a alteridade em emmanuel lévinas: um comprometimento ético

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T A 103 TQ 02 (2019) 103-125 A alteridade em Emmanuel Lévinas: um comprometimento ético para a não violência Lucas Tadeu de Almeida 1 Resumo: O presente artigo tem o objetivo de apresentar a influência da concepção de alteridade nas relações interpessoais, de tal modo que, em alguns casos, ela legitima a violência e, em outros, se torna princípio ético. Para isso, inicialmente se apresenta o surgimento da alteridade na filosofia grega antiga, mostrando o quanto a compreensão do ser incide concre- tamente na maneira de conceber o outro. Em seguida, vê-se que Lévinas, a partir de sua experiência de cativeiro em um campo de concentração nazista, se dedica sobre a questão da alteridade e tece uma incisiva crítica à ontologia ocidental, que, ao buscar o conhecimento da totalidade da realidade, despoja o homem de todas as suas individualidades, reduzindo-o a um conceito abstrato ou a um discurso filosófico. Para nosso autor, no encontro face a face ocorre a epifania do rosto do outro, que está além dos traços e aspectos físicos – ou seja, é a manifestação transcendental das singularidades, da interioridade, do que há no mais profundo, da infinitude da alteridade do outro – o que impele o ser humano à responsabilidade ética por outrem. Por isso, dessa epifania surge o imperativo: “tu não ma- tarás”. Nesse sentido, para nosso filósofo, a violência não é uma pulsão instintiva e natural, mas a negação deliberada do outro enquanto tal. Sendo assim, há no ser humano uma potência para a não violência que se torna 1 Graduando do curso de filosofia da Faculdade Dehoniana em Taubaté. Este artigo científico é resultado de pesquisa bibliográfica apresentada ao curso de filosofia em novembro de 2019 sob a orientação da Prof. Dra. Adriana Cintra de Carvalho. FILOSOFIA

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T A

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TQ 02 (2019) 103-125

A alteridade em Emmanuel Lévinas: um comprometimento ético para a não violência

Lucas Tadeu de Almeida1

Resumo: O presente artigo tem o objetivo de apresentar a influência da concepção de alteridade nas relações interpessoais, de tal modo que, em alguns casos, ela legitima a violência e, em outros, se torna princípio ético. Para isso, inicialmente se apresenta o surgimento da alteridade na filosofia grega antiga, mostrando o quanto a compreensão do ser incide concre-tamente na maneira de conceber o outro. Em seguida, vê-se que Lévinas, a partir de sua experiência de cativeiro em um campo de concentração nazista, se dedica sobre a questão da alteridade e tece uma incisiva crítica à ontologia ocidental, que, ao buscar o conhecimento da totalidade da realidade, despoja o homem de todas as suas individualidades, reduzindo-o a um conceito abstrato ou a um discurso filosófico. Para nosso autor, no encontro face a face ocorre a epifania do rosto do outro, que está além dos traços e aspectos físicos – ou seja, é a manifestação transcendental das singularidades, da interioridade, do que há no mais profundo, da infinitude da alteridade do outro – o que impele o ser humano à responsabilidade ética por outrem. Por isso, dessa epifania surge o imperativo: “tu não ma-tarás”. Nesse sentido, para nosso filósofo, a violência não é uma pulsão instintiva e natural, mas a negação deliberada do outro enquanto tal. Sendo assim, há no ser humano uma potência para a não violência que se torna

1 Graduando do curso de filosofia da Faculdade Dehoniana em Taubaté. Este artigo científico é resultado de pesquisa bibliográfica apresentada ao curso de filosofia em novembro de 2019 sob a orientação da Prof. Dra. Adriana Cintra de Carvalho.

FILOSOFIA

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ato mediante um comprometimento ético fundamentado na alteridade e na responsabilidade pelo rosto de outrem.Palavras-chave: Alteridade; ética; Emmanuel Lévinas; violência.Abstract: This article aims to present the influence of the conception of alterity in interpersonal relationships, in such a way that, in some cases, it legitimizes violence and, in others, becomes an ethical principle. For this, the appearance of otherness in the ancient Greek philosophy is initially presented, showing how the comprehension of the Being concretely affects the way of conceiving the other. Then, from his experience as a prisoner in World War II, Lévinas dedicates himself to the issue of otherness and makes an incisive critique of Western ontology, which, in seeking knowledge of the totality of reality, strips the man of all his individualities, reducing him to an abstract concept or a phil-osophical discourse. For our author, in the face-to-face encounter occurs the epiphany of the other’s face, which is beyond the physical features and aspects - that is, it is the transcendental manifestation of the singularities, the interiority, the deepest, the infinitude of otherness on the other - what drives the human being to ethical responsibility for others. Hence, from this epiphany arises the imperative: “Thou shalt not kill.” In this sense, for our philosopher, violence is not an instinctive and natural drive, but the deliberate denial of the other as such. Thus, in human beings there is a power for nonviolence that becomes act through an ethical commitment based on otherness and responsibility for the face of others.Key words: Otherness; ethic; Emmanuel Lévinas; violence.

Introdução

Este artigo, vinculado à área de ética, debruça-se sobre o tema “Alteridade em Lévinas: um comprometimento ético para a não violência”.

A escolha dessa temática se justifica por vivermos em um contexto multicultural em que a alteridade e as diferenças, em todos os âmbitos da vida humana, se tornam cada vez mais visíveis e manifestas. No entanto, comumente nos deparamos com atos de violência motivados pela “incapacidade” ou ausência de abertura para aceitar os outros em sua alteridade, com suas diferenças e sin-gularidades, e, consequentemente, para incluir o “diferente”, seja ele um estrangeiro, um negro ou uma mulher, por exemplo.

Para constatarmos isso, basta estarmos atentos às relações interpessoais ao nosso redor ou ligarmos a televisão ou o rádio e nos colocarmos na escuta dos noticiários: intolerância religiosa, discriminação racial, exclusão daqueles que têm um estilo de vida

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alternativo etc.; são fatos que estão próximos a todos nós. Estas atitudes culminam, majoritariamente, em violência e são reflexo da tentativa de negar ou anular o outro em sua alteridade, o que suscita em nós questionamentos e nos deixa inconformados diante de tal conjuntura sociocultural.

Diante disso, mostrando que o ato violento não é uma pul-são instintiva ou natural do ser humano, mas atitude deliberada de negação do outro, o intuito do presente artigo consiste em apre-sentar como a concepção de alteridade influencia as relações in-terpessoais, de tal modo que, em alguns casos, ela chega a legitimar a violência, ao passo que, em outros, ela se torna a base de um princípio ético.

Para tanto, partiremos do horizonte da filosofia grega anti-ga acerca da alteridade, isto é, o do surgimento deste termo, a da influência do princípio de identidade de Parmênides na concep-ção dos gregos acerca do outro e a da mudança realizada por Pla-tão. Ainda neste primeiro momento, apresentaremos as tipologias de aproximação ao outro, para evidenciar a quais relações esta-mos nos referindo em nosso artigo. Em seguida, estabeleceremos um “diálogo” com Emmanuel Lévinas, apresentando sua crítica à ontologia ocidental e o resgate da importância do outro para a construção de um verdadeiro sentido do “humano”. Por fim, postularemos um comprometimento ético que inclua e tolere as diferenças e que, desta forma, torne ato a potência humana para a não violência.

1. O surgimento e a problemática da alteridade na filosofia antiga

Nesta primeira seção, iremos abordar o surgimento do con-ceito de alteridade na filosofia grega antiga e veremos quão grande é a problemática que o envolve, não só ontologicamente, mas tam-bém, e, sobretudo, na dimensão ética das relações interpessoais. Depois, para entendermos a que nos referimos quando falamos dessas relações, iremos apresentar as tipologias de aproximação ao outro, a partir dos estudos da francesa Françoise Mies, que se em-basa em nosso autor, Emmanuel Lévinas.

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Na origem grega do conceito alteridade – que vem do latim allius, alter – encontramos diferentes termos que os gregos usavam para fazer menção àqueles que não tinham a mesma naturalidade que eles: allos era usado para fazer referência a outro; xenos para o estrangeiro, o hóspede ou o inimigo; e bárbaro para o escravo que balbuciava o grego. Todas essas terminologias se referiam ne-gativamente a alguém diferente e alheio ao interno de uma ordem social ou polis grega: um outro que está entre muitos e que tem até mesmo a conotação de sobra ou resto.

“Mas, certamente, o significado que prevaleceu ao longo da tradição é o de diverso ou diferente que o sentido grego deu desde o princípio para significar o não-grego, sendo que nesta acepção há uma carga de negação, dada a necessidade de situar o sujeito estrangeiro no sistema da polis”2.

A grande problemática que se insere na trama da concepção de outro, acima referida, consiste no fato de o grego se colocar como o parâmetro para definir aqueles que, em si, têm a mesma dignidade que ele, a saber, somente os seus concidadãos e com-patriotas, e, por conseguinte, estabelecer que os de outra origem carregam consigo a negativa carga de ser outro, ou seja, pejorativa-mente diverso.

O que certamente embasa e fundamenta essa acepção é o problema ontológico presente no pensamento do filósofo de Eleia, Parmênides: ele foi o primeiro a se debruçar sobre a questão do ser. Sua formulação do princípio de identidade marca não só o hori-zonte grego antigo, mas perpassa a história da filosofia metafísica: o ser é e não é possível que não seja; o não-ser não é e é necessário que não seja3. Para o eleata, só se pode pensar o que é, ou seja, o ser. Do não-ser, pelo contrário, não se fala e não se pode pensar, simplesmente porque não é. O ser de Parmênides, portanto, é imó-vel, imutável, incorruptível, uno, contínuo, desde sempre e para sempre; ele é idêntico a si mesmo e, por isso, se identifica com o mesmo e está em contraposição ao outro.

2 Dulcelene de F. CECCATO, A filosofia como hermenêutica-em-diálogo: uma abordagem intercultural da ética em Lévinas e do estar em Kusch, 2017, p. 30.

3 Cf. PARMÊNIDES, Da natureza, 2002, p. 14.

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É justamente nesta perspectiva que o grego compreende a existência: ele se coloca no campo do ser e tudo o que é diverso de si está no não-ser e, sendo assim, o outro – seja ele o estrangeiro, o hóspede, o bárbaro ou o escravo – é concebido como uma espécie de falsidade, negatividade ou defeito em relação ao que é o ser, ou seja, em referência ao próprio grego.

A tentativa que incorre dessa concepção é a de reduzir o diverso ao mesmo: é a busca por tentar fazer com que o outro seja despojado de suas diferenças e singularidades para se adequar e se conformar ao mesmo. Isso pode ser chamado de desenraizamento: perder as raízes, a própria identidade, os valores pessoais, as tradi-ções e costumes, o sentido de pertença a uma comunidade ou a um povo específico. Assim, “a redução do outro ao mesmo eman-cipa o eu da necessidade de admitir a diferença”4.

Esse reducionismo pode conduzir a implicações éticas que chegam até mesmo a legitimar a violência por se compreender o outro como uma ameaça social ou como alguém que tem menor valor e importância do que aquele que se compreende como medi-da da realidade e se autossitua no campo do ser parmenídeo. Aqui, já podemos ver um leve aceno para a temática do nosso artigo: a influência da concepção de alteridade nas relações interpessoais.

Para além da concepção de Parmênides, podemos perceber, ainda na filosofia antiga, uma tentativa de mudança desse para-digma ontológico em Platão. Na obra “Sofista”, que se desenvolve basicamente através por meio de um diálogo entre o Estrangeiro vindo de Eleia e Teeteto, o filósofo reflete sobre o ser a partir de cinco gêneros, ditos mais elevados: ser, repouso, movimento, idên-tico e diverso. Através da koinonia (comunhão) entre esses gêneros, Platão prova que o não-ser também é: o repouso, por exemplo, é por participar do ser, mas não é movimento. Estabelecendo essa relação, emerge aos nossos olhos que o não-ser, de alguma forma, é.

Platão, ao colocar essa afirmação na boca do Estrangeiro, faz ocorrer o “parricídio”, isto é, a “morte” da teoria do eleata Parmê-nides: “o não-ser não é e é necessário que não seja”, provando que este não-ser pode ser pensado e dito.

4 B. C. HUTCHENS, Compreender Lévinas, 2007, p. 65.

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Para Platão, o ser é diverso de todos os gêneros; não é ne-nhum deles nem mesmo sua totalidade, mas somente ele próprio: o ser, o supremo gênero, porque tudo o que existe é. Já o não-ser não é o contrário do ser, mas tão somente diferente dele: o não-ser é a alteridade do ser. Isso já denota uma diferente concepção do diverso.

Sabemos, contudo, que a temática do ser perpassa toda a história da filosofia ocidental, mas, tendo em vista o objetivo de nosso artigo, não se faz necessário traçar uma linha histórica de todo o seu desenvolvimento. Basta-nos o pensamento de Parmê-nides, primeiro filósofo a se debruçar sobre essa questão – como o dissemos – e também de Platão, a fim de retratar panoramicamen-te o surgimento da concepção de alteridade na antiguidade sob a influência da compreensão do ser.

Assim sendo, conseguimos ao menos ter uma noção básica do surgimento e da problemática da alteridade no mundo grego antigo. Agora, ainda para embasar nossa reflexão acerca do pen-samento de Emmanuel Lévinas, que apresentaremos mais adian-te, iremos expor as tipologias de aproximação ao outro, segundo Françoise Mies, para evitar interpretações equivocadas acerca das relações – como terceiro e face a face – às quais nos referiremos posteriormente.

1.1 Tipologias de aproximação ao outro

Para vincularmos os estudos da francesa Françoise Mies ao nosso artigo, iremos apresentar suas duas principais tipolo-gias de aproximação ao outro para fundamentar a crítica de Lévinas à ontologia ocidental e sua concepção de epifania do rosto. Apresentando esses dois modos de como se aproximar daquele que é “diverso”, também temos o intento de mostrar como é possível fazer com que a filosofia trate a questão do outro sem o risco de eliminá-lo por ser diferente, de maneira que ele permaneça outro, continue com sua identidade e tenha espaço para ser quem ele é.

Uma primeira situação de aproximação é de cunho especu-lativo, sinótico e objetivo. Esta, segundo Mies, caracteriza-se por

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uma “atitude comparatista e desengajada da filosofia, sobretudo da parte do sujeito que a pratica pelo fato de apenas colocar-se na posição de expectador e teórico das diferenças”5. É a aproximação como terceiro. Para ela, essa postura pode levar a problemas éticos, pois o outro se torna meramente objeto de estudo, o que, em si, já é ato constituído de violência.

A ontologia, por exemplo, é um campo incisivamente cri-ticado por Emmanuel Lévinas porque ela busca chegar à com-preensão da totalidade da realidade, eliminando, dessa forma, as particularidades e individualidades presentes em cada situação, caso e ser humano. Para ele, o existente, ao tomar distância da existência, coloca-se em uma posição especulativa acerca da realidade e busca determiná-la; “apropria-se” do real e o deno-mina a partir de si. É a “ontologia do poder”. Olhando para tudo de forma objetivável, não se vê o rosto do outro, isto é, sua iden-tidade que se encontra no campo da transcendência e que, por ser única e infinita, está além de toda especulação e definições predeterminadas.

A segunda situação de aproximação consiste naquele en-contro face a face que ocorre entre dois sujeitos e, no qual, um é afetado pela alteridade do outro. Esta é bem mais complexa: per-passa a fecunda tensão do deparar-se com o diferente que questio-na, reclama pelo reconhecimento de sua identidade na alteridade e implica um comprometimento ético de responsabilidade para com esse rosto.

Por isso, para Mies, é essa responsabilidade que deve es-tar na base do estudo e da pesquisa científica, para que não se fique buscando meramente especulações etéreas e que acabam por diluir as singularidades na procura da totalidade. Por isso, com essa motivação, ao terminar seu estudo ela afirma: “Que o filósofo possa permanecer fiel à memória desses face a face em que as coisas, os eventos e os seres aparecem na sua alteri-dade ou por suas “heteridades”, que o afetam e lhe exigem – é

5 FRANÇOISE MIES apud Dulcelene de F. CECCATO, A filosofia como hermenêutica-em-diálogo: uma abordagem intercultural da ética em Lévi-nas e do estar em Kusch, 2017, p. 31.

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meu desejo, e desejo, por que não? - que essa lealdade possa ser reconhecida como método. É permanecendo carne, vulnerável, afetada pelo outro, que a razão mantém o compromisso com a verdade”6.

É com base na aproximação que leva ao encontro face a face com o outro e que suscita o comprometimento ético da responsabilidade para com o rosto de outrem que a concepção de alteridade de Emmanuel Lévinas se funda. Ética e alteridade caminham unidas em uma via que busca evidenciar a imensurável e irredutível dignidade de todo ser humano. Com esses fundamen-tos básicos, de alteridade e de aproximação, imergir-nos-emos na concepção de nosso filósofo acerca da temática do outro.

2. A alteridade em Emmanuel Lévinas

Na segunda seção de nosso artigo, iniciando com uma bre-ve apresentação do contexto em que nosso pensador fez suas ex-periências e desenvolveu sua produção científica, abordaremos a crítica que Emmanuel Lévinas fez à ontologia ocidental, estabele-cendo uma relação com a violência – tema que também se vincula a nosso trabalho – e, em seguida, iremos expor sua compreensão acerca do outro.

Como todo filósofo, Lévinas pensa a partir de seu mundo, de sua realidade social, histórica, política, religiosa, econômica e cultural: é filho de seu tempo e, sendo assim, os acontecimentos da história, naturalmente, têm grande impacto em sua produção científica.

A questão da alteridade ganha força e ênfase, sobretudo na contemporaneidade, quando, em meio a inúmeras mudanças socioculturais e acontecimentos históricos profundamente ques-tionadores – como os regimes fascistas e o próprio nazismo, que citaremos ao longo do nosso artigo –, o homem foi impelido a se debruçar sobre sua própria existência, pensar as relações e tam-bém sobre o outro e suas diferenças.

6 Idem, p. 32.

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Por isso, faz-se necessário entender que Lévinas é um judeu lituano do século XX, que sobreviveu ao período das duas grandes guerras mundiais e que, devido sobretudo ao capitalismo, viu um estí-mulo cada vez maior para o individualismo e o egocentrismo, tornan-do o outro – seja ele uma pessoa, a criação de um modo geral ou até mesmo Deus, o absolutamente Outro – mero objeto de satisfação dos desejos pessoais e meio para se alcançar os objetivos almejados: pro-cesso de simultânea desumanização e reificação da pessoa humana.

O tema do outro passa a ter centralidade em seus escritos e estudos sobretudo a partir de sua experiência de cativeiro em cam-po de concentração nazista. Portanto, sua produção científica não nasce de um mero esforço especulativo feito à distância, mas sim de alguém que vivenciou um momento de profunda obscuridade humana, em que o outro era literalmente violentado por ser dife-rente e ter sua própria identidade, tradição e religiosidade.

Para ele, uma forma de violência à alteridade, além da que é provocada fisicamente, é a busca pelo conhecimento da totali-dade da realidade empregada pela ontologia ocidental, como já acenamos brevemente e sobre a qual agora nos ateremos com mais atenção e profundidade.

2.1 A face violenta da ontologia ocidental

Do pensamento levinasiano é necessário evidenciar a forte e insistente crítica à ontologia ocidental. Como acenamos na pri-meira seção, a filosofia, desde o período antigo até a contempora-neidade, de Parmênides a Heidegger, sempre se debruçou sobre a questão do ser. Para isso, no entanto, constantemente eliminou as individualidades, de modo a buscar reduzir tudo ao mesmo. Por isso, nesse sentido, afirma nosso autor que a ontologia “[...] con-siste em neutralizar o ente para o compreender ou captar. Não é, portanto, uma relação com o Outro como tal, mas a redução do outro ao Mesmo”7.

O existente, tomando distância da existência, corre o risco de buscar um conhecimento totalizante que seja fechado em si e

7 Emmanuel LÉVINAS, Totalidade e infinito, 2011, p. 33.

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insensível às diferenças presentes em cada indivíduo ou contexto social, histórico e cultural: é um reducionismo da realidade. Dessa forma, centrando-se, hermeticamente, no ser em si mesmo, deixa--se de compreender a alteridade no mistério único e irrepetível de cada ser humano, cuja identidade mais profunda transcende qualquer sistema ou esquema totalitário.

Essa busca pelo universal, que permeia a ontologia ocidental, é chamada por Lévinas de “ontologia do poder”. Em sua concep-ção, esse reducionismo do outro ao mesmo é justamente a tentati-va de eliminar as diferenças – aquilo que é incompreensível devido à singularidade – para poder tornar tudo semelhante ou idêntico a fim de se especular um conhecimento objetivo e total do ser. Para isso, contudo, o lituano percebe que a filosofia estimulou os seres humanos a pensarem sobre si próprios de forma impessoal. Colo-cando-se fora da realidade, o homem sente-se com plenos poderes para agir e pensar sobre o universo como se dele não fosse parte integrante e isso não tivesse incidência sobre ele próprio.

Essa “ontologia do poder”, segundo Hutchens, levou a uma separação entre existente e existência, o que colocou a pessoa hu-mana diante de um dilema: encontrar-se na existência com as in-dividualidades intrínsecas a cada ser humano ou colocar-se fora da realidade para pensar o ser de uma forma total e objetiva? E assim este estudioso afirma, já dando uma resposta a essa questão: “Em troca dessa capacidade de se situar no mundo, o eu abriu mão de sua individualidade e de sua autonomia”8.

Nesse sentido, Lévinas concebe as duas principais facetas violentas da ontologia, a saber: a ação egocêntrica ou egóica e a total passividade diante de uma ação: “A violência pode ser en-contrada em qualquer ação em que agimos como se estivéssemos sozinhos para agir: como se o resto do universo estivesse ali só para receber a ação. Consequentemente, a violência é também qualquer ação que suportamos sem colaborar com ela em nenhum ponto”9.

Além disso, esse primado do racionalismo, que reduz a rea-lidade para compreendê-la, tem forte incidência na política: “O

8 B. C. HUTCHENS, Compreender Lévinas, 2007, p. 62.9 Emmanuel LÉVINAS apud B.C. HUTCHENS, Compreender Lévinas,

2007, p. 61.

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totalitarismo tem como base um totalitarismo ontológico. O ser é tudo, um Ser no qual nada termina e nada começa. Nada está em oposição a ele e ninguém o julga. É um neutro anônimo, um universo impessoal, um universo sem linguagem”10.

Como prisioneiro em campo de concentração, nosso filósofo fez justamente essa experiência do totalitarismo, conhecendo de perto as dores e os sofrimentos causados a tantas pessoas pelo fato de se perder de vista o horizonte tolerante da alteridade. O nazis-mo é uma clara expressão disso ao estabelecer a pseudoconsciên-cia da “raça ariana” como pura e superior relativamente às outras, especialmente em relação à semita. Por isso, nesse sentido, uma filosofia totalitária pode tornar-se o terreno fértil para atrocidades desumanas com base em uma política também totalitária.

Aqui, podemos estabelecer uma relação com o início do nosso artigo, para nos recordarmos: sempre que o eu se identifica com o mundo do ser parmenídeo e o outro coincide com o não-ser, legitima-se a violência contra “aquele que não é”. Impossibilitar ao outro de ser quem ele é, é violentar sua dignidade e sua liberdade.

Por isso, para Lévinas, a imagem representativa do ser hu-mano ocidental é Ulisses, da Odisseia de Homero: alguém que saiu de sua ilha, guerreou e lutou contra os outros para con-quistar, mas depois voltou para sua terra, de onde, na verdade, em última instância, nunca saiu. É uma mentalidade violenta e colonizadora11.

O outro, diante disso, ou é violentado fisicamente por ser diferente ou é despojado de sua alteridade e reduzido a conceitos que uniformizam as distinções. Tudo é basicamente reduzido ao mesmo!. É justamente contra isso que o pensamento levinasiano busca reconstruir o sentido do “humano” com base na alteridade.

Portanto, se até então a filosofia primeira era compreendida como a ontologia – que se fundamentava na capacidade especu-lativa do intelecto do existente que se distanciava da existência – Lévinas, por sua vez, propõe a ética, a partir das relações inter-pessoais, como via de humanização e como filosofia primeira. É

10 Idem, p. 60.11 Cf. Nélio Vieira de MELO, A ética da alteridade em Emmanuel Levinas,

2003, p. 57.

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em direção ao outro que o ser humano se descobre humano e todo conhecimento ganha sentido.

2.2 O outro na concepção de Emmanuel Lévinas

O outro para Lévinas, como já podemos perceber, não é abs-trato ou meramente conceitual, mas um ente concreto presente na realidade. Assim, o eu e outro, com essa conotação, formam a estrutura básica da concepção de alteridade do nosso filósofo.

Para ele, este outro não “é somente um alter ego. Ele é o que eu não sou”12 e se qualifica justamente por sua singularidade na alterida-de, pelo fato de ser único como alguém que é totalmente diferente do eu e que transcende qualquer sistema totalitário ou conceitual. Ele, o outro, apesar de toda e qualquer tentativa, nunca é reduzido ao que se pensa ou se fala a seu respeito, porque nada é capaz de abarcar o infinito presente no qualificativo de outro, ainda que fisicamente se o violente ou o oprima. Nesse sentido, em última instância, não há a possibilidade de redução do outro ao mesmo.

Para Lévinas, o outro é profundamente desejado, metafisi-camente, pelo eu, no sentido de querer se encontrar com ele, mas é um desejo nunca totalmente saciado, porque o outro, em sua alteridade, nunca pode ser alcançado absolutamente. Em outras palavras, ele nunca pode se tornar uma propriedade ou objeto de uso e de satisfação de necessidades, pois sempre transcende a tudo isso. Com essa dinâmica, o eu é questionado e impelido a sair de si mesmo para ir ao encontro do mistério de outrem.

A grande incumbência do eu, segundo nosso filósofo, consis-te em reconhecer o outro enquanto tal, ou seja, não simplesmente reconhecê-lo como um alter ego ou como um conceito abstrato, mas sim como um ser humano que em sua peculiaridade é ir-redutível e sobre o qual não tenho domínio algum, pois, em seu mistério, ele a tudo “escapa”. Por isso, esse outro é comparado, por Lévinas, com um estrangeiro que perturba e incomoda por sua individualidade e que é totalmente livre por não poder ser apro-priado pelo eu13.

12 Emmanuel LÉVINAS, Da existência ao existente, 1998, p. 113.13 Cf. Emmanuel LÉVINAS, Totalidade e infinito, 2011, p. 25.

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Nesse sentido, a alteridade suscita a percepção do infini-to que é a própria existência, interrompendo qualquer sistema ou busca que visa ao conhecimento da totalidade. É uma rup-tura radical com a ontologia ocidental, ou seja, com a tentati-va de conceitualizar e sistematizar o ser de modo absoluto e universal.

Lévinas compreende que a totalidade reduz toda a reali-dade exterior do eu ao mesmo a fim de conseguir um conheci-mento objetivo. No entanto, o outro, que também se compreende na exterioridade do eu, é inabarcável pela razão, pois a tentativa de conhecê-lo se dá através de uma relação com uma realidade infinitamente distante da minha. Sendo assim, como já dissemos anteriormente, ao compreender isso, o que move o eu é o desejo metafísico do infinito do outro. Sendo assim, como afirma nosso filósofo, “não é a insuficiência do Eu que impede a totalização, mas o Infinito do Outrem”14.

Portanto, a centralidade da filosofia levinasiana é o outro, que transcende qualquer conceito, julgamento, juízo ou tentativa de redução, justamente por ser totalmente outro e, dessa forma, por trazer em si a infinitude do mistério insondável do ser hu-mano. Assim, apesar de a ontologia ocidental sempre ter violen-tado o outro ao reduzi-lo ao mesmo em vista do conhecimento totalizante, o encontro face a face, marcado pelas diferenças e, em uma palavra, pela alteridade, faz com que se manifeste a beleza da infinitude do “rosto” do outro. É justamente da epifania do rosto que surge o apelo ético à responsabilidade pelo outro e o compro-metimento com a não violência.

3. Alteridade como princípio ético para a não violência

Nesta seção, iremos mostrar como a alteridade influencia as relações interpessoais, de tal modo que em alguns casos ela legitima a violência e em outros pode se tornar princípio ético.

14 Idem, p. 69.

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Para isso, iniciaremos apresentando brevemente a noção de vio-lência à qual estamos nos referindo, para não causar nenhuma ambiguidade ou confusão acerca do termo e suas interpreta-ções. Em seguida, apresentaremos a noção de rosto, presente na filosofia de Lévinas, para, depois, dizer como a epifania deste rosto se torna um apelo ao comprometimento ético para a não violência.

A violência, estando presente em todas as sociedades, pode ser concebida como uma prática histórica, compreendida não tanto como uma tendência natural ou uma pulsão instintiva do ser humano – pois, se assim o fosse, ele estaria condicionado a isso –, mas sim entendida como ato de negar deliberadamente o outro: “A violência se manifesta como negação do outro, que, ao ser violentado, sofre anulação, total ou parcial, da sua alte-ridade”15.

Nesse sentido, violência e alteridade são excludentes: se se respeita o outro em sua singularidade, não se tem a violência; por outro lado, se se é violento, se nega automaticamente, de alguma forma e em alguma dimensão, a alteridade do outro. Por isso, “essa co-implicação é radical, ela subsiste na raiz de toda violência que consiste em negar a alteridade humana. Sem essa condição, ela não é violência, no sentido estrito do termo. E a recíproca também se confirma, o radical da alteridade humana se realiza como negação de toda violência”16.

Um fator, historicamente comprovado, que leva à legitima-ção da violência é a certeza de uma identidade totalizante e supe-rior, além da qual nenhuma outra sequer recebe a consideração da dignidade humana. Podemos perceber nitidamente isso na políti-ca fascista e, especificamente, no nazismo, como já mencionamos anteriormente. É a formação de uma sociedade baseada na con-sanguinidade e nas meras semelhanças dos acidentes corpóreos – como a cor da pele, do cabelo e dos olhos, por exemplo – possibili-tando a exclusão e a violência do “diferente” sem qualquer peso na

15 Castor Bartolomé RUIZ, Alteridade humana e potência do não para a violência: um diálogo com Emmanuel Lévinas, in Síntese: revista de filosofia (2019), p. 241.

16 Idem, p. 242.

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consciência. “Na identificação com a corporeidade, a exterioridade se apaga e a alteridade se anula”17.

Com a formação dessa identidade totalizante, para expandir essa “verdade” como universal e absoluta, usa-se da violência para impor aos outros a superioridade de seu sangue, de sua raça e de sua corporeidade. Esse é um ideal que torna o outro, em sua alte-ridade, alguém que é visto como resto ou sobra, isto é, alguém de menor importância; conotação com a qual, como vimos no início do nosso artigo, os gregos antigos já compreendiam os estrangeiros.

A violência como negação do outro ocorre também através de sua redução a um conceito. É nesse sentido que Lévinas tece uma incisiva crítica à ontologia ocidental, como já mencionamos há pouco: é a tentativa de abarcar o Infinito da alteridade humana na totalidade de um conceito. Identificar o outro com uma mera palavra ou um belo discurso é tirar sua individualidade e a concre-tude de sua existência, o que, em si, para nosso filósofo, já é uma atitude violenta. Por isso, “a totalidade que almeja explicar o outro opera como totalitarismo contra sua potência de ser diferente”18.

De modo cada vez mais evidente no capitalismo, o ser hu-mano está sendo reduzido a um mero objeto, um meio útil de produção para a satisfação do mercado: é a lógica utilitarista e des-cartável. Sendo assim, em tempos em que o valor da vida humana é medido pelo rendimento ou pelo lucro que ela traz, faz-se ne-cessário tomar consciência de que essa também é uma forma de violência contra a alteridade e a própria dignidade humana.

Enfim, toda violência que nega o outro enquanto tal tem sua raiz na objetivação da pessoa humana, seja na busca por difundir uma raça que se pensa ser “superior” às outras, seja na tentativa de reduzir o homem a ponto de ele “caber no intelecto”, seja ao torná--lo meio para alcançar fins lucrativos. Esta é a violência à qual nos referimos ao aplicarmos este termo em referimento à alteridade.

Para Lévinas, esta violência é intencional e, sendo assim, pode não ser cometida. Por isso, há em sua compreensão a plena possibilidade de a potência para a não violência se tornar ato. Para ele, isto se dá, sobretudo, através da manifestação do “Rosto” do

17 Idem, p. 244.18 Idem, p. 246.

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outro. É assim que nasce a ética para nosso filósofo: da infinitude do mistério de outrem que impele ao respeito e, especialmente, à responsabilidade.

Não por acaso, o termo que nosso autor utiliza é rosto e não face. Segundo Ruiz, podemos dizer que esta consiste naquilo que possibilita a identificação exterior e visual de alguém, sobretudo de quem é anônimo ou pouco conhecido; são os traços que nos permitem reconhecer empiricamente os outros; é a imagem ou a aparência que de modo espontâneo e imediato o intelecto conse-gue inteligir19.

Já o rosto não se limita ao aspecto físico que se pode ver nem pode ser desvelado pelo eu: “é o modo como se revela o ser e o existir do Outro. [...] O rosto revela a interioridade de alguém que se me apresenta como um outro diferente e próximo de mim”20; ele se manifesta através da relação e do encontro interpessoal com o outro como o totalmente diferente de mim, sem qualquer expectativa ou projeção, na liberdade de ser quem ele é. Assim, se revela a infinitude do mistério do outro e sua mais peculiar singularidade, que, de maneira algu-ma, podem ser reduzidos a um sistema de conceitos e discursos abstratos e totalizantes.

Para Lévinas, como já o dissemos, o rosto do outro é uma manifestação, uma epifania! Portanto, só se pode conhecer aquilo que o outro, por si, manifesta. Não há como invadir esse espaço “sagrado” e intimamente misterioso do outro, a não ser que ele próprio, espontaneamente, o revele. Ao eu cabe tão somente a aco-lhida, isto é, a abertura para acolhê-lo e respeitá-lo.

Por isso, “o acolhimento do outro é sempre o respeito não violento pela manifestação daquilo que revela de si. E toda ten-tativa de reduzir o outro a um conceito pré-definido por mim, já é uma violência. Toda violência, por sua vez, opera através da ne-gação da acolhida do outro como epifania de uma diferença”21. O outro, portanto, revela ser único em sua singularidade e seu valor, que, em sua infinitude, não é determinado pelo aspecto físico ou

19 Cf. Idem, p. 247-248.20 Idem, p. 248.21 Idem, p. 249.

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estético. Dessa forma, não há a possibilidade de qualquer argu-mento que fundamente algum preconceito, se é que isso é possível.

Com tudo isso, nosso filósofo nos conduz a perceber que a epifania do rosto traz consigo o apelo à responsabilidade! Por isso, ele afirma: “a epifania do rosto é a ética”22. Apresentando-se como se é, o rosto também manifesta sua pobreza, sua fragilidade e nudez: é passível de violência e morte. Contudo, inerente a essa visagem, surge, na concepção de nosso autor, o mandamento que assegura a “sacralidade” da vida humana: “tu não matarás”. Desse modo, o eu é impelido a uma resposta responsável, a um compro-metimento ético que se embase no respeito, no diálogo, na justiça e na defesa da vida do outro.

Ainda neste sentido, certamente por influência de sua reli-giosidade judaica, assim afirma Lévinas, de forma bela e contun-dente, acerca dessa epifania do rosto e do consequente apelo éti-co: “O tu não matarás é a primeira palavra do rosto. Ora, é uma ordem, há no aparecer do rosto um mandamento, como se algum senhor me falasse. Apesar de tudo, ao mesmo tempo o rosto de outrem está nu; é o pobre por quem posso tudo e a quem tudo devo. E eu, que sou eu, mas enquanto primeira pessoa, sou aquele que encontra processos para responder ao apelo”23.

O eu nesse encontro é chamado a sair de si mesmo, a des-centralizar-se para assumir sua responsabilidade por outrem. En-quanto a ontologia ocidental concebe o ser como algo completo, fechado em si por ser pleno e, portanto, autossuficiente, Lévinas propõe a excedência do ser, isto é, um caminho exodal de saída de si para se encontrar com o outro. Desse modo, ele apresenta uma outra concepção de eu, cujo protótipo é encontrado em Abraão, o homem que saiu de sua casa, viveu a provisoriedade da vida e nunca mais retornou à sua terra.

A vocação abraâmica – “sai tua casa e vai para a terra que te vou indicar” –, que é comum a todos os seres humanos, é o caminho de humanização do próprio homem, pois – ao fazer a ex-periência de ser estrangeiro e peregrino e experimentar as durezas do mundo fora de si – o eu pode passar a ser mais compassivo, res-

22 Emmanuel LÉVINAS, Totalidade e infinito, 2011, p. 194.23 Emmanuel LÉVINAS, Ética e infinito, 2000, p. 80.

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ponsável e justo. Por isso, na concepção levinasiana é fundamental a evasão do ser, a excedência de si, para a formação de uma subje-tividade mais madura e humana.

Enquanto sabemos do famoso oráculo de Delfos: “conhece--te a ti mesmo”, isto é, volte-se para si e coloque-se na busca pela compreensão do próprio ser, a proposta de nosso filósofo é radical-mente oposta. Poderíamos dizer que é a seguinte, para evidenciar esta contraposição: “esquece-te a ti mesmo”, ou seja, perca-se de si para, verdadeiramente, voltar-se para o outro, o totalmente di-ferente.

Para Lévinas, só é possível sair do eu na presença do outro enquanto tal, através do encontro face a face e da epifania do rosto de outrem. Assim, “na ótica levinasiana, [...] a ética se traduz na responsabilidade do Eu pelo outro até a substituição, ou seja, até a conversão do Eu no para-o-outro, num movimento de total al-teridade”24.

Neste sentido, o eu só realiza fundamentalmente a missão inerente à sua própria humanidade quando consegue fazer esse movimento de voltar-se para o outro em uma atitude concreta de responsabilidade e justiça. É assim que o sujeito se humaniza: na relação com outrem não só se vive o autoconhecimento, como se o eu estivesse sempre voltado apenas para si mesmo, mas se aprende a respeitar as diferenças, a ser mais compassivo e a se responsabili-zar pelo mistério de cada vida humana.

A alteridade, dessa forma, pode ser o grande antídoto para a superação do individualismo e a ressignificação da importância das relações interpessoais. Não há autêntico eu sem uma verdadeira relação com o outro.

Diante de tudo isso, à diferença da compreensão aristotélica de que a filosofia primeira é a metafísica, fica claro que para nosso autor a base e o objetivo da filosofia é a ética, cujo fundamento primeiro é a consideração da alteridade.

Sendo assim, podemos perceber como a concepção de alte-

24 Carla Silene Cardoso Lisbôa Bernardo GOMES, Lévinas e o outro: a ética da alteridade como fundamento da justiça (on line), 2008, p. 68, dis-ponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp113166. pdf>, acesso em 28 de outubro de 2019.

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ridade influencia as relações interpessoais. Quando o outro é iden-tificado com o não-ser e compreendido como resto, sobra ou até como deformidade do ser; quando reduzido a um conceito, a um número – como ocorria nos campos de concentração – ou a uma face anônima, a alteridade basicamente legitima a violência contra aquele que é “menos” ou simplesmente não é.

Por outro lado, diante da manifestação do rosto do outro, que revela a infinitude de seu mistério e a incapacidade de o ser humano se apropriar dele ou abarcá-lo com o intelecto, surge a possibilidade de uma ética fundada na alteridade, que leva o eu a sair de si mesmo e a ser-para-o-outro, em uma atitude de serviço e doação ao próximo, acolhendo-o e realizando a paz (shalom) através da justiça.

Longe, portanto, da compreensão da violência como ação instintiva e natural do ser humano, há a possibilidade da não vio-lência. Por isso, a negação da alteridade não é um caminho inevi-tável, ao qual se deve se conformar, mas a partir da relação face a face e da epifania do infinito do outro é possível tornar ato essa potência para a não violência.

É a partir da responsabilidade pelo outro – não somente por aquilo que diz respeito estritamente a mim, mas também por aquilo que não fui eu que fiz, como afirma nosso filósofo25 – e do movimento concreto de respeito e cuidado para com sua alterida-de que ocorre a transformação do eu no para-o-outro e a violência é neutralizada. Assim, se compreende que, não havendo eu sem outro, todos estamos interrelacionados, habitamos uma mesma casa comum e há um destino planetário conjunto sendo construí-do no presente.

O encontro com outro coloca o ser humano na dinâmica do respeito e da responsabilidade pelo “diferente”. Assim, diante da manifestação da infinitude do rosto do outro e do mistério de sua existência, resta reconhecer que não há qualquer fundamento para os preconceitos, pois, para além de qualquer identificação estética ou visual, há uma dignidade que, preservando nossas singularida-des, nos coloca acima de tudo isso e nos torna todos iguais: somos

25 Cf. Emmanuel LÉVINAS, Ética e infinito, 2000, p. 87.

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seres humanos, e basta. Reconhecendo isso, haverá o comprome-timento ético, com base na alteridade, que torna ato a potência humana para a não violência.

Conclusão

No presente artigo, esforçamo-nos para compreender a in-fluência da concepção de alteridade nas relações interpessoais. Ob-jetivamos contribuir com uma reflexão que fosse pertinente aos nossos dias e pudesse mostrar que o cenário de exclusão, violência e intolerância não está fadado a se eternizar, mas pode ser mudado a partir de um comprometimento ético embasado na alteridade. Perceber que o outro não é simplesmente um alter ego, porém jus-tamente o que eu não sou, pode levar a construir relações não tão fundamentadas nas expectativas e projeções pessoais, mas a partir da exigente e bela diversidade em que cada um tem a possibilida-de de ser aquilo que é.

Para isso, iniciamos inserindo-nos no contexto grego antigo em que surge o questionamento acerca do diverso, isto é, do não--grego; contemplamos o princípio de identidade parmenídeo que deu início a inúmeras interpretações concernentes à alteridade, chegando até mesmo a concepções que legitimavam a violência ao diferente por se encontrar no campo do não-ser. Já Platão, percebe o não-ser não como o contrário do ser, mas o diverso: ele é, nesse sentido, a alteridade do ser!

Ainda na primeira seção, abordamos as tipologias de aproxi-mação ao outro segundo Françoise Mies. Sinteticamente são duas estas formas: aproximação como terceiro, ou seja, a abordagem do outro como objeto de estudo, pesquisa e investigação; e o encontro face a face, de onde emana para nós a possibilidade de acolher o rosto do outro, isto é, sua transcendência que não pode ser redu-zida a meros conceitos ou belos discursos, mas que é algo infinito e que, por isso, não pode ser sintetizado ou compreendido em sua totalidade.

Assim embasados, vimos que a filosofia da alteridade levina-siana não foi elaborada a partir de um esforço meramente especu-lativo e distante da realidade, mas surgiu de sua dolorosa, porém

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fecunda, experiência de cativeiro em campo de concentração na-zista. Dessa forma, Lévinas se debruça sobre a questão do outro, resgatando seu valor e sua importância, e faz uma incisiva crítica à ontologia do ocidente.

Para nosso filósofo, a ontologia conduziu o ser humano a pensar a realidade como se não estivesse inserido nela, tendo ple-nos poderes sobre ela. No entanto, para buscar conhecer a totali-dade da realidade, despoja-se os seres humanos de todas as suas in-dividualidades e, por conseguinte, de sua alteridade, reduzindo-os ao mesmo, a fim de colocá-los em um único plano e inferir uma sentença objetiva e universal acerca ser.

Para ele, essa ontologia totalizante pode se tornar a base de regimes totalitários, como o próprio nazismo, em que não há espaço para a diversidade, concebida como um perigo ou obstá-culo, o que culmina com a violência ao outro simplesmente por ser outro. Por outro lado, no encontro face a face, há a epifania do rosto de outrem. Não se vê apenas sua face – a identifica-ção visual e estética de alguém – mas a manifestação da sua diferença, das suas singularidades, daquilo que há no seu mais profundo, do infinito de sua transcendência. Nessa relação, o eu é impelido a sair de si mesmo e ser responsável pelo outro. Assim, surge a ética.

A proposta de Lévinas é a excedência do ser: o eu é chama-do a fazer um caminho exodal de saída do próprio ego para se en-contrar com outrem. Esta é a vocação do Eu abraâmico: “sai da tua casa e vai para a terra que te vou indicar”. Assim, é na direção do outro que o homem se descobre humano e percebe que seu desejo mais profundo não é material, mas o outro que lhe faz perceber que não está sozinho ou abandonado à existência e que o leva à transcendência, ao infinito. Dessa forma, fazendo esse encontro e acolhendo a epifania do rosto do outro, cuja primeira palavra é “tu não matarás”, o eu pode tornar ato a potência para a não violência e, desse modo, a alteridade se torna princípio ético.

Após todo esse caminho percorrido e tendo o conhecimento de que a violência se caracteriza sobretudo como a negação do outro em sua alteridade, podemos nos questionar: quais rostos em nossa sociedade estão sendo apagados em seu silencioso grito de

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socorro que os olhos e os ouvidos contemporâneos nem sempre conseguem perceber? Como se vive a alteridade no cotidiano da existência? Quais são os valores que norteiam nossas relações in-terpessoais?

Apesar de tanta pluralidade e diversidade na contempora-neidade, muitas pessoas ainda não têm a possibilidade de ser quem são: diariamente muitos rostos negros, indígenas e femininos, por exemplo, são apagados no silêncio de sua busca por uma vida dig-na, justa e igual. Quando se pauta as relações na dinâmica da alte-ridade, percebemos, através da epifania do rosto do outro, que não há fundamentação alguma para os preconceitos, pois, para além de qualquer aspecto físico, existe uma dignidade que nos torna todos iguais: somos todos seres humanos!

Portanto, em tempos de liquidez – usando uma expressão do sociólogo Zygmunt Bauman –, em que as relações são superficiais, utilitaristas e descartáveis, podemos reconhecer a necessidade de uma ética fundamentada na alteridade, na responsabilidade pelo rosto de outrem e que, dessa forma, mostre que é possível tornar ato a potência humana para a não violência. Uma ética, portan-to, que redescubra que é em direção ao outro que o ser humano se descobre e se faz humano! Assim, outrem não será mais visto como um concorrente, um inimigo ou um objeto, mas um irmão que revela a beleza e as exigências de não se estar sozinho no ca-minho da existência.

Referências

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GOMES, Carla Silene Cardoso Lisbôa Bernardo. Lévinas e o outro: a ética da alteridade como fundamento da justiça (on line), 2008. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp113166.pdf>. Acesso em 28 de outubro de 2019. (Dissertação de Mestrado em Direito - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).

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