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    ISSN 2238-0205

    Corpo-sujeito, rotinas espao-temporais e danas-do-lugarDavid Seamon

    Geografcidade | v.3, n.2, Inverno 2013

    CORPO-SUJEITO, ROTINAS ESPAO-TEMPORAIS E DANAS-DO-LUGAR1

    Body-subjects, time-space routines, and place-ballets

    David Seamon2

    1 Texto originalmente publicado em ingls em BUTTIMER, Anne; SEAMON, David. (eds.)The human experience of space and place. Londres: Croom Helm, 1980. p. 148-165. Traduode Paulo Mauricio Rangel Gonalves.

    2 Professor de Arquitetura na Universidade Estadual de Kansas. [email protected]. Architecture Department, Kansas State University, 211 Seaton Hall, Manhattan, KS. 66506-2901 EUA.

    RESUMO

    O ambiente vivido pelos indivduos portador de magias, mistrios

    e simbioses. Os seres humanos, sob esta lgica, podem se imbricar

    com seus lugares, alicerados por fortes elos de pertencimento. Neste

    sentido, as trajetrias e movimentos implementados por estas pessoas

    revelam faces e nuances deste pertencimento, em coreograas

    muitas vezes no percebidas pelas pessoas que as efetuam, mas que

    podem perfazer caractersticas fortes de determinado ambiente, as

    chamadas danas-do-lugar. A geograa, que estuda a Terra como o

    lugar de morada do homem, se preocupa com estas movimentaes epertencimentos. Por intermdio da fenomenologia, so analisados os

    movimentos cotidianos de indivduos em seus lugares de signicado,

    dentro de reluzentes mundos vividos, esboando assim um dos alicerces

    da geograa fenomenolgica. Nesta perspectiva, a atitude natural dos

    indivduos mostrada como um grande manancial para os gegrafos,

    que buscam, praticando a reduo fenomenolgica, chegar essncia

    dos fenmenos e identicar danas-do-lugar. Em sntese, esta dana-

    do-lugar, uma sinergia ambiental na qual homens e partes materiais

    involuntariamente promovem um todo maior, com seu prprio ritmo

    e carter especiais, pode servir no apenas para revelar a magncadinmica dos mundos vividos, mas para regenerar e proteger lugares.

    Palavras-chave: Fenomenologia. Movimentos Cotidianos. Lugar.

    ABSTRACT

    The lived environment bears magic, mystery and symbiosis. By this logic,

    human beings can interconnect with their places, grounded on strong

    bonds of belonging. Thus, trajectories and movements performed

    by these people disclose facets and nuances of belonging through

    choreographies that are not perceived by its performers. However

    they can ascribe strong characteristics of a certain environment

    the so called place-ballets. Geography, that studies Earth as mans

    home, is concerned with these movements and belongings. Throughphenomenology, everyday movements of individuals in their place

    of signicance are analyzed, within sparkling lived worlds, outlining

    one of the foundations of phenomenological geography. In this

    perspective, individuals natural attitudes are shown as a great source

    for geographers that see, the essence of phenomena and to identify

    place-ballets, practicing phenomenological reduction. In synthesis this

    place-ballet an environmental synergy in which men and material

    parts unintentionally create a greater whole may be suited not only to

    reveal the magnicent dynamic of lived worlds but also to regenerateand protect places with its own special rhythm and character.

    Keywords: Phenomenology. Everyday movement. Place.

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    A fenomenologia se empenha para uma efetivao de contato.

    Como uma forma de estudo, ela procura encontrar as coisas do mundo

    como elas so nelas mesmas e ento descrev-las. A geograa estuda

    a Terra como o lugar de morada do homem. Como uma de suas metas,

    ela procura entender como as pessoas vivem em relao aos seus

    lugares, espaos e ambientes cotidianos. A geograa fenomenolgica

    pega emprestado as preocupaes de ambos os campos de saber

    e direciona a sua ateno para a natureza essencial da morada do

    homem na Terra. O fato de todas as pessoas estarem localizadas em

    um mundo que em parte geogrco uma irredutvel caracterstica

    da existncia humana. Seja pequeno como um apartamento ou vasto

    como um oceano circundando seus navios no mar, seja um lugar-

    comum tal qual a vizinhana ou estranho como uma cidade distante,

    o homem alojado em um mundo geogrco no qual ele pode mudar

    as especicidades, mas que o circunda de uma forma que ele no pode

    evitar. A geograa fenomenolgica indaga o sentido da inescapvel

    imerso das pessoas no mundo geogrco. O que so as pessoas como

    seres em um mundo geogrco? Qual a natureza da experincia

    humana no contexto desse mundo?3

    Este texto se esfora para demonstrar o valor da geograa

    fenomenolgica explorando o fenmeno do movimento cotidiano no

    espao, entendido comoqualquer deslocamento espacial do corpo

    ou corporalmente em parte iniciado pela prpria pessoa. Caminhar

    at a caixa de correio, dirigir para a casa, ir de casa para a garagem,

    alcanar uma tesoura em uma gaveta todos estes comportamentos

    so exemplos de movimento.4

    3 Sobre fenomenologia, sua histria e mtodo, ver Natanson (1962); Wilde (1963); Spiel-berg (1965). Exemplos de fenomenologia emprica podem ser encontrados em Giorgiet al. (1971; 1975).

    4 Na prtica, esta denio ignora movimentos reexivos tais como piscar, respirar, etc.

    Este texto explora a essncia do carter experiencial do movimento.

    Primeiro, esboa as noes de atitude natural, mundo vivido e

    epoch todas noes essenciais na fenomenologia. Segundo, o

    ensaio aborda as duas convencionais abordagens para os movimentos

    cotidianos a teoria comportamental e a teoria cognitiva. Terceiro, o

    texto introduz uma alternativa fenomenolgica e indaga o seu valor

    para teorias ambientais e de planejamento.

    A , epoch

    A fenomenologia busca as estruturas essenciais da experincia

    humana (WILDE, 1963, p. 20). A partir da variedade de formas nas

    quais homem e mulher se comportam e experienciam seus mundos

    cotidianos, a fenomenologia interroga se existem padres particulares

    que transcendem contextos empricos especcos e apontam para

    uma condio humana essencial o irredutvel ponto crucial das

    situaes de vida das pessoas que permanecem quando so no

    essenciais contexto cultural, perodo histrico, idiossincrasias

    pessoais so desvendados atravs de processos fenomenolgicos.

    Embora perceba que cultura, histria e personalidade, sem dvida,

    ltram e condicionam padres de vivncia, a fenomenologia sustenta

    uma certa indubitabilidade quanto a experincia humana, que se

    estende alm de uma pessoa particular, lugar ou movimento. A tarefa

    da fenomenologia desenterrar e descrever esta indubitabilidade, a

    qual as pessoas costumam perder de vista por conta da mundanidade

    e das certezas de suas situaes de vida cotidianas.

    Na existncia diria normal, as pessoas se encontram em um

    estado de coisas que o fenomenlogo chama de atitude natural a

    despercebida e inquestionvel aceitao das coisas e das experincias

    da vida diria (GIORGI, 1970). O mundo da atitude natural denominado

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    mundo vivido os padres garantidos e contexto da vida cotidiana,

    no qual as pessoas rotineiramente conduzem suas existncias dirias,

    sem ter que fazer disto constantemente um objeto de consciente

    ateno (GIORGI, 1970). Imersas na atitude natural, as pessoas

    normalmente no examinam o mundo vivido ou mesmo reconhecem

    a sua existncia; isto ocultado como um fenmeno:

    Na atitude natural ns estamos muito absorvidos pelas nossasatividades mundanas, tanto prticas como tericas; ns estamosmuito absorvidos pelas nossas metas, atividades e projetos, paraprestar ateno para a maneiraque o mundo se apresenta parans. Os atos de conscincia atravs do qual o mundo e tudoque ele contm se tornam acessveis para ns so vividos, maseles permanecem reservados, inconjugveis, e neste sentido,ocultados (GIORGI, 1970, p. 148).

    Atravs de uma mudana na perspectiva a reduo

    fenomenolgica, como geralmente chamada o fenomenlogo

    faz do mundo vivido um foco de ateno: os atos os quais na atitude

    natural so simplesmente vividos so agora tematizados e feitos

    tpicos de anlise reexiva (GIORGI, 1970. p. 148). A ferramenta chave

    para este processo de reduo a epoch a suspenso na crena na

    experincia ou objeto experienciado (SPIELBERG, 1965, p.691). Ao

    praticar a epoch, o fenomenlogo se esfora para se desengatar do

    mundo vivido e reexaminar sua natureza outra vez. Epochno signicaque o estudante rejeita o mundo ou a sua experincia sobre ele. Ao

    invs disto, ele comea a questionar estas coisas, assim como todos

    os conceitos, modelos, e teorias que visavam descrever ou explic-

    las. Se ele conduzir a epoch propriamente, ele pode descobrir que

    muitos eventos e padres que ele previamente conhecia se tornam

    questionveis, enquanto fatos que ele havia previamente ignorado ou

    pareciam insignicantes emergem claramente e demandam exame

    e descrio (ZEITLIN, 1973, p. 147). Fenomenologia , portanto,

    uma exploratria e descritiva disciplina. Primeiramente, ela tenta

    questionar radicalmente o mundo vivido e todas as teorias concebidas

    para represent-lo. Segundo, ela se esfora para retornar ao mundovivido diretamente e descrever seus aspectos o mais cuidadosamente

    possvel em suas prpriascondies.

    Uma geograa fenomenolgica reexamina as pores geogrcas

    do mundo vivido. Qual , por exemplo, o tipo da morada do homem na

    natureza? Quais os signicados da experincia que os lugares possuem

    para as pessoas? Como pessoas diferentes experienciam a natureza e

    o meio fsico? De que maneiras as pessoas reconhecem ou falham em

    reconhecer seus mundos geogrcos?

    A presente meta explorar os movimentos cotidianosfenomenologicamente. Duas etapas so necessrias: em primeiro

    lugar, deixar de lado as teorias convencionais de movimento; em

    segundo lugar, examinar os movimentos cotidianos assim como eles

    ocorrem em sua prpria forma no mundo vivido.

    Ab

    Na convencional cincia social e psicologia ambiental, os

    movimentos cotidianos tem geralmente sido discutidos em termos

    de comportamento espacial os movimentos das pessoas em um

    espao geogrco de grande escala e considerados de duas maneiras

    principais. A abordagem comportamental, ligada tradio losca

    do empiricismo, v os movimentos cotidianos em termos de um modelo

    estmulo-resposta um particular estmulo de um meio externo (por

    exemplo, o tocar de um telefone) causa um movimento de resposta na

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    pessoa (o ouvinte levanta para responder)5. Na tentativa de imitar os

    mtodos das cincias naturais, comportamentalistas tem geralmente

    restringido suas pesquisas para comportamentos visveis que podem

    ser vericados atravs de algum tipo de mensurao emprica.

    Comportamentalistas rigorosos desconsideram todos os processos de

    experincia (por exemplo, cognio, emoes, inteligncia corporal)

    porque estes fenmenos so vistos como imprecisos e s conhecidos

    pela pessoa que os reporta. Ento, os comportamentalistas geralmente

    estudam o que um animal ou pessoa faz, ao invs do que ele, ou ela

    experiencia. Na prtica, comportamentalistas trabalham discutindo

    o comportamento espacial como um tema explcito tendo estudado

    geralmente ratos aprendendo a se mover em labirintos; pesquisas

    com sujeitos humanos tm sido muito menos frequentes (HULL, 1952;

    BLAUT; STEA, 1973; GETIS; BOOTS, 1971). Talvez porque isso seja

    melhor conduzido em um contexto experimental e por sua vez no

    facilmente aplicveis para contextos no mundo real como as ruas e a

    vizinhana, teorias de comportamentalistas estritos tiveram somente

    um impacto mnimo nas pesquisas sobre o comportamento espacial

    na escala do meio geogrco (GETIS; BOOTS, 1971).

    Em contraste, teorias de cognio espacialso associadas tradio

    losca do racionalismo e tem tido maior impacto na geograa

    comportamental (LYNCH, 1961; STEA; DOWNS, 1973; MOORE;

    GOLLEDGE, 1976; LEFF, 1977). Em suas vrias formas, argumentam

    que o comportamento espacial dependente de alguns tipos de

    processos cognitivos como o pensar, descobrir e decidir. Na prtica, a

    maior parte desta pesquisa estudou representao cognitiva do espao

    de um indivduo ou de um grupo em particular, que provocada por

    5 Sobre comportamentalismo, ver Taylor (1967); Merleau-Ponty (1962, 1963); Koch(1964). No h uma teoria comportamentalista, mas v rias. Alguns comportamentalis-tas reconhecem a cognio como um signicante processo de interveno na sequn-cia de estmulo-r esposta. Ver, por exemplo, Tolman (1973).

    dispositivos como desenhos de mapas ou questionrios. O pressuposto

    que um estudo desses mapas cognitivos, como a maioria dos

    gegrafos passaram a cham-los, vai levar a uma compreenso do

    comportamento do indivduo ou do grupo no espao. Sublinhando

    a nossa denio de cognio espacial, diz Downs; Stea (1973, p. 9),

    uma viso do comportamento que, embora expressada de maneira

    variada, pode ser reduzida para a armao de que o comportamento

    espacial humano dependente do mapa cognitivo do indivduo do

    ambiente espacial.

    A maior fraqueza, fenomenologicamente, de ambas as abordagens,

    cognitiva e comportamental a sua insistncia na explicao do

    comportamento espacial por meio de uma teoria imposta a priori.

    Os tericos cognitivos assumem que o mapa cognitivo a chave

    para o comportamento espacial, enquanto os comportamentalistas

    se direcionam para as sequncias de estmulo-resposta. Ao praticar

    epoch, o fenomenlogo rompe com essas duas vises opostas e

    retorna aos movimentos cotidianos como um fenmeno do mundo

    vivido. Por um lado, ele coloca entre parntesis as premissas de que

    o movimento depende do mapa cognitivo, por outro lado, que o

    movimento um processo de estmulo-resposta.

    Para realizar este processo de escalonamento de maneira prtica,

    o fenomenlogo precisa retornar aos movimentos cotidianos

    como experincia como eles ocorrem no seu prprio modo, com

    sua prpria estrutura e dinmica. Para fazer isto, ele tem vrias

    abordagens abertas. Por exemplo, ele pode cuidadosamente reetir

    sobre os movimentos e como ele os experiencia em sua prpria vida.

    Alternativamente, ele pode reunir relatos de movimentos descritos

    por outros atravs de entrevistas, conversas abertas ou relatos da

    literatura imaginativa. A atual fenomenologia do movimento faz uso

    de uma coleo de relatrios descritivos recolhidos de um grupo de

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    pessoas que so sucientemente interessadas nos seus contatos

    dirios com o mundo geogrco para se encontrar semanalmente

    durante vrios meses e dividir com o grupo suas experincias pessoais

    relacionadas aos movimentos cotidianos e outros temas relacionados6.

    Fora destes grupos de experincia ambiental, surgiram gradualmente

    vrias caractersticas destes movimentos cotidianos das quais trs

    sero discutidas aqui: (1) A natureza habitual do movimento cotidiano;

    (2) A importncia do corpo; (3) Coreograas de corpo e lugar. Cada

    assunto considerado individualmente, e ento comparado com a

    convencional teoria comportamental e cognitiva.

    A z b

    Quando eu estava saindo de casa e indo para o colgio, no

    conseguia dirigir diretamente para l tinha que dar uma volta de

    uma maneira ou de outra. E uma vez lembro-me, vividamente, de

    estar consciente do fato de que eu sempre ia por uma rota e voltava

    por outra eu sempre fazia isso. E o engraado era que no tinha que

    me dizer para ir para l por uma rota e voltar por outra. Alguma coisa

    em mim fazia isso automaticamente eu realmente no tinha muita

    escolha nessa situao. claro que existiram alguns dias em que eu tive

    que ir para algum lugar antes da escola, e ento eu tomava uma rota

    diferente, mas, por outro lado, gostaria de ir e voltar pelas mesmasruas membro do grupo de experincia ambiental.

    Um hbito qualquer comportamento adquirido que se torna

    mais ou menos involuntrio. Uma das primeiras caractersticas dos

    movimentos cotidianos para os quais o grupo de experincia ambiental

    se atentou foi a sua a natureza habitual. Considere a observao

    6 A histria completa deste grupo est em Seamon (1979).

    acima. O membro do grupo faz automaticamente o uso da mesma

    sequncia de rotas nos seus padres de direo dirios. Seus grupos

    de movimentos ocorrem por eles mesmos, isto , sem a necessria

    interveno de sua ateno consciente: Alguma coisa em mim fazia

    isto automaticamente eu realmente no tinha muita escolha nessa

    situao. Frases de outro grupo de observao que relata essa mesma

    caracterstica de atividade prpria: Voc prossegue e voc nem mesmo

    sabe disto; Eu z a viagem to sem esforo e inconscientemente; E

    sempre quero ir pelo mesmo velho caminho 7.

    Os movimentos habituais se estendem por todas as escalas de

    ambientes de dirigir e caminhar at alcanar e movimentar os dedos.

    Um membro do grupo descreveu como ele de vez em quando vai para

    a escola e se pergunta como chegou ali, simplesmente porque no

    se recorda da experincia da caminhada: Voc no se lembra de tercaminhado at aqui faz isso automaticamente. Outro membro do

    grupo explicou que ele tinha recentemente trocado quartos no seu

    apartamento com um companheiro, e que ele ainda ocasionalmente

    se achava indo para o velho quarto em vez de ir para o novo: Eu no

    registrei comigo mesmo que havia ido para o lugar errado. Um

    terceiro membro do grupo relatou que s vezes se esquece de colocar

    uma toalha limpa embaixo da pia depois de ter levado a toalha suja

    para a lavanderia. Quando lava pratos, acha-se procurando pela toalha,

    mesmo tendo visto h alguns minutos que a toalha no estava l. Um

    quarto membro do grupo contou que quando faz ligaes telefnicas,

    surpreende-se vrias vezes digitando o telefone de sua casa ao invs

    do nmero para o qual planejava ligar: meus pensamentos esto em

    algum lugar e meus dedos digitam automaticamente os nmeros que

    eles sabem melhor.

    7 Frases completas destes e as seguintes descries esto em Seamon (1979).

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    Indiferente escala particular na qual eles costumam ocorrer,

    estas observaes sugerem que muitos movimentos so conduzidos

    por algum processo pr-consciente que guia comportamentos sem

    a pessoa necessitar estar consciente do que est acontecendo. Cujo

    processo um membro do grupo sucintamente descreveu: voc acordae vai sem pensar muito, exatamente onde tem que ir, e chega l, mas

    realmente no pensa sobre chegar l enquanto est no caminho. A

    redao desta frase de uma forma quase potica aponta para o tipo de

    desdobramento automtico do movimento com o qual o membro do

    grupo tem pouco ou nenhum contato consciente. A pessoa no tem

    lembrana do grande nmero de passos, voltas, paradas, e comeos

    que compem a soma do movimento. Ela se encontra no seu destino

    sem ter prestado ao menos um pouco de ateno ao movimento,

    como aconteceu naquele momento.Tradicionalmente, tericos comportamentalistas e cognitivos tm

    lidado com o movimento habitual de duas formas contrastantes.

    Os ltimos argumentam que os comportamentos habituais no

    so realmente habituais, que se a pessoa pudesse realmente ver os

    processos internos que dirigem o movimento, ela descobriria que est

    conscientemente avaliando a situao e fazendo uso constante de seu

    mapa cognitivo:

    verdade, muito do comportamento habitual repetitivo erotineiro Nas viagens, voc tem aquele sentimento que poderiafazer a viagem de olhos vendados ou faz-la com os olhosfechados. Mas mesmo essa aparente sequncia estmulo-resposta no to simples: voc precisa estar preparadoparasugesto que diz para parar agora ou avaliaro trfego da horado rush que te diz para tomar o outro caminho para casa estanoite. Mesmo nessas situaes voc est pensando frente(em ambos sentidos: literal e metafrico) e usando o seu mapacognitivo (DOWNS; STEA, 1973, p. 10).

    Em contraste, comportamentalistas rigorosos rejeitam qualquer

    processo cognitivo intervindo entre ambiente e comportamento8.

    Eles tm constantemente enfatizado a natureza automtica dos

    movimentos cotidianos, os quais, eles denem em termos de reforo

    qualquer evento ou ocorrncia que aumente a probabilidade de

    um estmulo, em ocasies subsequentes, evocar uma resposta

    (HILDEGARD et al., 1971, p. 188-207). Aplicado ao comportamento

    espacial, este princpio argumenta que uma bem-sucedida passagem

    sobre uma rota particular fortalece as chances dessa rota ser usada

    na prxima vez que o organismo precisar transpassar aquele espao.

    Cada vez que o movimento repetido, as respostas evocam aquela

    rota particular que reforada, e no momento necessrio o padro se

    torna habitual e ento involuntrio.

    Procedendo fenomenologicamente, o pesquisador precisa colocar

    entre parntesis estas duas interpretaes contrastantes e indagar

    qual movimento habitual est na sua prpria forma. Por meio deste

    procedimento de escalonamento, se v o papel sensvel que o corpo

    desempenha em muitos dos movimentos cotidianos.

    A -j

    Observaes adicionais do grupo de experincia ambiental sugerem

    que a natureza habitual dos movimentos surge do corpo, que abriga

    seu prprio tipo de sensibilidade proposital. Um membro do grupo

    descreveu a sua ida ao dentista. Em um cruzamento do caminho, ele

    de repente se viu virando para a esquerda, em vez de continuar em

    frente como deveria ter feito. Ele explicou que geralmente vira direita

    8 Novamente, importante saber que muitos comportamentalistas interpretam a cog-nio como um importante processo de interveno entre estmulo e resposta. Ver aquarta nota.

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    porque ele tem amigos no alto da rua os quais visita frequentemente.

    Ao descrever a virada no intencional, ele explica que alguma coisa

    nele atuou antes que pudesse cognitivamente agir e que isso uma

    ao dirigida nos braos: meus braos estavam virando a roda... eles

    estavam fazendo isso por eles mesmos, completamente alheios para

    onde eu estava indo. O carro estava na metade da curva antes que eu

    tomasse conscincia e percebesse o meu erro.

    Outra pessoa salientou o mesmo tipo de movimento corporal

    direcionado quando ele descreveu o ato de puxar a corda do interruptor

    de luz: minha mo alcana a corda, puxa, e a luz est acesa. A mo

    sabe exatamente para onde ir.

    O papel do corpo em movimento indicado por outras observaes.

    Um membro do grupo fez referncia a uma fora inteligente em suas

    pernas: voc deixa suas pernas fazerem isto e no presta nenhuma

    ateno para onde voc est indo. Outro membro do grupo informou

    que estando sentado na cadeira, suas mos automaticamente

    alcanam um envelope requerido, tesouras, ou outros objetos sem

    que ele as tenha direcionado conscientemente. Um terceiro membro

    do grupo descreveu este mesmo processo corporal em sua habilidade

    de colocar as cartas em suas prprias caixas de correio, quando ele

    trabalhou no correio. Tomados em conjunto, esses relatos indicam

    que sublinhar e guiar muitos movimentos cotidianos uma fora

    corporal intencional que se manifesta automaticamente e tambm

    sensivelmente: um brao alcana a corda ou os envelopes, mos giram

    o volante ou colocam cartas nas suas prprias caixas de correio, ps

    direcionam a pessoa automaticamente para o seu destino. Pegando de

    emprstimo o termo do fenomenlogo francs Merleau-Ponty (1962),

    chamo esta intencionalidade corporal de corpo-sujeito. Corpo-sujeito

    a inerente capacidade do corpo de direcionar comportamentos das

    pessoas inteligentemente, e ento funciona como um tipo especial de

    sujeito que se expressa de uma maneira pr-consciente, usualmente

    descrita por palavras como automtico, habitual, involuntrio,

    mecnico (SEAMON, 1979).

    A possibilidade de o corpo ser um sujeito inteligente manifestado

    em suas prprias formas estranha para ambas as teorias:

    comportamentalista e cognitiva. Ambas as teorias veem o corpo como

    passivo como uma coisa inerte que responde tanto a um modo de

    conscincia cognitiva ou a estmulos do ambiente externo. Estudos

    da cognio espacial tm direcionado a sua ateno para os mapas

    cognitivos, pois um registro do conhecimento cognitivo da pessoa

    no espao. Esta pesquisa tem prestado pouca ateno aos reais

    movimentos corporais que constituem o comportamento espacial.

    Ao invs disto, ela tem enfatizado o processo cognitivo que adotado

    para coordenar as relaes entre ambiente e comportamento.Por outro lado, comportamentalistas tem enfatizado a importncia

    do corpo em suas discusses sobre o comportamento espacial, mas na

    sua nfase eles o veem como uma coleo de reaes aos estmulos

    externos. Se os comportamentalistas fossem perguntados, por

    exemplo, para descrever o comportamento de dirigir de casa para o

    trabalho, eles diriam que isso envolve uma srie de reaes s mudanas

    nas visualizaes, sons, e presses que incidem sobre os rgos de

    sentido externos dos motoristas, acrescidos aos estmulos internos

    provenientes das vsceras e msculos esquelticos (TOLMAN, 1973).

    Esses vrios estmulos chamados movimentos particulares de ps e

    braos do motorista so reforados a cada vez como uma resposta da

    direo que com sucesso deixam o motorista a salvo em seu destino.

    Eventualmente, estas sries de estmulo-resposta so integradas em

    uma suave progresso passo-a-passo que fcil e automaticamente

    levam a pessoa de casa para o trabalho a cada dia.

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    de suciente escopo ou qualidade... [E]xceto para poucos estudos

    de comportamento de mercado e migrao interurbana, ns temos

    poucos dados sobre a relao entre cognio ambiental e o subsequente

    comportamento urbano.

    Consideraes sobre as dimenses corporais do comportamento

    ambiental indicam que a perspectiva cognitiva incompleta e

    necessita de uma reformulao completa. Imagens, impresses

    subjetivas, sistemas de categorias e mapas cognitivos podem ter um

    papel parcial no comportamento ambiental, mas ns precisamos de

    um maior entendimento de sua importncia relativa. Mais do que

    provavelmente, h algum tipo de reciprocidade entre corpo e mente,

    hbito ou desejo por mudana, passado e futuro. Se a geograa

    comportamental tem que ter uma teoria comportamental precisa

    prestar mais ateno a essa reciprocidade (SEAMON, 1979, p. 61-62).

    Cf

    O corpo-sujeito assegura que gestos e movimentos aprendidos

    no passado vo, prontamente, continuar no futuro. Ele guia os

    comportamentos bsicos da vida diria. O corpo-sujeito uma fora

    estabilizadora, e atravs dele as pessoas ganham liberdade e estendem

    seus horizontes no mundo.

    Relatos do grupo de experincia ambiental apontam para

    a versatilidade do corpo-sujeito. Ele tambm abriga mais

    comportamentos complexos que se estendem ao longo do tempo

    assim como no espao. Tal comportamento o que eu chamo de

    dana-do-corpo um conjunto de comportamentos integrados

    que sustentam uma particular tarefa ou meta, como por exemplo,

    lavar pratos, arar, construir casas, envazar ou caar. Danas-do-corpo

    so frequentemente parte integrante de uma habilidade manual ou

    sensibilidade artstica; o seu somatrio pode constituir meios de vida

    de uma pessoa. Seus movimentos eram incrveis eles uam juntos,

    disse uma integrante do grupo ao descrever um ferreiro, a quem ele

    chamou de artista. Ambas as mos estavam trabalhando de uma

    vez... fazendo exatamente o que tinham que fazer perfeitamente.

    Outro membro do grupo descreveu a operao de uma carrocinha

    de sorvetes durante o vero. Ao mesmo tempo que trabalhava,

    ele podia entrar no ritmo de entregar o sorvete e dar o troco. Ele

    automaticamente alcanava o pote certo, fazia o que o consumidor

    queria e pegava o seu dinheiro. Geralmente, o trabalho necessitava

    de pouca ateno consciente: maior parte do tempo eu nem tenho

    que pensar no que estou fazendo tudo se tornou rotina.

    Estas observaes sugerem que atravs de treino e prtica,

    movimentos bsicos do corpo-sujeito fundem-se em padres corporais

    mais amplos que proporcionam um determinado m ou necessidade.

    Simples movimentos de brao, perna ou tronco sintonizam-se com uma

    linha especial de trabalho ou de ao e dirigem-se espontaneamente

    para satisfazer as necessidades iminentes. Ao usar as palavras

    suave, uir, e ritmo, as observaes indicam que o bal do corpo

    orgnico e integrado, em vez de gradativo e fragmentado. Uma vez

    tendo dominado as operaes bsicas de uma atividade, o corpo-

    sujeito pode variar seus comportamentos criativamente para atender

    rapidamente a demanda particular impendente.

    Similar dana-do-corpo, a rotina espao-temporal um conjunto

    de comportamentos corporais habituais que se estendem ao longo

    de considervel poro de tempo. Relatos do grupo de experincia

    ambiental indicam que grandes partes do dia de uma pessoa podem

    ser organizadas em torno de algumas rotinas. Um membro do grupo

    descreveu uma rotina matinal que ele segue, exceto aos domingos.

    Ele est de p s sete e trinta, arruma sua cama, vai ao banheiro e

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    sai de casa s oito. Ele ento caminha at a cafeteria na esquina, que

    ca no alto da rua, pega o jornal (que temque ser o New York Times),

    ordena qual ser a sua alimentao (um ovo mexido, torrada e caf),

    e ca l at aproximadamente nove horas quando ele vai caminhando

    para o seu escritrio, que prximo. Um segundo membro do grupo

    descreveu a rotina de tempo-espao que a sua av seguia: ela sempre

    estava em um lugar especco, em um horrio especco e geralmente

    fazendo algo especco l. Entre seis e nove, por exemplo, a av estaria

    trabalhando na cozinha; entre nove e doze, costurando na varanda.

    Estes depoimentos indicam que estas sries de comportamentos

    que so neles mesmos danas-do-corpo (a rotina do banheiro ou de

    costurar) fundem-se em padres maiores, tambm dirigidos pelo

    corpo-sujeito. Como o primeiro membro explicou, ele no descobre a

    sua rotina de cada dia; em vez disso, ela se desdobra e eu a sigo. A

    mudana da rotina pode causar irritao: eu realmente gosto desta

    rotina e eu tenho notado como eu me sinto incomodado quando parte

    dela me chateia por exemplo, se o Timesestiver esgotado, ou se as

    mesas estiverem tomadas e eu tiver que sentar no balco.

    A rotina espao-temporal possui um certo padro holstico no qual,

    como o prprio movimento, bem descrita pela palavra desenrolar.

    Quando uma pessoa estabelece uma srie de rotinas espao-

    temporais, no seu dia comum ou agenda semanal, grandes partes do

    seu dia podem proceder com o mnimo de planejamento e deciso.

    A pessoa pode se tornar atrelada a estas rotinas; interferncias,

    como a descrita acima, indicou que podem gerar estresse. As rotinas

    espao-temporais so componentes essenciais da vida diria porque

    elas se apropriam de atividades automaticamente durante o tempo.

    Elas mantm uma continuidade na vida das pessoas, permitindo s

    mesmas fazerem automaticamente no momento presente o que elas

    aprenderam no passado. Ao administrar a rotina, aspectos repetitivos

    da vida diria, ela liberta as pessoas da ateno cognitiva para eventos

    e necessidades mais signicantes. Por outro lado, estas rotinas espao-

    temporais podem ser difceis de quebrar ou mudar. Neste sentido, elas

    so uma fora conservativa que podem ser um considervel obstculo

    a progressos teis ou mudana.

    Em um ambiente fsico que concede suporte, as rotinas espao-

    temporais e as danas-do-corpo dos indivduos podem se fundir em um

    todo maior, criando um espao-ambiente dinmico chamado dana-

    do-lugar9. A dana-do-lugar uma fuso de muitas rotinas espao-

    temporais e danas-do-corpo em termos de lugar. Seu resultado

    pode ser a vitalidade ambiental como as que so vistas em North End,

    em Boston ou em Greenwich Village, em Nova York. Ele gera um forte

    sentido de lugar por conta da contnua e regular atividade humana.

    A familiaridade decorrente da rotina um dos ingredientes da

    dana-do-lugar. Um membro do grupo descreveu o seu trabalho em

    uma loja de balas. Ela conhecia os fregueses pelo rosto, porque muitos

    vinham para l regularmente durante as suas horas de trabalho. Ela

    apreciava esta interao, pois isso ajuda o tempo a passar mais rpido

    e me traz pessoas para conversar. De forma similar, ao descrever a sua

    rotina matinal um membro do grupo explicou que l existem outros

    clientes regulares como ele a cada manh. Suas presenas em cada

    dia geram um sentido de amizade e familiaridade no qual ele sente

    que no estariam l se eles fossem novos rostos a cada dia. Nestes

    exemplos, as rotinas individuais se encontram em termos de lugar. A

    regularidade gerada pode tambm produzir um clima de familiaridade

    9 A expresso original (em ingls) criada por David Seamon chamada de Place-ballet.Na traduo literal do termo chegamos expresso bal do lugar, bastante utilizadae consagrada em textos acadmicos na rea de Geograa e Humanidades. Entretan -to, cremos que o uso que Seamon faz da expresso mais amplo do que se referir aum estilo de dana, referindo-se ao movimento dos corpos, como uma coreograa dedana. Neste sentido, acreditamos que Dana-do-lugar talvez expresse de forma maisampliada e imediata o sentido original do termo (N. da T.).

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    o qual os participantes apreciam e para o qual crescem ligados. Esta

    regularidade no intencional e s ocorre com o decorrer do tempo e

    muitos encontros acidentais repetidos. No seu alicerce est a fora

    habitual do corpo-sujeito, que sustenta uma continuidade pautada em

    padres corporais do passado.

    C

    Para a geograa e outras disciplinas que se preocupam com o

    ambiente e o lugar, as noes de dana-do-corpo, rotina espao-

    temporal e dana-do-lugar possuem valor porque elas unem as

    pessoas com espao, lugar e tempo. Embora os exemplos acima

    sejam limitados e vinculados cultura, seus subjacentes padres de

    experincia transcendem determinados contextos sociais e temporais,

    e podem ser encontrados em todas as situaes humanas, passadas

    e presentes, ocidentais e no ocidentais. Hockett (1973, p. 13-14),

    por exemplo, retratou a rotina diria tpica dos Menomini, uma tribo

    indgena que viveu na costa norte-ocidental do Lago Michigan, no

    sculo XVII. As mulheres levantavam na madrugada para buscar gua,

    atear fogo e preparar o caf da manh, que uma das duas refeies

    dirias. Aps o caf da manh, os homens e os meninos vo para os

    campos de caa e pesca, enquanto as mulheres cuidam da colheita,

    processam o alimento, colhem plantas comestveis, tecem e cuidam

    das crianas.

    Rotinas espao-temporais e danas-do-corpo so a base deste tpico

    padro dirio. As atividades seguem uma sequncia que largamente

    habitual e no premeditada. As atividades das mulheres so rotinas

    espao-temporais estendidas incorporando muitas danas-do-corpo

    individuais buscar gua, acender o fogo, cuidar da colheita e tecer.

    Cada atividade necessita de uma combinao particular de gestos e

    movimentos que manipulam corretamente materiais com as mos

    e produzem o desejado artefato ou meta. A habilidade de tecer,

    por exemplo, um conhecimento das mos, que h muito tempo

    aprenderam a sequncia prpria e ritmo, e podem agora conduzir seus

    trabalhos rpida e automaticamente.

    Pode-se tambm visualizar na cena acima uma srie de danas-

    do-lugar se desenrolando durante todo o dia dos Menomini. Ele pode

    imaginar, por exemplo, a reunio das mulheres no crrego para buscar

    gua e a participao em conversas. Este lugar no apenas uma

    fonte de gua, mas uma cena de interao da comunidade e de uma

    comunicao que se repete a cada manh, por conta da regularidade

    em se buscar gua. A estrutura subjacente desta dana-do-lugar

    no diferente das contemporneas cenas urbanas que Jane Jacobs

    descreve na quadra onde um dia ela viveu em Greenwich Village (Nova

    York):

    O trecho da rua Hudson, onde eu vivo, a cada dia uma cenade um intricado bal nas caladas. Eu fao a minha entradanisto um pouco aps as oito, quando eu coloco o lixo para fora,seguramente uma ocupao prosaica, mas eu aprecio a minhaparte, meu pequeno som estridente, enquanto as multides deestudantes ginasiais caminham pelo centro da rua, deixando cairembalagens de doces... Enquanto eu varro as embalagens, euobservo os outros rituais da manh: Sr. Halpart desenganchandoo carrinho de mo da lavanderia de sua amarrao a uma

    porta do poro. O alhado do Joe Cornacchia empilhando ascaixas vazias da delicatessen, o barbeiro trazendo a sua cadeiradobrvel para a calada, Sr. Goldstein organizando os rolos dearame que indicam que a loja de ferragens est aberta, a mulherdo superintendente dos apartamentos deixando a sua crianade trs anos com um bandolim de brinquedo na varanda, sob oponto de vista que ele est aprendendo o ingls que a me nosabe falar. Agora as crianas do primrio, indo para St. Luke,partem para oeste, e as crianas da P.S. 41, indo em direo doleste (JACOBS, 1961, p. 52-3).

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    A essncia experiencial dos processos que ocorrem na rua Hudson,

    na vila Menomini, e na cafeteria da esquina so os mesmos, embora

    na aparncia cada lugar consideravelmente diferente dos outros.

    Pessoas chegam juntas no tempo e espao como cada indivduo est

    envolvido em sua prpria rotina espao-temporal e dana-do-lugar.

    Eles reconhecem uns aos outros e s vezes participam de conversas.

    Fora destas cotidianidades, as dinmicas interpessoais garantidas,

    estes espaos de atividade desenvolvem um sentido de lugar onde

    cada pessoa faz sua pequena parte em criar e manter.

    Estes lugares so mais do que localidades e espaos para serem

    transpassados. Cada um abriga um dinamismo que aora naturalmente

    sem interveno direta. Estes espaos assumem a qualidade que Relph

    (1976, p. 55) chamou de interioridade existencial uma situao

    em que um lugar experienciado sem deliberada e autoconsciente

    reexo e ainda pleno de signicados. Relph prossegue ao dizer

    que a interioridade existencial o grande alicerce da experincia do

    lugar, e este apontamento ecoado na dana-do-lugar. Por meio de

    padres habituais de encontro no tempo e espao, uma rea pode

    se tornar um lugar, dividido pelas pessoas que l entram em contato

    espao-temporal. O dinamismo deste lugar largamente proporcional

    ao nmero de pessoas que dividem este espao e, deste modo,

    compartilham seu tempo e vitalidade.

    I

    Se um gegrafo ir estudar os espaos, lugares e ambientes

    que a pessoa tipicamente vive e habita seu espao vivido, como

    fenomenlogos s vezes falam (BOLLNOW, 1967) ele necessita

    reconhecer que este espao primeiramente fundamentado no corpo.

    Por meio do corpo-sujeito, a pessoa sabe onde ela est em relao a

    objetos familiares, lugares e ambientes, os quais constituem seu mundo

    geogrco de todos os dias. No importa o contexto histrico e cultural,

    a pedra fundamental de sua experincia geogrca o pr-reexivo

    estrato corporal de sua vida seu espao vivido corporeamente.

    Bem como os movimentos habituais em grande ambientes, seu

    espao vivido corporeamente incorpora os menores gestos, como

    pisar, voltar, chegar, e os padres estendidos da dana-do-corpo e da

    rotina espao-temporal. Pela explorao das pores corporeamente

    vividas, o gegrafo ganha um quadro de estabilidade, foras habituais

    de um particular mundo vivido. Ele pode melhor entender o quanto

    inconscientes padres dentro de um lugar em especco continuam

    a fazer do lugar o que ele era no passado. Ademais, ele pode estar

    melhor preparado para prever o efeito de mudanas ambientais e

    sociais nesta estabilidade.Um forte padro nesta sociedade moderna a fragmentao

    do espao e do tempo: a casa separada do mercado, vizinhanas

    so separadas por vias expressas, o trabalho separado do lazer.

    Ao mesmo tempo, crticos sociais falam da alienao crescente e

    do gradual colapso da comunidade, que Slater (1970, p. 5) deniu

    como o desejo de viver em conante e fraterna cooperao com um

    membro em total e visvel entidade coletiva. Se a comunidade um

    importante componente na satisfao da existncia humana, e se a

    comunidade est se erodindo atualmente, o gegrafo pode indagaro que a comunidade em termos de experincia e como ela pode ser

    reforada. A dana-do-lugar pode ter papel considervel na conduo

    desta questo porque traz as pessoas regularmente para o face a face,

    que de outra maneira provavelmente no se conheceriam. Neste

    sentido, ao dana-do-lugar gera uma cooperao interpessoal e a

    conana que Slater aponta.

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    A dana-do-lugar tem uma particular importncia na natureza da

    vizinhana, que a economista Barbara Ward uma vez deniu como um

    lugar onde

    Crianas crescem sem serem atropeladas, onde amigos podem

    se encontrar, onde aquele recurso profundamente rejeitado,duas pernas humanas, podem ser recuperadas e usadas, ondea sociabilidade e as trocas da existncia humana podem ocorrerde forma civilizada (WARD apud HORSLEY, 1978, p. 1-2).

    Em um sentido, esta denio de sociedade encontrada na dana-

    do-lugar. Ward sugere uma comunidade em um lugar fundamentada

    em uma escala corprea e continuidade interpessoal. Em parte, este

    lugar deve ser baseado na familiaridade: pessoas se conhecendo bem

    o suciente para que elas possam confortavelmente interagir. Uma

    parte desta familiaridade pode muito bem ser o resultado de uma

    regularidade inconsciente. A base habitual, contudo, no signica

    precisamente a dinmica de uma vizinhana previsvel, composta por

    humanos-robs continuamente repetindo os mesmos conjuntos de

    comportamento. Em vez disto, a regularidade pr-cognitiva da dana-

    do-lugar proporciona uma base, a partir da qual pode surgir a surpresa, a

    novidade, o inesperado: a espontaneidade da brincadeira das crianas,

    vizinhos se esbarrando, um grupo da comunidade rapidamente se

    organizando para se opor a uma proposta de alargamento da rua.A estabilidade e a continuidade do lugar, portanto, so, ao menos

    parcialmente, responsveis pela civilizada rede de interaes que Ward

    apontou em sua denio sobre vizinhana. Ao mesmo momento, esta

    ordem em termos de lugar estabelece um padro de regularidades em

    torno do qual a progresso de eventos mutveis e episdios podem

    ocorrer. Lugares, em outras palavras, precisam de regularidade e

    variedade, ordem e mudana. A dana-do-lugar um dos meios pelo

    qual um lugar pode passar a ter estas qualidades.

    A vizinhana apenas um exemplo de dana-do-lugar. Qualquer

    situao em que ao menos alguns usurios vm juntos regularmente

    por exemplo, sala de estar, cafeteria, prdio de negcios, mercado

    podem promover a base para uma dana-do-lugar. Ao mesmo

    tempo, contudo, muitas danas-do-lugar parecem estar se erodindo

    e desaparecendo. A tendncia, como Relph (1976, p. 117) nos lembra,

    para um ambiente com poucos espaos signicantes em direo

    a uma geograa do deslugar10, de paisagens comuns e padres de

    prdios sem sentido.

    Neste sentido, a noo de dana-do-lugar tem importantes

    implicaes tericas e prticas. Primeiro, ela une pessoas, tempo e lugar

    em um todo orgnico e retrata o lugar como uma distinta e autntica

    entidade. No passado, muitas abordagens sobre o relacionamento

    pessoa-ambiente tm sido fragmentadas e mecanicistas: o lugar

    somente a soma dos comportamentos de seus indivduos. Em contraste,

    a dana-do-lugar retrata um todo maior que os seus elementos: o

    lugar uma dinmica entidade com uma identidade to distinta como

    os indivduos e elementos ambientais que abrangem aquele lugar. A

    dana-do-lugar, em outras palavras, uma sinergia ambiental na qual

    homens e partes materiais involuntariamente promovem um todo

    maior, com seu prprio ritmo e carter especiais. Um mercado ao ar

    livre, por exemplo, pode ser pautado em transaes econmicas, mas

    consideravelmente mais do que apenas estas transaes (NORDIN,

    1976). O mercado assume uma atmosfera de vitalidade, camaradagem,

    10 Relph utiliza a expresso placelessness para se referir ausncia da capacidade deconstituio do lugar (lugaridade), o que poderia ser entendido tambm como lugar--sem-lugaridade, que se constitui em outra traduo possvel para placelessness. (N.da T.).

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    excitao at mesmo alegria. Encontrar amigos e conhecidos se

    torna to importante quanto comprar (SEAMON; NORDIN, 1980).

    Para o planejamento ambiental, portanto, a dana-do-lugar

    fornece conceitos em torno da construo de polticas e modelos. Que

    lugares possuem quais tipos de danas-do-lugar? Seria o lugar um

    melhor ambiente humano se tiver danas-do-lugar? Para residentes

    destes lugares, a noo de dana-do-lugar especialmente valiosa.

    As pessoas reconhecem, inconscientemente, o signicado da dana-

    do-lugar, mas geralmente por conta da atitude natural no possuem

    meios renados para articular a entidade em termos claros. A dana-

    do-lugar faz uma implcita dimenso do mundo vivido explcita. Ele

    proporciona um articulado conceito que pode ser valioso para criar,

    regenerar e proteger lugares11.

    Rf

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    Submetido em Novembro de 2012.

    Aceito em Janeiro 2013.de 2013.