a agenda cristalizada, o estado e o governo lula [1] · revista quadrimestral de serviço social....

24
Serviço Social & Sociedade. ISSN 0101-6628. Revista Quadrimestral de Serviço Social. São Paulo, Ano XXIV, nº 76, novembro 2003, p. 6-36. a agenda cristalizada, o Estado e o Governo Lula [1] Marco Aurélio Nogueira Resumo: O artigo procura explorar a hipótese de que a conduta moderada e cautelosa do Governo Lula, em seu período inicial, não respondeu a uma inflexão conservadora do Partido dos Trabalhadores ou a um seu afastamento dos horizontes de esquerda com que a legenda nasceu e se desenvolveu. Em sua primeira fase, o desempenho governamental foi afetado pelo fato de se ter iniciado no exato momento em que se evidenciava plenamente a opção do PT pelo “reformismo radical”, opção essa que transferiu para o governo as oscilações, dúvidas e incertezas inerentes à transição que se processava no partido. Ao mesmo tempo, o governo também não teve como se desvencilhar de certas determinações e de certos condicionamentos impostos pela realidade mesma em que se inseriu, acabando por ser, de algum modo, limitado por eles. A combinação e a interpenetração dessas duas vertentes atingiram em cheio a ação governamental, amplificando as dificuldades inerentes ao próprio quadro social que se objetivava governar. Palavras-chave: Estado, hegemonia, restrições democráticas, Governo Lula. Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República, em janeiro de 2003, generalizou-se a idéia de que se iniciava uma nova era no Brasil. Ainda que diversos analistas tenham se apressado em desfazer a impressão de que se estaria vivendo um momento de transição “forte”, no qual se acertariam as contas com o período anterior e se compensariam o que se considerava ser seus resultados mais problemáticos, não era difícil constatar que a sociedade experimentava a expectativa da mudança, embalada pela expressiva maioria de votos conquistada pelo candidato do Partido dos Trabalhadores nas eleições de outubro de 2002. A cerimônia de posse do novo presidente, porém, em que pese ter transcorrido em clima de justificável euforia e inédita adesão popular, anunciaria que os tempos seriam mais duros do que se esperava e que a mudança “forte” tão ansiada pela maioria da população deveria ser projetada com maior cuidado e num tempo mais dilatado.

Upload: vuongkhuong

Post on 08-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Serviço Social & Sociedade. ISSN 0101-6628. Revista Quadrimestral de Serviço Social. São Paulo, Ano XXIV, nº 76,

novembro 2003, p. 6-36.

a agenda cristalizada, o Estado e o

Governo Lula [1]

Marco Aurélio Nogueira

Resumo: O artigo procura explorar a hipótese de que a conduta

moderada e cautelosa do Governo Lula, em seu período inicial, não respondeu a uma inflexão conservadora do Partido dos Trabalhadores ou a um seu afastamento dos horizontes de esquerda com que a

legenda nasceu e se desenvolveu. Em sua primeira fase, o desempenho governamental foi afetado pelo fato de se ter iniciado no exato momento em que se evidenciava plenamente a opção do PT pelo “reformismo radical”, opção essa que transferiu para o governo as oscilações, dúvidas e incertezas inerentes à transição que se processava no partido. Ao mesmo tempo, o governo também não teve como se desvencilhar de certas determinações e de certos condicionamentos impostos pela realidade mesma em que se inseriu, acabando por ser, de algum modo, limitado por eles. A combinação e a interpenetração dessas duas vertentes atingiram em cheio a ação governamental, amplificando as dificuldades inerentes ao próprio quadro social que se objetivava governar.

Palavras-chave: Estado, hegemonia, restrições democráticas,

Governo Lula.

Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República, em janeiro de 2003, generalizou-se a idéia de que se iniciava uma nova era no Brasil. Ainda que diversos analistas tenham se apressado em desfazer a impressão de que se estaria vivendo um momento de transição “forte”, no qual se acertariam as contas com o período anterior e se compensariam o que se considerava ser seus resultados mais problemáticos, não era difícil constatar que a sociedade

experimentava a expectativa da mudança, embalada pela expressiva maioria de votos conquistada pelo candidato do Partido dos Trabalhadores nas eleições de outubro de 2002.

A cerimônia de posse do novo presidente, porém, em que pese ter transcorrido em clima de justificável euforia e inédita adesão popular, anunciaria que os tempos seriam mais duros do que se esperava e que a mudança “forte” tão ansiada pela maioria da população deveria ser projetada com maior cuidado e

num tempo mais dilatado.

O diagnóstico por ele apresentado ao Congresso Nacional irá reiterar muitas das ênfases com que Fernando Henrique Cardoso iniciou seu primeiro mandato, em 1995. O novo Presidente partirá do entendimento de que “a sociedade brasileira escolheu mudar e começou, ela mesma, a promover a mudança necessária” porque se viu diante do esgotamento de um modelo que, “em vez de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome”; porque se deparou com muitas “ameaças à soberania nacional” e com o “fracasso de uma cultura do individualismo, do egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das comunidades”. Porque, em suma, se viu diante do “impasse econômico, social e moral do País”. Em suas palavras, “a deterioração dos laços sociais no Brasil trouxe uma nuvem ameaçadora ao padrão tolerante da cultura nacional. Crimes hediondos, massacres e linchamentos crisparam o País e

fizeram do cotidiano, sobretudo nas grandes cidades, uma experiência próxima da guerra de todos contra todos”.

Seu governo se comprometia a resgatar aqueles “milhões de brasileiros, no campo e na cidade, nas zonas rurais mais desamparadas e nas periferias urbanas, que estavam sem ter o que comer”, sobrevivendo milagrosamente “abaixo da linha da pobreza, quando não morrem de miséria, mendigando um pedaço de pão”. E fixava como meta repor o Brasil no caminho do crescimento, mediante “um autêntico pacto social pelas mudanças e uma aliança que entrelace objetivamente o trabalho e o capital produtivo, geradores da riqueza fundamental da Nação”, e viabilize as reformas reclamadas pela sociedade: a reforma da Previdência, a reforma tributária, a reforma política e da legislação trabalhista, além da própria reforma agrária. (Brasil, Presidência da República, 2003).

Grosso modo, era a reposição da agenda com que a sociedade havia saído do

longo período de ditadura militar, em 1985.

Os primeiros seis meses do novo governo iriam confirmar os sinais emitidos discretamente na cerimônia de posse. O país não mergulharia numa onda impetuosa de mudanças e reformas, mas, antes, insistiria em seguir a mesma trilha aberta no início da década dos 1990. O próprio governo não pouparia esforços para temperar as expectativas sociais, seja procurando desarmar o

“pessimismo” dos mercados, seja procurando dosar e modelar a “otimismo” dos setores mais organizados da sociedade civil. Da composição de seu primeiro ministério – que colocaria, lado a lado, representantes das diferentes correntes do PT, empresários e banqueiros, técnicos e políticos, em um arco bastante flexível em termos ideológicos e partidários – à orientação prudente e conservadora seguida em termos de política econômica, reforma tributária e reforma da previdência, nada anunciaria uma aceleração dos tempos da mudança ou uma completa e radical alteração nos termos do jogo político-social

do país.

O presente texto explora a hipótese de que a conduta moderada e cautelosa do Governo Lula, ao menos em seu período inicial, não responde necessariamente a uma inflexão conservadora do Partido dos Trabalhadores ou a um seu afastamento dos horizontes de esquerda com que a legenda nasceu e se desenvolveu, como afirmam muitos analistas e inúmeros militantes da chamada

“esquerda petista”. Expressa bem mais, antes de tudo, um amadurecimento e uma concomitante atualização teórico-política do partido – algo que o levou de um posicionamento inicial (1982) marcado pela intransigência, pela retórica radicalizada e pela recusa doutrinária de pactos e alianças, a uma posição bem mais flexível e sofisticada, de nítida inflexão reformista, que logo passaria a ser chamada, pelos próprios dirigentes partidários, de “reformismo radical”. [2] Com base nesse posicionamento, o partido irá elaborar uma nova leitura da realidade brasileira, recompor seus esquemas de aliança e enveredar por um caminho

realista e pragmático, fato, aliás, que possibilitaria sua vitória categórica nas

eleições de 2002. O efeito desse movimento será sentido desde o início do Governo Lula.

Ao mesmo tempo, e talvez com peso ainda maior, a performance governamental também refletirá um conjunto de legados e constrangimentos derivados tanto do

passado imediato (a herança neoliberal da década de 1990) quanto da história brasileira, tanto do impacto mais tópico do jogo político-administrativo quanto da própria evolução interna do PT.

A hipótese aqui adotada, portanto, é de que o Governo Lula, em sua primeira fase, pagou um preço por ter se iniciado no exato momento em que se evidenciava plenamente a opção do PT pelo “reformismo radical”, fato esse que transferiu para o governo as oscilações, dúvidas e incertezas inerentes à transição que se processava no partido. Ainda que de modo não-imediato, o governo iria refletir o que se ocorria no âmbito partidário e não poderia contar com um partido firmemente posicionado a seu favor. Ao mesmo tempo, o governo também não teve como se desvencilhar de certas determinações e de certos condicionamentos impostos pela realidade mesma em que se inseriu, acabando por ser, de algum modo, limitado por eles. A combinação e a interpenetração dessas duas vertentes atingiram em cheio o desempenho

governamental, amplificando as dificuldades inerentes ao próprio quadro social que se objetivava governar.

Rápido Balanço Geral

O discurso de posse de Fernando Henrique Cardoso, em janeiro de 1995, tomou como base a idéia de que o Brasil não seria atrasado mas injusto: “Falta justiça social. É esse o grande desafio do Brasil neste final de século. Será este o objetivo número um do meu governo”. Seu compromisso seria o de convocar o país “para um grande mutirão nacional, unindo o governo e a sociedade, para varrer do mapa do Brasil a fome e a miséria”.

Não se tratava de um discurso meramente protocolar. FHC se deparava com um quadro desolador, de desníveis profundos e desigualdade escandalosa. Portador de um PIB poderoso – algo em torno de R$ 1,180 trilhão em 2001 –, e de uma economia vigorosa, o Brasil continuava a ser uma sociedade profundamente heterogênea, repleta de zonas de pobreza absoluta e exclusão. A renda per capita alcançava patamares médios, mas estava distribuída de modo absurdamente concentrado: ao passo que os 10% mais ricos da população se

apropriavam de cerca de 50% da renda, os 20% mais pobres ficavam com apenas 3%. A concentração de renda se combinava inevitavelmente com a concentração dos bens produtivos (imóveis, terras, empresas)m a ponto de que 1% da população detinha metade do estoque de riqueza do país.

Nos oito anos seguintes, o governo manteve protocolarmente seu compromisso inicial, mas não obteve sucesso em sua tradução prática. O generoso discurso de posse, de 1995, perderia progressivamente o vigor, em benefício de uma retórica pragmática fortemente concentrada na exibição do sucesso “fiscal” e econômico-financeiro do governo: a estabilidade da moeda, o combate à inflação, o alcance de superávits primários, a redução dos gastos públicos. No fundamental, o país chegaria à conclusão daquele longo período governamental mostrando os mesmos problemas e a mesma face desoladora.

Apesar do avanço registrado em termos do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e da elevação do PIB per capita (que atingiu US$ 7.625 em 2000), o país

permaneceu no grupo das nações com desenvolvimento humano médio, que

apresentam índices entre 0,500 e 0,799, sem maiores modificações na posição que ocupou durante a década dos 90. No início do período, apresentava um IDH de 0,713 e o índice de 0,757 obtido em 2000 representaria um ganho de apenas 6,2%. Os pequenos saltos observados na alfabetização de adultos e na esperança de vida ao nascer não foram suficientes para impulsionar as dimensões da longevidade e da educação, fundamentais no IDH. O índice brasileiro melhorou porque subiu a renda per capita ajustada pelo poder de compra, mas os efeitos disto sobre a qualidade de vida da população foram praticamente inexpressivos. O Relatório de 2002, ao contrário, mostra que aumentou a distância entre a renda e os indicadores sociais. Um PIB per capita alto convive com baixas taxas de alfabetização e expectativa de vida mais curta do que a média de países de renda equivalente. A renda, em suma, não se tem

traduzido em bem-estar, sinal evidente de que está excessivamente concentrada. Em decorrência, o IDH brasileiro é inferior ao de países com estrutura econômica mais simples e menor porte, como Argentina, Uruguai, Chile e Costa Rica. O Brasil tem a 103ª expectativa de vida do planeta, menor que a de países como as Filipinas, que têm metade de sua renda per capita. O número de brasileiros que sobrevivem com menos de US$ 1 por dia aumentou, passando de 9% em 1999 para 11,6% da população em 2001. (PNUD, 2002).

São números que anunciam um país que continua enredado numa crônica desigualdade de renda. Ainda que se deva admitir que o conjunto da população progrediu nos últimos trinta anos, o bem-estar alcança efetivamente apenas 20% dos brasileiros. Cerca de dois terços da população (mais de 100 milhões de pessoas) obtém uma renda mensal menor que US$ 150. Apenas 15 milhões de pessoas conseguem ganhar por mês mais que cinco salários mínimos (1 SM = R$ 240,00 = US$ 80, em setembro de 2003). Há quase 3 milhões de crianças entre

10 e 14 anos fora da escola, muitas das quais no mercado de trabalho. Se antes podíamos dizer que a pobreza estava “represada” em algumas regiões do país, hoje constatamos que ela se transfigurou, cresceu em direções novas e assumiu formas mais perversas, rompendo limites e fronteiras espaciais e ressurgindo (ou se alastrando) em áreas onde se imaginava banida.

Não se trata, evidentemente, de responsabilizar esta ou aquela gestão governamental. O problema da pobreza e da exclusão é histórico. Está associado a uma espécie de falência das elites nacionais, que foram incapazes de construir, ao longo do tempo, um país minimamente justo e equilibrado em termos sociais. Mas é um fato que o governo Fernando Henrique Cardoso, ao se estruturar sobre uma coalizão de centro-direita e fazer escolhas de natureza dominantemente adaptativa, ficou com poucas condições de enveredar por um caminho de efetivo combate à pobreza. Assumiu com muita rapidez, e sem maior distanciamento crítico, todas as propostas de ajuste neoliberal concebidas pelas agências

internacionais e pelo assim chamado “pensamento único”.

O governo FHC conseguiu controlar a inflação que se instalara no país, graças a um engenhoso plano de estabilização. Dados relativos à distribuição de renda no período que se segue ao Plano Real indicam que o término do chamado “imposto inflacionário” permitiu algumas melhorias de rendimento que beneficiaram a todos entre 1993 e 1995, com ganhos mais expressivos para os indivíduos na base da distribuição, “o que permitiu reduzir a incidência da pobreza do ponto de vista da renda de 44% para 34%” (Rocha, 2000). Alguns milhões de brasileiros teriam deixado de viver abaixo da linha de pobreza, ainda que não tenham deixado de ser pobres. O plano de estabilização, assim, possibilitou que o governo obtivesse apoios sociais generalizados, que numa primeira fase se estenderam das classes médias e populares ao grande capital internacional. Mas a política de estabilização, ao se sustentar na elevação dos juros, na abertura econômica e na sobrevalorização cambial, não foi capaz de se desdobrar num

programa consistente de desenvolvimento. Ao contrário, impôs pesadas perdas à indústria e à agricultura, desestimulou as exportações, desativou ou reduziu

cadeias produtivas e aumentou a presença estrangeira na economia nacional. Por extensão, deixou a economia mais vulnerável aos mercados globalizados e aumentou dramaticamente o desemprego. Entre 1994 e 1999, foram extintos 1,3 milhão de postos de trabalho para indivíduos de mais baixa escolaridade, que representavam cerca de ¼ da mão-de-obra presente nas maiores regiões metropolitanas do país (Rocha, 2000). O que a estabilização propiciou em termos de melhoria da renda das parcelas mais pobres, acabaria por ser problematizado pelo empobrecimento geral da população e pela precarização do trabalho.

Mesmo em termos de contenção dos preços, os resultados não foram nada excepcionais. A inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE, acumulou 100,27% entre janeiro de 1995 e dezembro de 2002. Se, por um lado, os preços praticados livremente pelo mercado cresceram no

mesmo período algo em torno de 70%, os preços administrados, dentre os quais estão as tarifas públicas, ultrapassaram em muito os parâmetros oficiais. Reflexo da política seguida no terreno das privatizações, os preços acompanhados pelo governo federal subiram cerca de 228%, com destaque para a gasolina (261,7%), o transporte coletivo, que nas sete maiores metrópoles avançou 274,8%, a energia elétrica domiciliar (262,1%), a telefonia, cujas tarifas acumularam reajustes de 509% (impossibilitando qualquer comemoração para o crescimento das linhas instaladas, que saltaram de 19 para 38 milhões), e o gás de botijão (563,1%). Num quadro de salários comprimidos e desemprego, não é difícil avaliar o impacto que tal evolução dos preços teve na vida nacional.

O período 1995-2002 também não registrou o estabelecimento de um padrão de política social claro e coerente, capaz de ao menos “compensar” os estragos produzidos pela reiteração da desigualdade de renda e pela alta dos preços. Procedeu-se como se a estabilização da moeda e o ajuste fiscal fossem por si só

suficientes para produzir melhorias sociais. Não se realizou qualquer esforço de redistribuição induzido pelo Estado, de modo a diminuir as desigualdades sociais e regionais. Em conseqüência, o governo federal não obteve um consenso sólido entre a massa trabalhadora e as classes subalternas, perdendo, além do mais, progressivamente, os apoios que arregimentara entre a classe média. Em que pese ter podido se beneficiar de um duplo mandato presidencial, o que lhe garantiu oito anos de poder, o governo Fernando Henrique não conseguiu organizar um novo pacto político geral ou estabelecer as bases de um diálogo nacional. Isolou-se da sociedade e dos grupos sociais mais mobilizados, diante dos quais não se mostrou preparado para empreender uma interlocução democrática e politicamente qualificada.

Dos compromissos e promessas com os quais, em 1994, Fernando Henrique Cardoso se elegeu para o primeiro mandato – desenvolvimento, justiça social, emprego, educação e segurança –, nenhum chegou a ser propriamente

cumprido. Ao lado da expansão da pobreza e da opção pela estabilidade em detrimento do crescimento econômico, sua presidência chegou ao fim com um estrondoso fracasso no terreno do combate à violência, convivendo com uma sociedade que parece ter regredido a estágios pré-hobbesianos de convivência, vazia de responsabilidades cívicas (Lahuerta, 2001). Além do mais, em seu derradeiro ano de governo (2002), assistiu ao aparecimento dos piores índices de desemprego dos últimos 20 anos, com a formação da segunda maior população de desempregados do mundo: 11,454 milhões de pessoas.

O projeto político com que se procurou governar o país encontrou sua pedra de toque na tese de que era preciso inserir o Brasil no mundo globalizado, visto como cenário categórico e não-opcional. A abertura comercial, a estabilização monetária, a redefinição das funções do Estado, a privatização, o modo de encarar os direitos e as políticas sociais, o ajuste nas contas públicas e a reforma administrativa tiveram como fundamentação e justificativa a idéia de que a

globalização era mais oportunidade que problema e somente poderia ser

aproveitada se o país se apresentasse em completa sintonia com o sistema econômico, a cultura e o modo de vida que imperavam no mundo.

As conseqüências dessa opção e desse entendimento foram essencialmente de três tipos principais.

(1) A sociedade foi inteiramente exposta ao mundo e passou a se submeter a ele, mediante a quebra ou o enfraquecimento de suas defesas (o Estado, em sentido lato). O período foi, antes de tudo, de desconstrução: não se tratou de construir um novo Estado, mas de remodelar com radicalidade o Estado existente, de modo a neutralizá-lo diante de um mundo que se via como evoluindo para uma situação “sem” Estados nacionais e com “pouco Estado”.

(2) Expôs-se intensivamente a sociedade e os indivíduos ao mercado, ao capital, à racionalidade mercantil, à concorrência, acentuando-se a competitividade e disseminando-se uma cultura do individualismo convertida praticamente em senso comum. Deste ponto de vista, os anos 1990 representaram o estabelecimento de uma hegemonia, de base liberista e conteúdo possessivo, privatista e abstratamente cosmopolita.

(3) O modelo de inserção seguido pressupôs a subalternização da economia do

país, sobretudo porque a despojou de sistemas de defesa e coordenação pública, ampliando simultaneamente a presença dos oligopólios globais. Não se teve qualquer projeto sustentado de desenvolvimento durante o período ou qualquer preocupação mais sistemática com a ativação de um sistema de ciência e tecnologia compatível com as necessidades do país, por exemplo.

Vistos em seu conjunto, porém, os anos 1990 não foram pura negatividade e retrocesso. O país, de certo modo, defrontou-se com suas insuficiências e com o

peso de seu passado. Houve um ganho incontestável de transparência. A própria desconstrução do Estado serviu para que se adquirisse maior consciência de um dos lados mais perversos da herança político-administrativa legada pelo processo nacional da revolução burguesa, que seguiu um curso dominantemente “passivo” e conservador. Refiro-me às faces integradas e justapostas do Estado provedor, do Estado interventor, do Estado autoritário e do Estado “irresponsável” -- em suma, de um Estado hipertrofiado, funcional àquela modalidade de revolução

burguesa mas oneroso demais para a sociedade, que não só se submeteu a ele como teve de suportar seu custo e os efeitos de sua ineficiência.

Por extensão, fixou-se com maior clareza a idéia da modernização administrativa, sobretudo em termos de renovação dos métodos de gestão. Em que pese ter sido limitado pela reiteração doutrinária do modelo da new public management [3], o esforço governamental no terreno da reforma administrativa possibilitou o estabelecimento de novos parâmetros para a gestão pública. A agenda gerencialista, ainda que ao preço de uma hipervalorização da administração empresarial e de uma entrega do Estado ao mercado, ajudou a que se criassem focos de incentivo para a atualização do modelo burocrático, o aumento dos controles sociais e a incorporação de mecanismos de participação e descentralização às políticas públicas. Neste movimento, uma certa cultura democrática-participacionista floresceu no setor público, particularmente em termos de gestão de políticas sociais, ajudando a que se tomasse maior consciência da relevância do protagonismo social.

Disso derivou uma nova idéia de cidadania e sociedade civil, apoiada na imagem de associações e indivíduos mais cooperativos que conflituosos, ou seja, que colaboram, empreendem e realizam. O voluntariado, por um lado, e a sociedade civil pensada como recurso gerencial (Nogueira, 2003), por outro, foram os principais trunfos conceituais com que se procurou ressignificar o campo teórico democrático, amplificando, complementando e glamourizando a recuperação positiva do mercado e o racionalismo econômico. Aliás, na sua tradução brasileira, o discurso da nova gerência pública insistirá bastante na necessidade

de convencer a audiência de que a proposta de reforma administrativa tinha um caráter eminentemente “técnico”, distanciava-se de qualquer polarização política e buscava apenas servir ao “bem comum”, à idéia de direitos republicanos. Quer dizer, por se definir como “neutra”, despojada de intenções ideológicas, a reforma seria apresentada como tendo um sentido eminentemente “progressista”, podendo ser aceita por qualquer posição política ou partidária. O discurso que a impulsionará, portanto, será levado a empreender um sério esforço para reter, assimilar e re-semantizar o léxico democrático. (Andrews & Kouzmin, 1998).

Durante os anos FHC, o Brasil consolidou e organizou institucionalmente seu compromisso com o regime democrático. Os ritos, rotinas e procedimentos da democracia prevaleceram e se estabilizaram, possibilitando a vigência de um

amplo regime de liberdades e direitos, tanto no plano partidário e sindical, quanto em termos de opinião. Não se edificou, porém, um sistema político efetivamente democrático, nem se avançou em termos de hábitos democráticos. Em boa medida, o eleitoral se superpôs ao político, comprimindo-o e roubando-lhe espaço. A democracia permaneceu mais formal que substantiva, cortada por instabilidades e ineficiências, carente de vínculos sociais e de instituições socialmente sedimentadas. Configurado pelo reformismo predominante, o sistema político evoluiu como uma democracia sem sociedade e sem Estado: não teve como dar origem a nenhum dinamismo superior, com o qual pudessem ser modificadas as estruturas de poder, as práticas políticas e as escolhas governamentais.

Os anos 1990 foram também um período de protestos e reações contra o reformismo predominante e as opções governamentais por ele patrocinadas. Mas as mudanças ocorridas na estrutura da sociedade e a forte hegemonia neoliberal

que se consolidou durante o período não favoreceram a ação oposicionista ou a contestação, sobretudo porque ajudaram a despolitizar os cidadãos. Abriu-se um fosso entre a movimentação social e as forças políticas, entre a inquietação social e a institucionalidade política.

Em que pese o fortalecimento de muitos movimentos sociais e a expansão eleitoral dos partidos de esquerda, particularmente do Partido dos Trabalhadores

(PT), avançou-se muito pouco em termos de acúmulo de forças para uma ruptura de poder a médio prazo. O sistema permaneceu sólido, alimentando-se do êxito relativo de seus próprios fundamentos e da “desorganização” do campo mesmo da política. A mídia e o marketing tornaram-se personagens decisivos da vida política e cultural, impulsionando ainda mais a espetacularização da democracia e fazendo com que a forma, a imagem, a “mensagem”, ficassem mais importantes que as identidades substantivas, os programas políticos, a reflexão crítica ou mesmo a contestação abrangente do sistema. A indignação

ética tomou o lugar da luta política organizada, num quadro de fragmentação de interesses e multiplicação de movimentos e organizações vazias de estratégia política. Com isso, ficaram fora do debate público os temas mais profundos, referidos à natureza da comunidade política estruturada no país, ao sentido do Estado, às relações entre governo e sociedade, ao padrão de vida e de relacionamento social. Organizando-se a partir da hegemonia neoliberal e em tom tecnicamente correto, o debate deixou-se levar pelos números, pelos temas econômicos e financeiros, pelas disputas periféricas, pela reiteração de posições. Ficou assim dificultado o desenho de um caminho claro e consistente, de uma rota a seguir.

Legados e Constrangimentos

As eleições gerais de 2002 coroaram este processo. Ao possibilitarem a chegada

do Partido dos Trabalhadores ao governo federal, expressaram uma clara

disposição social de experimentar novos caminhos. As urnas criaram uma nova realidade política no país, particularmente porque ampliaram a presença política potencial de amplos setores e classes sociais até então relativamente marginalizados. As esquerdas cresceram em todos os níveis e o PT adquiriu uma densidade inquestionável, a ponto de não só eleger o Presidente da República como também de se converter na maior bancada da Câmara Federal. Abriu-se no país a expectativa de que se colocaria em curso um processo de superações e rupturas, impelido por um projeto vigoroso o suficiente para imprimir outro padrão de governo e de reforma ao Estado e à sociedade brasileira.

A perspectiva de uma ruptura categórica ou de um reformismo radical impetuoso, porém, não teria como se afirmar: a profundidade da crise, a dimensão mesma da tragédia social brasileira, o padrão histórico de construção

do Estado, o legado dos anos 1990, os equilíbrios precários da economia e o estado imperfeito da cultura política nacional acabariam por encapsular a agenda, comprimir as opções governamentais e retirar ímpeto reformador dos sujeitos políticos, impondo-lhes um tempo mais longo e opções moderadas.

Teria havido assim, na passagem de um para outro ciclo governamental, a manifestação daquilo que alguns analistas costumam associar a uma path

dependency, na qual escolhas e estruturas derivadas de circunstâncias pregressas impõem-se aos atores, incentivando-os a reiterar uma trajetória estabelecida e convencendo-os de que haveria mais benefícios na continuidade que na ruptura. (Fernandes, 2002). Em uma outra chave interpretativa, estar-se-ia diante de um processo político em que os fatos se mostrariam mais fortes que os atores políticos, comprimindo suas margens de opção e impondo-lhes o gradualismo, ainda que não impedindo a mudança, ao estilo de uma “revolução sem revolução”, de uma revolução passiva (Gramsci, 2002; Vianna, 1997).

A política não vive sem paixão, engajamentos, combate, ardor ético, valores e idéias. Há nela um tanto de “fanatismo”, alguma intransigência por princípios, doutrinas e convicções, boa dose de voluntarismo e iniciativa, precisamente porque a política existe para que governantes e governados possam se afirmar perante os fatos, submetendo-os a si. Mas política sem pragmatismo e senso de realidade é como sonho numa noite de verão: acorda-se de manhã saciado de

fantasias e com o progredir das horas percebe-se que a vida segue seu rumo, impávida, modorrenta e repetitiva. A política tem muito de luta pelo controle dos recursos de poder (cargos, estruturas, votos, pessoas), e a disputa neste terreno nem sempre leva em consideração a dimensão ideológica. Além do mais, a ação política não se faz em condições ótimas, escolhidas livremente, mas depende de circunstâncias históricas bem determinadas, que em boa medida limitam as escolhas, ainda que também possibilitem que não se tenha de começar sempre do zero, como se nenhum acúmulo tivesse sido registrado.

Mais que com heranças e legados tópicos, deixados pela administração imediatamente anterior, toda operação política ou governamental depara-se com certos “constrangimentos sistêmicos” (Vianna, 2002) que precisam ser decifrados, assimilados e superados. Ainda que este seja um tema bastante examinado pelas ciências sociais contemporâneas, particularmente da ótica das “restrições” (constraints) orçamentárias, econômicas e políticas com que se

defrontariam os policy makers (Bresser-Pereira, 2002), não há como negar que ele continua aparecendo como uma importante porta de entrada para uma análise mais fina dos limites e das possibilidades de governos declaradamente reformadores.

No Brasil atual, tais “constrangimentos” ou “restrições” podem ser percebidos como dizendo respeito a um conjunto de eixos temáticos.

(1) Determinações e limites histórico-sociais. A realidade social limita, por

si mesma, a livre movimentação dos atores políticos. O sentido do seu vir-a-ser

histórico impõe um preço às subjetividades. Faz-se política e busca-se a transformação em condições historicamente determinadas. Em termos brasileiros, isso significa traduzir o padrão da revolução burguesa que se estruturou no país, pouco favorável a rupturas políticas categóricas ou a movimentos sociais impetuosos. De pacto em pacto, de transação em transação, construiu-se um país moderno, mas travado social e politicamente. Não se trata de extrair, deste modo de ver a história, a fatalidade de um processo político restrito às elites ou impotente para promover mudanças estruturais. Trata-se apenas de decifrar uma forma de se experimentar a mudança, mais propensa a “guerras de posição” que a “guerras de movimento”, mais a avanços moleculares que a irrupções catastróficas, para falar em termos de Gramsci.

O caso brasileiro tem sido analisado, por inúmeros estudiosos, como

expressando uma especificidade marcante, sobretudo quando comparado a modalidades mais “clássicas” de modernização. O país se transformou rápida e profundamente em termos estruturais, mas reiterou padrões políticos autoritários e padrões sociais injustos e excludentes. Não se teria modernizado em termos sócio-políticos e culturais tanto quanto se modernizou em termos econômico-sociais. Ainda que não se vá realizar, aqui, a discussão mais circunstanciada desta hipótese, parece ser possível associar a ela toda uma ampla literatura dedicada a surpreender a natureza compósita do Estado brasileiro, a coexistência, nesta sociedade, de tipos aparentemente inconciliáveis como o “malandro” e o “protestante” (Souza, 1999), de segmentos distintos de “americanistas” e “iberistas” (Vianna, 1997), “patrimonialistas” e “burocratas”. Do mesmo modo, pode-se vincular à hipótese toda a discussão a respeito do hibridismo no Brasil, visto tanto em sua versão cultural, na qual a “linguagem hierárquica” se mescla à “linguagem individualista”, de certo modo

condicionando-a (Soares, 1999), quanto em sua versão mais propriamente política e institucional, na qual o “formalismo poliárquico”, em si mesmo regulador e legislador, se assenta sobre uma sociedade plural essencialmente hobbesiana, marcada por uma dinâmica “pré-participatória” e “estatofóbica” (Santos, 1993). De uma ou outra maneira, a hibridização problematiza (ainda que não impeça) a governabilidade, a democracia, a participação política, a vida cívica e a cooperação social, elementos essenciais para qualquer projeto de mudança politicamente orientada. Ela colabora tanto para “a formação de poder e para a disseminação da destituição de autoridade (disempowerment) por toda a sociedade” (Soares, 1999: 233), quanto para a geração de uma complexa fonte de dificuldades governativas: o híbrido institucional “faz com que o governo governe muito, mas no vazio – um vazio de controle democrático, um vazio de expectativas legítimas, um vazio de respeito cívico. Nem por isto, todavia, o país é caótico ou ingovernável; apenas existem soberanias concorrentes e o governo é múltiplo” (Santos, 1993: 80).

Tal processo de modernização produziu um grave “desajuste” na estrutura social. Seu principal efeito foi a cristalização de uma grande e resistente zona de pobreza e exclusão, cuja reiteração prolongada deixou marcas em todos os setores do Estado e da sociedade.

Um governo de transição que se depara com uma situação social explosiva está sempre às voltas com o risco de ser por ela tragado. Pode se submeter a ela mediante modalidades deletérias de populismo ou cesarismo, com o que se posterga sine die qualquer movimento de superação ou qualquer correção de rota. Pode se paralisar diante dela, limitando-se a gerenciá-la, a impedir que evolua de modo ainda mais negativo ou ameace invadir e tomar conta de zonas sociais mais “saudáveis”. De um modo ou de outro, perdem-se os eventuais incentivos orgânicos vindos “de baixo”. Exposta ao tempo, a zona de pobreza e exclusão tende a se degradar politicamente, acabando por se converter num

fator de corrosão da cultura democrática e das instituições da democracia. No caso em que esses vetores decisivos da política – uma cultura consistente e boas

instituições – não preexistem, ou existem apenas precariamente, a situação social degradada impede seu aparecimento ou sua estabilização.

Desse ponto de vista, o legado dos anos 1990 foi bastante negativo. Não apenas porque os índices de bem-estar permaneceram baixos, mas também porque as

margens de pobreza e exclusão se ampliaram e ganharam complexidade, projetando-se no cenário convulsivo da globalização. A sociedade permaneceu desigual e irregular, recortada por múltiplos focos de miséria e injustiça, que certamente exponenciaram os fatores de tensão social e turbulência, com impactos evidentes na governança e na governabilidade.

Limites histórico-sociais derivam, também, do ambiente “externo”: a época, as relações exteriores, a ordem econômica mundial, o estágio tecnológico, os cenários culturais mais amplos. Os anos 1990 legaram, aos governantes, um quadro internacional particularmente restritivo, seja em termos das obrigações e imposições inerentes ao sistema de Estados, seja em termos de pressões dos mercados e dos circuitos financeiros, seja enfim em termos de conjuntura (a eventualidade de uma guerra, por exemplo). Também do ponto de vista político o contexto internacional seria adverso, já que marcado pelo refluxo e pelas sucessivas derrotas da esquerda, em todas as suas vertentes, até mesmo as

mais moderadas. (Coutinho, 2002). O processo da globalização, neste particular, amplificou os efeitos do internacional sobre o nacional, como uma vasta literatura tem procurado demonstrar nos últimos anos. Trata-se, portanto, de reconhecer de que modo as “lógicas de construção do macrosistema tecnofinanceiro”, ao atacar as fundações institucionais do Estado-nação brasileiro, “deixaram campo livre aos atores da racionalidade mercantil” (Mattelart, 2002: 391) e diminuíram os espaços de manobra da política democrática.

Um governo às voltas com um “cerco” composto pelos efeitos da globalização, por um lado, e da reiteração reflexiva da pobreza, por outro, fica certamente obrigado a operar de modo menos “racional” e “orgânico”, bem como a despender muitas energias para ganhar legitimidade. Refletirá em si mesmo – em suas políticas, em sua composição, em suas opções, em sua cadência – a natureza errática e irregular da situação histórico-social. Cai prisioneiro de um

paradoxo: ao passo que a globalização despoja o governo de um Estado e dificulta o desenvolvimento, a sociedade desigual o inflaciona de demandas e tensões.

(2) Peso e autonomia relativa da burocracia. Toda transição política ou governamental se faz tendo na base um aparato administrativo, uma cultura administrativa e um padrão de gestão pública, que podem ser mais ou menos favoráveis ao novo programa de governo, mas não têm como ser ignorados ou

simplesmente “desmontados”. Dependendo de seu peso específico e do modo como se constitui historicamente, o aparato administrativo pode condicionar unilateralmente a ação governamental ou impor a ela ritmos e problemas não propriamente “políticos”. Estamos, aqui, diante de uma ressonância do típico movimento de reprodução da burocracia, da tendência inerente a ela de escapar de controles impostos a partir “de fora”, isto é, pela política ou pelo social, fenômeno bastante analisado pela sociologia política de Weber. Do mesmo modo,

o funcionamento e as formas adquiridas pelo aparato estatal parecem incentivar essa tendência à autonomização (relativa), que, no limite, desdobra-se em descontrole. Como o Estado moderno – e no Brasil o caso não é seguramente distinto – é obrigado a se expandir e a se reorganizar internamente na medida mesma de sua evolução vis-à-vis a sociedade, ele acaba por ampliar suas políticas, seu raio de ação e suas agências operacionais, que tendem igualmente a se converter em novos focos de organização e poder. Como observou Luciano Martins, “há uma dinâmica inerente ao que chamamos de entidades

governamentais autônomas, qualquer que seja o regime político prevalecente,

para se destacarem do corpo da burocracia governamental stricto sensu e ganharem uma independência relativa que reforça a tendência para se constituírem em subpólos de poder” (Martins, 1985: 94).

No caso do Brasil, em particular, o modo como se construiu o Estado, no bojo da

revolução burguesa, acarretou uma hipertrofia da dimensão administrativa, reiterou o “patrimonialismo” tradicional, combinou-se com seguidas soluções autoritárias e, com o passar do tempo, modelou funcionalmente o elemento burocrático, que havia nascido com ímpeto modernizador e empreendedor. Dessa forma, a burocracia acabaria por evoluir de modo errático e acentuar mais seus componentes “corporativos” e auto-referenciados do que seus componentes racionalizadores e organizacionais. Tornou-se ainda mais difícil de ser governada e reformada.

O administrativo e o organizacional, portanto, também condicionam e limitam o político, por mais que estejam a ele subordinados. Os novos governos estão assim obrigados a “negociar os termos” de sua convivência com o aparato burocrático, sob pena de não conseguirem dirigi-lo, remodelá-lo ou adaptá-lo a seus planos e políticas. Nesse terreno, nenhuma reforma se faz no curto prazo ou mediante a obtenção de resultados imediatos.

Toda transição ou mudança de governo potencializa a tensão entre direção política e aparato administrativo. Nem sempre o dirigente político – o governante propriamente dito – dispõe dos recursos técnicos, políticos e subjetivos para imprimir novas orientações ao aparato administrativo que recebe de seus antecessores. Se tal aparato apresenta defeitos organizacionais graves, está marcado pela escassez de recursos humanos leais e tecnicamente preparados, pela prevalência de uma cultura corporativa ou refratária à mudança, e assim por diante, torna-se ainda menos manejável. O dirigente também pode ter dificuldades para organizar e comandar sua equipe de governo, ou para definir com clareza seu projeto de governo, com o que fica ainda mais distante do controle sobre administração. Pode, ainda, ser levado a concentrar em suas mãos (de seu círculo íntimo ou de seu partido) todos os cargos de chefia e direção do aparato administrativo, com o intuito de aumentar seu poder de comando e coordenação sobre a burocracia. Neste caso, o resultado pode ser um

“aparelhamento” da máquina administrativa, fato que retira conteúdo técnico e racionalidade da burocracia e, nessa medida, compromete a ação governamental. Vale aqui, por fim, a metáfora da “jaula de cristal” (Matus, 2000): o dirigente muitas vezes se vê enredado nas malhas do próprio círculo imediato que o cerca (o seu staff) ou é envolto pela dinâmica de seu partido, terminando por refrear seu ímpeto reformador e atuar mais como gestor de crises que como estadista.

(3) Condicionamentos e restrições do sistema político. O sistema político também condiciona a mudança e tende a modelá-la. As construções institucionais (leis, regimentos, constituições, valores) não são, deste ponto de vista, inocentes. Para o entendimento da transformação social, não é indiferente saber se um país é presidencialista ou parlamentarista, federativo ou unitário, republicano ou monarquista, tanto quanto é importante conhecer o marco jurídico e constitucional em que se vive e se governa. No Brasil, o sistema

presidencial evoluiu apoiado no protagonismo exacerbado do Poder Executivo – em tese, mais propenso a acelerações no ritmo das mudanças –, num padrão específico de federalismo, na fragmentação partidária e na prática reiterada da coalizão. Tal sistema, já chamado de “presidencialismo de coalizão” (Abranches, 1988), não só se combinou com um sistema partidário e eleitoral pouco criterioso, como também facilitou a reprodução das áreas de fisiologismo e “atraso” (clientelismo, patrimonialismo, autoritarismo), que invadem e comprimem o governar. Ou seja, a natureza mesma do sistema institucional

incentiva a instabilidade e dificulta a ação governamental.

A hipertrofia decisional do Executivo tornou-se, assim, inerente ao próprio processo histórico de construção do Estado. Isto significa que, em boa medida, a ativação reformadora depende essencialmente da iniciativa do governo propriamente dito. Conta-se pouco com o protagonismo parlamentar, isto é, com iniciativas do Congresso ou das bancadas partidárias. O sistema político tende a incentivar muito mais a tutela do Legislativo pelo Executivo que a autonomização congressual ou parlamentar. Com isso, o Congresso tende a ser afetado por uma espécie de “corporativismo” que o leva a agir de modo defensivo e reativo, quando não em função da defesa de suas prerrogativas ou de certas “vantagens” de seus integrantes. Em seus momentos de maior desprendimento e ativismo, o Congresso mostra-se como uma arena dedicada a bloquear ou reorganizar a agenda do Executivo, operação que, evidentemente, não pode ser desvalorizada.

Na ausência de maior agilidade, autonomia e criatividade do Legislativo, o processo político fica à espera das decisões e da agenda do Executivo. Se este eventualmente falha ou não mantém ativa sua pauta de propostas, o processo reformador estaciona. Do mesmo modo, quando o Executivo age, propõe e busca empreender reformas, esbarra invariavelmente no Legislativo, que não só exacerba sua função constitucional de controlar, fiscalizar e contrabalançar os atos governamentais, mas opera muitas vezes como fator de contenção, paralisia ou descaraterização.

(4) Restrições democráticas. O Governo Lula é fruto de um processo democrático de revezamento e transição. Seu agir está em boa medida condicionado pela forma jurídico-política. O respeito a mandatos, contratos, acordos e regras do jogo, assim como aos tempos específicos da democracia, à institucionalidade do rito democrático e aos compromissos com o Estado de direito, ao mesmo tempo em que reduz as margens de arbítrio e coerção, obriga

os atores políticos a seguirem determinadas velocidades e restringirem suas próprias escolhas. O oxigênio de um governo democraticamente eleito é a própria democracia, e esta lhe impõe uma cadência, um conjunto de procedimentos e um modo de agir, pensar, sentir e fazer. O tempo democrático é específico. A aceitação ativa de um caminho eleitoral para a mudança social implica uma convivência mais ou menos longa com o sistema que se deseja transformar.

A democracia, além do mais, contém um componente inevitável de vocalização e transparência: sua tendência é a de amplificar demandas, exacerbar conflitos, maximizar interesses e sobrecarregar agendas. Governar democraticamente é, em boa medida, pôr-se em relação dialógica com a sociedade e com os diversos atores do jogo político e social. O governo democrático está sempre “sobrecarregado”. E é tanto mais bem sucedido quanto mais se mostra capaz de processar demandas, não de se aliviar delas, quanto mais se mostra competente

para traduzir as demandas em resultados práticos concretos e força de legitimação. Desse ponto de vista, ele requer “mais” de tudo: tempo, densidade institucional, ação política, vida cívica, comunicação intersubjetiva (Habermas), conhecimento técnico, negociação. Por extensão, proíbe-se de usar a força física e agir de modo decisionista.

(5) Efeitos da tensão governo-partido. Deve-se ainda mencionar os constrangimentos intrínsecos ao próprio ator da transição: sua capacidade de agir rápida e unitariamente, sua experiência administrativa, sua habilidade para lidar com determinadas conjunturas, a educação política e a lealdade dos que o seguem ou apóiam. Aqui, pesa sobremaneira a organicidade do próprio ator, quer dizer, o quanto ele próprio se preparou para governar, o quanto se dedicou a formar quadros, a elaborar um programa de governo e a delinear um projeto de país, o quanto preparou seu eleitorado para entender as dificuldades e restrições que teria pela frente, e assim por diante. Ainda que o ponto não exclua

a consideração específica do caráter e das qualidades do líder (no caso, o

Presidente), ele se mostra particularmente interessante, para o caso brasileiro, quando se concentra no partido do governo, o Partido dos Trabalhadores.

Os governos são maiores que os partidos e não podem viver à sombra deles. Os vínculos que mantêm com os partidos não são apenas, nem sobretudo,

negatividade. Governos partidários tendem a ser mais coerentes e orgânicos, particularmente quando os partidos que lhes dão sustentação são programáticos, assentam-se em identidades históricas e conseguem manter padrões elevados de organização democrática e unidade interna. Soltos e desconectados de partidos, de suas bases e de seus compromissos históricos, os governos perdem substância e identidade, elementos particularmente decisivos quando se tem a reforma social como meta. Para governar sem reduzir o governo ao partido e sem confundir partido e

governo, os dirigentes partidários – que são, afinal, os que chegam efetivamente ao poder – costumam pôr em curso diversas operações dedicadas a estabilizar as relações entre as duas instâncias organizacionais. Dentre estas operações, destacam-se (a) as iniciativas voltadas para “institucionalizar” a presença visível do partido no aparato com que se governa, mediante uma adequada divisão de cargos e recursos de poder, e (b) os esforços para fazer isso sem desvirtuar as funções específicas do aparato administrativo estatal, sem hostilizar aliados externos e sem desconsiderar os embates internos ao próprio partido. Parte de seu empenho, portanto, objetiva fazer com que a “luta interna” não pressione em demasia as opções governamentais e não se converta em fator adicional de perturbação do desempenho governamental. Por outro lado, os dirigentes também se sentem impelidos a (a) ampliar e consolidar a maioria interna que governa o partido, para o que necessitam (b) desencadear ou retomar um amplo esforço de educação política interna, de modo a reavivar os circuitos de formação

de quadros, disseminar uma nova cultura política e reforçar as condições para que se obtenham lealdades consistentes. As situações concretas de governo, bem como o estágio organizacional dos partidos, levam os dirigentes a se dedicar mais a uma que a outra destas operações.

Dependendo de como tais operações são resolvidas, a tensão governo-partido estabiliza-se ou aumenta, interferindo em maior ou menor grau na dinâmica governamental.

Após ter atravessado sua primeira década e meia de vida fustigando o institucional em nome da exacerbação do social, contrapondo a afirmação de sua própria autonomia à inserção ativa na política de alianças com que se viabilizava a redemocratização, a cúpula do PT realizou um aggiornamento político a partir de 1995, visando levar o partido de uma fase concentrada no social para uma fase em que o institucional deveria jogar um peso proporcionalmente maior, num movimento que acenava com uma articulação mais consistente entre

democracia política e democracia social. Empenhou-se numa operação dedicada a adensar a legitimidade que vinha progressivamente conquistando. Na medida em que chegava a importantes governos no plano estadual e municipal, o partido foi-se convencendo da necessidade de valorizar o institucional em si mesmo como forma tanto de reforçar a democracia política quanto de vinculá-la à democracia social. Recuperou assim a idéia de que a competição eleitoral configurava um caminho sólido para a mudança social. Mais tarde, em 2001-2002, ao decidir jogar todas as fichas nas eleições presidenciais, completou e consolidou essa aproximação entre as suas opções históricas, as condições específicas do Brasil e a realidade do fazer política em sociedades complexas.

O cenário pós-eleitoral reiterou a necessidade de se constituir uma aliança democrática em prol da governabilidade e da organização de um pacto sócio-político que, preservando num primeiro momento as bases do modelo econômico vigente, criaria progressivamente as condições para a reforma social e a adoção

uma política de desenvolvimento sustentado. Não se teria um governo de

esquerda, mas um governo de centro-esquerda dirigido por um partido de esquerda. O PT ficaria, portanto, obrigado a se inventar a si próprio como partido: manter a governabilidade democrática do país sem perder a identidade, governar sem se descaracterizar como força reformadora, em suma, constituir-se plenamente como partido de esquerda disposto a governar o capitalismo e a criar condições para se ir além do capitalismo.

Tudo, em suma, desafiava a biografia e a trajetória política do partido.

O fato é que, quanto mais avançou nessa estratégia, mais o partido foi obrigado a fazer concessões e seguir escolhas bastante semelhantes ao que antes se rejeitava e combatia. Abriu-se diante dele o risco de enveredar por um novo tipo de “transformismo” (Gramsci), no qual uma opção “radical” volta a se encontrar com sua base inicial mais conservadora ou mergulha em uma trilha refratária ao “radicalismo” de antes. No caso do PT, isso poderia significar ou um retorno ao sindicalismo reformista de onde se partira ou uma conversão – da cúpula dirigente, antes de tudo -- à condição de mera “classe política”, represada no institucional, na governabilidade, com poucos vínculos sociais orgânicos e pouca substância reformadora. Uma eventual social-democratização do PT poderia conter, ainda que não necessariamente, uma inflexão desta natureza.

Seja como for, deve-se avaliar em que medida tal operação teve um desdobramento de tipo “orgânico”, isto é, se foi ou não acompanhada pelo conjunto do partido, por seus militantes, seguidores e aliados, se alcançou a “sociedade civil” petista ou restringiu-se ao “Estado” partidário. Como se sabe, nem sempre o que um núcleo estratégico vê e concebe é visto e entendido pelos demais. As bases partidárias não acompanham seus dirigentes em termos imediatos e precisam ser, também elas, “educadas”.

(6) A herança neoliberal. As escolhas governamentais feitas durante os anos 1990 implicaram a montagem de uma armadilha sutil. Em parte porque organizaram um consistente padrão sócio-cultural: uma hegemonia. Com isso, pôde-se manter devidamente separadas a dimensão social e a dimensão institucional, a democracia política e a democracia social, com o que se refrearam todas as tentativas de projetar a redemocratização do país para o terreno social ou para a fixação de um padrão mais agressivo (e sustentado) de

desenvolvimento. Depois, porque o neoliberalismo inerente às resoluções governamentais “duras” – quer dizer, em termos de política econômica, reforma do Estado e política social – produziu efeitos que se colaram às estruturas sociais e terminaram por comprimir a passagem de um ciclo a outro, condicionando qualquer esforço de mudança de rota. Os anos 1990 nos legaram fatos que se tornaram tirânicos, como se tivessem chegado a se “naturalizar”.

O reformismo seguido pelo Governo FHC não foi isento de conseqüências

práticas. Particularmente no que diz respeito a sua dimensão gerencial – consubstanciada no Plano Diretor da Reforma do Estado, de 1995 --, pode-se dizer que a reforma prolongou a situação de “desorganização” da máquina pública. Não tanto pelo que fez, mas pelos desdobramentos do que anunciou e pelo que deixou de fazer. Desativada em 1998, a reforma permaneceu incompleta e inacabada. [4]

Seu principal pressuposto – o de que o modelo burocrático estava esgotado e

deveria ser substituído por um modelo gerencial – não encontraria base empírica de sustentação e geraria desconfianças generalizadas. Em vez de se reconstruir a burocracia, optou-se por um esforço para acuá-la a partir de filosofias e procedimentos de mercado. Privilegiaram-se, assim, orientações e incentivos que deveriam, quando muito, ser tomados como elementos reformadores adicionais, deixando-se em plano secundário a recuperação das capacidades burocráticas ou mesmo a introdução, na burocracia, de elementos de vida democrática, com o

que se poderia levá-la a decidir de modo mais transparente, a reduzir a

arrogância dos técnicos e a se abrir para formas mais eficazes de controle social. O mau encaminhamento de um projeto reformador nestes dois planos – o da assimilação de certas indicações do mercado e o da incorporação de práticas democráticas -- repercute negativamente no interior da organização burocrática ou do sistema administrativo animado pela burocracia. De um lado, produz dessolidarização, quebra de vínculos e diluição do ethos organizacional; no serviço público, por exemplo, leva à minimização e ao menosprezo das especificidades do próprio servidor, com flagrantes efeitos em termos de desvalorização profissional e desmotivação. De outro lado, produz uma espécie de “inversão de expectativas” que desloca ou subordina o mérito, prolonga o tempo da deliberação e dificulta a implementação das decisões, graças à banalização das hierarquias e da autoridade. Em ambos os casos, acaba-se por

não considerar o importante papel que as “recompensas intangíveis” têm para que se consiga construir um serviço público profissional (Evans, 2003: 16).

O Governo FHC instrumentalizou a reforma. Ela lhe serviu sobretudo como recurso e escudo para a viabilização das medidas destinadas a estabilizar a economia e combater a inflação, dentre as quais a privatização e o ajuste fiscal ocupavam lugar de destaque. O ciclo reformador por ele impulsionado, porém não deixaria de produzir impactos no Estado brasileiro. O principal deles não foi administrativo em sentido estrito: é que com a concentração das energias reformadoras no ajuste fiscal e na política de privatizações, o Estado retrocedeu em termos de planejamento e capacidade estratégica. Não houve apenas transferência de patrimônio público para o mercado, mas também desnacionalização. Combinando-se com a política de estabilização seguida durante o período, teve seus efeitos deletérios amplificados. O desmonte do antigo padrão de crescimento assentado no tripé empresa estatal-empresa

multinacional-empresa nacional privada se fez de modo a realçar expressivamente o peso da grande propriedade estrangeira, que equaciona suas decisões de investimento de modo bem distinto das empresas locais, em razão de sua própria inserção global. Além disso, “o processo foi inerentemente concentrador, ampliando a presença dos oligopólios globais no Brasil” (Carneiro, 2002: 340). A privatização atingiu pesadamente o setor de infra-estrutura, complicando ainda mais o equacionamento da questão do desenvolvimento: “dadas a magnitude do setor e a importância que chegou a alcançar na participação do investimento, conclui-se que a privatização, qualquer que tenha sido seu efeito microeconômico, implicou uma perda de capacidade de coordenação por parte do Estado e de indução do investimento privado” (Carneiro, 2002: 356). Além do mais, promoveu forte elevação tarifária e maior concentração de renda.

O segundo impacto afetaria diretamente as capacidades e as formas de atuação

do governo. Os pressupostos e encaminhamentos da reforma gerencial não produziram efeitos positivos sobre o aparelho de Estado ou sobre os servidores públicos. Ao contrário – e independentemente das intenções iniciais com que Bresser-Pereira buscou implementar a reforma --, dela derivaram muito mais confusão, desânimo e desorganização. Quebrou-se ainda mais a lealdade dos servidores, submetidos que foram ou à pressão salarial ou à acusação de resistirem indevidamente à mudança pretendida. Com os percalços e a descontinuidade da reforma, agravou-se também a natureza compósita da administração pública brasileira, que viu seus elementos patrimonialistas e corporativos serem reforçados em defesa de sua natureza burocrática ainda não plenamente afirmada, ao mesmo tempo em que se reiterava a burocracia mediante o enxerto precário e doutrinário de uma proposição gerencial mal acabada. O esforço para contrapor a administração gerencial à administração burocrática acabou por se afirmar num terreno etéreo e nebuloso, a partir do qual não se podia vislumbrar nem as vantagens do gerencialismo nem os pecados mortais da burocracia. A “macrocefálica bifrontalidade” do Estado

brasileiro – expressão da existência de um “corpo estatal” composto por duas cabeças, uma racional-legal, outra de tipo patrimonial, que se comunicariam e se interpenetrariam funcionalmente, “em clima de recíproca competição e hostilidade” (Nogueira, 1998: 93) – assumiria então a forma de uma “trifrontalidade”, com uma camada gerencialista agregando-se agora às camadas patrimonialista e burocrática (Pinho, 1998).[5] Além do mais, adotou-se uma política salarial depressiva, que manteve os servidores sem correções salariais durante praticamente todo o período, com evidentes conseqüências em termos de organização profissional, motivação e qualidade dos serviços. Como decorrência disto tudo, os servidores viram-se destituídos de sua força associativa, perderam recursos organizacionais importantes e refluíram em movimentação. Por extensão, desgastaram-se as bases de sustentação

governamental entre os próprios servidores, com inegáveis impactos políticos e operacionais.

Falando de outra maneira: despojado de maior capacidade de coordenação estratégica, com um aparato organizacional cortado por orientações relativamente desencontradas e sem servidores motivados e bem qualificados, o Governo FHC não terá como articular sua política econômica com um projeto de desenvolvimento, nem como desenhar e implementar políticas sociais consistentes.[6] Deste ponto de vista, seu legado acabará por ajudar a que se produzisse, no país, uma sociedade “sem” Estado, com um espaço público desinstitucionalizado e poucas instâncias de mediação e articulação.

O político e o social

O efeito combinado desses legados e constrangimentos produziu um viés paralisante sobre o Governo Lula, forçando-o a “trocar” a formulação e a implementação de políticas pelo fortalecimento das iniciativas destinadas a mobilizar recursos (políticos, técnicos, organizacionais, financeiros) e a produzir legitimidade. O contexto geral não lhe seria particularmente favorável. Ao menos em seus primeiros meses de vida, o clima reinante na sociedade e particularmente nos mercados era de receio, incerteza e ansiedade, ao mesmo tempo em que a economia se arrastava na estagnação e a inflação ameaçava reaparecer. Era preciso desarmar a desconfiança internacional, por um lado, e entabular uma política de diálogo e entendimento ativo com os movimentos sociais, que não se mostravam dispostos a reduzir a “agressividade” diante de um governo que se propunha a agir com forte sintonia social. A própria correlação de forças não ajudava o governo e nem estimulava qualquer empreendimento reformador mais impetuoso.

O primeiro período do novo governo transcorreria, assim, em clima de tensão e dificuldades, o que, se não impediria o avanço de determinadas propostas reformadoras (como a da Previdência Social, por exemplo), acarretaria desgaste político e operacional ao Executivo. Problemas de unidade de ação e produtividade ministerial iriam se associar a fissuras na bancada parlamentar governista e nas bases partidárias. Processos de expulsão e enquadramento de deputados “radicais” ou “rebeldes” dariam impulso a movimentos de contestação e “resgate” da autenticidade perdida, quando não a iniciativas abertamente seccionistas. Em nome da necessidade que se teria de “pressionar” pela mudança de rota do governo, pela retração das tendências mais conformistas do partido, toda essa movimentação trará uma complicação adicional para o Governo Lula. Não por acaso, será rapidamente assimilada pela oposição de “centro” (PSDB incluído).

Acrescem-se a isso a resiliência, a elasticidade e a resistência da agenda brasileira, que se mantém estacionada em torno de dois grandes eixos, cuja

reposição sistemática indica bem a qualidade e os rumos da democracia que se pratica no país.

De um lado, estão os temas mais imediatamente sociais. Os brasileiros continuam a buscar um encontro entre a pujança industrial do país – consolidada

entre os anos 60 e 70, no bojo de um complexo processo iniciado nos anos 30 – e a distribuição da renda, entre a modernização capitalista e a inclusão das massas, entre o progresso econômico e o progresso social. Persistem sem saber como (nem quando) seus governos voltarão a praticar políticas de desenvolvimento econômico – que foram abandonadas nos anos 80 e 90, quando o país foi entregue a uma dura fase recessiva marcada por ajustes liberais e monetaristas – de modo a criar condições para a retomada do emprego e da renda, questão fundamental neste país que ainda hoje cresce a taxas

demográficas elevadas e que carrega consigo uma longa história de exclusões e injustiças sociais. Ao passo que o país caminha célere rumo à integração subordinada no mundo globalizado, diversas de suas chagas continuam abertas, seja no que diz respeito à questão social em seu todo, seja de modo mais localizado, como na questão da terra e da reforma agrária, onde os avanços anunciados não se mostram suficientes para atender à demanda reprimida ou para satisfazer a disposição reivindicativa de alguns imponentes movimentos sociais, como é o caso do MST. Em suma, continuam às voltas com o problema de eliminar a pobreza e a miséria que contaminam a paisagem brasileira e comprometem não só o desempenho governamental – não só a continuidade da modernização e do processo mesmo da democratização –, mas sobretudo o modo como os brasileiros se relacionam e convivem entre si.

Por outro lado, ora com destaque e barulho, ora mais discretamente, mantém-se viva a questão do Estado, tanto no que se refere ao aspecto sentido e

responsabilidades do Estado, quanto no que se refere ao aspecto caráter organizacional e dimensão do aparelho estatal. Ou seja, repõe-se tanto a questão de saber de que Estado precisamos e de como deve ser ele organizado, quanto a questão de saber a partir de que pacto político, em que ritmo e com base em qual perspectiva estruturaremos um novo Estado no país. Reitera-se assim a tendência a que os temas do Estado sejam pensados pela ótica do tamanho e do custo: pela ótica do “mal” que o Estado causaria ao mercado, à sociedade e à liberdade. Reconhece-se que há um problema no Estado, mas fica-se sempre entre a denúncia da natureza fiscal da crise do Estado e a especulação sobre um novo modelo “pós-burocrático” de organização do setor público, entre a reclamação contra o “tamanho descomunal” do Estado e a defesa da qualidade na prestação de serviços – entre, enfim, a proposição de programas de cortes, ajustes e privatizações e a defesa de alterações constitucionais destinadas a corrigir os “excessos” cometidos no passado quanto ao peso relativo das

atribuições estatais. Não se atinge o miolo do problema.

Ora, portanto, o discurso sobre a reforma se concentra na restrição das atividades e do tamanho do Estado (tendo em vista a obtenção de ganhos fiscais, ou redução de custos), ora privilegia a dimensão mais institucional da questão, com o foco sendo deslocado para o campo da governabilidade e da governança. Em ambos os casos, o tom é dado pela perspectiva técnica do governar e pelo suposto de que o Estado deve se submeter às imposições da época. A força deste modo de pensar é tão grande que chega mesmo a contaminar toda a cultura reformadora, que no seu todo passa a descartar o Estado e a institucionalidade política. Modifica-se apenas o lugar e o peso relativo dos termos: a rejeição do Estado não se faz mais apenas em nome do mercado, mas também em nome da cidadania e da “sociedade civil”.

Independentemente de se avaliar, aqui, a natureza e as contradições inerentes ao modo dominante de pensar o Estado – independentemente, também, de

analisar o quanto este pensamento impregnou o discurso do campo democrático

–, não é difícil constatar que ele, em boa medida, tem impedido que os dois grandes eixos da agenda nacional se integrem. Trata-se de algo geral, que perpassa os diferentes campos políticos e intelectuais e impossibilita a articulação das propostas de reforma social com uma opinião forte a respeito do Estado. Os governos, da sua parte, jamais explicam para que servirá de fato a reforma do Estado que acalentam, procedendo como se ela contivesse, em si mesma, uma virtude e um mérito inquestionáveis. A idéia de reforma do Estado subsume e cancela a reforma social, que é vista pela ótica do “custo” e do ônus à “eficiência racional” que se estaria perseguindo; as políticas sociais deveriam ser praticadas com moderação, para não turvar os sucessos econômicos e fiscais e para não congestionar em demasia o Estado. A inoperância na área social só não chega a ser mais aguda porque, afinal, alguma coisa sempre acaba por ser feita,

dados os equipamentos instalados, as obrigações e as iniciativas dos servidores e técnicos governamentais.

Essa dicotomia encontra-se com uma outra, extremamente relevante no discurso típico deste início de século – a que opõe o “econômico” ao “social”, ou melhor, a racionalidade e o critério técnico à paixão, ao emocional e ao “interesse”, a contenção séria ao desperdício irresponsável, e assim por diante. Neste registro, o “econômico” é convertido em terra do equilíbrio, da eficiência e da modernidade, ao passo que o “social” se reduz a espaço fora de controle, arcaico, tomado por interesses corporativos exacerbados. Com isso, submete-se a vida social (bem como a política) à economia, mediante a estruturação de um discurso que culmina, numa outra volta do parafuso, na valorização do mercado contra o Estado.

Como observou Renato Janine Ribeiro, a idéia de poder econômico dá sustentação à idéia de “sociedade”, que por sua vez é contraposta a “social”. A

“sociedade” saberia sempre o que quer, independentemente de orientações políticas ou regulações estatais, ao passo que o “social” persistiria como um eterno dependente, incapaz de agir para além de seus interesses ou sem a batuta de um governo ou de um líder populista. “O social diz respeito ao carente; a sociedade, ao eficiente”, reitera a dicotomia. “Com este discurso se transmite, implícita ou subliminarmente, a convicção de que a sociedade é ativa enquanto economia, e passiva enquanto vida social. Remetem-se à carência, à passividade, assuntos importantes como a saúde, a educação, a habitação, o transporte coletivo. Ao modo de tratá-los, confere-se o selo do fisiologismo e do clientelismo. Aos profissionais dessas áreas se paga mal e se põe sob suspeita”. (Ribeiro, 2000: 19-25).

Procede-se, assim, como se o “social” e o “político” fossem mundos separados, incomunicáveis. Quando muito, atribui-se ao político (ao Estado) a culpa pelas mazelas sociais, mas não se pensa o político como recurso para combatê-las.

Com isso, a agenda fica ela mesma com reduzidas chances de resolução, já que não se pode caminhar com êxito na luta contra a exclusão social sem que se pense o Estado, assim como não se pode reformar o Estado como se este fosse um personagem qualquer, solto no ar, um mero “agregado” de peças que poderiam ser dispostas, eliminadas ou formatadas livremente. Todo o campo do político – quer dizer, o campo onde se explicitam as condutas, as convicções, as regras e as instituições com as quais se organizam a convivência e a dominação, o governo e a oposição, o consenso e o conflito, a ordem e a liberdade, a autoridade e a democracia, a coerção e a hegemonia – acaba, assim, por ser desvalorizado.

Com isso, em pleno século XXI, o Brasil caminha de costas para o futuro, arrastando um incômodo fardo de problemas sociais que não se resolvem. Simultaneamente, seguimos em frente com um Estado que persiste como grande protagonista mas desagrada a todos, que não pode ser evitado mas é pouco

admirado, que se encontra em crise aberta mas não consegue ser efetivamente reformado.

Tal situação cria inúmeros desajustes e paralisias. Por um lado, os atores políticos ficam impotentes para examinar com rigor a questão do Estado ou

alcançar alguma idéia revigorada de pacto político ou projeto nacional. Os partidos políticos tendem a agir de modo errático, pouco produtivo, sem uma rota muito clara, pautados pelo calendário eleitoral, por aquilo que faz ou deixa de fazer o governo, pelas demandas e pressões dos movimentos sociais. Perdem identidade, protagonismo e capacidade de direção. Tornam-se subalternos, pouco relevantes. Os movimentos sociais, por sua vez, tendem a se descolar de partidos e instituições, a forjar uma “legalidade” e uma “institucionalidade” próprias, desinteressando-se de formular projetos de hegemonia, isto é, projetos

que contemplem toda a sociedade e se traduzam em respostas e perspectivas para os diferentes grupos sociais. A pressão social, assim, volatiliza-se ou produz poucos efeitos virtuosos: criam-se zonas de contestação e atrito com os governos, mas não campos de força hegemônicos. Por outro lado, os brasileiros tendem a ficar convencidos de que seus problemas sociais são imposições da “natureza das coisas”: da globalização, da revolução tecnológica, da má qualidade da classe política, dos defeitos congênitos do Estado. Tal convicção – que se disseminou no senso comum, mas é incorporada por muitos discursos sofisticados e referendada pela propaganda governamental – praticamente impede que os complicados problemas sociais sejam assimilados como problemas políticos, associados a opções e a decisões. A reiteração desta dicotomia entre o político e o social – e, por extensão, entre a economia e a vida social, o mercado e o Estado – dificulta a que se visualizem saídas razoáveis para o país. O governar se torna ainda mais desafiador e

nenhum reformismo tem como se completar. Rumo ao um novo Estado?

Em sociedades complexas, fragmentadas, cortadas por interesses que não se compõem com facilidade e pela simultaneidade de tempos históricos, a mudança dirigida depende de operações que requerem o pleno emprego do recurso democrático ao diálogo, à negociação, à articulação. Tais sociedades não têm como ser governadas sem amplos arcos políticos de sustentação e sem a experimentação de processos lentos, ainda que não necessariamente moderados, de mudança social. Nesses países, em que o passado se recria e prolonga, a continuidade funciona como uma espécie de molde da mudança. Com isso, o passado não se põe como pura contraposição, obstáculo a ser transposto por obra de um protagonismo irruptivo e heróico, dedicado a promover as rupturas e descontinuidades que complementariam a condenação

definitiva do que já passou. É assim com o Brasil. Tal modo de ver as coisas sugere uma valorização do momento estatal, político-institucional. Antes de tudo, porque o Estado (e suas instituições) se torna o locus principal dos arranjos, transações e entendimentos empreendidos ao longo do tempo, um depósito vivo do legado histórico acumulado, um fator de identificação e coesão nacional. Visto em sua dimensão ampla, o Estado se converte no grande parâmetro da contratação e da organização social; visto em sua dimensão mais restrita (como Poder Executivo, ou Governo), opera como o principal agente da mudança e da recomposição social. A mudança dirigida, intencional, não tem portanto como se processar se não trouxer consigo uma idéia de Estado ativo. Mas o Estado ativo pode se converter numa projeção do subsistema administrativo vocacionado para “colonizar o mundo-da-vida” (Habermas) se não vier acompanhado de uma forte ativação das bases da sociedade, mediante procedimentos cívicos e políticos (digamos, mediante o aumento da comunicabilidade intersubjetiva dos atores, para continuar falando em termos

habermasianos). A sorte dos governos reformadores, portanto, repousa necessariamente num equilíbrio e numa interação dinâmica entre Estado e sociedade civil. Hoje, do mesmo modo que a complexidade da agenda imediata do país impõe a constituição de amplas coalizões governantes e cancela a busca de caminhos unilaterais ou impetuosos, ela também exige a colocação em curso de um programa abrangente e agressivo de reformas. Isso significa que governos reformadores estão forçados a temperar a flexibilidade, o pragmatismo e tolerância próprias de uma política de coalizões com a ação firme e a clareza de propósitos próprias de um reformismo democrático mais radical. Há dificuldades enormes para que tal operação avance e se estabilize, a começar da profundidade da crise social e da inflação de demandas, fatores que tendem a

imprimir à ação governamental um elemento de urgência e rapidez nem sempre favorável ao planejamento e à racionalidade. A própria dinâmica política, por sua vez, cria incessantes zonas de atrito e competição. O sistema eleitoral e partidário ajuda pouco e a cultura política do país carece de densidade democrática e republicana. Nos últimos anos, além do mais, no Brasil, perdemos parte do que havíamos acumulado de energia frentista durante a resistência à ditadura militar. O próprio PT só recentemente passou a aceitar o valor universal das coalizões democráticas. Avançou firme nesta direção, mas pode-se imaginar que tal movimento tenha sido mais forte na cúpula que nas bases do partido, já que alterações em termos de cultura política costumam ser acompanhadas de dúvidas, tensões e resistências. Do mesmo modo, não se alcançou pedagogicamente o eleitorado, que acabou por ficar com dificuldades de aceitar o inevitável vai-e-vem governamental, o ritmo lento das deliberações do Poder Legislativo ou mesmo o ritmo errático das reformas.

A dificuldade deriva ainda da constatação de que a sociedade contemporânea, Brasil incluído, apresenta uma dinâmica político-cultural tomada pela ressignificação temática e conceitual. Parte expressiva do aparato categorial típico do processo histórico da democratização (tal como democracia, participação, reforma, desenvolvimento, justiça social) foi capturada pelo discurso conservador e por ele assimilada. Já não se sabe bem a que é que se refere quando se empregam estas expressões, que acabaram por ser sugadas pelos circuitos da reprodução midiática da hegemonia; já não se consegue estabelecer com facilidade contra quem se combate. Por fim, para complicar ainda mais o processo, esvaziou-se o campo das utopias, das apostas em determinados desenhos de futuro, no qual e com o qual seria mais fácil fixar proposições alternativas ao discurso do sistema.

Estamos diante de uma sociedade difícil de ser governada e, por extensão, difícil de ser reformada. A dificuldade vem do legado histórico e do legado mais

imediato dos anos 90, mas vem também do perfil de sociedade que se configurou ao longo do tempo: uma sociedade desconjuntada, desigual e caoticamente diferenciada, tendencialmente “pré-hobbesiana”. Uma sociedade que carece desesperadamente de alguém que a unifique, que lhe dê um sentido, a converta de novo em comunidade política. Que a “re-estatize”, digamos assim. Não por meio de intervenções econômicas do Estado, do uso da força estatal ou das razões do sistema administrativo, mas mediante a reposição dos pactos básicos de convivência.

A grande tarefa de um governo que se proponha a ser reformador, no Brasil, é pedagógica. Seu problema é construir uma nova hegemonia. Ele terá que “civilizar” a expectativa social inflacionada, persuadir os governados de que determinadas opções são as melhores, as mais corretas. Se a pressão social não for adequadamente assimilada, quer dizer, se não for politizada e organizada democraticamente, ela pode ou gerar fanatismos e messianizar o líder – o que

em princípio já seria um enorme problema –, ou produzir voluntarismos, raiva e frustração. Vale aqui a perspectiva de Maquiavel. O príncipe maquiaveliano é o

estadista que consegue absorver a paixão popular e organizá-la, fundi-la com sua própria paixão, com seu projeto de Estado, com aquilo que pretende realizar; ele potencializa e politiza as expectativas nacional-populares, em vez de se deixar soterrar por elas. Hoje, o príncipe não é mais apenas uma organização, um coletivo, um partido: é tudo isso e mais uma vasta rede social conectada em tempo real por poderosos dispositivos infocomunicacionais que operam como artífices de imaginários e “vontades coletivas”. O príncipe evidencia-se de modo muito mais complexo, mediante procedimentos políticos e intelectuais refinados, de longo prazo e não propriamente previsíveis. [7] Se quisermos especular de modo abertamente normativo, e estabelecer orientações de natureza “prática” para o futuro imediato, podemos concluir dizendo que tanto para o governo e o Estado, quanto para a sociedade civil, está

aberta uma fase repleta de exigências e requisitos.

O Governo Lula terá de agir maquiavelicamente: pensar em termos de Estado, de comunidade política, de projeto “nacional-popular”. Isso significa disseminar socialmente uma nova cultura política, que possibilite (a) um pensar crítico sobre o poder, o governo e a dominação; (b) uma madura consideração da especificidade ética da política; (c) a aceitação de que uma “política dos cidadãos” pode se sobrepor à “política dos políticos” e à “política dos técnicos”, direcionando-as e controlando-as (Nogueira, 2001); (d) um aumento da disposição de grupos e indivíduos para “sair de si”, pensar o outro e construir um projeto coletivo e popular de nação, uma espécie de “para nós” nacional-popular.

Nessa linha, tanto o governo e seu partido quanto os organismos da sociedade

civil precisarão implementar operações de pedagogia cidadã. Os problemas com que se defrontam os atores políticos e sociais também são de natureza cívica,

ético-política: a idéia mesma de pacto social, [8] acalentada desde os primeiros dias pelo governo, indica que falta, à sociedade, uma disposição dialógica superior, um “projeto nacional”, um rumo coletivo a seguir.

Em terceiro lugar, algum ganho de escala terá de ser obtido em termos de articulação, ou seja, de capacidade para superar maniqueísmos, dicotomias e falsas contraposições. Como evitar que o social e o institucional sejam concebidos como campos apartados, que uma diferença de interesses específicos

se generalize e se converta em rigidez e em bloqueio da interação comunicativa? Do mesmo modo, como reduzir a distância ou a oposição entre técnica e política, entre sistemas e “mundo-da-vida”, entre emancipação e legitimidade? É difícil imaginar avanços com a reiteração da tendência a que os técnicos prevaleçam na área dura da economia e os políticos respondam pela área social, ambos ao final se associando para “colonizar” os interesses sociais e domesticar a pressão social.

Essa inversão da relação entre técnica e política, que estamos pensando aqui em termos de governo, deve ser expandida para todos os demais campos. Ela é inerente ao conjunto da vida associativa. Num partido político, por exemplo, surge sob a forma de um atrito entre militantes que se especializam no aparelho e que controlam o partido porque controlam os diretórios e os regimentos, e militantes que se dedicam a elaborar a política e a cultura do partido, ou a divulgá-la e disseminá-la. A burocratização da vida política é uma possibilidade real, inscrita na lógica das coisas.

Poder-se-ia estender a idéia de modo a alcançar as separações entre democracia política e democracia social, democracia formal e democracia substantiva, ordem e liberdade, representação e participação, deliberação e decisão. Uma articulação do econômico com o político e o social é também um requisito imprescindível para que se consiga atacar os eixos estratégicos, inserindo o país na história mundial e melhorando sua economia interna, crescendo em termos econômicos e

sociais, políticos e culturais. A tirania do econômico sobre o político e o social não favorece nenhum movimento reformador.

Esse esforço para que se superem dicotomias e maniqueísmos implica ao menos duas coisas: (1) invenção e organização de uma institucionalidade democrática que expresse e alimente todas essas articulações e (2) crescimento maciço na formação de recursos humanos. Não só de recursos humanos governamentais, mas de recursos humanos em sentido lato. Para fazer com que crianças cresçam com cabeça cidadã, para que se disseminem e se expandam professores, escolas, conferências, debates, revistas, jornais, ou seja, para que se amplie a educação para a cidadania.

O Governo Lula detém o poder de Estado, mas não a hegemonia. Tem diante de si um sistema político adverso – seja porque não é maioria nele, seja porque não pode contar efetivamente com a capacidade sistêmica de responder às demandas de governabilidade e reforma – e uma sociedade “desorientada” em

termos ético-políticos. Após as eleições de 2002, não se abriu no país um cenário hegemônico novo: ele terá de ser construído.

Podendo governar, mas não podendo dirigir culturalmente, o governo será tentado a incrementar o uso dos recursos imediatos de poder e, com isso, correrá o risco de atrair para si toda a dinâmica política do país, funcionando como um agente de intermediação de interesses que procura se impor

categoricamente e abafar dissidências ou divergências em nome da aceleração de uma pauta reformadora nominalmente afinada com o consenso nacional. Dessa forma, correrá o risco não só de atropelar práticas, procedimentos e instituições democráticas (republicanas), como também de se sobrecarregar burocraticamente, inchando de modo mais ou menos artificial. Nesse caso, acabará por se chocar com a própria base social que o elegeu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Abranches, Sérgio. (1988). Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados - Revista de Ciências Sociais, vol. 31, nº 1, p. 5-34.

Abrucio, Fernando & Loureiro, Maria Rita (orgs.). (2002). O Estado numa Era de Reformas: Os Anos FHC. Brasília: MP/SEGES. (Disponível em http://www.gestaopublica.gov.br/).

Andrews, Christina & Kouzmin, A. (1998). O discurso da nova administração pública. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, (45): 92-121.

Brasil, Presidência da República (1995). Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília: Câmara da Reforma do Estado.

Brasil, Presidência da República (2003). Discurso do senhor presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na sessão de posse, no Congresso Nacional.

Brasília, 1 de janeiro de 2003.

Bresser-Pereira, Luiz Carlos. (1998). A reforma do Estado nos anos 90: Lógica e mecanismos de controle. Lua Nova - Revista de Cultura e Política, (45): 49-91.

--------. (2002). La Restricción Económica y la Democrática. Paper apresentado no VII Congresso do Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo – CLAD. Lisboa, Portugal, Outubro.

Carneiro, Ricardo. (2002). Desenvolvimento em crise. A economia brasileira no último quarto do século XX. São Paulo: Editora UNESP. Castellina, Luciana. L’egemonia nella società dell’informazione. In Guido Liguori & Giorgio Baratta (org.). Gramsci da un secolo all’altro. Roma, Editori Riuniti, p. 171-187. Coutinho, Carlos Nelson. (2002). O Governo Lula ou o estreito fio da navalha. In Revista Eletrônica Gramsci e o Brasil (http://www.gramsci.org/arquiv244.htm).

Evans, Peter. (2003). El hibridismo como estrategia administrativa: combinando la capacidad burocrática con las señales de mercado y la democracia deliberativa. Revista del CLAD Reforma y Democracia, nº 25, Caracas. Fernandes, Antonio Sérgio A. (2002). Path Dependency e os Estudos Históricos Comparados. BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 53, p. 79-103. Fleury, Sonia. (2001). Reforma del Estado. RAP-Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, nº 35, set/out, p. 7-48. Gaetani, Francisco. (2000). La intrigante reforma administrativa brasileña. Revista del CLAD Reforma y Democracia. Caracas, nº 16. Gramsci, Antonio. (2002). Cadernos do Cárcere. Volume 5: O Risorgimento. Notas sobre a história da Itália. Edição Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio

Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Ianni, Octavio. (2001). O Príncipe Eletrônico. Cuestiones Constitucionales, n° 4, enero-junio. (Disponível em http://www.fronteiravirtual.com.br/art024.pdf). Lahuerta, Milton. (2001). A democracia difícil: violência e irresponsabilidade cívica. Estudos de Sociologia, Ano 6, nº 10, p. 35-50. Martins, Humberto. (2002). Reforma do Estado e Coordenação Governamental: As trajetórias das políticas de gestão pública na Era FHC. In Abrucio & Loureiro, cit., p. 209-280. Martins, Luciano. (1985). Estado Capitalista e Burocracia no Brasil pós-64. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Mattelart, Armand. (2002). História da Utopia Planetária. Da cidade profética à sociedade global. Porto Alegre: Editora Sulina. Matus, Carlos. (2000). O líder sem Estado-maior. São Paulo: Edições Fundap. Moraes, Denis de (org.). (2003). Por uma outra comunicação. Mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro, Record. Nogueira, Marco Aurélio. (1998), As possibilidades da política: idéias para a reforma democrática do Estado. São Paulo: Paz e Terra. --------. (2001). Em Defesa da Política. São Paulo: Editora Senac. --------. (2003). Sociedade civil, entre o político-estatal e o universo gerencial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 18, nº 52, p. 185-202. Pinho, José Antonio G. (1998). Reforma do aparelho do Estado: limites do gerencialismo frente ao patrimonialismo. Organizações e Sociedade, 5 (12): 59-

79, mar/ago. PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. (2002). Relatório do Desenvolvimento Humano 2002. Aprofundar a democracia num mundo fragmentado.

Rezende, Flávio C. (2002). Entre mudança institucional e ajuste fiscal: por que as reformas administrativas falham? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, nº 50.

Ribeiro, Renato Janine. (2000). A sociedade contra o social. O alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.

Rocha, Sonia. (2000). Pobreza e desigualdade no Brasil: o esgotamento dos efeitos redistributivos do Plano Real. Rio de Janeiro: IPEA, abril.

Santos, Wanderley Guilherme. (1993). Fronteiras do Estado mínimo. Indicações

sobre o híbrido institucional brasileiro. In Santos, W.G. (1993), Razões da desordem. Segunda edição. Rio de Janeiro: Rocco.

Soares, Luiz Eduardo. (1999). A duplicidade da cultura brasileira. In Souza, (org.)(1999), cit.

Souza, Jessé (org.). (1999). O malandro e o protestante. A tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Editora Universidade de Brasília.

Vianna, Luiz Werneck. (1997). A revolução passiva. Iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan.

--------. (2002). Democracia e constrangimentos sistêmicos. In Revista Eletrônica Gramsci e o Brasil (http://www.gramsci.org/arquiv243.htm).

[1] A primeira versão desse texto foi elaborada como roteiro da conferência “Estado e sociedade civil no

Governo Lula”, proferida no Conselho Federal de Serviço Social, em Brasília, no final de novembro de 2002. [2] Cf. o artigo do presidente nacional do PT, José Genoíno, “A esquerda e as reformas”, publicado em O

Estado de S. Paulo, 7/6/2003. [3] A “nova gerência pública” fixou-se mundialmente, entre as décadas de 1980 e 1990, como um novo

paradigma no terreno da gestão pública. Em boa medida, representou a tradução do “pensamento único” em

termos imediatamente administrativos. De modo simplificado, sua hipótese principal direciona-se para uma

forte valorização dos mecanismos de mercado, que seriam mais eficientes para racionalizar procedimentos,

organizar atividades e controlar grupos de interesses, burocratas e políticos gastadores. O mercado, afinal,

seria o espaço de convergência da iniciativa e dos projetos individuais, por um lado, e do equilíbrio social, por

outro, graças à indução virtuosa da concorrência e da racionalidade utilitarista. Em termos mais abstratos, a

new public management situa-se numa linha bem próxima das formulações da teoria da escolha pública, ligada

ao racionalismo econômico da escola de James Buchanan. A respeito, ver Andrews & Kouzmin, 1998. [4] Para uma análise dos pressupostos, da evolução e dos efeitos da reforma gerencial desse período, remeto a

Bresser-Pereira, 1998; Andrews & Kouzmin, 1998; Gaetani, 2000; Fleury, 2001; Rezende, 2002; Abrucio &

Loureiro, 2002. [5] Seria interessante complementar e confrontar esta visão da bi ou da tridimensionalidade do Estado

brasileiro com a idéia do “hibridismo como estratégia administrativa” (Evans, 2003), segundo a qual uma

efetiva administração pública, especialmente quando o desenvolvimento é o objetivo principal, requer uma

“integração sinérgica” entre os três modos básicos de controle utilizados ao longo da modernidade para moldar

o aparato estatal: o modo burocrático clássico, os mecanismos democratizantes vinculados à cidadania e os

controles associados ao mercado, de tipo gerencialista. [6] Sobre os problemas de coordenação e fragmentação na gestão de políticas públicas e na ação ministerial

durante os dois governos FHC, ver Martins, 2002. Para um balanço abrangente do período, ver Abrucio &

Loureiro (2002). [7] Sobre as novas dimensões do processo de construção de hegemonias e a configuração de um “príncipe

eletrônico”, ver Ianni, 2001, e Castellina, 1999, bem como os artigos reunidos em Moraes, 2003. [8] “Para repor o Brasil no caminho do crescimento, que gere os postos de trabalho tão necessários,

carecemos de um autêntico pacto social pela mudança e de uma aliança que entrelace objetivamente o trabalho

e o capital produtivo, geradores da riqueza fundamental da Nação, de modo a que o Brasil supere a estagnação

atual e para que o País volte a navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social”. Discurso de

posse do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, 1 de janeiro de 2003, Brasil, Presidência da República (2003).

Edit this page (if you have permission) | Google Docs -- Web word processing, presentations and spreadsheets.