a administração particular

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Copyright @ 1994 by John Manuel Monteiro Capa: Ettore Bottini sobre a litografia A dança dos índios puris. in Viagem pelo Brasil, 1817-1820 de Spix e Martius Preparação Márcia Copola índice remissivo: Otacílio F. Nunes Jr. Revisão: Ana Maria Barbosa Carlos Alberto Inada Dâdos lntemacionâis de Catalogação na Publicação (cp) (Câmm Bruileira do Lìvro, sp, Brasil) Monteirc, JohrÌ MmueÌ Negrcs da bm : índios e bandeimtes origens de São Paulo / John Müueì Monteiro. - São Paulo: Compmhia das Letras, 1994. Biblìognfia. rsBN 978-85-7164 394-9 l Bmdeimntes e semnisas - Bruil 2. Brasil - História - Enúads e badeìru 3. Escnvìdão Bmsil 4. Índios da América do Sul , Bruil - Condições soiais 5. São Paulo (Esrado) - História 6. Tnbalho indígenâ r. Título. 94-2280 cDD 980.5 índice paa catálogo sistemático: l Bmsil : Índios : Escmvidão : Polírica indig€nista ponuguesa História 980 5 2. Índios : Escmvidão : Política indigenisa poduguesa : B6il História 980.5 2013 Todos os direitos desta edição reservados à EDÌTORA SCHWARCZ S.A. Rua Bandeira Paulista, 7O2, cj. 32 04532-002 - São Paulo - sp Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br

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  • Copyright @ 1994 by John Manuel MonteiroCapa:

    Ettore Bottinisobre a litografia

    A dana dos ndios puris.in Viagem pelo Brasil, 1817-1820

    de Spix e MartiusPreparao

    Mrcia Copolandice remissivo:

    Otaclio F. Nunes Jr.Reviso:

    Ana Maria BarbosaCarlos Alberto Inada

    Ddos lntemacionis de Catalogao na Publicao (cp)(Cmm Bruileira do Lvro, sp, Brasil)

    Monteirc, Johr MmueNegrcs da bm : ndios e bandeimtes n origens de

    So Paulo / John Mue Monteiro. -

    So Paulo:Compmhia das Letras, 1994.

    Biblognfia.rsBN 978-85-7164 394-9

    l Bmdeimntes e semnisas - Bruil 2. Brasil - Histria- Enads e baderu 3. Escnvdo Bmsil 4. ndios daAmrica do Sul , Bruil - Condies soiais 5. So Paulo(Esrado)

    - Histria 6. Tnbalho indgen r. Ttulo.

    94-2280 cDD 980.5

    ndice paa catlogo sistemtico:l Bmsil : ndios : Escmvido : Polrica indignista ponuguesa

    Histria 980 52. ndios : Escmvido : Poltica indigenisa poduguesa : B6il

    Histria 980.5

    2013

    Todos os direitos desta edio reservados EDTORA SCHWARCZ S.A.

    Rua Bandeira Paulista, 7O2, cj. 3204532-002

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  • 4A ADMINISTRAO

    PARTICULAR

    "No Brasil", observou frei Gaspar da Madre de Deus, ..onde atodos se dava de graa mais terra do que lhes era necessrio e quantaos moradores pediam, ningum teria necessidade de tuur* preaio,alheios, obrigando-se soluo dos foros anuais." por esse otiuo,segundo o frei, "neste Estado vive [em] suma indigncia qdem nnegocia ou carece de escravos, e o mais que, parialgum ser rico,no basta possuir muita escravatura, aqual nenhumaionveninciafaz a seus senhores, se stes so pouco aboriosos e no f-eitorizampessoalmente aos ditos seus escravos,'.1

    Terras em abundncia, necessidade de escravos: esta frmula,sem dvida, muito tinha a ver com a formao da sociedade coloniaibrasileira. contudo, no chega a explicar d modo satisfatrio a evGluo, dinmica e viabilidade econmica de uma sociedade escravis-ta. Afinal de contas, importante lembrar que a gnese da escravidono Brasil

    -

    tanto indgena quanto african _ encontrava_se na arti_culao de um sistema colonial que buscava criar excedentes agrc*las e extrativistas, transformados em riquezacomercial,

    "

    up.op-_r"deles. De qualquer modo, no se pode menospreza o comentrio defrei Gaspar, pois, alm de configurar uma rlao de produao, a :escrqvido refletia, tambm, uma mentalidade bastante disseminada,

    ,

    16ora, m muiros sentis, a revelia oos itames da economia doilniico. Com cefteza, em todos os cantos d;till il""*l,;vid tornou-se o marco principar pelo qual se media a sociedadecomoumtodo.2

    Ao discutir-se a escravido na sua verso paulista, contudo,apresenta-se o problema adicional de explicar por que e como a es_cravido indgena se desenvolveu como a form de iroduo predo_minante. Tal problemtica leva, inevitavelmente, a uma comparaopelo menos implcita com a escravido negra no Brasil, alis^meordocumentada e estudada pelos especialistur. D" *un"ira geral, tm_seenfocado as profundas diferenas culturais entre ndi africanos.

    129

  • deixando-se de lado seu aspecto omum:.a escravidgi A partir des-taperspectil as estruturas qu. rnarcutu* a sociedde colonial pau-lista no parecem to distantes da sua contrapartida nas zonasaucareiras.

    Durante o sculo xvII em So Paulo, conforme vimos nos ca-ptulos anteriores, a escravido indgena desenvolveu-se a partir dosmesmos princpios de explorao econmica que a escravido negrano litoral. Entretanto, em vista das restries morais e legais ao cati-veiro dos ndios, os paulistas desde cedo procuraram

    -

    com maiorinsistncia que sua contrapartida baiana ou pernambucana

    -

    racio-nalizar e justificar o domnio sobre seus cativos. Fundamentando-seem argumentos bastante elaborados, os paulistas passaram a reivin-dicar no direito aquilo que j exerciam de fato: o controle absolutosobre o trabalho e a pessoa indgena. Porm o percurso no foi na-da fcil, pois, alm de enfrentar a dura oposio dos jesutas, queacabaram expulsos da capitania, foi tambm necessrio desenvolversucessivas campanhas diplomticas junto Coroa para garantir a

    .

    preservao de uma forma muito particular de escravido.

    A ELABORAO DE UMA MENTALIDADE ESCRAVISTA

    Desde os primrdios da colonizao portuguesa, o desenvolvi-mento da escravido indgena enquanto instituio minimamente es-

    I tvel foi limitado por diversos obstculos. A resistncia qb-$ige4gi dos ndios do planalto, a oposio persistente dos jesutas, a posi-.o ambgua da Coroa quanto questo indgena: todos fatores quedificultavam o acesso dos colonos mo-de-obra indgena. Aos pou-cos e de forma meticulosa, os colonos enfrentaram e superaram es-tes empecilhos, articulando paulatinamente um eaborado sist_gry4{e3roduo calcado na servido indgena. Ainda no sculo xvI,derrubou-se o primeiro obstculo, com a dizimao da populaotupiniquim e o afastamento dos Guaian e guarulhos. J a segundamuralha cairia na primeira metade do sculo xvII, quando os inte-resses escravistas acabaram prevalecendo sobre os dos jesutas, cul-minando com a tumultuada expulso dos padres em 1640. Apenaso terceiro obstculo nunca chegou a ser completamente vencido pe-los paulistas, uma vez que a Coroa manteve uma postura de certomodo inconstante na formulao e execuo de sua poltica indige-

    t30

  • rista. Todavia, mesmo neste campo, atravs de uma bem constru-Ja luta poltica ejur{!ca, os paulistas conseguiram esboar os con-tornos institucionais capazes de fomentar e sustentar a escravidorndgena.

    Todos estes eementos de conflito sempre estiveram presentesna sociedade paulista, ganhando corpo a partir dos ltimos anos do;culo xvl, especialmente medida que aumentava o fluxo de no-ras levas de cativos para o planalto. Disputava-se, fundamentalmente,o destino dos ndios egressos do serto. Para os jesutas, todos osrndios "descidos" deveriam ser integrados aos aldeamentos, sendoposteriormente repartidos entre os colonos para servios peridicos.Por outro lado, os colonos que, afinal de contas, introduziam a vas-ta maioria dos ndios por conta prpria, buscavam apropriar-se dodireito de administrao direta desses ndios, lanando mo do po-der da Cmara Municipal de So Paulo para atingir seus objetivos.

    Inicialmente, contudo, a Cmara permaneceu indecisa sobre odestino dos ndios trazidos do interior. Assim, por exemplo, em 1587,quando a expedio de Domingos Lus se apresentou na vila comum nmero considervel de cativos tupin, a Cmara achou melhorencaminhar os ndios para um aldeamento, apesar dos enrgicos pro-testos dos colonos. A deciso respaldava-se no nos argumentos dosinteressados, mas na questo da defesa da Colnia, uma vez que avila se encontrava assediada por outros grupos resistentes conquistae escravizao.a Apenas a partir da decada de 1590 esta posturamudou, quando o conselho passou a adotar uma posio explicita-mente pr-colono na questo indgena, colocando-se em oposioao projeto dos aldeamentos e, por extenso, aos prprios jesutas.

    Um fator importante na radicalizao da questo indgena emSo Paulo foi a maior intromisso da Coroa e de seus prepostos nacapitania. A chegada, em 1592, de um novo capito-mor para go-vernar a capitania acirrou os conflitos. A posio assumida pelo ca-pito Jorge Correia divergiu completamente da de seus antecesso-res, que, alis, incentivavam o uso da guerra ofensiva e da escravidoindgena, cabendo aqui lembrar as atividades do capito-mor Jer-nimo Leito na dcada de 1580 (ver, a respeito, o captulo l). Defato, pouco aps colocar os ps no Brasil, Jorge Correia determi-nou que os ndios deveriam ser entregues aos padres da Companhia,o que provocou uma reao imediata e violenta dos moradores, querealizaram um ato pblico perante a Cmara. Neste, embora reconhe-

    I3I

  • cessem que, "por ser novamente vindo do reino e no ter tomado bemo ser da terra e a necessidade dela", os colonos no se furtaram emdemonstrar seu desgosto com a postura do capito-mor. Na mesmaocasio, apesar de admitirem que os jesutas "doutrinem e:g11qi!g1rda maneira que sempre o ftzeram", os colonos faziam objeo pers-pectiva do controle inflexvel e exclusivo dos padres sobre a popula-o trabalhadora, "visto ser muito em prejuzo da repblica e noser servio de sua magestade...". De acordo com os colonos, os pr-prios ndios "no so contentes de que seja dada a posse deles aosditos padres nem outra pessoa alguma se no viverem da maneiraque at agora estiveram...". Embora algumas vozes tenham se le-vantado a favor dos jesutas, o resultado principal da reunio foiuma clara advertncia quanto ao fato de que qualquer intervenojesutica nas relaes de trabalho encontraria sria oposio.5

    O alvar rgio de 26 dejulho de 1596 procurou mediar este con-flito, definindo em termos mais lcidos o papel dos jesutas. Segun-do o mesmo, caberia aos padres a incumbncia detrazer grupos nocontatados do serto para as proximidades dos povoados portugue-ses, onde executariam a t4!9fa de "domesticar" os ndios em aldeiassegregadas. QjUdi,o, por sua vez, "se senhor da sua fazeqda", po-dendo servir os colonos por perodos no superiores a dois mesescontra o recebimento de uma remunerao digna por seu trabalho.Ademais, instaurou-se a figura do juiz dos ndios, com foro no cri-minal e no cvel.6 Neste sentido, o alvar de 1596 apenas formali-zava o projeto dos aldeamentos, alis buscando reforar um arran-jo que j se encontrava em franco declnio, particularmente em SoPaulo.

    Apesar dos esforos da Coroa em garantir o monoplio dos je-sutas sobre o acesso mo-de-obra indgena, foi atravs da CmaraMunicipal que os colonos conseguiram driblar as medidas legislati-vas. Realmente, os colonos souberam explorar conflitos de autoridadeexistentes na p-rpria estrutura administrativa da C_olnja, manifes-tos, por um lado, entre a burocracia da Coroa e os privilgios dosdonatrios e, por outro, entre a autoridade rgia e a autonomia mu-nicipal. Neste contexto, a Cmara Municipal de So Paulo, poucoa pouco, conquistou uma posio de maior destaque na disputa pe-la mo-de-obra indgena. Em 1600, por exemplo, a Cmara deter-minara que o juiz dos ndios teria jurisdio apenas sobre os ndiostrazidos do serto pelos jesutas, uma vez que uma leitura alterna-

    132

  • tiva do alvar de 1596 permitia uma interpretao que restringia to_do o seu efeito aos ndios residentes nos aldeamentos de So Miguel,Pinheiros e Guarulhos, j em minoria na populao indgena doplanalto. Ao mesmo tempo, a Cmara reafirmou a autoridade so_Bg-o:,ig1tigt por parte dos juzes ordinrios

    -

    porranro, da prpria9$_?1u

    -

    e dos capites nomeados pelo mesmo conselho, reafir-mando os privilgios detalhados na arta de doao de Martim Afon-so de Sousa, feita em 1534.? Apenas duas semanas mais tarde, amesma Cmara alocava alguns ndios para Joo Fernandes, ,,porser homem pobre", assim contestando abertamente o alvar de1596.8

    Ao mesmo tempo em que os colonos apropriavam-se do con-trole sobre os ndios trazidos do serto, procuraram legitimar, noplano institucional, as relaes de dominao subjacentes explo-rao do trabalho indgena. Na verdade, no decorrer do sculo xvrr,os colonos afirmaram, cadavez com mais convico, a necessidadedo c_{f.v-,eirq indgena, reconhecendo explicitamente que, para viabi-lizar o desenvolvimento econmico, mesmo em escala modesta, se-ria cessrio superar obstculos mais fortes que a posio jesutica

    ,em prol da liberdade dos ndios. Ora, praticamente sem capital e semmaior acesso a crditos, reconheciam a impossibilidade de importarescravos africanos em nmero cpusidervel. Adinais, esdrravamna ser. ar, o q., to..ruuu o transprte difcil e caro, especial-mente para os produtos de valor relativamente baixo que saam doplanalto. Em suma, para os paulistas participarem da economia co-lonial seria necessrio produzir e transportar algum excedente acusto irrisrio, a fim de que o preo alcanado no litoral justificasseo empreendimento. A soluo, conforme j vimos, residia na explo-rao impiedosa de milhares de lavradores e carregadores ndios, tra-zidos de outras regies.

    Realidade incontestvel, o falo de os ndios formarem a basedJ*Lo_{_14 produo colonial em So Paulo foi sempre ponto pacfi-cg. Em termos prticos, os colonos lutaram por isto ao longo dotempo, consolidando um incontestvel triunfo sobre seus advers-rios e recriando, controlando e sustentando a fora de trabalho. To-davia, no plano ideolgico e institucional, sua posio permaneceubem menos estvel diante da oposio dos jesutas e da Coroa. medida que persistiam- oposies m-or-Qll ou_]e-gais ao cativeiro dosndigs, a reproduo do sistema enfrentava contriua ameaa a-

    r33

  • i fera extra-econmica. Da a importncia fundamental da justifica-, o constante por parte dos colonos perante a Coroa quanto ne-

    cessidade absoluta e aos benefcios positivos do servio particular, dos ndios, atrelando este prpria sobrevivncia da Colnia.' Exemplos da viso particular dos paulistas referente questoindgena transparecem de forma irregular na documentao do s-culo xvtl

    -

    sobretudo nos testamentos. Porem, para apreender delorma concisa e articulada a postura dos colonos, contamos com ointeressante relatrio compilado na decada de 1690 por BartolomeuLopes de Carvalho, representante da Coroa que visitou as capita-nias do Sul para tomar informaes "especialmente sobre os Indiosconquistados e reduzidos a cativeiro pelos moradores de S. Paulo".eApoiando-se em depoimentos colhidos entre os prprios paulistas'Carvalho acabou esboando aquilo que certamente era a percepodominante dos colonos de So Paulo com respeito a sua sociedade,economia e histria.

    Em seu relatrio, aps lembrar Coroa que os paulistas tinhamexecutado "muitos grandes servios a Deus e a Vossa Magestade queDeus guarde, na conquista dos Indios", ..a{y-d.b-o,p4qsa a e4p..l!a1

    1 os direitos histricos dos portugueses s,o-b19 as ter.ras indgenas no; .Brq!I.. Assim, afirmava ele, os ndios, na epoca da viagem de Ca-

    bral, eram "os verdadeiros senhores e possuidores" do Estado doBrasil, mas, pouco aps o contato, "com eles se pactou paz e ami-

    . zade na qual nos deram o direito que hoje temos nas suas terras".Este direito, consolidado pelo fato de os europeus possurem uma"poltica racional" e uma religio superior, justificava-se pela pro-pagao da f, considerada retribuio suficiente apropriao daterra e do trabalho dos ndios, noo que, cabe notar, era freqen-temente repisada nos testamentos dos colonos. Esta mesma viso daconquista foi igualmente utilizada paa a justificao da ocupaoportuguesa de So Vicente, onde os primeiros povoadores viviam"com mansido, amizade e sossego" com os ndios "mansos" tra-zidos pelos jesutas.

    Para os colonos, era precisamente no rompimento desta situa-,o-_d_e amizade e sossego por parte de ndios hostis que se localizavaq q9999q!{de prtica e a justificativa moral paa a escravido. Se-gundo estes, os ndios "bravos" haviam passado aatacar os portu-gueses, tanto pelo dio que tinham dos ndios "mansos" aliados aosprimeiros, quanto simplesmente "pelo exerccio de sua braveza por

    134

  • terem acostumados a contnuas guerras para cativarem gentes e fa-zerem deles aouge para sua sustentao". J os brancos, encurra-lados e sentindo-se incapazes de reduzir estes povos f crist emfuno de "sua grande braveza e brutalidade", viam-se na necessi-dade de os dominar pela fora das armas, alm de "cativarem al-guns destes gentios que trouxeram a povoado e deles se serviram nassuas lavouras, instruindo-os como catlicos para se batizarem comosempre o fizeram".

    Nesse sentido, a escravizao erajustificada pela prtica tradicio-nal de dominao dos infiis que conscientemente haviam rejeitadoa f catlica, fato relevante na medida em que aderia aos princpiosda guerra justa, estabelecidos pelos papas e reis catlicos. Assim,as "naes brbaras", infiis e levantadas em armas contra os cris-tos, teriam de ser submetidas fora. Igualmente, porm, mesmoos ndios "mansos", os que "por sua livre vontade procurarem ogrmio da Igreja", teriam de trabalhar para os colonos, no comoescravos legtimos mas "por seus interesses".

    No relato de Carvalho, a justificativa moral e histrica para osurgimento do trabalho forado dos ndios serve apenas de prembu-lo para a apresentao dos motivos mais profundos do cativeiro. Sa-lientando os servios prestados pelos paulistas para o bem comum daColnia, o autor observou "que nenhuma destas coisas poderam con-seguir sem o servio deste gentio pois com eles cursavam os mesmossertes e com eles abriam os minerais e usavam do lavor com que sus-tentavam todo o Brasil de farinhas de trigo e de pau, carnes, feijes'algodes e outras muitas mercancias de que pagavam a V' Magde.seus tributos e quintos". Em outras palavras, o autor conclua que,sem o trabalho indgena, a existncia de So Paulo teria pouco senti-do no contexto colonial. Apresentando uma sntese interessante doponto nodal da questo indgena em So Paulo, arrematava:

    Senhor o que s digo que carece muito aquelas Capitanias deste mes-mo gentio quer liberto quer cativo porque sem eles nem Vossa Mages-tade ter minas nem nenhum outro fruto daquelas terras por ser tal 1a propriedade daquela gente, que o que no tem gentio para o servir Ivive como gentio sem casa mais que de palha sem cama mais que uma ;rede, sem ofcio nem fbrica mais que canoa, linhas, anzis e flechas,armas com que vivem para se sustentarem e de tudo o mais so esque-cidos, sem apetite de honras para a estimao nem aumento de casaspara a conservao dos filhos...

    l,35

    lr;j

  • Aqui torna-se claro o nexo entre o trabalho indgena e a produ_o colonial, tanto na mentaridade dos paulistas quanto aos olhos

    i do observador alheio. Sem os ndios para abrir as roas, plantar as,r.u11 e crregar os produtos, os portugueses de So paulo mal conse_gulnam manter suas prprias famlias, tamanho era o desdm pelotlqblllt*o_fn-el!11. Antecipando o comentrio de frei Caipar, Carva_lho buscou na etrutura da sociedade colonial uma explicao paraesta postura depreciativa do trabalho:

    Se Vossa Magestade mandar povoar aquelas terras com a mais robustagente e rstica que tem o seu reino, aos quatro dias se reduziam na mes-ma forma dos paulistas, porque certo que daquelas bandas se notem visto at hoje criado que v de portugal com seu amo que no as_pire logo a ser mais que ele, e por todas as razes comum a todo o Bra-sil haver nele muito negro da guin ou gentio da terra, que sem estagente se no poder tirar nenhum fruto do Brasil porque tudo l umamera preguia como assim o acredita d. Francisco Manuel no livro queco mps p_ry_egie-

    _4g,pru$!, I IEm suma, para o autor destas observaes e para muitos de seus con_temporneos, a necessidade absoluta da escravido arraigava-se naconvergncia entre a mentalidade colonial referente ao trabalho e oanseio de prosperidade que dava sentido Colnia. Assim, sustenta_va Carvalho, os paulistas no podiam abrir mo do gentio, porqueisto, alm de eliminar os benefcios proporcionados pela capitania,reduziria os prprios colonos a um estado selvagem, no qul ,. u._riam obrigados a viver moda gentlica, fato que j se observava en_tre os estratos inferiores da sociedade coloniar. Assim, a questo daescravido indgena era muito mais complexa do que o mero debatei moral em torno da legitimidade do cativeiro. De fato, aescravido

    : tocava no prprio centro nervoso do colonialismo portugus, ondeI as polticas pblicas e os interesses privados conspiravam para pro_; duzir benefcios mtuos s custas ds povos amerndios e africanos.

    O USO E COSTUME DA TERRA

    certamente mais interessada no desenvorvimento da cornia doque na liberdade dos ndios, a coroa portuguesa acabou consentin-do tacitamente com a existncia da escravid indgena em So paulo.

    136

  • o cativeiro legtimo, contudo, existia apenas num sentido bastante:estrito. Afinal de contas, os nicos cativos tidos como legtimos eramequeles tomados em guerras justas, o que, om a experincia, se mos_irou uma forma pouco eficaz de produzir escravos. Mesmo assim,eparecem casos isolados nos inventrios. No final do sculo xvr eincio do xvl, escravos tamoio, tupiniquim, biobeba, pJargo e goi-

    escravizados nos conflitos da segunda metade do sculo xvr -figuravam entre as posses dos paulistas.rNa dcada de 1670, alguns

    ';ativos tomados nas campanhas da Bahia aparecem como escravosem inventrios, ao passo que, no incio do sculo xvtt, aparece umaral de Ana de Pernambuco, tomada evidentemente na Guerra dosBrbaros, "a qua ainda que parda escrava como tal custou 300e tantas oitavas de ouro,'.12 Finalmente, em 1730, um paulista men_cionou em seu testamento a presena de alguns escravos goi e ka_!-ap, frutos das guerras justas contra esses povos durante o povoa-mento de Gois.l3 Mas esses poucos casos acabam se peidendoquando confrontados com os nmeros muito mais extensos de cati-vos ilegtimos arrolados nos mesmos inventrios. To raros eram osescravos legais que, por exemplo, o inventariante da propriedade deAntonio Pedroso de Barros repetiu obsessivamente o termo quandodeclarou o valor de um "escravo do gentio da Bahia escravo em cempatacas por ser escravo", para no deixar qualquer dvida quanto condio da "pea" em questo.a

    A presena insignificante de escravos legtimos no impediu queos contornos ideolgicos da escravido indgena em So paulo !a_nhassem corpo ao longo do sculo xvu. De fato, a introduo demilhares de ndios demandou a criao de uma estrutura institucio-nal que ordenasse as relaes entre senhores e escravos. Apesar dalegislao contrria ao trabalho forado dos povos nativos, os pau_listas conseguiram contornar os obstculos jurdicos e moldai umarranjo institucional que permitiu a manuteno e reproduo de re_laes escravistas. Assumindo o papel de administradores farticula-res dos ndios

    -

    considerados como incapazes de administrar a simesmos

    -, os colonos produziram um artifcio no qual se apropria_

    ram do direito de exercer pleno controle sobre a pessoa e proprieda-de dos mesmos sem que isso fosse caracterizado juridicamente co-mo escravido.t5

    Em So Paulo, o cativeiro da vasta maioria da populao ind_gena assumiu um certo grau de legitimidade atravs da evoluo deste

    137

  • cristos".17 J Ana Tenria, enfatizando o aspecto paternalista da

    f

    administrao particular, declarou: "tenho algumas peas do gen- :

    tio da terra as quais pouco mais ou menos so quatorze ou quinze

    as quais so forras e como tais as devem meus herdeiros estimar'

    danolhe todo o bom tratamento como tais servindo-se delas co-

    mo razo e ensinando-as todos os bons costumes"'l8 Cabe res-saltar que, em ambos os casos' os senhores moribundos pediram

    que es;s ndios "forros" fossem divididos eqitativamente entrer s herdeiros, clusula presente em quase todos os testamentos pau-

    , listas.A relativa ineficcia da autoridade rgia neste territrio remoto

    do Imprio porugus po-de explicar, pelg menos em parte' a qpa-

    rente contradio entre' iiegalidade explcita da escravido i1die.1-

    na e a prtica corriqueira de manter os ndios cativos' Contudo' do

    ponto e vista legal' a questo mostrava-se mais complexa' Se' por

    umlado,aCoroaelaboravaumalegislaoumtantoidealizada'poroutro, as autoridades delegadas na Colnia - inclusive as

    cmaras

    municipais -

    desenvolviam procedimentos legais e administrativos

    que refletiam de forma mais coerente tanto as neessidades prticas

    dos colonos quanto os conflitos emergentes na esfera local' Em muitas

    ocasies, tais procedimentos chocavam-se com a legislao em vi-

    gor, como no .uro da escravido indgena'te Ademais' os prprios

    r38

  • : ; , a'>7:f..l:colonos reconheciam abertamente o paradoxo. No seu testamentoconjunto de 1684, Antonio Domingues e Isabel Fernandes expressa-ram uma opinio de consenso quando declararam que os dez ndiossob seu domnio "so livres pelas leis do Reino e s pelo uso e cos-tume da terrq so de servios obrigatrios".20 Igualmente, outra se-nhora de escravos, Ins Pedroso, colocou no testamento que "o gen-tio que temos so livres por lei do Reino e como tais o no possoobrigar servido"; mesmo assim, "me servi deles forosamente co-mo os mais moradores e assim os deixo".2r

    Esses dois exemplos, dentre muitos outros semelhantes, demons-tram como os colonos percebiam o direito de manter relaes de con-trole particular sobre os ndios. Este direito se fundamentava ideologi-camente na justificativa de que'os colonos prestavam um inestimvelserv&o a Dus, ao rei e aos prprios ndios ao transferir estes ltimosdo serto para o povoado

    -

    ou, na linguagem de sculos subseqen-ts, da barbrie para a civilizao

    -

    e se firmava juridicamente no ape-lo ao "uso e costume". Ao longo do sculo, esta percepo de direitocristalizou-se, tornando-se

    -

    por assim dizer -

    tradicional.Mesmo assim, a ambigidade da situao dos ndios nunca dei-

    xou de transparecer, sobretudo na redao dos testamentos seiscen-tistas, sendo considerada pelos crticos dos paulistas uma espcie defraqueza moral destes. Manuel Juan Morales, por exemplo, um dospoucos defensores no jesuticos da liberdade indgena em So Pau-lo, observou o seguinte em missiva ao rei de Espanha e Portugal:"Aqui se faz muitos testamentos, e na hora dos desenganos se jul-gam por verdade o que ensinam os padres da Companhia, declaran-do o enfermo que seus ndios so livres [...] e deixando-os livres nopapel, os cativa na justia. repartindo-os entre os parentes do de-funto, para que os sirvam do modo que na hora da morte se julgouinjusto".22 Talvez estivesse se referindo ao testamento de Louren-o de Siqueira, alis redigido por ]m jesuta:

    Declaro que eu tenho algumas peas do gentio do Brasil as quais porlei de Sua Magestade so forras e livres e eu por tais as deixo e declaro,e lhes peo perdo de alguma fora ou injustia que lhes haja feito,e de lhes no ter pago seu servio como era obrigado e lhes peo poramor de Deus e pelo que lhes tenho queiram todos juntos ficar e servira minha mulher, a qual lhes pagar seu servio na maneira que se cos-tuma na terra nem poder alienar nem vender pessoa alguma destasque digo, e peo s justias de Sua Magestade que faam para descar-go de minha conscincia guardar esta ltima vontade e disposio.23

    t39

  • No obstante o peso de conscincia de alguns colonos, a insti_tucionalizao da escravido indgena desenvolveu-se rapidamenteem nvel local. Nos inventrios da primeira dcada do scuro xvrr,j aparecem ndios "forros" ao lado de escravos legtimos nos arro_lamentos de "peas", inclusive entrando nas partilhas. Esta prticafoi submetida prova jurdica em algumas ocasies ao longo da vi_gncia da escravido indgena. Em 1609, por exemplo, aps a publi_cao da lei declarando a liberdade incondicional de todos os ndios,Hilria Lus enviou uma petio ao governador perguntandoJhe seos ndios trazidos por seu recm-falecido marido podiam entrar naspartilhas. o parecer do governador foi curto e direto: os ndios nopodiam entrar em inventrios por serem livres pelas reis do Reino.Instado igualmente a se pronunciar, o juiz dos rfos de So paulo,no entanto, afirmou que " uso e costume darem partilhas de peasforras aos rfos para seu sustento e servio e no para se vende-rem". Inconformado com a resposta, o governador pediu o parecerdo procurador dos ndios e de um ouvidor, ambos, cabe frisar, do_nos de cativos ndios. o primeiro reafirmou que o caso se enquadra-va no "uso e costume" da terra e o segundo acrescentou _ em cas_telhano

    -

    e, sem a herana, os rfos ,,quedarn miserables pi-diendo limosna". No fina do processo, o governador acabou porrecuar, autorizando a incluso dos ndios no inventrio.2a

    O caso dos ndios de Hilria Lus certamente no teve grandeimpacto em termos de jurisprudncia, embora demonstrasse a dis-posio da justia colonial em confiar a guarda dos ndios a particu-

    , lares, ainda que esta prtica adquirisse caractersticas de escravido.

    . Diante da incapacidade da coroa em definir claramente os direitosi dos nativos, os colonos souberam integrar a seu discurso uma mani-j festao da responsabiidade que devm exercer na administrao, dos ndios. Assim, Maria do prado, grande proprietria de ndios,ditou em seu testamento; ,,Declaro que no possuo escravo algumcativo mas somente possuo como uso noventa glq1g-q dq e,4q aaterra as quais tratei sempre como fihos . nu ,n*u rrmalidade osdeixo a meus herdeiros".25 um outro exempro dessa postura est notestamento de Lucrcia Leme:

    Declaro que possuo nove peas do gentio da terra, e uma criana, asquais tratei sempre como livres que so de sua natureza por serem in_capazes de se regerem por si, as administrava com aquele cuidado cris-

    140

  • to, valendo_me de seu servio em ordem a aliment_los e nesta mesmaordem os podero reger os meus herdeiros no como heranas, senocomo a menores necessitados de regncia, no lhes faltando.;,n,;;;;:trina, e uso comum at el_rei airpo, outru aoiru.ruMenores necessitados, fihos: foi nesse sentido que o discurso ,parernaisra dos cotonos aproximava_s" ou poliii.u i"ol;#;:::

    . , , ,roa' apesar de tanras ourras conrradies. se os inaios...ru",

    . 'i ide um turor, por que esse papel no podia ,.. ";";;;;;;il: i ',

    ,

    culares? Confiantes em que a razo estava a seu lado, os colonos , I jpassaram a apropriar_se do papel de modo exclusivo, sobretudo a . . .partir da derrota imposta aos jesutas. :jCOLONOS E JESUTAS: A BATALHA DEC&IVA

    Na verdade, a mentalidade escravista dos colonos no se cho_cava com as perspectivas da Coroa e nem mestas, no que se referia questo d;il;il";:,::::*::insistir no cativeiro manifestamer," ir.ruf * ndios, provocou, nocampo poltico, a oposio ferrenha dos padres inacianos. Afinal decontas, boa parte do pod:r e prestgio as jesuitas no Brasil provi_nha jusramente aa ,uu energica d.f;d" il;iouo. ,norr.na, o que,{!on-1eito imediato ao re-.uro xvu, rt" rtt.ttcava tanto a liber-dg.d-e.pleqa quanto a oposio especfica u ,ituu0", de escravidoilegtima'2? A alrernariva apresentada p.r, p., propunha a liber-dade restrita das misses, que cada vez mais tiravam de circulaoos ndios disponveis para o mercado de trabalho colonia. Os jesu_tas dispunham de bons motivos para criticar os paulistas, uma vez ;

    ::::::t1iam a maior parte de seus rdior;;;;;;ffi;: ,damente ilegais; ao mesmo rempo, porm, "r;;fi;r'::.1:i;oposio aos jesutas alegando que o, pu ,"tardavam o desen_volvimento de suas atividades

    ""o"0_i*. -"

    O confronto fatal entre as partes foi alimentado em dois nveisdistintos' Em nver rocal, os cornos "o"ri"'"" ao controle exerci-do pelos jesutas sobre os quatro aldeamentos nas imediaes da vi_la de So paulo. J na esfera intercolonial, o, puufirtu, passarama enfrentar os protestos e litgios dos jesutas espannois decorrentesdos assaltos praticados contra as misses das provncias do Guair

    I4I

  • e Tape. As diferenas irreconciliveis entre as partes ocasionaramdemonstraes de fora de ambos os lados. Assim, diante das de-mandas dos jesutas junto aos governos coloniais e ao Vaticano, queacarretaram novas medidas contra a escravido indgena, os colo-nos no tardaram em responder, lanando mo da violncia e ex-pulsando os padres da capitania de So Vicente.

    preciso notar que, mesmo antes da expulso de 1640, a di-menso loca do conflito foi marcada pela ameaa de violncia empelo menos duas ocasies crticas. Em 1612, os colonos ameaaramexpulsar os jesutas de Barueri, alegando que estes impediam o aces-so mo-de-obra do aldeamento. Vinte anos mais tarde, os vizinhosmais exaltados do mesmo aldeamento, inclusive Antonio Raposo Ta-vares, invadiram Barueri, expulsando os padres. At certo ponto,este incidente pode ser considerado como uma expresso, em nvellocal, da busca intensificada pela mo-de-obra nativa: afinal de con-tas, se os paulistas podiam destruir as misses do Guair, por queno repetir esta mesma atividade mais perto de casa? Porm, outrosaspectos especficos devem ser levados em conta para o entendimen-to do fato em questo, pois tratava-se igualmente de um confrontoentre os colonos mais prsperos dos bairros ocidentais de So Pauloe os jesutas, que vinham acumulando um patrimnio e uma forade trabalho cada vez mais expressivos. Ademais, a prpria indefini-o acerca da condio jurdica do aldeamento de Barueri propor-cionava munio para a ecloso do conflito.

    Realmente, Barueri situava-se em meio a uma das principais zo-nas de produo de trigo, prximo aos bairros de Cotia, Quitanae Carapicuba, bem como vila de Santana de Parnaba. Por voltade 1630, os jesutas j se haviam estabelecido enquanto principaisproprietrios de terras no distrito, controlando uma proporo des-medida da fora de trabalho indgena. Alm de seu acesso preferen-cial aos ndios dos aldeamentos, que somavam em torno de 1500apenas em Barueri, o Colgio de So Paulo, tendo recebido comoherana duas grandes propriedades na regio, contava tambm comconcentraes considerveis de cativos indgenas. O primeiro lega-do, datado de 1615, constava da doao, feita por Afonso Sardinhae sua mulher Maria Gonalves, de sua Fazenda Nossa Senhora daGraa, que contava com um nmero elevado de ndios guarulhos,"como de outras naes". No segundo, de 1624, Ferno Dias e Ca-tarina Camacho legaram sua propriedade Nossa Senhora do Ros-

    142

  • 'o e em torno de seiscentos carij capturados no Sul. Estas doa-es, embora funcionassem como fazendas no sculo xvII, tornaram-se' posteriormente, os respectivos aldeamentos de Embu e carapi-.-uba.28

    Nesse sentido, os jesutas representavam muito mais que ape_nas um obstculo mo-de-obra dos aldeados, o que, de qualquerforma, constava como antiga reivindicao dos paulistas. Aspectomais grave do ponto de vista dos colonos era o fato de que os padrestambm configuravam uma fora considervel na economia paulis-ta enquanto produtores e proprietrios. Alm disso, segundo os co-lonos, os jsutas absavam de seu controre sobre os aldeamentos,aproveitando e mesmo aforando terrenos indgenas para o benef-cio do colgio. vale ressaltar que conflitos semelhantes surgiram tam-bm em outras capitanias, onde os olonos observaram estarrecidosa tentativa por parte dos jesutas de monopolizar as merhores terrasprodutivas e propriedades urbanas, muitas vezes adquiridas atravsde doaes da Coroa.2e

    Diante dos avanos de to formidvel adversrio, os colonosde So Paulo apelaram para o nico rgo pblic o capaz de tomaro seu partido: a Cmara Municipal. Aps o incidente d,e 1632 emBarueri, os colonos comearam a demandar com insistncia a remo-o dos jesutas, lanando acusaes que visavam no apenas des_moralizar os padres como tambm fornecer elementos substantivospara provar os abusos e atos ilegais dos jesutas de So paulo. Em1633, o colono Joo da Cunha, proprietrio no bairro de Cotia, de_nunciava que os padres teriam roubado os ndios que o querelantetinha recebido em dote, evando-os para o aldeamento de Barueri.Aparentemente no satisfeito apenas com a restituio dos ndios deseu dote, Joo da Cunha, referindo-se aos padres, instava a Cma_ra a que "os mandassem tirar das aldeias e no tivessem de ver comndios mais que com sua igreja...". Durante as semanas que se se_guiram, chegaram aos ouvidos do conselho novos protestos contraos padres, nos quais alegava-se que os jesutas monopolizavam asterras de cotia e carapicuba, no deixando os colonos cultivaremo solo. Finalmente, os principais residentes desses bairros reuniram-se diante da Cmara e estabeleceram um ultimato:,se a Cmara no:!te,c-s os jesutas de Barueri, os moradores e seus ndios expulsa-riam os padres fora, o que de fato ocorreu.ro

    143

  • preciso lembrar que a adoo de medidas to radicais nestecaso deveu-se justamente indefinio jurdica do aldeamento deBarueri. Eram semelhantes as condies dos outros trs aldeamen-tos de So Paulo; com certeza, outros 3 mil ndios achavam-se sob ocontrole dos padres em So Miguel, Conceio dos Guarulhos e Pi-nheiros. Contudo, todos os trs haviam sido estabelecidos pelos ina-cianos no sculo xvl, e os colonos

    -

    na sua maioria, pelo menos -reconheciam os direitos da Companhia de Jesus sobre estes aldea-

    mentos. Barueri, porm, fundado na primeira dcada do sculo xvrrpor d. Francisco de Sousa, tornou-se, posteriormente, o objeto deuma disputa na justia entre os herdeiros de d. Francisco, os jesutase aCmara Municipal de So Paulo, todos reivindicando o direito desua administrao. Na dcada de 1630, os jesutas controlavam oaldeamento. Todavia, no entenderdos colonos, os padres estavamali por determinao do provincial da ordem e no da Coroa, e, por-tanto, seriajusta a sua expulso e a devoluo da administrao doaldeamento Cmara Municipal, uma vez que o prprio d. Francis-co ter-lhe-ia outorgado semelhante autoridade. No fim das contas,aps a ao violenta dos moradores, a Cmara de fato tomou possedo aldeamento, estabelecendo um precedente para os acontecimen-tos de 1640, quando, na qualidade de representante legtima e realda Coroa em nvel local, a mesma Cmara apropriou-se da adminis-trao dos demais aldeamentos, denominando-os "aldeias reais".''

    Com as tenses em alta, o conflito caminhou para seu desfechofinal quando os jesutas espanhis instauraram demandas contra ospaulistas, buscando pr fim s expedies de apresamento que asso-lavam as misses. Contando com o apoio de seus colegas inacianosdo Rio de Janeiro e de Salvador, os jesutas Maceta, Mansilla e DazTaflo levaram seu pleito inicialmente ao governador do Brasil

    -

    queatendeu as reivindicaes mediante uma proibio do sertanismo

    -e, posteriormente, ao rei e ao papa. Conduziram ento uma campa-nha impressionante contra os paulistas, divulgando a imagem destes

    -

    nem sempre exagerada -

    como de um temvel bando de desordei-ros e foras-dalei. O bispo do Rio da Prata tambm tomou o partidodos jesutas e, utilizando-se de distores prprias desta campaa,em 1637 escreveu para o papa, afirmando: "No Brasil h uma cidade(sujeita a um prelado que no bispo) que se chama So Paulo, enesta se h juntado um grande nmero de homens de diferentes na-

    144

  • es, ingleses, holandeses, e judeus que em liga com os da terra comolobos raivosos fazem grande estrago no novo rebanho de V.S.".32Tambm lanando mo de uma retrica religiosa, os jesutas busca-vam garantir o seu acesso exclusivo aos ndios do serto, lamentan-do "que esteja o serto que chamam dos Patos aberto para todo omouro, judeu, negro e branco, alto e baixo, que ali quer ir a salteare conquistar e cativar os ndios para depois os vender onde e paraquem lhe parece...". Para os jesutas, no se podiam deixar os n-dios "na boca do demnio e nas unhas do Brancos".33 A Coroa,certamente distrada por fora dos iminentes conflitos que se iriamdesencadear em torno da Restaurao de 1640, respondeu de formaapenas lacnica aos apelos dos jesutas. O Vaticano, por sua vez, lfoi mais decisivo, pressionando os colonos com a publicao do breve lde 3 de dezembro de 1639, o qual basicamente reforava a-bula de ,1537 proclamando a liberdade dos ndios das Amricas. Em meados ,de 1640, osjesutas passaram a divulgar o contedo do breve, pro-vocando tumultos em So Paulo, Santos e Rio de Janeiro. Aindaem junho desse mesmo ano, os representantes das cmaras munici- ,pais da capitania de So Vicente reuniram-se para discutir o assunto ie, sob forte presso dos principais moradores da vila de So Paulo, rdeterminaram a expulso incondicional dos padres, o confisco de suaspropriedades e a transferncia da administrao dos aldeamentos parao poder pblico.3a

    Ao justificar a expulso, os colonos desenvolveram elabora-dos argumentos para legitimar essa ao to radical. Neste sentido,escrevendo ao recm-restaurado Joo tv, a Cmara Municipal deSo Paulo afirmava que, com a publicao do breve papal, os je-sutas buscavam "tirar, privar e esbulhar aos ditos moradores daposse imemorial, e antiqussima, em que esto desde a fundaodeste Estado at o presente...".35 A defesa de tais direitos histri-cos assentava-se, evidentemente, em opinies antijesuticas que for-mavam um consenso entre os colonos. Em Santos, por exemplo,circulava, na mesma poca, um boato entre os colonos de que eraadmissvel invadir os aldeamentos e propriedades jesuticas porqueos padres de Pernambuco supostamente haviam incentivado os n-dios a tomarem o partido dos holandeses. Tambm boca pequenadava-se como certa a notcia de que o breve era uma farsa dos je-sutas e que, pelo contrrio, agora se podiam escravizar ndios dequalquer "nag".'u

    145

  • Alm da Cmara Municipal, as ordens religiosas que permane_ceram em So Paulo

    -

    sobretudo os franciscanos _ tambm expli_citaram os motivos que justificavam a expulso dos inacianos. As_sim, em 1649, em meio a um acirrado litgio entre os franciscanose os jesutas, a justia colonial recebeu uma relao de oito ..cau_sas" da expulso, detalhadas pelos prprios colonos: l) Os jesutasestavam ficando ricos e poderosos demais; 2) Os jesutas foraramos herdeiros de Afonso Sardinha, Gonalo pires e Francisco deProena a fazer enormes concesses, provavelmente em terras e n_dios; 3) Arrancaram terras dos lavradores pobres atravs de litgios;4) Perseguiram, tambm por meio da justia, Antonio Raposo Ta_vares e Paulo do Amaral, provavelmente por causa das atividadessertanistas destes; 5) Ganhavam todas as suas causas litigiosas emdecorrncia de sua enorme base material; 6) "eue se servem dos In-dios melhor que os moradores em suas searas, engenhos, moinhos,e at os carregam nas costas..."; 7) ,,eue se aproveitam das terrase datas dos Indios trocando-as e vendendo-as; e trazendo nelas seusgados"; 8) Os ndios por eles doutrinados mostraram_se rebeldes esediciosos em Cabo Frio, Esprito Santo, Rio de Janeiro e, sobretu_do, Pernambuco.3i

    Apesar dos dios e recriminaes desencadeadas pelo incidenteda expulso, os jesutas aabaram sendo readmitidos na capitaniatreze anos depois. No acordo negociado entre as principais facesdos colonos e um representante dajustia coonial, os primeiros tra_tavam de deixar claras as condies sob as quais os padres poderiamvoltar. Em primeiro lugar, os jesutas teriam de abandonar o litgiocontra a expulso e desistir de qualquer indenizao pelos danos io_fridos. No tratamento da questo indgena, os jesutas deveriam ab_dicar do breve de 1639 ou de qualquer outro instrumento de defesada iberdade indgena. Ademais, os padres deveriam negar assistn_cia aos ndios que fugissem de seus donos. Finalmente, adotando umtom mais conciliador, os colonos ofereciam como contrapartida aajuda aos jesutas na reconstruo do Colgio, o que de fato fize-ram em 1671.38

    A expulso, bem como as condies estabelecidas para a voltados padres, desmontaram de forma decisiva o obstculo jesutico co-locado entre os colonos e seus ndios. Os jesutas, por sua vez, con_tinuaram como poderosos proprietrios de terras, uma vez que foimantida a posse de Embu e Carapicuba, acrescentando_se posterior_

    146

  • mente as doaes da Fazenda Santana e da extensa propriedade deAraariguama. Todavia, apesar das aparncias, os jesutaq tinhSmperdido o controle dos aldeamentos, e sua voz de oposio ao cari-i@jggteena- foia praticamente emuia. e acordo com um pa-dre, escrevendo no final do seculo, tal era a situao que os jesutasjamais poderiam tocar no assunto da escravido indgena em ser-mes ou em qualquer outra manifestao pblica. Mesmo assim, ob-servou ele com certo orgulho, sempre buscavam

    -

    em conversas par-ticulares e lanando mo de "industrioso disfarce"

    -

    mostrar aoscolonos seus erros. Contudo, "estavam to firmes os moradores da- I ,quela vila em que os Indios eram captivos que ainda que o PadreEterno viesse do cu com um Christo crucificado nas mos a pre-garlhes que eram livres os Indios, o no haviam de creer".3e

    E SC RA VO S O U ADMINI STRADOS ?

    Na segunda metade do sculo xvrr, no entanto, a disputa emtorno da c_ondrao ju{dica dos cativos ndios passou para outra eta-pa. Apesar de suas convices, os colonos ainda enfrentavam o pa-radoxo legal representado pelo sistema de administrao particular.

    ; 9 rgu&_q pg!1&g]ar dos ndios era pouco diferenre da escravido,r fato que no deixou de escapar ateno da Coroa ou de jesutas1 que no residiam em So Paulo. De acordo com um relato histrico' do incio do sculo xIX, tratava-se apenas de uma questo de termi-nologia: "Os Paulistas, posto que no davam aos ndios domestica-dos o nome de cotivos, ou escravos, mas s o de administrodos, con-tudo dispunham deles como tais, dando-os em dotes de casamentos,e a seus credores em pagamento de dvidas".4 De fato, virtualmentetodos os dotes concedidos durante o sculo xvrr incluam pelo me-nos um "negro da terra". Quanto alienao de ndios, cabe ressal-tar que a'itp do gentio da terra" figuravam entre as garantiaspara emprstimos e hipotecas, alm de serem vendidos em diversasocasies para liquidar dvidas ou por outros motivos. Em 1664, porexemplo, o inventariante dos bens de Antonio de Quadros vendeuuma moa indgena por dezoito mil-ris, colocando o valor recebi-do na praa a juros, "como uso e costume".ar

    Duas prticas corriqueiras revelam mais claramente a real con-dio dos ndios nesse regime to ambguo. Primeiramente, a venda

    147

  • de ndios, embora ultrapassasse os limites legais da administraoparticular, foi bastante freqente durante o sculo xvrr. Todavia,quando documentada, a alienao da posse do ndio sempre foi acom_pahada por algum tip de justificaiiva. Assim, Joo Leite si:friilse na obrigao de vender paula por causa das ,,ameaas e de_sinquietaes que dela tinha".a2 Em outras ocasies, no entanto, avenda de ndios podia provocar srias batalhas judiciais, sempre tra-zendo luz a contradio fundamental deste regime de escravidodisfarada. Em 1666, por exemplo, Joo pires Rodrigues denunia_va a venda ilegal de um cativo por Joo Rodrigues da Fonseca, vendaalis lanada em escritura no cartrio. Em defesa de Fonseca, seuprocurador desenvolveu o raciocnio de que o contrato de venda depropriedade se sobrepunha a qualquer discusso sobre a liberdadedos ndios.a3 Mais para o fim do sculo, quando uma viva procu_rou vender os ndios deixados para herdeiros menores, o inventa-riante embargou a venda, alegando que ,.venderam_se peas o queno deviam vender, razo que nenhum homem de posse e honradomorreu nesta terra que se lhe vendesse peas e por to limitado pre-o como consta haver-se vendidas as que couberam aos ditos seuscurados... ".a

    A segunda prtica que denuncia o cgrtgr nitidamente escravis_!g.{g rgelg9 {a administrao refere-s alforria. De fato,

    "

    p.in.i-pal maniidivrar das obrigaes do servio particular eraatra-vs de uma carta de liberdade devidamente lanada no cartrio ou,ainda, mediante um captulo especfico no testamento do senhor.

    i conforme veremos em maiores detalhes no ltimo captulo, a con-l 1 r dieo incerta dos cativos apresentava um problema ao mesmo tem-, i

    po terico e prtico na jurisprudncia colonial, sobretudo a partir; do momento em que alguns ndios passaram a reivindicar a prpriaI berdade, apoiando-se na legislao colonial.aj' J no ltimo quartel do sculo xvrr, a controvrsia em torno

    da liberdade indgena recomeava a se intensificar. A presso inicialveio do Rio de Janeiro, na dcada de 1670, quando o primeiro bispo(nomeado em 1676) tentou impor uma taxa eclesistica de 160 rispor pea de "gentio descido" do serto. pouco depois, o governa_dor do Rio de Janeiro determinava a liberdade incondicional de to-dos os ndios. Tais medidas afetaram imediatamente os paulistas que,afinal de contas, permaneciam subordinados autoridade eclesis-tica e civil do Rio de Janeiro e, portanto, se sentiram ameaados.

    148

  • Seu maior receio era a possvel fuga em massa dos cativos para aliberdade. Inseguros mais uma vez, os paulistas buscaram reafirmaros seus direitos sobre a fora de trabalho, primeiro atravs do j tra-dicional alvoroo diante da Cmara Municipal e, posteriormente, pormeio da negociao.{

    Mais uma vez, o centro do conflito situava-se na discusso acercado direito de trazer ndios do serto, alis o principal mvel da ques-to indgena desde o sculo xvr na capitania de So Vicente. porm,desta feita os colonos mostraram-se mais flexveis que em 1640, em-bora ensaiassem, em 1685, uma nova expulso. Com os nimos me-nos exaltados, iniciaram um longo processo de negociao com asautoridades rgias, mediado pelo provincial dos jesutas, Alexandrede Gusmo, em busca de uma soluo que satisfizesse todas as partesinteressadas

    -

    men oi indios, claro. Como era de se esperar,a questo acabo dividindo-os em posies polarizadas: os colonos,reiterando a necessidade absoluta da mo-de-obra cativa, buscavamreafirmar seu direito sobre os ndios por eles deslocados do serto,"com o pretexto de os trazer ao grmio da Igreja..."; j osjesutaspropuseram revitalizar o esquema de aldeamentos e da ,,repartio"do trabalho livre dos ndios, semelhante ao arranjo que estava sen-do negociado no estado do Maranho na mesma poca.a1

    Mas os colonos jamais poderiam aceitar as propostas dos jesu-tas, pois, alm de levantar questes referentes ao controle social clapopulao trabalhadora, tambm ameaavam toda a base materialda sociedade paulista. Em 1692, os colonos redigiram uma relaode dezesseis "Q!yi4as" que teriam de ser solucionadas para se che-gar a um acordo satisfatrio.a8 Suas preocupaes giravam em tor-no de quatro problemas bsicos, todos eles, de uma forma ou de ou-tra, c9l_c9Jn,e_nJe! definio dos ildio-q.,g{qU3l!to_ prgprlqdad.Seriam estas as questes relativas s fugas de ndios, remuneraodo trabalho indgena, herana e alienao. Primeiro, os colonosqueriam se certificar de que os ndios de sua administrao no po-deriam fugir para a liberdade, questo levantada pela perspectiva deuma fuga em massa para o Rio de Janeiro. O segundo problemamostrava-se o mais controvertido, uma vez que a questo da liber-dade dos ndios estava intimamente ligada dos salrios. para oscolonos, comida, roupa, atendimento mdico e doutrinao espiri-tual apresentavam-se como compensao justa e suficiente pelo ser-vio dos ndios. O terceiro problema, o da herana, atingia o centro

    149

  • nervoso do sistema, pois, de um lado, proporcionava o principal me-canismo de transferncia da administrao dos ndios e, 'outro,afinia os mesmos enquanto propriedade. Com o ltimo problema,os colonos levantavam a questo da transferncia de administradosentre colonos. Finalmente, ainda quanto ao problema da proprie-dade, questionava-se se os credores podiam reclamar os servios dendios penhorados na cobrana de dvidas.ae

    As dvidas dos colonos, em certo sentido, sintetizavam a pos-tura dos paulistas a favor da escravido indgena. Antonio Vieira,respondendo solicitao de seu parecer sobre o assunto, dirigiu tal-vez a sua ltima grande invectiva contra a escravido indgena.so EmestilO retrico bastante marcante, perguntava-se o que eram os n-dios de So Paulo:

    , So pois os ditos ndios aqueles que vivendo livres e senhores naturaisdas suas terras, foram arrancados delas com suma violncia e tirania,e trazidos em ferros com as crueldades que o mundo sabe, morrendonatual e violentamente muitos nos caminhos de muitas lguas at che-garem as terras de S. Paulo onde os moradores serviam e servem delescomo de escravos. Esta a injustia, esta a misria, isto o estado pre-

    - sente, e isto o que so os ndios de So Paulo.

    Assim, de acordo com Vieira, os ndios no podiam ser e5c--r_?v-olpois no haviam sido tomados em guerras justas. Ademais, argu-mentando contra o raciocnio dos paulistas, Vieira reafirmava ailegalidade explcita da administrao atravs das seguintes carac-tersticas: os ndios fugidos eram restitudos mediante o uso da fora;a administrao era transferida nos inventrios e nos dotes; final-mente, o que constava como valores dos servios prestados nocorrespondia remunerao do trabalhador indgena, sendo equi-valente aos preos de escravos quando transferidos para outrodono.5r

    Esta ltima questo permanecia no centro da controvrsia naformulao da poltica indigenista. Yieitg, por seu turno, no

    -ac_ei-tava a proposta dos colonos na qual admitia-se o_ "pagament!1" dosservios apenas em comida, alojamento, agasalho e converso; pelocontrrio, estes deviam pagar um salrio justo. Ora, em suas "dvi-das", os paulistas justificavam o no-pagamento dos ndios por se-rem estes preguiosos. A essa alegao, Vieira respondia irnico:"Mas as pessoas muito prticas e fidedignas daquela terra afirmam

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  • que os Paulistas geralmente se servem dos ditos ndios de pela ma-nh at a noite, como o fazem os Negros do Brasil...". Em resumo,os ndios de So Paulo sofriam a mais completa expropriao da li-berdade, "de sorte que de si e do seu no lhes fica coisa alguma quepor toda sua vida no esteja sujeita aos administradores; e no senquanto estes viverem, seno ainda depois de mortos".

    Apesar das opinies de um adversrio to formidvel, os pau-listas conseguiram levar a melhor na concordata firmada em 1694.Enfurecido, Vieira passou a criticar os prprios jesutas que participa-ram da negociao e assinaram o acordo, afirmando que esses mes-mos padres no tinham experincia entre os ndios e nem dominavama lngua geral. Ele se referia especialmente aos padres ,,estrangei-ros" Jacob Roland e Jorge Benci, sendo este ltimo "um italianoque nunca viu ndio e s ouviu aos paulistas". J Roland foi autorda "Apologia pro paulistis" que, de acordo com Vieira, estava torepleta de hipocrisia que o general da Companhia de Jesus mandouinciner-la.52 De fato, a apologia sustentava algumas das posturasfundamentais dos paulistas, sobretudo no que dizia respeito mis-yg_q1{g-gue exerciam ao traze os ndios do serto civilizao.O que mais irritou Vieira, no entanto, foi a manipulao de suas pr-prias idias e palavras, distorcidas para apoiar a posio dos colo-nos: "As fbulas fingiram que os lobos fzeramptves com os rafeiros,e agora quer a sagrada apologia que os mesmos lobos sejam os pas-tores das ovelhas".53

    Com certeza, o conflito fundamental que marcava o trabalhoindgena em So Paulo apresentava-se igualmente como problemapara os jesutas. o que sugere o notvel relatrio do padre visita-dor Lus Mamiani sobre as atividades econmicas do Colgio de So

    iPaulo.5a No relatrio, Mamiani demonstrava que, apesar de profes-I sarem princpios mais elevados, os prprios jesutas, de fato, trata-'vam seus ndios de maneira pouco diferente desses mesmos colonosque tanto criticavam. Redigida no final do sculo xvrr, a anlise pers-picaz de Mamiani captava diversas questes fundamentais, carentesde uma reavaliao no contexto da controvrsia. A renda do Col-gio, comeava Mamiani, provinha da produo dos trabalhadoresagrcolas e dos artesos, "o mais grangeado com suor e trabalho dosndios da nossa administrao". Da mesma forma, nls fazendas j_e-Uti,aq, no se fazia !is!in-o, na diviso das tarefas, entre os cercade trezentos ndios e as dezenas de cativos africanos. Nos dias de

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  • trabalho, os padres distribuam as tarefas entre ndios e africanos:os homens seguiam paa a. lavoura, as tendas de ferreiros e os cur-rais; as mulheres, por sua vez, recebiam a incumbncia da tecela-gem. Tanto os escravos quanto os ndios se sustentavat ggJl]_as suasprprias roas, das quais cuidavam aos sbados e feriados. Final-mente, escravos e administrados recebiam "remunerao;' igual empano de algodo. A nica diferena percebida pelo padre Mamianiresidia no fato de que , ao contrrio dos africanos, osindios devian?.,ser livres e, assim, compensados por seu trabalho.

    Esta ltima questo -

    da justa compensao pelo trabalholivre

    -

    situava-se no centro da controvrsia. Embora reconheces-se que um certo grau de trabalho no remunerado era legal, Ma-miani sustentava sua imoralidade. Legtimas ou no, as condiessob as quais o servio pessoal dos ndios seria permitido eram bas-tante especficas: "alguns tenham por lcito o servio personal coactodos ndios, ou a ttulo de administradores ou parocos, por seremobrigados os ndios a pagar ou alguns tributos ou a cngrua sus-tentao de seu paroco, e seno tem com que pagar isso, podemser obrigados a pagJos com o servio personal". Cumpria enfati-zar, porm, que "o servio no pode ser maior que a obriga-o...".tt

    Para Mamiani, 9-_q-b-1po_do .tJ1!4ho no temunerado constituao defeito bsico do sistema de administrao particular. Tratava-se,contudo, de um problema estritamente eionmico, pois, ao calculara poupana representada pelo "servio personal" no obrigatrio,Mamiani revelou que cerca de 8090 da renda do Colgio era geradapelo trabalho dos ndios. Mesmo pagando aos mesmos um jornalexcepcionalmente baixo e descontando os dias de trabalho obriga-trio, o Colgio mais que dobraria suas despesas. Em suma, se pagas-se a compensao devida, o Colgio simplesmente no conseguiriasustentar suas atividades e seus residentes.

    Sem, evidentemente, resolver estas contradies, o desfecho doprocesso de negociao entre colonos, jesutas e Coroa foi a cartargia de 1696. Em flagrante desacordo com uma lei de cinco anosantes que proclamava a liberdade absoluta dos ndios, esta reconhe-cia formalmente os direitos dos colonos administrao particulardos mesmos, assim consolidando outra forma de servio obrigat-rio que no a escravido.56 Distino meramente formal, como bem

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  • lembrava o presidente da provncia de Amazonas, Francisco Jos Fur-tado, em meados do sculo xx: .,A histria dos ndios o opr_ Ibrio da nossa civilizao. Aps de tantas leis proclamardo ;; ,liberdade e prescrevendo a escravido deles, esta subsiste o"uri,facto!".5?

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