Segundo Alessandra Foelkel, ADPF tem a seguinte

definição: “A ADPF é um instrumento jurídico que permite que a sociedade se

pronuncie diretamente ao Supremo Tribunal Federal, sem ter que cumprir como

todo o itinerário jurídico”.126

Este conceito que foi visto anteriormente, possui caráter

subsidiário, pois é incabível a argüição quando ainda existe a possibilidade de

medida eficaz para solucionar a lesividade, tendo em vista que não substitui “as

demais previsões constitucionais que tenham semelhante finalidade”127, como por

exemplo a questão dos habeas corpus, dos mandados de segurança, dos habeas

data w até mesmo da ação direta de inconstitucionalidade.

Quanto ao procedimento, ao artigo 3º da lei n. 9882 de 3 de

dezembro de 1999, prevê os requisitos para a petição inicial, que deverá ser

entregue em duas vias, acompanhada com o instrumento de mandato. Conforme

a seguir:

A petição inicial deverá conter: I – a indicação do preceito fundamental que se considera violado; II – a indicação do ato

125 BARROSO, Luís Roberto. Artigos, Pareceres. Memoriais e Petições: Anencefalia, inviabilidade do feto e antecipação terapêutica do parto – Petição Inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS ao Supremo Tribunal Federal – STF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_70/artigos/art_luiz.htm> Acesso em: 31 out 2008. 126 FOELKEL, Alessandra. A interrupção da gravidez em casos de anencefalia fetal em debate no Brasil. 2004. Disponível em: <https://www.ipas.org.br/revista/nov04.html/>. Acesso em 21 de set. de 2007, p. 2 127 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, 19.ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 642

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questionado; III – a prova da violação do preceito fundamental; IV – o pedido, com suas especificações; V – se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado.128

É sempre bom frisar que o STF poderá deferir o pedido de

liminar, conforme art. 5º, caput, ou ainda, em período de recesso, quando houver

extrema urgência ou perigo de lesão grave, poderá o Ministro relator conceder a

liminar, ad referendum do Plenário conforme § 1º. A liminar poderá consistir na

determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou

os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente

relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito

fundamental, salvo se decorrente da coisa julgada, segundo o §3º.129

Logo em seguida, é dado vista ao Ministério Público, onde

tal decisão da argüição de descumprimento de preceito fundamental, que é

considerada irrecorrível, somente será tomada se presentes na sessão pelo

menos de dois terços dos ministros. Esta decisão proferida pelos Ministros terá

“eficácia contra todos – erga omnes e seus efeitos relativamente aos demais

órgãos do Poder Público”.130

3.2.1 Fundamentos Jurídicos

128 BRASIL, Presidência da Republica. Lei 9.882 de 3 de dezembro de 1999. Disponível em <https://www.planalto.gov.br>. Acesso em 10 de set. de 2007. 129 Lei n.º 9.882 de 3 dez. 1999, Art. 5o O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental. § 1o Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno. § 3o A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada. 130 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p . 643.

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Os fundamentos jurídicos de antecipação do parto segundo

Barroso é a “dignidade da pessoa humana”, relacionado a tortura, a questão da

“liberdade” e por fim, o “direito a saúde”, conforme mostra a seguir:

1.Viola a dignidade da pessoa humana submeter a gestante ao enorme e inútil sofrimento de levar a termo uma gravidez inviável, que afeta sua integridade física e psicológica (CF, art. 1º, IV); 2. Viola o direito de liberdade da gestante – “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei” – aplicar a ela a vedação do código penal relativa ao aborto, quando de aborto não se tratava, à vista da falta de potencialidade de vida do feto (CF, art. 5º, II); 3. Viola à saúde da gestante obrigá-la a levar a termo uma gravidez inviável, quando há procedimento médico adequado para minimizar seu sofrimento físico e psicológico, sendo certo que em relação ao feto nada se pode fazer (CF, arts. 6º e 196).131

Logo, diante dos fundamentos mostrados anteriormente, em

liminar, no dia 1º de julho de 2004, o Ministro do STF e relator da argüição, marco

Aurélio de Mello, concedeu, de forma monocrática, o direito das gestantes

ant3eciparem o parto quando atestado por laudo médico a deformidade da

anencefalia. Esta liminar foi deferida com alicerce na proeminência do pedido da

argüição e, em razão, da divergência de decisão judiciais já pronunciadas nas

instâncias inferiores acerca do pedido de autorização para a antecipação do parto

de feto anencefálico. Além disso, determinou a suspensão dos processos e

decisões não transitadas em julgado, a respeito da matéria fim da argüição de

descumprimento de preceito fundamental.132

Fica claro que o Ministro Marco Aurélio Mello, baseado em

um Estado brasileiro, ao conceder a liminar, permitiu e não obrigou as mulheres a

131 BARROSO, Luiz Roberto. Conheça os bastidores da discussão sobre anencefalia. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/conheça%20bastidores%20da%20discussões%20sobre%20anencefalia%20em %2020-08.htm>, acesso em: 12 abr. 2008. 132 MELLO, Marco Aurélio de. Íntegra da liminar do ministro Marco Aurélio. Disponível em: <HTTP://.ghente.org/doc_jurídicos/liminar_anencefalia.htm>. Acesso em: 14 nov. 2007.

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anteciparem o parto, respeitando portanto, quem por motivo religioso ou por

outras razões desejarem levar a gravidez a termo.133

Barroso, procura definir a anencefalia e explicar as razões

éticas para a "antecipação terapêutica do parto". As referências a este autor, no

presente trabalho, são todas relacionadas à petição inicial de sua autoria, na Ação

de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54-8/DF.134

Diante de tudo que foi visto, questiona-se o art. 128 do CP,

pois, não mostra estar sendo recepcionado pela CF. não tem o porquê da não

aceitação do aborto, se é que se pode dizer, pois se trata de feto sem vida extra-

uterina, conforme foi visto no transcorrer do trabalho.

3.2.2 ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL N.

54

Em 17 de junho de 2004, a Confederação dos

Trabalhadores na Saúde – CNTS formalizou Argüição de Descumprimento de

Preceito Fundamental considerada a anencefalia, a inviabilidade do feto e a

antecipação terapêutica do parto. 135

133 DINIZ, Débora. O luto das mulheres brasileiras. Disponível em: <http://www.febrasgo.org.br/anencefalia3.htm>. Acesso em: 19 ago. 2008. 134 BARROSO, Luís Roberto. Artigos, Pareceres. Memoriais e Petições: Anencefalia, inviabilidade do feto e antecipação terapêutica do parto – Petição Inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Súde – CNTS ao Supremo Tribunal Federal – STF. Disponível em: HTTP://plananlto.gob.br/ccivil-bin/wxis1660.exe/decsserver/. Acesso em: 31 out 2008. 135 AURÉLIO, Marco Medida. Cautelar. em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Disponível em: http://www.ghente.org/doc_juridicos/liminar_anencefalia.htm Acesso em: 31 out. 2008

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Pode-se dizer que os artigos da Constituição como, por

exemplo, o art. 1º, IV, que trata da dignidade da pessoa humana; o art. 5º, II, 136

que está relacionado ao princípio da legalidade, liberdade e autonomia da

vontade; o art. 6º, caput,137 e art. 196138, que tratam do direito a saúde, todos

expressamente da CF, e, ocasionando lesão a estes princípios, os artigos 124,

126 e 128, todos do código penal. Não restam dúvidas que existe lesão sofrida por

estes artigos do Código Penal.

No que tange a literatura médica, assinala Manuel Sabino

Pontes o seguinte: “Aproximadamente 75% dos fetos afetados morrem dentro do

útero, enquanto que, dos 25% que chegam a nascer, a imensa maioria morre

dentro de 24 horas e o resto dentro da primeira semana.”139

Com estas porcentagens estabelecidas, está caracterizada

a importância do aborto neste tipo de situação. Não é apenas o caso do feto /

bebe que está em questão, mas sim, o sofrimento dos pais, ao detectarem o

problema.

136 CRFB/88, Art. 5º, II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. 137 CRFB/88, Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, à previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 138 CRFB/88, Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. 139 PONTES, Manuel Sabino. Disponível em: <http//www.jusnavigandi.com.br>, Acesso em: 25 ago. 2007.

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65

CONCLUSÃO

Com a intenção de dar continuidade ao estudo a respeito do

presente trabalho apresentado, valerá nesta oportunidade, a realização de

algumas considerações relacionadas ao aborto/antecipação terapêutica do parto

de feto anencefálico.

Entretanto, é importante ressaltar que o objetivo do trabalho

foi mostrar que é possível sim, resolver a questão da antecipação do parto no

ordenamento jurídico brasileiro, e deixar por conta da gestante, e até mesmo da

família afetada por essa anomalia, decidir pela realização ou não de tal ato.

Diante disso, destaca-se essa questão, como uma questão

complexa para a família envolvida, e conseqüentemente, para o Poder Judiciário

que é chamado para posicionar-se sobre o tema.

No Capítulo 1, foi analisado o Estado Democrático de Direito

e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, visto que este Princípio é

considerado fundamento da Constituição da República Federativa do Brasil de

1988. Esse Princípio indica um espaço de integridade moral assegurado pela

Constituição a todas as pessoas pelo fato de existirem no mundo enquanto tais.

Percebe-se no contexto do trabalho que a Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988 é Lei Maior, ou seja, obrigatoriamente

nenhuma decisão ou Lei poderá ir contra ela, porque assim, tornar-se-ia

inconstitucional.

Já no Capítulo 2, foi analisado a questão do aborto nos

casos de Anencefalia, onde primeiramente foi definido o que vem a ser vida,

conceitualmente falando, “vida é desde o nascimento até sua morte”, ou seja,

diante dos estudos, não necessariamente a criança precisa estar fora do útero

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materno. Logo em seguida, foi confeccionado um breve histórico do aborto na

Legislação Brasileira, por justamente tratar-se de ato praticado há muitos anos, e

ainda, percebe-se o aumento deste ato, a cada dia que passa.

Neste mesmo Capítulo, como vem ocorrendo muita

freqüência deste tipo de prática é importante ressaltar que as espécies de aborto

estão previstas no Código Penal Brasileiro Vigente, embora esteja previsto apenas

em dois casos, aborto sentimental e o aborto necessário.

Diante das análises e argumentações levantadas a respeito

do tema, firma-se o posicionamento no sentido de que é possível o

aborto/antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico frente ao Princípio da

Dignidade da Pessoa Humana.

Quando se fala em aborto, deve-se ter em mente que aborto

“configura-se ato de interrupção de gestação de feto vivo ou com potencialidade

de viver a vida fora do útero materno”. Sendo assim, é evidente que para ocorrer à

configuração do aborto, é necessário à existência do feto vivo ou com

potencialidade para viver a vida fora do útero materno e que no caso do feto com

Anencefalia, não existe esta possibilidade, por tratar-se de problema irreversível

conforme foi analisado no corpo do trabalho com uma chance de vida mínima.

Ao analisar o tema do aborto, é necessário lembrar que ao

longo dos anos, sempre ocorreu esta prática, mas que nem sempre, praticar este

ato é objeto de incriminação. Existem diversos motivos para a prática do aborto,

mas no caso a ser explorado, é o aborto de feto anencefálico, ou melhor dizendo,

antecipação do parto de feto anencefálico.

O que acontece realmente não é caracterizado um aborto, e

sim uma antecipação do parto, ou seja, “antecipa o desfecho trágico previsível”

para que de certa forma não ocorra mais os riscos relacionados à saúde da

gestante e também, a questão psicológica tanto da gestante como a dos

familiares. É bom esclarecer que quanto mais retarde esta interrupção da

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gravidez, os familiares estão se envolvendo de alguma forma com o

desenvolvimento deste feto inviável, tornando-se sem sombra de dúvida,

sofrimento para todos os envolvidos.

Ao analisar o número de casos que envolvem gestantes

com o problema do feto anencefálico, não é possível ser preciso, eis que existem

inúmeras gestantes que nem sequer chegam a solicitar este tipo de interrupção da

gravidez.

O que se pode entender é que o feto anencefálico como foi

abordado anteriormente, é de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de

vida extra-uterina, pelo fato de não existir a parte principal do cérebro,

correspondente a vida do ser humano, é considerado desde o útero um feto morto

cerebral.

No Capítulo 3 apresentou-se a solução proposta pelo pedido

de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, proposta pela

Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) ao Supremo

Tribunal Federal (STF). Para tanto, é feita inicialmente a apresentação da

Legislação Infraconstitucional (Código Penal) que até agora tem sido aplicada em

situações fáticas como o objeto deste trabalho para, posteriormente analisar a

ADPF n. 54, cuja hipótese baseia-se na não subsunção dessa situação fática aos

dispositivos do Código Penal. Ora a Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental, encontra-se na linha do notável florescimento da jurisdição

constitucional, chegando a fortalecer o Controle de Constitucionalidade.

É feito ainda uma ressalva em relação ao pedido final da

Argüição de Preceito Fundamental n. 54. Este querer a possibilidade da

interrupção da gravidez nos casos de Anencefalia fetal, sem precisar que gestante

tenha que apresentar autorização judicial prévia. Além de se tornar um problema

“solucionado”, a autorização já estará prevista em lei.

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Tal autorização sendo prevista no Código Penal, mais

precisamente no art. 128, traria um pouco mais de tranqüilidade para a família

envolvida nos casos de Anencefalia, tornando-se muito mais justa tal decisão,

frente ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Isso sem contar (n)a

quantidade de processos que iria diminuir, e conseqüentemente, os trabalhos

realizados tornar-se-iam mais célere.

Relacionado a tudo que foi visto anteriormente, faz-se

necessário destacar as hipóteses que deveriam ser argüidas nos casos de

anencefalia fetal. Primeiro é a possibilidade da prática de aborto/antecipação

terapêutica do parto por anencefalia diante do fundamento no Princípio da

Dignidade da Pessoa Humana e através de interpretações doutrinárias, a segunda

são as questões relacionada ao que vem a ser vida com o fim de demonstrar o

posicionamento adotado pelos doutrinadores do momento que se inicia a proteção

constitucional relacionada à gestante, terceira é o conceito de anencefalia,

mostrando a impossibilidade de sobrevivência extra-uterina, e por fim, a distinção

entre feto malformado e inviável, para que de alguma forma, seja evitado de

colocá-los em uma mesma discussão.

Por fim, tal matéria ainda é objeto de novas discussões, pois

está tendo novo julgamento para o caso, conforme se observa nos meios de

comunicação, como televisores e até mesmo em rádio, tal decisão foi transferida

para novembro no Supremo Tribunal Federal.

A grande novidade representada pela ADPF n. 54 está nos

efeitos dessa ação. A decisão é de caráter vinculante e contra todos, enquanto a

ação individual ou coletiva é de natureza subjetiva e dificilmente poderá atingir

esses efeitos.

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ANEXOS

Presidência da República Casa Civil

Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI No 9.882, DE 3 DE DEZEMBRO DE 1999.

Mensagem de Veto Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.

Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:

I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;

II – (VETADO)

Art. 2o Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental:

I - os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade;

II - (VETADO)

§ 1o Na hipótese do inciso II, faculta-se ao interessado, mediante representação, solicitar a propositura de argüição de descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da República, que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento do seu ingresso em juízo.

§ 2o (VETADO)

Art. 3o A petição inicial deverá conter:

I - a indicação do preceito fundamental que se considera violado;

II - a indicação do ato questionado;

III - a prova da violação do preceito fundamental;

IV - o pedido, com suas especificações;

V - se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado.

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Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de instrumento de mandato, se for o caso, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias do ato questionado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação.

Art. 4o A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de argüição de descumprimento de preceito fundamental, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta.

§ 1o Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.

§ 2o Da decisão de indeferimento da petição inicial caberá agravo, no prazo de cinco dias.

Art. 5o O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental.

§ 1o Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno.

§ 2o O relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias.

§ 3o A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada.

§ 4o (VETADO)

Art. 6o Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias.

§ 1o Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria.

§ 2o Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo.

Art. 7o Decorrido o prazo das informações, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os ministros, e pedirá dia para julgamento.

Parágrafo único. O Ministério Público, nas argüições que não houver formulado, terá vista do processo, por cinco dias, após o decurso do prazo para informações.

Art. 8o A decisão sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será tomada se presentes na sessão pelo menos dois terços dos Ministros.

§ 1o (VETADO)

§ 2o (VETADO)

Art. 9o (VETADO)

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Art. 10. Julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.

§ 1o O presidente do Tribunal determinará o imediato cumprimento da decisão, lavrando-se o acórdão posteriormente.

§ 2o Dentro do prazo de dez dias contado a partir do trânsito em julgado da decisão, sua parte dispositiva será publicada em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União.

§ 3o A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público.

Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Art. 12. A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido em argüição de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória.

Art. 13. Caberá reclamação contra o descumprimento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na forma do seu Regimento Interno.

Art. 14. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 3 de dezembro de 1999; 178o da Independência e 1 11o da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO José Carlos Dias

Artigos, Pareceres, Memoriais e Petições

Anencefalia, inviabilidade do feto e antecipação terapêutica do parto - Petição Incial da Arguição de descumprimento de preceito fundamental, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde - CNTS ao Supremo Tribunal Federal - STF

Luís Roberto Barroso Advogado/RJ

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE – CNTS, entidade sindical de terceiro grau do sistema confederativo, inscrita no CNPJ sob o nº 67.139.485/0001-70 e registrada no Ministério do Trabalho sob o nº 24000.000490/92, com sede e foro na SCS – Qd. 01 – Bl. G – Edifício Bacarat, sala 1605, Brasília, DF, com fundamento no art. 102, § 1° , da Constituição Federal e no art. 1° e segs. da Lei n° 9.882, de 3.12.99, por seu advogado ao final assinado (doc. nº 01), que receberá intimações na Av. Rio Branco, nº 125, 21º andar, Centro, Rio de Janeiro, vem oferecer ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL, indicando como preceitos vulnerados o art. 1° , IV (a dignidade da pessoa humana), o art. 5° , II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade) e os arts. 6° , caput, e 196 (direito à saúde), todos da Constituição da República, e como ato do Poder Público causador da lesão o conjunto normativo representado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-lei n° 2.848, de 7.12.40).

A violação dos preceitos fundamentais invocados decorre de uma específica aplicação que tem sido dada aos dispositivos do Código Penal referidos, por diversos juízes e tribunais: a que deles extrai a proibição de efetuar-se a antecipação terapêutica do parto nas hipóteses de fetos anencefálicos, patologia que torna absolutamente inviável a vida extra-uterina. O pedido, que ao final será especificado de maneira analítica, é para que este Tribunal proceda à interpretação conforme a Constituição de tais normas, pronunciando a inconstitucionalidade da incidência das disposições do Código Penal na hipótese aqui descrita, reconhecendo-se à gestante portadora de feto anencefálico o direito subjetivo de submeter-se ao procedimento médico adequado.

A demonstração da satisfação dos requisitos processuais, bem como da procedência do pedido, de sua relevância jurídica e do perigo da demora será feita no relato a seguir, que obedecerá ao roteiro apresentado acima.

I. NOTA PRÉVIA

Antecipação terapêutica do parto não é aborto

1. A presente ação é proposta com o apoio técnico e institucional da ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, associação civil com sede em Brasília, voltada para a defesa e promoção da bioética, dos direitos humanos e dos grupos vulneráveis, dentre outros fins institucionais.(1) A ANIS apenas não figura formalmente como co-autora da ação à vista da jurisprudência dessa Corte em relação ao direito de propositura. Requer, no entanto, desde logo, sua admissão como amicus curiae, por aplicação analógica do art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868, de 10.11.99.

2. No Brasil, como em outras partes do mundo, é recorrente o debate acerca da questão do aborto e de sua criminalização, com a torrente de opiniões polarizadas que costuma acompanhá-lo. O Código Penal de 1940, como se sabe, tipificou o

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aborto na categoria dos crimes contra a vida. Esta visão, nos dias atuais, está longe de ser pacífica. A diversidade de concepções acerca do momento em que tem início a vida tem alçado este tema à deliberação de parlamentos e cortes constitucionais de diversos países, como Estados Unidos,(2) Canadá,(3) Portugal,(4) Espanha,(5) França(6) e Alemanha(7), dentre outros. Na presente ação, todavia, passa-se ao largo dessa relevante discussão, com todas as suas implicações filosóficas, religiosas e sociais. A argumentação desenvolvida, portanto, não questiona o tratamento dado ao aborto pelo direito positivo brasileiro em vigor, posição que não deve ser compreendida como concordância ou tomada de posição na matéria.

3. O processo objetivo que aqui se instaura cuida, na verdade, de hipótese muito mais simples. A antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos situa-se no domínio da medicina e do senso comum, sem suscitar quaisquer das escolhas morais envolvidas na interrupção voluntária da gravidez viável(8) Nada obstante, o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal tornou-se indispensável na matéria, que tem profundo alcance humanitário, para libertá-la de visões idiossincráticas causadoras de dramático sofrimento às gestantes e de ameaças e obstáculos à atuação dos profissionais de saúde.

II. A HIPÓTESE

Anencefalia, inviabilidade do feto e antecipação terapêutica do parto

4. A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico.(9) Conhecida vulgarmente como "ausência de cérebro", a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal.(10) Como é intuitivo, a anencefalia é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em 100% dos casos. Não há controvérsia sobre o tema na literatura científica ou na experiência médica.

5. Embora haja relatos esparsos sobre fetos anencefálicos que sobreviveram alguns dias fora do útero materno, o prognóstico nessas hipóteses é de sobrevida de no máximo algumas horas após o parto. Não há qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro, o que torna a morte inevitável e certa.(11) Aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) dos fetos anencefálicos morrem ainda no período intra-uterino.(12)

6. O exame pré-natal mais comumente utilizado para detectar anomalias resultantes de má-formação fetal é a ecografia.(13) A partir do segundo trimestre de gestação, o procedimento é realizado através de uma sonda externa que permite um estudo morfológico preciso, incluindo-se a visualização, e.g., da caixa craniana do feto. No estado da técnica atual, o índice de falibilidade dessa espécie

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de exame é praticamente nulo, de modo que seu resultado é capaz de gerar confortável certeza médica.

7. Uma vez diagnosticada a anencefalia, não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto inviável. O mesmo, todavia, não ocorre com relação ao quadro clínico da gestante. A permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a má-formação fetal em exame empresta à gravidez um caráter de risco, notadamente maior do que o inerente a uma gravidez normal.(14) Assim, a antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz para o tratamento da paciente (a gestante), já que para reverter a inviabilidade do feto não há solução.

8. Como se percebe do relato feito acima, a antecipação do parto em casos de gravidez de feto anencefálico não caracteriza aborto, tal como tipificado no Código Penal. O aborto é descrito pela doutrina especializada como "a interrupção da gravidez com a conseqüente morte do feto (produto da concepção)".(15) Vale dizer: a morte deve ser resultado direto dos meios abortivos, sendo imprescindível tanto a comprovação da relação causal como a potencialidade de vida extra-uterina do feto. Não é o que ocorre na antecipação do parto de um feto anencefálico. Com efeito, a morte do feto nesses casos decorre da má-formação congênita, sendo certa e inevitável ainda que decorridos os 9 meses normais de gestação. Falta à hipótese o suporte fático exigido pelo tipo penal. Ao ponto se retornará adiante.

9. Note-se, a propósito, que a hipótese em exame só não foi expressamente abrigada no art. 128 do Código Penal como excludente de punibilidade (ao lado das hipóteses de gestação que ofereça risco de vida à gestante ou resultante de estupro) porque em 1940, quando editada a Parte Especial daquele diploma, a tecnologia existente não possibilitava o diagnóstico preciso de anomalias fetais incompatíveis com a vida. Não se pode permitir, todavia, que o anacronismo da legislação penal impeça o resguardo de direitos fundamentais consagrados pela Constituição, privilegiando-se o positivismo exacerbado em detrimento da interpretação evolutiva e dos fins visados pela norma.

III. DO DIREITO

Questões processuais relevantes e fundamentos do pedido

III.1. Preliminarmente

a) Legitimação ativa e pertinência temática

10. Nos termos do art. 2º, I, da Lei nº 9.882/99, a legitimação ativa para a ADPF recai sobre os que têm direito de propor ação direta de inconstitucionalidade, constantes do elenco do art. 103 da Constituição Federal.(16) Tal é o caso da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, que é uma confederação sindical (CF, art. 103, IX), de acordo com o art. 535 da CLT, com

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registro no Ministério do Trabalho (doc. nº 03) e tem âmbito nacional (Estatuto Social, art. 1º - doc. nº 02). Há expresso reconhecimento, nesse sentido, por parte do Supremo Tribunal Federal, manifestado no julgamento das ADIns nº 1.458 (Rel. Min. Celso de Mello)(17) e 1.497 (Rel. Min. Marco Aurélio). (18)

11. A pertinência temática é igualmente inequívoca. A CNTS tem, dentre suas finalidades, a de substituir e/ou representar, perante as autoridades judiciárias e administrativas, os interesses individuais e coletivos da categoria profissional dos trabalhadores na saúde (Estatuto, art. 3º, h). Ora bem: os trabalhadores na saúde, aí incluídos médicos, enfermeiros e outras categorias que atuem no procedimento de antecipação terapêutica do parto, sujeitam-se a ação penal pública por violação dos dispositivos do Código Penal já mencionados, caso venham a ser indevidamente interpretados e aplicados por juízes e tribunais. Como se percebe intuitivamente, a questão ora submetida à apreciação dessa Corte afeta não apenas o direito das gestantes, mas também a liberdade pessoal e profissional dos trabalhadores na saúde.

12. Caracterizadas a legitimação ativa e a pertinência temática, cabe agora examinar a presença dos requisitos de cabimento da ADPF.

b) Cabimento da ADPF

13. A Lei n° 9.882, de 3.12.99, que dispôs sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental,(19) contemplou duas modalidades possíveis para o instrumento: a argüição autônoma e a incidental. A argüição aqui proposta é de natureza autônoma, cuja matriz se encontra no caput do art. 1° da lei específica, in verbis:

"Art. 1° . A argüição prevista no § 1° do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público".(20)

14. A ADPF autônoma constitui uma ação, análoga às ações diretas já instituídas na Constituição, por via da qual se suscita a jurisdição constitucional abstrata e concentrada do Supremo Tribunal Federal. Tem por singularidade, todavia, o parâmetro de controle mais restrito – não é qualquer norma constitucional, mas apenas preceito fundamental – e o objeto do controle mais amplo, compreendendo os atos do Poder Público em geral, e não apenas os de cunho normativo.

15. São três os pressupostos de cabimento da argüição autônoma: (i) a ameaça ou violação a preceito fundamental; (ii) um ato do Poder Público capaz de provocar a lesão; (iii) a inexistência de qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade. Confira-se, a seguir, a demonstração da satisfação de cada um deles na hipótese aqui examinada.

(i) Ameaça ou violação a preceito fundamental

16. Nem a Constituição nem a lei cuidaram de precisar o sentido e o alcance da locução "preceito fundamental". Nada obstante, há substancial consenso na

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doutrina de que nessa categoria hão de figurar os fundamentos e objetivos da República, assim como as decisões políticas fundamentais, objeto do Título I da Constituição (arts. 1° a 4° ). Também os direitos fundamentais se incluem nessa tipificação, compreendendo, genericamente, os individuais, coletivos, políticos e sociais (art. 5° e segs). Devem-se acrescentar, ainda, as normas que se abrigam nas cláusulas pétreas (art. 60, § 4° ) ou delas decorrem diretamente. E, por fim, os princípios constitucionais ditos sensíveis (art. 34, VII), que são aqueles que, por sua relevância, dão ensejo à intervenção federal.(21)

17. Conforme será aprofundado pouco mais à frente, na questão aqui posta os preceitos fundamentais vulnerados são: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1° , IV), um dos fundamentos da República brasileira; a cláusula geral da liberdade, extraída do princípio da legalidade (art. 5° , II), direito fundamental previsto no Capítulo dedicado aos direitos individuais e coletivos; e o direito à saúde (arts. 6° e 196), contemplado no Capítulo dos direitos sociais e reiterado no Título reservado à ordem social.

(ii) Ato do Poder Público

18. Como decorre do relato explícito do art. 1° da Lei n° 9.882/ 99, os atos que podem ser objeto de ADPF autônoma são os emanados do Poder Público, aí incluídos os de natureza normativa, administrativa e judicial. Na presente hipótese, o ato estatal do qual resulta a lesão que se pretende reparar consiste no conjunto normativo extraído dos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, ou mais propriamente, na interpretação inadequada que a tais dispositivos se tem dado em múltiplas decisões (docs. nos 7 a 9). Os dispositivos têm a seguinte dicção:

"Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos."

"Aborto provocado por terceiro

Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos."

"Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal."

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19. O que se visa, em última análise, é a interpretação conforme a Constituição da disciplina legal dada ao aborto pela legislação penal infraconstitucional, para explicitar que ela não se aplica aos casos de antecipação terapêutica do parto na hipótese de fetos portadores de anencefalia, devidamente certificada por médico habilitado.

(iii) Inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesividade (subsidiariedade da ADPF)

20. A exigência de "inexistir outro meio capaz de sanar a lesividade" não decorre da matriz constitucional do instituto. Inspirada por dispositivos análogos, relativamente ao recurso constitucional alemão(22) e ao recurso de amparo espanhol,(23) a subsidiariedade da ADPF acabou por constar do art. 4° , § 1° , da Lei n° 9.882/ 99:

"§ 1º. Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade".

21. A doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal têm construído o entendimento de que a verificação da subsidiariedade em cada caso depende da eficácia do "outro meio" referido na lei, isto é, da espécie de solução que as outras medidas possíveis na hipótese sejam capazes de produzir.(24) O outro meio deve proporcionar resultados semelhantes aos que podem ser obtidos com a ADPF. Ora, a decisão na ADPF é dotada de caráter vinculante e contra todos, e dificilmente uma ação individual ou coletiva de natureza subjetiva poderá atingir tais efeitos.(25) Ademais, caso, a pretexto da subsidiariedade, se pretendesse vedar o emprego da ADPF sempre que cabível alguma espécie de recurso ou ação de natureza subjetiva, o papel da nova ação seria totalmente marginal e seu propósito não seria cumprido. É por esse fundamento, tendo em vista a natureza objetiva da ADPF autônoma, que o exame de sua subsidiariedade deve levar em consideração os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional.

22. Assim, não sendo cabível qualquer espécie de processo objetivo – como a ação direta de inconstitucionalidade ou a ação declaratória de constitucionalidade –, caberá a ADPF. Esse é o entendimento que tem prevalecido nesse Eg. STF.(26)

23. No caso presente, as disposições questionadas encontram-se no Código Penal, materializado no Decreto-lei n° 2.848, de 7.12.40. Trata-se, como se percebe singelamente, de diploma legal pré-constitucional, não sendo seus dispositivos originais suscetíveis de controle mediante ação direta de inconstitucionalidade, consoante pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.(27) Não seria hipótese de ação declaratória de constitucionalidade nem de qualquer outro processo objetivo.

24. Pelas razões expostas, afigura-se fora de dúvida o cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental na hipótese.

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III.2. No mérito: preceitos fundamentais violados

25. No início desta peça, mencionou-se que a hipótese aqui em exame não envolve os elementos discutidos quando o tema é aborto. De fato, a discussão jurídica acerca da interrupção da gravidez de um feto viável envolve a ponderação de bens supostamente em tensão: de um lado, a potencialidade de vida do nascituro e, de outro, a liberdade e autonomia individuais da gestante.(28) Como já referido, no caso de feto anencefálico, há certeza científica de que o feto não tem potencialidade de vida extra-uterina.

26. Diante disso, o foco da atenção há de voltar-se para o estado da gestante. O reconhecimento de seus direitos fundamentais, a seguir analisados, não é a causa da lesão a bem ou direito de outrem – por fatalidade, não há viabilidade de uma outra vida, sequer um nascituro,(29) cujo interesse se possa eficazmente proteger. É até possível colocar a questão em termos de ponderação de bens ou valores, mas a rigor técnico não há esta necessidade. A hipótese é de não-subsunção da situação fática relevante aos dispositivos do Código Penal. A gestante portadora de feto anencefálico que opte pela antecipação terapêutica do parto está protegida por direitos constitucionais que imunizam a sua conduta da incidência da legislação ordinária repressiva.

a) Dignidade da pessoa humana. Analogia à tortura

27. A dignidade da pessoa humana foi alçada ao centro dos sistemas jurídicos contemporâneos. A banalização do mal(30) ao longo da primeira metade do século XX e a constatação, sobretudo após as experiências do fascismo e do nazismo, de que a legalidade formal poderia encobrir a barbárie levaram à superação do positivismo estrito e ao desenvolvimento de uma dogmática principialista, também identificada como pós-positivismo.(31) Nesse novo paradigma, dá-se a reaproximação entre o Direito e a Ética, resgatam-se os valores civilizatórios, reconhece-se normatividade aos princípios e cultivam-se os direitos fundamentais. Sob este pano de fundo, a Constituição de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado democrático de direito (art. 1º, III).(32)

28. O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. Relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de subsistência. Aliás, o reconhecimento dos direitos da personalidade como direitos autônomos,(33) de que todo indivíduo é titular,(34) generalizou-se também após a Segunda Guerra Mundial e a doutrina descreve-os hoje como emanações da própria dignidade, funcionando como "atributos inerentes e indispensáveis ao ser humano."(35) Tais direitos, reconhecidos a todo ser humano(36) e consagrados pelos textos constitucionais modernos em geral, são oponíveis a toda a coletividade e também ao Estado. (37)

29. Uma classificação que se tornou corrente na doutrina é a que separa os direitos da personalidade, inerentes à dignidade humana, em dois grupos: (i)

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direitos à integridade física, englobando o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver; e (ii) direitos à integridade moral, rubrica na qual se inserem os direitos à honra, à liberdade, à vida privada, à intimidade, à imagem, ao nome e o direito moral do autor, dentre outros.

30. A relevância desses direitos para a hipótese aqui em discussão é simples de ser demonstrada. Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica. A Constituição Federal, como se sabe, veda toda forma de tortura (art. 5°, III) e a legislação infra-constitucional define a tortura como situação de intenso sofrimento físico ou mental(38) (acrescente-se: causada intencionalmente ou que possa ser evitada).

b) Legalidade, liberdade e autonomia da vontade

31. O princípio da legalidade,(39) positivado no inciso II do art. 5° da Constituição, na dicção de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", flui por vertentes distintas em sua aplicação ao Poder Público e aos particulares. Para o Poder Público, somente é facultado agir por imposição ou autorização legal.(40) Em relação aos particulares, esta é a cláusula constitucional genérica da liberdade no direito brasileiro: se a lei não proíbe determinado comportamento ou se a lei não o impõe, têm as pessoas a auto-determinação de adotá-lo ou não.

32. A liberdade consiste em ninguém ter de submeter-se a qualquer vontade que não a da lei, e, mesmo assim, desde que seja ela formal e materialmente constitucional. Reverencia-se, dessa forma, a autonomia da vontade individual, cuja atuação somente deverá ceder ante os limites impostos pela legalidade. De tal formulação se extrai a ilação óbvia de que tudo aquilo que não está proibido por lei é juridicamente permitido.

33. Pois bem. A antecipação terapêutica do parto em hipóteses de gravidez de feto anencefálico não está vedada no ordenamento jurídico. O fundamento das decisões judiciais que têm proibido sua realização, data venia de seus ilustres prolatores, não é a ordem jurídica vigente no Brasil, mas sim outro tipo de consideração. A restrição à liberdade de escolha e à autonomia da vontade da gestante, nesse caso, não se justifica, quer sob o aspecto do direito positivo, quer sob o prisma da ponderação de valores: como já referido, não há bem jurídico em conflito com os direitos aqui descritos. (41)

c) Direito à saúde

34. Os fundamentos básicos do direito à saúde no Brasil estão dispostos no art. 6°, caput, e nos arts. 196 a 200 da Constituição Federal. O art. 196 é especialmente importante na hipótese.

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"Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

35. A previsão expressa do direito à saúde na Carta de 1988 é reflexo da elevação deste direito, no âmbito mundial, à categoria de direito humano fundamental. Ressalte-se, neste ponto, que saúde, na concepção da própria Organização Mundial da Saúde, é o completo bem estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença. A antecipação do parto em hipótese de gravidez de feto anencefálico é o único procedimento médico cabível para obviar o risco e a dor da gestante. Impedir a sua realização importa em indevida e injustificável restrição ao direito à saúde. Desnecessário enfatizar que se trata, naturalmente, de uma faculdade da gestante e não de um procedimento a que deva obrigatoriamente submeter-se.

IV. DO PEDIDO

Interpretação conforme a Constituição

36. A técnica da interpretação conforme a Constituição, desenvolvida pela doutrina moderna(42) e amplamente acolhida por essa Corte,(43) consiste na escolha de uma linha de interpretação para determinada norma legal, em meio a outras que o texto comportaria. Por essa via, dá-se a expressa exclusão de um dos sentidos possíveis da norma, por produzir um resultado que contravém a Constituição, e a afirmação de outro sentido, compatível com a Lei Maior, dentro dos limites e possibilidades oferecidos pelo texto.(44)

37. Pois bem. O legislador penal brasileiro tipificou o aborto na categoria dos crimes contra a vida. Assim é que são tutelados, nos artigos 124 a 128 do Código Penal, o feto e, ainda, a vida e a integridade física da gestante (vide CP, art. 125 – aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da mãe). A antecipação consentida do parto em hipóteses de gravidez de feto anencefálico não afeta qualquer desses bens constitucionais. Muito ao contrário.

38. Como já exposto, na gestação de feto anencefálico não há vida humana viável em formação. Vale dizer: não há potencial de vida a ser protegido, de modo que falta à hipótese o suporte fático exigido pela norma. Com efeito, apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa pode ser sujeito passivo de aborto. Assim, não há como se imprimir à antecipação do parto nesses casos qualquer repercussão jurídico-penal, de vez que somente a conduta que frustra o surgimento de uma pessoa ou que causa danos à integridade física ou à vida da gestante tipifica o crime de aborto.(45) Sobre o ponto, vale reproduzir a lição clássica de Nelson Hungria que, embora escrita décadas antes de ser possível o diagnóstico de anencefalia, aplica-se perfeitamente ao caso:

"Não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as conseqüências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que se

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caracterize o abôrto) deve ser um produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em abôrto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto." (grafia original) (46)

39. O Judiciário já tem examinado essa questão em várias ocasiões. Na realidade, nos últimos anos, decisões judiciais em todo o país têm reconhecido às gestantes o direito de submeterem-se à antecipação terapêutica do parto em casos como o da anencefalia, concedendo-lhes alvarás para realização do procedimento.(47) Recentemente, porém, algumas decisões em sentido inverso desequilibraram a jurisprudência que se havia formado. Uma delas, inclusive, chegou à apreciação desse Eg. Supremo Tribunal no início de 2004.

40. Trata-se do HC 84.025-6/RJ, no qual se versava hipótese, precisamente, de pedido de antecipação do parto de feto anencefálico. Seria a primeira vez que o STF teria oportunidade de apreciar a questão. Lamentavelmente, porém, antes que o julgamento pudesse acontecer, a gravidez chegou a termo e o feto anencefálico, sete minutos após o parto, morreu. O eminente Ministro Joaquim Barbosa, relator designado para o caso, divulgou seu preciso voto, exatamente no sentido do que aqui se sustenta. Vale transcrever trecho de seu pronunciamento, que resume toda a questão em análise:

"Em se tratando de feto com vida extra-uterina inviável, a questão que se coloca é: não há possibilidade alguma de que esse feto venha a sobreviver fora do útero materno, pois, qualquer que seja o momento do parto ou a qualquer momento que se interrompa a gestação, o resultado será invariavelmente o mesmo: a morte do feto ou do bebê. A antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher contrapõe-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada? Nesse caso, a eventual opção da gestante pela interrupção da gravidez poderia ser considerada crime? Entendo que não, Sr. Presidente. Isso porque, ao proceder à ponderação entre os valores jurídicos tutelados pelo direito, a vida extra-uterina inviável e a liberdade e autonomia privada da mulher, entendo que, no caso em tela, deve prevalecer a dignidade da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal."(48)

IV.1. Pedido cautelar

41. No curso da argumentação desenvolvida demonstrou-se, de maneira que se afigura inequívoca, a presença do fumus boni iuris. A violação dos preceitos fundamentais representados pela dignidade da pessoa humana, legalidade, liberdade, autonomia da vontade e direito à saúde é ostensiva, caso se interpretem as normas penais como impeditivas da antecipação terapêutica do parto na hipótese de feto anencefálico.

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42. Quanto ao periculum in mora, note-se que tramitam perante tribunais de todo o país diversas ações judiciais em que gestantes – notadamente as de baixa renda, que dependem da rede pública de saúde – buscam autorização judicial para poderem submeter-se à antecipação terapêutica do parto, por serem portadoras de feto anencefálico. Note-se que o procedimento médico somente é realizado na rede do SUS – e mesmo na maioria dos hospitais privados – mediante a apresentação de tal autorização. Desnecessário dizer (e o caso do HC 84.025-6/RJ, acima citado, é prova disso) que a demora inerente aos trâmites processuais muitas vezes torna inócua eventual decisão judicial favorável à gestante.

43. Configurados o fumus boni iuris e o grave periculum in mora, a CNTS requer, com fulcro no art. 5° , caput e § 3° da Lei n.° 9.882/99, seja concedida medida liminar para suspender o andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais que pretendam aplicar ou tenham aplicado os dispositivos do Código Penal aqui indigitados, nos casos de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos. E que se reconheça, como conseqüência, o direito constitucional da gestante de se submeter ao procedimento aqui referido, e do profissional de saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a ocorrência da anomalia descrita na presente ação.

IV.2. Pedido principal

44. Por todo o exposto, a CNTS requer seja julgado procedente o presente pedido para o fim de que essa Eg. Corte, procedendo à interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-lei n° 2.848/40), declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação de tais dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado.

IV.3. Pedido alternativo

45. Por fim, alternativamente e por eventualidade, a CNTS requer que, caso V. Exa. entenda pelo descabimento da ADPF na hipótese, seja a presente recebida como ação direta de inconstitucionalidade, uma vez que o que se pretende é a interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, sem redução de texto, hipótese, portanto, em que não incidiria a jurisprudência consagrada dessa Corte relativamente à inadmissibilidade desse tipo de ação em relação a direito pré-constitucional.

46. De fato, a lógica dominante na Corte, reiterada na ADIn nº 2, é a de que lei anterior à Constituição e com ela incompatível estaria revogada. Conseqüentemente, não se deve admitir a ação direta de inconstitucionalidade cujo propósito é, em última análise, retirar a norma do sistema. Se a norma já não está em vigor, não haveria sentido em declarar sua inconstitucionalidade. Esse tipo de raciocínio, todavia, não é válido quando o pedido na ação direta é o de

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interpretação conforme a Constituição. É que, nesse caso, não se postula a retirada da norma do sistema jurídico nem se afirma que ela seja inconstitucional no seu relato abstrato. A norma permanece em vigor, com a interpretação que lhe venha a dar a Corte.

Por fim, nos termos do art. 6º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, a CNTS se coloca à disposição de V. Exa. para providenciar a emissão de pareceres técnicos e/ou a tomada de declarações de pessoas com experiência e autoridade na matéria, caso se entenda necessário.

Nestes termos, pede deferimento.

Do Rio de Janeiro para Brasília, 16 de junho de 2004.

LUÍS ROBERTO BARROSO

OAB/RJ 37.769

____________________________________________

(1) A ANIS tem, nos termos do art. 3º de seu Estatuto, como objetivos institucionais: defender e promover a bioética, a paz, os direitos humanos, a democracia e outros valores considerados universais; defender e promover a cidadania e a liberdade por meio da difusão de princípios bioéticos pautados nos direitos humanos; colaborar no combate de todas as formas de opressão social e discriminação, especialmente de gênero, que impeçam o exercício da liberdade; e difundir a bioética como um instrumento eficaz na proteção dos direitos humanos, especialmente de grupos vulneráveis, no Brasil ou em qualquer parte do mundo (doc. nº 05).

(2) Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973) e, mais recentemente, Planned Parenthood of Southwestern Pennsylvania v. Casey 505 U.S. 833 (1992). Nos Estados Unidos, reconhece-se à mulher o direito constitucional amplo para realizar aborto no primeiro trimestre de gravidez. Em relação ao segundo e ao terceiro trimestres, as restrições instituídas por leis estaduais podem ser progressivamente mais severas.

(3) Morgentaler Smoling and Scott v. The Queen (1988). No julgamento desse caso, a Suprema Corte canadense reconheceu às mulheres o direito fundamental à prática do aborto. Esta nota e as quatro subseqüentes beneficiam-se de pesquisa desenvolvida pelo Doutor e Procurador da República Daniel Sarmento, gentilmente cedida ao signatário da presente.

(4) O Tribunal Constitucional português reconheceu a constitucionalidade de lei que permitia o aborto em circunstâncias específicas, dentre elas o risco à saúde física ou psíquica da gestante, feto com doença grave e incurável, gravidez resultante de estupro e outras situações de estado de necessidade da gestante (Acórdão 25/84).

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(5) A Corte Constitucional espanhola considerou inconstitucional lei que autorizava o aborto em casos de estupro, anomalias do feto e riscos à saúde física e mental da mãe porque a lei não exigia prévio diagnóstico médico nos casos de má-formação fetal e risco à saúde da gestante.

(6) Em 1975, foi editada lei francesa permitindo o aborto, a pedido da mulher, até a 10ª semana de gestação, quando a gestante afirmasse que a gravidez lhe causa angústia grave, ou a qualquer momento, por motivos terapêuticos. A norma foi submetida ao controle de constitucionalidade (antes de editada) e ao controle de convencionalidade (após sua edição), tendo sido considerada compatível tanto com a Constituição francesa quanto com a Convenção Européia dos Direitos Humanos. Hoje, outra norma cuida da matéria, mantendo a possibilidade relativamente ampla de aborto na França.

(7) Na Alemanha, após uma posição inicial restritiva, materializada na decisão conhecida como "Aborto I" (1975), a Corte Constitucional, em decisão referida como "Aborto II" (1993), entendeu que uma lei que proibisse em regra o aborto, sem criminalizar a conduta da gestante, seria válida, desde que adotasse outras medidas para proteção do feto. Registrou, contudo, que o direito do feto à vida, embora tenha valor elevado, não se estende a ponto de eliminar todos os direitos fundamentais da gestante, havendo casos em que deve ser permitida a realização do aborto.

(8) Inexiste qualquer proximidade entre a pretensão aqui veiculada e o denominado aborto eugênico, cujo fundamento é eventual deficiência grave de que seja o feto portador. Nessa última hipótese, pressupõe-se a viabilidade da vida extra-uterina do ser nascido, o que não é o caso em relação à anencefalia.

(9) Richard E. Behrman, Robert M. Kliegman e Hal B. Jenson, Nelson/Tratado de Pediatria, Ed. Guanabara Koogan, 2002, p. 1777.

(10) Debora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro, Aborto por anomalia fetal, 2003, p. 101.

(11) Debora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro, Aborto por anomalia fetal, 2003, p. 44.

(12) Debora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro, Aborto por anomalia fetal, 2003, p. 102.

(13) V. definição constante do Dicionário enciclopédico de medicina (A. Céu Coutinho), p. 748: "Método auxiliar de diagnóstico baseado no registro gráfico de ecos de ultra-sons que são emitidos e captados por um aparelho especial que emite as ondas e capta os seus reflexos, fazendo também o seu registro gráfico (ecograma)." .

(14) Em parecer sobre o assunto, a FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia atesta: "As complicações maternas são claras e evidentes. Deste modo, a prática obstetrícia nos tem mostrado que: A) A manutenção da gestação de feto anencefálico tende a se prolongar além de 40 semanas. B) Sua associação com polihidrâminio (aumento do volume no líquido amniótico) é muito freqüente. C) Associação com doença hipertensiva especifica

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da gestação (DHEG). D) Associação com vasculopatia periférica de estase. E) Alterações do comportamento e psicológicas de grande monta para a gestante. F) Dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo. G) Necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério. H) Necessidade de registro de nascimento e sepultamento desses recém-nascidos, tendo o cônjuge que se dirigir a uma delegacia de polícia para registrar o óbito. I) Necessidade de bloqueio de lactação (suspender a amamentação). J) Puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina. K) Maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstetrícias do parto de termo." (doc. nº 06)

(15) Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 2002, p. 424.

(16) CF, art. 103: "Pode propor a ação direta de inconstitucionalidade: I – o Presidente da República; II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV – a Mesa de Assembléia Legislativa; V – o Governador de Estado; VI – o Procurador-Geral da República; VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII – partido político com representação no Congresso Nacional; IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional."

(17) STF, ADIn/MC 1.458-DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 20.09.1996.

(18) STF, ADIn/MC 1.497-DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 13.12.2002.

(19) Anteriormente à promulgação desse diploma legal, a posição do Supremo Tribunal Federal era pela não-autoaplicabilidade da medida. V. DJU, 31.05.1996, Ag. Reg. na Pet. 1.140, rel. Min. Sydney Sanches.

(20) A argüição incidental decorre do mesmo art. 1° , parágrafo único, I: "Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre a lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição", combinado com o art. 6° , § 1° da mesma lei: "Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou, ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria" (grifo acrescentado).

(21) Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro (obra ainda inédita), 2004.

(22) A Lei sobre o Tribunal Constitucional Federal exige, em seu § 90, alínea 2, que antes da interposição de um recurso constitucional seja esgotada regularmente a via judicial.

(23) Lei Orgânica 2, de 3.10.79, do Tribunal Constitucional, art. 44, 1, a.

(24) Embora na ADPF n° 17 (DJU 28.09.2001), o relator, Min. Celso de Mello, não tenha conhecido da argüição, por aplicação da regra da subsidiariedade, esse

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ponto não lhe passou despercebido, como se vê da transcrição da seguinte passagem de seu voto: "É claro que a mera possibilidade de utilização de outros meios processuais não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir, revelar-se-á essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se aptos a sanar, de modo eficaz, a situação da lesividade.

Isso significa, portanto, que o princípio da subsidiariedade não pode – e não deve – ser invocado para impedir o exercício da ação constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental, eis que esse instrumento está vocacionado a viabilizar, numa dimensão estritamente objetiva, a realização jurisdicional de direitos básicos, de valores essenciais e de preceitos fundamentais contemplados no texto da Constituição da República.

Se assim não se entendesse, a indevida aplicação do princípio da subsidiariedade poderia afetar a utilização dessa relevantíssima ação de índole constitucional, o que representaria, em última análise, a inaceitável frustração do sistema de proteção, instituído na Carta Política, de valores essenciais, de preceitos fundamentais e de direitos básicos, com grave comprometimento da própria efetividade da Constituição.

Daí a prudência com que o Supremo Tribunal Federal deve interpretar a regra inscrita no art. 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, em ordem a permitir que a utilização da nova ação constitucional possa efetivamente prevenir ou reparar lesão a preceito fundamental, causada por ato do Poder Público" (negrito no original).

(25) A exceção pode ocorrer em certas hipóteses de ação popular ou de ação civil pública.

(26) DJU 2.12.2002, p. 70, ADPF 33-5, Rel. Min. Gilmar Mendes: "De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva.

(...) Assim, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade – isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata –, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental.

É o que ocorre, fundamentalmente, nos casos relativos ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogados ou cujos efeitos

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já se exauriram. Nesses casos, em face do não-cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da argüição de descumprimento.

(...) Não se pode admitir que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários deva excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Até porque o instituto assume, entre nós, feição marcadamente objetiva. Nessas hipóteses, ante a inexistência de processo de índole objetiva apto a solver, de uma vez por todas, a controvérsia constitucional, afigura-se integralmente aplicável a argüição de descumprimento de preceito fundamental.

(...) Assim, o Tribunal poderá conhecer da argüição de descumprimento toda vez que o princípio da segurança jurídica restar seriamente ameaçado, especialmente em razão de conflitos de interpretação ou de incongruências hermenêuticas causadas pelo modelo pluralista de jurisdição constitucional".

(27) STF, DJU 21.11.1997, p. 60.585, ADIn n° 2, Rel. Min. Paulo Brossard. Sobre este tópico específico e as sutilezas que pode envolver, v. itens 45 e segs. da presente petição, nos quais se veicula o pedido alternativo.

(28) Sobre a ponderação de bens como técnica de decisão, v. na doutrina brasileira o trabalho pioneiro de Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na Constituição Federal, 2000.

(29) Aurélio Buarque de Holanda, Novo dicionário da língua portuguesa, 2a ed., 36a, imp.: "Nascituro. (...) 3. Jur. O ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo". No caso, só a morte é certa, anterior ou imediatamente após o parto. Veja-se, por relevante, que a Lei nº 9.437/ 97 estabelece como momento da morte humana o da morte encefálica, para fins de autorização de transplante. Confira-se sua dicção expressa: "Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina".

(30) A expressão foi empregada por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, trad. José Rubens Siqueira, Companhia das Letras, 1999.

(31) V. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1999, p. 237. Sobre o tema, na doutrina nacional, v. tb. Luís Roberto Barroso, "Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo)". In: A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003.

(32) Alguns trabalhos monográficos recentes sobre o tema: José Afonso da Silva, Dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia, Revista de

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Direito Administrativo 212/89; Cármen Lúcia Antunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social, Anais da XVII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, 1999; Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988, 2001; Cleber Francisco Alves, O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, 2001; Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana, 2001.

(33) Sobre a discussão acerca da existência autônoma dos direitos da personalidade, v. Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 155.

(34) Pietro Perlingieri, La personalità umana nell’ordenamento giuridico, apud Gustavo Tepedino, "A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro", in Temas de direito civil, 2001, p. 42: "O direito da personalidade nasce imediatamente e contextualmente com a pessoa (direitos inatos). Está-se diante do princípio da igualdade: todos nascem com a mesma titularidade e com as mesmas situações jurídicas subjetivas (...) A personalidade comporta imediata titularidade de relações personalíssimas."

(35) Gustavo Tepedino, "A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro", in Temas de direito civil, 2001, p. 33.

(36) Mônica Neves Aguiar da Silva Castro, Honra, imagem, vida privada e intimidade, em colisão com outros direitos, 2002, p. 67: "Identificados como inatos, no sentido de que não é necessária a prática de ato de aquisição, posto que inerentes ao homem, bastando o nascimento com vida para que passem a existir, os direito da personalidade vêm sendo reconhecidos igualmente aos nascituros."

(37) Miguel Ángel Alegre Martínez, El derecho a la propia imagen, 1997, p. 140: "Es de notar, además, que los destinatarios de esse deber genérico son todas las personas. El respeto a los derechos fundamentales, traducción del respeto a la dignidad de la persona, corresponde a todos, precisamente porque los derechos que deben ser respetados son patrimonio de todos, y el no respeto a los mismos por parte de cualquiera privará al otro del disfrute de sus derechos, exigido por su dignidad."

(38) Lei nº 9.455, de 07 de abril de 1997: "Art 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo."

(39) Sobre o princípio da legalidade, dentre muitos, v. Geraldo Ataliba, República e constituição, 1985, p. 98/99; Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 1999, p. 32 e ss; e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 2001, p. 67 e ss.

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(40) Não é este o local apropriado para a discussão acadêmica acerca do desenvolvimento de novos paradigmas relativamente à vinculação positiva da Administração Pública à lei. Sobre o tema, v. Gustavo Binenbojm, Direitos fundamentais, democracia e Administração Pública, 2003, mimeografado (projeto de tese de doutorado apresentado ao programa de pós-graduação em direito público da Universidade do Estado do Rio de Janeio – UERJ).

(41) Como assinalado, nada impede que se opte por colocar a questão em termos de ponderação de bens ou valores contrapostos: de um lado os direitos fundamentais da mãe e, de outro, a convicção religiosa ou filosófica que defenda a obrigatoriedade de levar a termo a gravidez, mesmo em se tratando de feto inviável. A ponderação, no entanto, é técnica de decisão que se utiliza quando há colisão de princípios ou de direitos fundamentais, funcionando como uma alternativa à técnica tradicional da subsunção. Não se vislumbra colisão no caso aqui estudado, mas sim uma situação de não subsunção ao Código Penal, vale dizer, de atipicidade da conduta.

(42) O princípio da interpretação conforme a Constituição tem sua trajetória e especialmente o seu desenvolvimento recente ligados à jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, onde sua importância é crescente. V. Honrad Hesse, La interpretación constitucional, in Escritos de derecho constitucional, 1983, p. 53. V. tb., dentre muitos outros, Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2., p. 232 e ss; Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990, p. 284 e ss.; Eduardo García de Enterría, La Constituición como norma y el Tribunal Constitucional, 1991, p. 95; J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 1991, p. 236.

(43) V. sobre o tema, ilustrativamente, STF, Rep. Nº 1.417-7, Rel. Min. Moreira Alves, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política nº 1, p. 314. No mesmo sentido: RTJ 139/624; RTJ 144/146.

(44) Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 189: "À vista das dimensões diversas que sua formulação comporta, é possível e conveniente decompor didaticamente o processo de interpretação conforme a Constituição nos elementos seguintes: 1) Trata-se da escolha de uma interpretação da norma legal que a mantenha em harmonia com a Constituição, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que o preceito admitia. 2) Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura do texto. 3) Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outra ou outras interpretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição. 4) Por via de conseqüência, a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal".

(45) E, no que toca à gestante, já se registrou que a gravidez de feto anencefálico é potencialmente perigosa, trazendo inúmeros riscos de complicações, além de

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profunda angústia e sofrimento psicológico não só à mãe como a toda a família. Assim, a antecipação do parto nesses casos somente traz benefícios à saúde da gestante, tanto de ordem física quanto psíquica.

(46) Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, vol. V, 1958, p. 297-298.

(47) Nesse sentido, vejam-se exemplificativamente: em SP: TJ/SP – JTJ 232/391; TJ/SP, 1ª Câm. Crim., MS nº 309.340-3, Rel. David Haddad, j. 22.05.2000; TJ/SP, 3ª Câm. Crim., MS nº 375.201-3, Rel. Tristão Ribeiro, j. 21.03.2002; em MG: TA/MG, 3ª Câm. Cív, Apel. Cív. nº 264.255-3, Rel. Juiz Duarte de Paula, j. 23.09.1998; TA/MG, 1ª Câm. Cív., Apel. Cív. nº 219.008-9, Rel. Juiz Alvim Soares – RJTAMG 63/272; TA/MG, 6ª Câm. Cív., Apel. Cív. nº 0240338-5, Rel. Juiz Baia Borges, DJ 10.09.1997; no RS: TJ/RS, 2ª Câm. Crim., MS nº 70005577424, Rel. José Antônio Cidade Pitrez, j. 20.02.2003; TJ/RS, 3ª Câm. Crim., Apel. Crim. nº 70005037072, Rel. José Antônio Hirt Preiss, j. 12.09.2002; dentre outros.

(48) Íntegra do voto acessível no site "Consultor Jurídico", no endereço http://conjur.uol.com.br/textos/25241/. No mesmo sentido decidiu a Suprema Corte da Argentina, ao examinar, precisamente, hipótese de antecipação de parto encefálico. O Tribunal confirmou decisão de tribunal inferior no sentido de que "en el caso aqui analizado, y particularmente para una de las hipótesis posibles: la inducción o adelantamiento del parto no se verifican los extremos de la vigencia del tipo objetivo del aborto – artículo 86 del Código Penal". E acrescentou: "Frente a lo irremediable del fatal desenlace debido a la patología mencionada y a la impotencia de la ciencia para solucionarla, cobran toda su vitalidad los derechos de la madre a la protección de su salud, psicológica y física, y, en fin, a todos aquellos reconocidos por los tratados que revisten jerarquía constitucional, a los que se ha hecho referencia supra". Referência: T.421.XXXVI. T., S. c/ Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires s/ amparo (doc. nº 10).

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Íntegra da liminar do Ministro Marco Aurélio

MED. CAUT. EM ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54-8 DISTRITO FEDERAL RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO ARGUENTE(S) : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE - CNTS ADVOGADO(A/S) : LUÍS ROBERTO BARROSO E OUTRO(A/S) DECISÃO-LIMINAR

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - LIMINAR - ATUAÇÃO INDIVIDUAL - ARTIGOS 21, INCISOS IV E V, DO REGIMENTO INTERNO E 5º, § 1º, DA LEI Nº 9.882/99. LIBERDADE - AUTONOMIA DA VONTADE - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - SAÚDE - GRAVIDEZ - INTERRUPÇÃO - FETO ANENCEFÁLICO.

1. Com a inicial de folha 2 a 25, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS formalizou esta argüição de descumprimento de preceito fundamental considerada a anencefalia, a inviabilidade do feto e a antecipação terapêutica do parto. Em nota prévia, afirma serem distintas as figuras da antecipação referida e o aborto, no que este pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. Consigna, mais, a própria legitimidade ativa a partir da norma do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99, segundo a qual são partes legítimas para a argüição aqueles que estão no rol do artigo 103 da Carta Política da República, alusivo à ação direta de inconstitucionalidade. No tocante à pertinência temática, mais uma vez à luz da Constituição Federal e da jurisprudência desta Corte, assevera que a si compete a defesa judicial e administrativa dos interesses individuais e coletivos dos que integram a categoria profissional dos trabalhadores na saúde, juntando à inicial o estatuto revelador dessa representatividade. Argumenta que, interpretado o arcabouço normativo com base em visão positivista pura, tem-se a possibilidade de os profissionais da saúde virem a sofrer as agruras decorrentes do enquadramento no Código Penal.

Articula com o envolvimento, no caso, de preceitos fundamentais, concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, em seu conceito maior, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde. Citando a literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana - a física, a

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moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde - o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Já os profissionais da medicina ficam sujeitos às normas do Código Penal - artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II -, notando-se que, principalmente quanto às famílias de baixa renda, atua a rede pública.

Sobre a inexistência de outro meio eficaz para viabilizar a antecipação terapêutica do parto, sem incompreensões, evoca a Confederação recente acontecimento retratado no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, declarado prejudicado pelo Plenário, ante o parto e a morte do feto anencefálico sete minutos após. Diz da admissibilidade da ANIS - Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero como amicus curiae, por aplicação analógica do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99.

Então, requer, sob o ângulo acautelador, a suspensão do andamento de processos ou dos efeitos de decisões judiciais que tenham como alvo a aplicação dos dispositivos do Código Penal, nas hipóteses de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assentando-se o direito constitucional da gestante de se submeter a procedimento que leve à interrupção da gravidez e do profissional de saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a ocorrência da anomalia.

O pedido final visa à declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal - Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. Sucessivamente, pleiteia a argüente, uma vez rechaçada a pertinência desta medida, seja a petição inicial recebida como reveladora de ação direta de inconstitucionalidade. Esclarece que, sob esse prisma, busca a interpretação conforme a Constituição Federal dos citados artigos do Código Penal, sem redução de texto, aduzindo não serem adequados à espécie precedentes segundo os quais não cabe o controle concentrado de constitucionalidade de norma anterior à Carta vigente.

A argüente protesta pela juntada, ao processo, de pareceres técnicos e, se conveniente, pela tomada de declarações de pessoas com experiência e autoridade na matéria. À peça, subscrita pelo advogado Luís Roberto Barroso, credenciado conforme instrumento de mandato - procuração - de folha 26, anexaram-se os documentos de folha 27 a 148.

O processo veio-me concluso para exame em 17 de junho de 2004 (folha 150). Nele lancei visto, declarando-me habilitado a votar, ante o pedido de concessão de medida acauteladora, em 21 de junho de 2004, expedida a papeleta ao Plenário em 24 imediato.

No mesmo dia, prolatei a seguinte decisão:

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AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - INTERVENÇÃO DE TERCEIRO - REQUERIMENTO - IMPROPRIEDADE. 1. Eis as informações prestadas pela Assessoria:

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - requer a intervenção no processo em referência, como amicus curiae, conforme preconiza o § 1º do artigo 6º da Lei 9.882/1999, e a juntada de procuração. Pede vista pelo prazo de cinco dias.

2. O pedido não se enquadra no texto legal evocado pela requerente. Seria dado versar sobre a aplicação, por analogia, da Lei nº 9.868/99, que disciplina também processo objetivo - ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade. Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento de direito subjetivo a tanto. Fica a critério do relator, caso entenda oportuno. Eis a inteligência do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, sob pena de tumulto processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no campo da prática de ofício, não é suscetível de impugnação na via recursal.

3. Indefiro o pedido.

4. Publique-se.

A impossibilidade de exame pelo Plenário deságua na incidência dos artigos 21, incisos IV e V, do Regimento Interno e artigo 5º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, diante do perigo de grave lesão.

2. Tenho a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS como parte legítima para a formalização do pedido, já que se enquadra na previsão do inciso I do artigo 2º da Lei nº 9.882, de 3 de novembro de 1999. Incumbe-lhe defender os membros da categoria profissional que se dedicam à área da saúde e que estariam sujeitos a constrangimentos de toda a ordem, inclusive de natureza penal.

Quanto à observação do disposto no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, ou seja, a regra de que não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, é emblemático o que ocorreu no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa. A situação pode ser assim resumida: em Juízo, gestante não logrou a autorização para abreviar o parto. A via-crúcis prosseguiu e, então, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira, concedeu liminar, viabilizando a interrupção da gestação. Na oportunidade, salientou:

A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero.

O Presidente da Câmara Criminal a que afeto o processo, desembargador José Murta Ribeiro, afastou do cenário jurídico tal pronunciamento. No julgamento de

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fundo, o Colegiado sufragou o entendimento da relatora, restabelecendo a autorização. Ajuizado habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça, mediante decisão da ministra Laurita Vaz, concedeu a liminar, suspendendo a autorização. O Colegiado a que integrado a relatora confirmou a óptica, assentando:

HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO. DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO NASCITURO.

1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.

2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.

3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal.

4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.

5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.

Daí o habeas impetrado no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, na assentada de julgamento, em 4 de março último, confirmou-se a notícia do parto e, mais do que isso, de que a sobrevivência não ultrapassara o período de sete minutos.

Constata-se, no cenário nacional, o desencontro de entendimentos, a desinteligência de julgados, sendo que a tramitação do processo, pouco importando a data do surgimento, implica, até que se tenha decisão final -

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proclamação desta Corte -, espaço de tempo bem superior a nove meses, período de gestação. Assim, enquadra-se o caso na cláusula final do § 1º em análise. Qualquer outro meio para sanar a lesividade não se mostra eficaz. Tudo recomenda que, em jogo tema da maior relevância, em face da Carta da República e dos princípios evocados na inicial, haja imediato crivo do Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente causam perplexidade, no que, a partir de idênticos fatos e normas, veiculam enfoques diversificados. A unidade do Direito, sem mecanismo próprio à uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente formal, gerando insegurança, o descrédito do Judiciário e, o que é pior, com angústia e sofrimento ímpares vivenciados por aqueles que esperam a prestação jurisdicional. Atendendo a petição inicial os requisitos que lhe são inerentes - artigo 3º da Lei nº 9.882/99 -, é de se dar seqüência ao processo.

Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos.

Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito

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fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação.

Preceitua a lei de regência que a liminar pode conduzir à suspensão de processos em curso, à suspensão da eficácia de decisões judiciais que não hajam sido cobertas pela preclusão maior, considerada a recorribilidade. O poder de cautela é ínsito à jurisdição, no que esta é colocada ao alcance de todos, para afastar lesão a direito ou ameaça de lesão, o que, ante a organicidade do Direito, a demora no desfecho final dos processos, pressupõe atuação imediata. Há, sim, de formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco.

Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.

3. Ao Plenário para o crivo pertinente.

4. Publique-se.

Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas.

Ministro MARCO AURÉLIO Relator

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Foto Ilustrativa de Feto Anencefálico