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8º Encontro da ABCP 01 a 04/08/2012 Área Temática: Cultura Política e Democracia CONSTRUÇÕES E DESCONSTRUÇÕES DEMOCRÁTICAS NO CONTEXTO DA CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA. Guillermo de Ávila Gonçalves Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG) / Docente Universidade Federal de Goiás / Faculdade de Educação / Doutorando

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8º Encontro da ABCP

01 a 04/08/2012

Área Temática: Cultura Política e Democracia

CONSTRUÇÕES E DESCONSTRUÇÕES DEMOCRÁTICAS NO CONTEXTO DA

CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA.

Guillermo de Ávila Gonçalves

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG) / Docente

Universidade Federal de Goiás / Faculdade de Educação / Doutorando

CONSTRUÇÕES E DESCONSTRUÇÕES DEMOCRÁTICAS NO CONTEXTO DA CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA.

Guillermo de Ávila GonçalvesDoutorando em Educação / Faculdade de Educação / UFG; Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG).

[email protected]

RESUMO: Este trabalho aborda a formação histórica da cultura brasileira, se referenciando teoricamente em autores como Bosi, Carvalho, DaMatta e Holanda com o objetivo de discutir as tensões e as contradições inerentes à citada cultura. Para além disso, essa produção debate as construções e desconstruções da democracia brasileira à luz da teoria do Estado Ampliado de Gramsci, das concepções democráticas que emanam de Rousseau e do discurso de Coutinho acerca da tradicional orientalização e da recente ocidentalização da formação político-social brasileira. A análise realizada apresenta os tensionamentos existentes entre as sociedades política e civil durante os quinhentos anos de existência “oficial” do Brasil e sinaliza, na dependência de recortes temporais e espaciais e de específicas correlações de força em disputa, os fenômenos de fortalecimento e enfraquecimento da democracia em nosso país.

INTRODUÇÃO

A vida política brasileira, notadamente nos quatro primeiros séculos de

história oficial do país, se constituiu como um privilégio (ou uma propriedade) de

elites sociais, econômicas e étnicas portuguesas e brasileiras que excluiu

trabalhadores, operários, imigrantes, mulheres, escravos e analfabetos do

exercício e do usufruto de direitos individuais e civis fundamentais como o de

expressão, o de ir e vir e o do voto.

No final do século XIX, quando o Brasil proclamava a República, a

Revolução Francesa e sua herança liberal-democrática comemoravam seu

centenário. Os descompassos entre as realidades européia e sulamericana não

foram apenas de época, mas de conteúdo, uma vez que entraves para a

construção da democracia sempre estiveram na linha de frente dos

acontecimentos da história brasileira, mesmo no moderno século XX. Os anos de

pouca liberdade e muita desigualdade extrapolaram as fronteiras do Brasil

Colônia e do Império e adentraram a República, aquela que segundo José Murilo

de Carvalho (2009) “não foi” ou não se constituiu como tal. O quadro político (ou

apolítico, se optarmos pela abrangência da participação popular nos destinos da

nação) apresentado inviabilizou a consolidação de uma democracia plena e

efetiva no Brasil, segundo referenciais socialistas, como os que provém de

Gramsci e de Coutinho, ou liberais-democráticos, como os que emanam de

Rousseau.

A histórica inviabilização de uma plena democracia brasileira deixa à

mostra fenômenos sociais, políticos, econômicos e culturais que contribuíram

para o enfraquecimento (ou a desconstrução) de projetos democráticos, mas

também fatos e circunstâncias que fortaleceram (ou construíram) avanços

parciais no campo da soberania popular em nosso país. A abordagem crítica das

construções e desconstruções democráticas na seara política brasileira

representa a essência deste texto, que busca como referenciais teóricos a utopia

democrática em Rousseau, a teoria do Estado Ampliado de Gramsci e as

concepções de Coutinho acerca da tradicional orientalização e da recente

ocidentalização da formação político-social existente no Brasil.

A compreensão a respeito da formação político-social brasileira, de modo

geral, bem como da gênese de nosso Estado nacional, de forma específica,

requer uma análise mais cuidadosa sobre a formação de nossa cultura com suas

tensões e contradições: para a realização dessa missão recorremos às

contribuições de Bosi, Carvalho, Freyre, DaMatta e Holanda (notadamente os dois

primeiros, por privilegiarem abordagens dialéticas), que são autores que discutem

os meandros das vidas social, política e institucional do Brasil em seus pouco

mais de quinhentos anos de história oficial.

Nossas análises sobre a formação cultural brasileira são realizadas

segundo perspectivas diferenciadas: aquela que representa tendência romântica

(ou mesmo fantasiosa) sobre o Brasil como templo da miscigenação étnica e da

democracia racial; outra que compara a colonização ibérica a que fomos

submetidos à dominação anglo-saxônica; e ainda outra, que destacamos como

sendo a mais significativa, que apresenta tensões e contradições inerentes a vida

político-social da nação, tais como as presentes no pares dialéticos público e

privado, coletivo e individual, participação política e apatia social, associação

política e associação comunitária, além de cidadania e estadania.

Em um momento posterior abordamos as construções e desconstruções

democráticas propriamente ditas, as quais dependem de recortes temporais

específicos, não sem antes discutirmos o conceito de democracia, que sofre

variações de acordo com o período histórico e com os autores de referência.

Nesse sentido diferenciamos a democracia clássica e direta dos gregos antigos

da democracia moderna em Rousseau, bem como acrescentamos às

democracias contemporâneas os subsídios de contornos comunistas e socialistas

formulados por Gramsci e Coutinho.

Por fim apresentamos nossas considerações finais, que traçam sínteses

acerca da formação cultural do Brasil e de suas construções e desconstruções

democráticas e estabelecem perspectivas para o porvir.

A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA CULTURA BRASILEIRA: ALGUNS ASPECTOS

POLÍTICOS

A apreensão da essência da cultura brasileira, a delimitação de seus

contornos e a identificação de suas formas de efetivação representam um desafio

cuja complexidade se compara àquela do processo que, pela via das

contribuições de diferentes grupos étnicos em momentos diversificados da história

do nosso país, viabilizou a gênese desta mesma cultura. A geografia continental

do Brasil e os acontecimentos históricos que tiveram lugar em nosso país nos

últimos séculos propiciaram a formação de culturas regionalizadas que se

articularam na constituição de uma cultura nacional permeada por tensões entre

pólos continuamente (des)equilibrados.

A cultura brasileira, dependendo das perspectivas do cientista político ou

social, do antropólogo ou do intelectual que estuda o objeto, pode ser interpretada

a partir de diversas manifestações, dentre as quais podemos citar os modos de

socialização, a (des)politização, as constituições dos matrimônios, as formas de

estruturação familiar, a religiosidade, as festas folclóricas, a culinária e o futebol.

Entendemos que uma abordagem histórica da formação da cultura brasileira,

notadamente no que se refere ao seu espectro político, deve se colocar no

patamar de um pensamento dialético que revele as contradições e as tensões

instaladas entre os atores coexistentes nas esferas institucionais e sociais de

poder. Autores como Alfredo Bosi, José Murilo de Carvalho e Carlos Nelson

Coutinho, que compreendem a cultura brasileira não como um retrato definitivo do

pensamento e do comportamento nacionais, mas como um processo em

permanente construção, são os apoios de que necessitamos com o intuito de

assegurar a análise acerca de polarizações historicamente construídas e

reconstruídas. Ainda que colocadas em um segundo plano (por se

fundamentarem em visões algo românticas acerca da formação cultural

brasileira), as contribuições de Roberto DaMatta, Gilberto Freyre e Sérgio

Buarque de Holanda não são por nós negligenciadas.

Os textos de Freyre, por exemplo, afirmam a fantasia tropical brasileira

constituída pelas interações sociais e miscigenações étnicas das quais teriam

emergido as figuras dos mulatos, caboclos e cafuzos inseridos em um panorama

de democracia racial. Análises mais apuradas (ou mais críticas), no entanto,

rejeitam as teses de Freyre ao reduzirem a citada fantasia tropical a um processo

violento e impositivo perpetrado pelo branco europeu contra os índios nativos

brasileiros e os negros trazidos à força da África.

Já Holanda, outro importante estudioso da colonização brasileira, faz uma

leitura de nossa história alicerçada em traços marcantes do conquistador

português, como o individualismo, o espírito de aventura como emblema da

oposição ao trabalho, a cordialidade e um comportamento naturalmente inquieto e

desordenado. Tais determinantes psicológicas teriam sido assimiladas pelo

homem brasileiro segundo um processo de feliz aclimação e solidariedade

cultural, expressão cunhada por Holanda que remete à interação, não à

imposição (BOSI, 2001).

Da Matta (1986), por sua vez, afirma a existência de dois brasis: o país dos

critérios quantitativos, classificado de acordo com dados demográficos e

econômicos que indicam que sempre nos falta algo; e a nação humanizada que

vale a pena, identificada através de análises qualitativas que evidenciam as

delícias da amizade, da saudade, da gastronomia e da música.

Por outro lado, nossos autores de referência, Bosi e Carvalho, identificam

na formação cultural brasileira a existência de inúmeras polaridades que,

permanentemente tensionadas, influenciam de modo destacado a cultura política

do nosso povo. Algumas destas tensões são, por exemplo: o público em

contraposição ao privado, o coletivo em oposição ao individual, a participação

política em oposição à apatia social, a associação política contraposta à

associação comunitária, a cidadania disposta em sentido contrário à estadania e à

pátria, e até mesmo a racionalidade emancipatória que se contrapõe a uma razão

intrumental, segundo uma perspectiva frankfurtiana.

No caso específico de Carvalho, faz-se necessário um esclarecimento

preliminar: sua obra intitulada Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República

que não foi, fonte fundamental de pesquisa para a elaboração deste artigo,

aborda de forma central a primeira capital de uma República que não se constituiu

como tal. Assim, apesar de alguns relatos feitos pelo autor terem recorte regional,

a República foi evidentemente proclamada no contexto nacional, para o qual se

dirigem, com os devidos cuidados e ressalvas, os elementos constitutivos de uma

cultura política mais ampla.

A constituição da cultura política brasileira possui raízes no mercantilismo

burguês europeu, sucessor do feudalismo e antecessor da Revolução Industrial,

que encontrou nas colonizações da América Latina e da África as condições

ideais para a sua expansão. Neste contexto de expansões marítimas e coloniais

os portugueses retiraram do Brasil madeira, açúcar e ouro, em ciclos sucessivos

de exploração econômica que proporcionaram inúmeras transformações na rede

social indígena que habitava nosso país antes do ano 1500 (BOSI, 2001).

Marx afirma que processos de colonização, sendo geralmente motivados

por interesses econômicos, usualmente se associavam ao extermínio ou à

escravidão dos nativos das colônias, o que acarretava interações sociais

violentamente constituídas. Marx vai além, quando diz que os horrores bárbaros

do sobretrabalho civilizado e da escravidão, típicos de muitos sistemas coloniais,

forjaram a gênese da cultura política do povo brasileiro (BOSI, 2001).

Bosi (2001) desconstrói os conceitos consensuais da interação e da

miscigenação quando relata que o colonizador se apropriou de bens materiais e

culturais do negro e do índio na medida em que tais bens se mostravam

convenientes a partir da perspectiva unilateral do dominador. Para o autor o

português se apropriou da culinária e das mulheres colonizadas objetivando seu

bel prazer, muito mais de acordo com o contexto da imposição do que da

reciprocidade. A democracia racial embutida na miscigenação, amplamente

defendida por Gilberto Freyre, na verdade se extinguia no contato físico, uma vez

que os filhos de escravas com fazendeiros não adquiriam o status dos filhos

legítimos destes últimos. As escravas, mães de filhos ilegítimos, não ascendiam à

condição de senhoras de engenho, o que configura a democracia racial como

elemento desvinculado da generosidade social. Como bem escreve Bosi (2001,

p.28), “a libido do conquistador teria sido antes falocrática do que democrática, na

medida em que se exercia quase sempre em uma só dimensão, a do contato

físico”, com a inexistência de aspectos afetivos, sociais e econômicos derivados

das relações mantidas entre proprietários de terra e negras e/ou índias.

A colonização brasileira, seguindo a norma constitutiva das colonizações

em geral, não se efetivou pelo consenso, mas pela força que subjugou idéias,

hábitos, crenças, costumes, tradições e práticas sociais. A hegemonia da cultura

portuguesa limitou a expressão dos costumes indígenas, em um primeiro

momento, e africanos, posteriormente, mas não eliminou os traços de resistência

destas culturas particulares nem consolidou em sua integralidade a tradição

lusitana. A cultura resultante da colonização não é exatamente a do colonizador,

tampouco a do colonizado.

A constituição da cultura brasileira ocorreu historicamente na dependência

de fatores sociais e econômicos que determinaram formas específicas de relação

entre colonizador e colonizado, descritas por Bosi (2001) a partir das seguintes

características: a consolidação de latifúndios comprometidos com o mercantilismo

europeu, com a demanda do tráficos de escravos africanos e com a consequente

formação de uma força escrava de trabalho; a existência de contínua

dependência do negro em relação às elites sociais, mesmo depois da abolição da

escravatura; o tensionamento constante entre os poderes locais vinculados às

oligarquias e as determinações da Coroa Portuguesa; as limitações para o

exercício da cidadania provocadas pelo Estado absolutista e pela distribuição

interna de forças; a escassa representatividade política da população, situação

pouco alterada com o advento do Império; a presença dos ideais de uma Igreja

supranacional viabilizada pela catequização jesuítica dos índios; a elitização

social associada à alfabetização e a inexistência de mobilidade social vinculada

ao domínio das letras.

Em função das características supracitadas Bosi (2001, p. 25) diz quea formação colonial no Brasil vinculou-se: economicamente, aos interesses dos mercadores de escravos, de açúcar, de ouro; politicamente, ao absolutismo reinol e ao mandonismo rural, que engendrou um estilo de convivência patriarcal e estamental entre os poderosos, escravista ou dependente entre os subalternos.

Carvalho (2009), ao discorrer sobre o Rio de Janeiro dos primeiros tempos

republicanos, diz que as heranças do passado escravista e colonial brasileiro

representaram obstáculos para o desenvolvimento das liberdades civis e para o

estabelecimento de relações saudáveis entre os cidadãos e o governo. O mesmo

autor explica que a primeira capital da República, o Rio de Janeiro, não se

constituiu como cidade burguesa associada à democracia moderna; assim não foi

instalado um sistema republicano de fato, ainda que a Proclamação da República

em 1889 o tenha instalado de direito: o Brasil deixava uma antiga ordem, a

imperial, sem que se efetivasse verdadeiramente uma nova ordem política.

Ainda no contexto das heranças coloniais Carvalho (2009) destaca a

formação do povo brasileiro influenciada pela cultura ibérica, que por sua vez se

fundamentava nas predominâncias da família, do grupo de trabalho e do Estado.

As conseqüências de tais elementos seriam a escassez de organização, de

solidariedade e de consciência coletiva e, no plano político, o fisiologismo. Não

constaria de nossa formação, ao contrário do ocorrido em colônias anglo-

saxônicas, a figura do individualismo conectado à iniciativa privada, à produção e

às participações política e associativa.

Anníbal Falcão, citado por Carvalho (2009), vislumbra as contribuições das

culturas ibérica e anglo-saxônica segundo outra ótica: para ele as culturas

portuguesa e espanhola viabilizavam uma sociabilidade de fundamentação

afetiva, moral, participativa, associativa e integrativa, enquanto a tradição anglo-

saxônica, no âmbito de suas raízes protestantes e individualistas, estaria voltada

para a ciência, a competição e o acúmulo de bens materiais. O mesmo Falcão diz

que seria de se esperar que a cultura integrativa conduzisse o Brasil a uma

ditadura republicana de natureza coletiva.

Carvalho (2009) diz ainda que as cidades brasileiras se viram, no alvorecer

da República, diante de um impasse representado por duas tradições

antagônicas: a cultura familiar, integrativa e comunitária em oposição à tradição

liberal individualista. O embate entre estes opostos teria conduzido à formação de

um novo híbrido, que não conteria os resquícios integrativos da monarquia

apoiada pelo povo tampouco os fundamentos de associação do Estado liberal

democrático. A República recém instalada respirava ares liberais, que no entanto

não foram capazes de promover de fato a liberdade e a participação populares.

Carvalho (2009) retoma a discussão acerca das tensões existentes entre

princípios ibéricos e anglo-saxônicos envolvidos na formação da cultura política

brasileira ao abordar a dicotomia entre o individual, tomado nas perspectivas da

cidade burguesa e da colonização anglo-saxônica, e o coletivo, vislumbrado a

partir da integração e incorporação de origem ibérica. O mesmo autor

compreende que tal dicotomia se assenta na organização da cidade medieval da

Europa ocidental, de acordo com estudos de Max Weber.

A cidade européia da Idade Média contribuiu decisivamente para a

consolidação da moderna sociedade industrial capitalista, fundamentada em uma

associação de produtores individuais capaz de estabelecer novas concepções de

legitimidade política (CARVALHO, 2009). Tal legitimidade levava à formação dos

cidadãos segundo a nova ordem burguesa. Para Carvalho (2009, p.147), esta

nova legitimidade foi a primeira entidade política moderna, precedendo o próprio Estado

moderno ao qual se opunha. Tornou-se autônoma, com justiça própria, finanças próprias, defesa própria, governo próprio. E quebrou a base associativa da sociedade anterior, ignorando condicionamentos estamentais, eclesiásticos, familiares. O novo cidadão era admitido em termos estritamente individuais. Surgia literalmente uma nova sociedade baseada na associação livre de produtores.

A cidade burguesa, segundo o modelo weberiano, trazia consigo a gênese

do capitalismo empresarial e de trabalho livre, da sociedade liberal, do

racionalismo formal e do individualismo, dentre outros elementos que foram

apropriados pelo Estado moderno. A cidade moderna, por sua vez, se constituiu

sobretudo no norte europeu, enquanto no sul e no sudoeste da Europa, como no

caso das sociedades ibéricas, houve ruptura menor com os padrões medievais.

Portugal e Espanha, por não terem se envolvido diretamente com a Reforma

Protestante e com a revolução científica, não cultivaram o individualismo e outros

valores burgueses na mesma proporção da Inglaterra, por exemplo (CARVALHO,

2009).

Carvalho (2009) afirma que a cultura anglo-saxônica se fundamentava na

predominância do indivíduo sobre o todo, na hegemonia da liberdade (equilibrada

com a ordem) e na constituição da tensão entre liberalismo e democracia. No

caso da cultura ibérica, da qual somos tributários, o liberalismo teria se constituído

de forma maquiavélica e a democracia teria assumido compromisso explícito com

o populismo.

A propósito do explicitado no parágrafo anterior, talvez possamos dizer que

alguns governos de “esquerda” atualmente instalados na América do Sul, como

os de Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia), representem a

confirmação da tese da existência de um populismo de raízes ibéricas habitando

entre nós, o que não se constituiria em fato inédito se nos recordarmos do

governo brasileiro de Getúlio Vargas e dos caudilhos que comandaram

politicamente a América Latina nos séculos XIX e XX.

Não tendo o povo brasileiro, por fatores que remontam à nossa história

colonial, se configurado a partir da ética do individualismo e da prosperidade,

estabeleceu-se o padrão da incorporação e da integração sociais de aspecto

comunitário, o que implicou em privilégios das associações clubísticas,

futebolísticas e carnavalescas sobre as articulações políticas. Assim, nos

deparamos com outro tensionamento, que coloca em pólos opostos os

associativismos comunitário e político.

De acordo com Carvalho (2009), o alvorecer da República brasileira

representou um fracasso em termos de capacidade de articulação política da

população, uma vez que as associações desta natureza possuíam duração

efêmera e limitada ao período de existência dos problemas que a elas deram

origem. Neste contexto pode-se dizer que as ações de organização política

segundo os pressupostos liberais foram débeis, tanto que a população não se

comprometia nem com os processos eleitorais nem com a fundação e

manutenção de partidos operários e organizações políticas não-partidárias.

Os cidadãos da República recém-instalada, inativos do ponto de vista

político, se articulavam efetivamente ao redor de festas, rituais religiosos, eventos

esportivos e do Carnaval. As mesclas de estratos sociais e raças aconteciam

nesses espaços, o que levou Carvalho (2009, p. 142) a afirmar que “tipicamente,

o encontro de governantes com o povo dava-se fora dos domínios da política”. O

espírito associativo popular, segundo o mesmo autor, se organizava sobretudo

através das irmandades religiosas e de auxílio mútuo: assim o associativismo

cooperativo e assistencialista reduzia sistematicamente os espaços de luta e

resistência política. Alguma ação política existia, quando muito, na contestação de

arbitrariedades cometidas pelo governo, não na perspectiva de participação

organizada no âmbito do Estado.

A participação política sistematizada, aliás, se coloca em oposição à apatia

social, o que configura outro tensionamento existente no quadro cultural em que

está inserido o cidadão brasileiro. Carvalho (2009, p.146-147) explica bem o

comportamento político do brasileiro dos primeiros anos republicanos, ao dizer

que:Permanecia, no entanto, o fato de que entre as reivindicações não se colocava a de participação nas decisões, a de ser ouvido ou representado. O Estado aparece como algo a que se recorre, como algo necessário e útil, mas que permanece fora do controle, externo ao cidadão. Ele não é visto como produto de concerto político, pelo menos não de um concerto em que se inclua a população. É uma visão antes de súdito que de cidadão, de quem se coloca como objeto da ação do Estado e não de quem se julga no direito de a influenciar.

A colocação do homem como súdito, e não como cidadão, tem sua origem,

conforme Telles (2001), em um conjunto formado por lei, cultura e tradições que

expressa uma sociedade autoritária incapaz de estabelecer direitos na

perspectiva da igualdade, porém determinada a proteger e tutelar os fracos e

desamparados. A privação de direitos, ainda que desmentida pelos discursos

políticos e jurídicos, estaria no centro da motivação para a perpetuação da

dependência do povo diante do Estado. O estereótipo do brasileiro obediente

então se consolidaria diante de um discurso formal de igualdade que convive

pacificamente com hierarquias que afirmam o autoritarismo e a força das elites e

oligarquias.

As raízes da apatia política brasileira provavelmente se vinculam a um

estado de dependência e subordinação historicamente construído, através do

qual diferentes senhores exerceram suas dominações: os conquistadores

portugueses, os proprietários de engenhos, os bandeirantes e os governos

populistas da República. A nação sucumbiu aos pés de diversos algozes, incapaz

de se organizar politicamente para lutar ou pelo menos resistir, enquanto o

associativismo comunitário das alegrias festivas representava o elemento central

da articulação popular. Como alternativa à apatia surgiu a composição, alicerçada

no familismo e no fisologismo daqueles que, na contramão do interesse público,

se alimentavam e se alimentam da burocracia estatal com o intuito de alcançarem

benefícios privados. O retrato histórico que resumidamente traçamos se mostra,

portanto, contemporâneo.

Histórica e contemporânea é também a tensão que se estabelece entre o

público e o privado na cultura brasileira. O privado é estabelecido pelo contrato

que regula o direito de propriedade, enquanto o público se traduz por aquilo que

pertence à sociedade constituída pelos indivíduos. Sendo o bem público um

elemento de pertencimento de todos, não pode ser configurado como um bem

cuja posse se estabeleça a partir do direito individual de propriedade. É nesse

quesito, no entanto, que reside prática social brasileira eticamente condenável, a

da apropriação particular dos bens e recursos públicos, o que contraria o

verdadeiro e esclarecido interesse público, aquele que segundo Arendt (2009)

somente poderá existir na perspectiva do respeito pela res publica, ou coisa

pública.

Carvalho (2009) cunhou, como emblema da busca do Estado para a

satisfação de desejos particulares, o neologismo estadania. Segundo o autor, a

estadania se traduz pela composição de indivíduos com a máquina burocrática

segundo uma lógica alimentária, o que alcançou até o movimento operário no

início da República. A estadania, de cunho clientelista, se coloca em tensão

diante da cidadania, na medida em que esta última se caracteriza pela associação

das pessoas no âmbito da participação política junto ao governo, pelo usufruto

dos direitos individuais, civis, políticos e sociais e pela justiça social relacionada

ao patrimônio coletivo. Evidentemente, as práticas sociais fundamentadas no

fisiologismo e no clientelismo ferem radicalmente princípios éticos de cidadania

comprometidos com a promoção do bem comum.

A cidadania brasileira dos primeiros anos republicanos, detentora de

caráter incompleto, admitia nítida dicotomia entre as sociedades civil e política.

Existia a previsão legal de direitos civis para todos, mas o direito político era

limitado a uma parcela reduzida da população, já que mulheres, pobres,

analfabetos, mendigos, menores de idade e setores militares e religiosos não

podiam exercer o direito do voto. A situação dos analfabetos era particularmente

injusta, pois a Constituição republicana retirava a educação primária da esfera

das obrigações do governo, o que perpetuava o analfabetismo: estabelecia-se,

assim, uma ordem liberal antidemocrática que punia os excluídos pelo próprio

governo (CARVALHO, 2009).

Carvalho (2009) afirma que mesmo a cidadania política se viu afrontada em

boa parte do período republicano, uma vez que ao federalismo descentralizado se

associava o domínio de velhas oligarquias que limitavam a participação política

popular. Outra questão política importante da época dizia respeito à concepção

abstrata e homogênea de povo, que por sua vez se fundamentava na integração

comunitária que culminava na vontade geral da soberania, o que proporcionou

campo fértil para a gênese das ditaduras republicanas brasileiras, como as de

Getúlio Vargas e do Estado militar, que em geral concederam direitos sociais ao

povo segundo as perspectivas da tutela e do paternalismo.

Em síntese, podemos afirmar que a colonização portuguesa, a aculturação

indígena, a escravidão negra, as entradas e bandeiras, os ciclos econômicos de

exploração pela metrópole, as ações imperiais e a República, estendida da sua

proclamação aos dias atuais, deixaram para os brasileiros do século XXI um

legado cultural que de certa forma traz em seu bojo entraves para a constituição

da verdadeira cidadania, da real participação política popular e da democracia de

fato e de direito.

CONSTRUÇÕES E DESCONSTRUÇÕES DEMOCRÁTICAS NO BRASIL

Quando mencionamos a expressão “construções e desconstruções

democráticas no Brasil” nos deparamos com uma indagação tanto insólita quanto

pertinente: o que é a democracia? De que democracia falamos? De que lugar

emana o conceito de democracia?

Algumas aproximações relativas às respostas para as questões

supracitadas se fazem necessárias (senão imprescindíveis) no contexto da

análise sobre as práticas democráticas e antidemocráticas que tem

historicamente coexistido no cenário político brasileiro.

Segundo Rosenfield (1989) a etimologia do termo democracia denota o

“governo do povo” ou o “governo da maioria”, o que representa uma definição

quantitativa que diferencia esta forma de governo de outras duas: a monarquia,

como “governo de um só” e a aristocracia, como “governo de alguns”.

Aspectos temporais seculares separam os conceitos clássico e moderno de

democracia, os quais se vinculam respectivamente à Grécia antiga e ao Estado

moderno. Para Rosenfield (1989, p.27) a democracia clássica pertence aos cidadãos livres reunidos em praça

pública segundo normas criadas coletivamente e reconhecidas por todos, enquanto a democracia moderna coloca-se acima dos indivíduos, regulando-lhes a vida privada e pública.

Se considerarmos que a era moderna se distancia do pensamento clássico

grego não apenas por séculos de historia da humanidade, mas também por

diversas e significativas transformações de ordem espacial, demográfica,

econômica e tecnológica, inevitavelmente reconheceremos certa inviabilidade

contemporânea no que se refere à existência de uma democracia direta, em

praça pública, de acordo com o modelo ateniense. Resta-nos, portanto, a análise

da democracia inserida no Estado moderno, portanto no Estado democrático, que

vem a ser um organismo pluridimensional e multifacetado composto pela

articulação de liberdades e direitos em contínua transformação.

De acordo com Rosenfield (1989) o conceito de democracia foi deslocado,

na era moderna, da “organização da polis” para uma forma de governo

concentrada no Estado. A estruturação do Estado moderno, como entidade

política, possui duas significações distintas: a) a organização da sociedade por ela

própria no bojo de um governo autônomo (nesse caso o Estado é também a

própria sociedade); b) o aparelho de Estado que controla a sociedade em uma

posição exterior a ela.

O primeiro significado se encaixa perfeitamente na teoria do Estado

Ampliado (ou Integral) de Gramsci, que prevê articulações entre pares de

elementos coexistentes, como as sociedades política e civil, a coerção e o

consenso e a ditadura e a hegemonia, e determinações políticas contidas na

relação entre governantes e governados. Deve-se ressaltar, no entanto, que a

historicidade da relação entre governantes e governados possui gênese na

sociedade de classes, o que indica, de acordo com o ideário gramsciano, uma

única possibilidade de superação: “a sociedade regulada”, sem classes, ou, em

outras palavras, o comunismo (COUTINHO, 2011).

De acordo com Coutinho (2011), Gramsci compreende o comunismo como

um sistema caracterizado pela absorção do Estado-coerção pela sociedade civil

(ou Estado-ético), sendo que as funções do primeiro seriam, nesse caso,

transferidas para as relações autônomas, conscientes e consensuais

determinadas pela última, o que instalaria o “autogoverno”.

Para Monteiro (2010), a recepção das idéias de Gramsci no Brasil,

notadamente a partir de meados da década de 70 do século passado, contribuiu

para a colocação da questão democrática como instrumento fundamental para a

superação do capitalismo e a construção do socialismo nacional. Segundo

Coutinho apud Monteiro (2010, p.7)

[...] para os que lutam pelo socialismo em nome dos interesses histórico-universais dos trabalhadores, na convicção de que somente o socialismo é capaz de promover a libertação de toda a humanidade, a democracia política não é um simples princípio tático: é um valor estratégico permanente, na medida em que é condição tanto para a conquista quanto para a consolidação e aprofundamento dessa nova sociedade."

Dessa forma, o aprofundamento da democracia representaria a via para a

construção de um regime socialista que pudesse preservar as diversas liberdades

democráticas em uma nova ordem social. O quadro ideal de construção socialista

previsto por Coutinho apud Monteiro (2010) sinalizava para o fim do isolamento e

da supremacia do Estado e sua gradual absorção pela sociedade que o produziu

e do qual se afastou (ou se alienou). A nova dinâmica pressupunha, diante da

complexidade social do Brasil do último quarto do século XX, uma intensa

articulação entre os organismos populares da democracia de base e os

mecanismos convencionais de representação indireta, como os poderes executivo

e legislativo concentrados no Estado stricto sensu.

Os ideais de Gramsci e os de Coutinho, principal intérprete do intelectual

italiano no Brasil, não se consolidaram (ou foram consolidados apenas

parcialmente) em nosso país. As discrepâncias entre as áreas e as dinâmicas de

atuação das sociedades política e civil corroeram as estruturas do que deveria ser

um Estado brasileiro democrático ampliado e inviabilizaram a concretização do

sonho do socialismo.

Coutinho (2006) afirma, a partir das categorias estabelecidas por Gramsci

acerca das distinções entre Oriente e Ocidente, que o Brasil foi ao longo de sua

história, notadamente até os anos 1930, uma formação político-social do tipo

‘oriental’, na qual o Estado representava tudo e a sociedade civil era primitiva,

gelatinosa e apática. A formação ‘ocidental’, por outro lado, se traduz por uma

relação de profundo equilíbrio entre o Estado como sociedade política e a

sociedade civil.

Coutinho (2006) conceitua como ‘não clássicos’ os processos de

transformação social pelos quais o Brasil passou desde sua Independência, uma

vez que se diferenciam das transformações clássicas responsáveis pelo

surgimento de sociedades ‘ocidentais’, liberais-democráticas, nos países

desenvolvidos. O mesmo autor identifica três paradigmas que possivelmente

explicam o insólito trânsito do Brasil para a modernidade: a via prussiana, as

revoluções passivas e a modernização conservadora.

A via prussiana representa um tipo específico de transição para o

capitalismo que conserva elementos de uma velha ordem agrária e propicia um

grande fortalecimento do poder do Estado; as revoluções passivas (ou “pelo alto”)

são transformações obtidas a partir de conciliações entre segmentos modernos e

conservadores das classes dominantes com o intuito de excluir as camadas

populares da participação em tais processos; e a modernização conservadora,

por sua vez, se traduz pela associação entre a burguesia industrial emergente e

os latifundiários pré-capitalistas com o objetivo de fundar as bases de um novo

capitalismo. Seguindo essa linha de raciocínio, até mesmo a Independência

brasileira não se constituiu como uma Revolução na acepção forte da palavra,

pois não representou uma ruptura com as bases sociais, políticas e econômicas

anteriores, tendo tão somente promovido um rearranjo conjuntural entre diferentes

setores das classes dominantes (COUTINHO, 2006).

Alguns momentos significativos da história brasileira, como a citada

Independência (1822), a Abolição da Escravatura (1888), a Proclamação da

República (1889), a Revolução de 1930 e a instalação da Ditadura Militar (1964),

representam emblemas do que Coutinho (2006) conceituou como a construção da

nação brasileira a partir do Estado e não das massas populares. Os momentos

supracitados não significaram transformações estruturais radicais, mas apenas

reformas pontuais e conjunturais: sendo assim, a ordem política permaneceu a

mesma, sob o controle de elites abrigadas sob os mantos do Império e da

República.

Segundo Coutinho (2006, p. 176), “o Brasil foi um Estado antes de ser uma

nação”. Alguns intelectuais, notadamente da direita autoritária, entendiam que ao

Estado cabia a missão de construir a nação brasileira, conforme os pressupostos

da via prussiana e das revoluções passivas. A supremacia do Estado sobre a

sociedade civil, como fato histórico típico da formação social e política brasileira,

produziu efeitos nefastos que ainda hoje refletem sobre o Brasil, como o déficit de

cidadania, a dependência externa e formas de coerção extra-econômica na

relação entre capital e trabalho (COUTINHO, 2006).

Os estudos de Coutinho e Gramsci expostos nesse texto evidenciam a

predominância das desconstruções sobre as construções democráticas no

contexto dos pouco mais de quinhentos anos brasileiros de história oficial. Um

efetivo Estado Ampliado gramsciano não se tornou realidade no Brasil, uma vez

que o desequilíbrio instalado entre as sociedades civil e política, em função da

permanente supremacia da segunda sobre a primeira, historicamente sustentou

os argumentos de Coutinho a respeito da formação político-social do tipo ‘oriental’

em nosso país.

Se por um lado a ‘orientalidade’ de nossa formação político-social

subsidiou revoluções passivas, por outro lado experimentamos em passado

relativamente recente algumas situações que indicavam, ao menos em tese, os

caminhos de uma efetiva construção democrática brasileira. Dentre essas

situações destacamos as Reformas de Base idealizadas pelo governo João

Goulart (1961 – 1964), a Assembléia Nacional Constituinte de 1988 e a ascensão

de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República (2003 – 2010). Tais

oportunidades, no entanto, não frutificaram em democracias associadas à

superação do capitalismo, à construção do socialismo e ao alcance de uma

intensa articulação entre os organismos populares democráticos de base e os

mecanismos convencionais de representação indireta concentrados no Estado

stricto sensu, conforme os rumos delineados por Coutinho.

O governo João Goulart, inclinado à esquerda e apoiado por setores

progressistas da sociedade, como os estudantes e os trabalhadores, idealizou

reformas políticas que desprestigiavam os interesses de empresários e detentores

dos meios de produção: em conseqüência disso as Forças Armadas, associadas

à burguesia conservadora, promoveram o golpe que instalou em 1964 o regime

militar que controlou o país até 1985.

Essa “revolução pelo alto” fortaleceu o Estado, reprimiu as organizações da

sociedade civil e desconstruiu no nascedouro importantes ideais democráticos.

Entre 1987 e 1988, no bojo do denominado processo brasileiro de

redemocratização, foi elaborada a nova Constituição da República: tal medida se

fez necessária em função da existência de diversas reformas constitucionais

ocorridas durante o regime militar e que não expressavam a nova ordem política

nacional. Setores progressistas da sociedade demandaram eleições para a

composição da Assembléia Constituinte, mas foi um Congresso Constituinte,

composto por deputados federais e senadores eleitos em 1986, o organismo

responsável pela elaboração da nova Carta Magna brasileira. Entidades

organizadas da sociedade civil elaboraram propostas e as enviaram para o

Congresso Constituinte, mas ao final do processo prevaleceram interesses

conservadores representados pelo Centro Democrático, o “Centrão”, grupo

majoritário que aglutinava parlamentares do PMDB, PFL, PTB e PDS. Frustrou-

se, dessa forma, mais uma oportunidade de fundação de uma efetiva democracia

brasileira (BRASIL ESCOLA, 2012).

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT (Partido dos Trabalhadores),

um ex-metalúrgico e ex-sindicalista, para a Presidência da República em 2002

representou a última grande oportunidade para a instalação de uma verdadeira

democracia de esquerda (de base socialista) no Brasil. No entanto, a ascensão de

Lula e do PT, ícones históricos da esquerda brasileira, à Presidência da República

frustrou as expectativas daqueles que aguardavam ações de contraposição ao

capitalismo excludente e à incipiente democracia brasileira, uma vez que o

governo petista privilegiou em termos econômicos o neoliberalismo, forma de

organização do capital hegemônica no país desde o governo de Fernando Collor,

no início dos anos 1990.

A mudança de rumo do PT e a conseqüente falência da utopia da

democracia socialista ocorreram quando, segundo Coutinho (2006), o governo

petista adotou política macroeconômica abertamente neoliberal, cooptou para

esta política importantes movimentos sociais, neutralizou grande parte deles,

desarmou resistências ao modelo liberal-corporativo e promoveu a consolidação

no Brasil da hegemonia do neoliberalismo.

Em síntese, podemos afirmar que da Coroa Portuguesa ao neoliberalismo

da virada do milênio o Brasil não experimentou construções democráticas plenas,

ainda que tenha por vezes flertado com essa possibilidade. Uma democracia de

fundamentação socialista, idealizada por grande parte da esquerda brasileira a

partir da recepção das idéias de Gramsci no Brasil, não floresceu: em lugar do

povo o poder foi exercido pelo Estado desvinculado da sociedade civil ou pelo

mercado. Resta-nos assim a análise do enfraquecimento ou do fortalecimento dos

princípios democráticos brasileiros à luz do pensamento de Rousseau.

Segundo Coutinho (2011), o Contrato Social de Rousseau defende a

presença da soberania popular como condição sine qua non para a legitimação

política de sociedades efetivamente livres e igualitárias, as quais deverão contar

necessariamente com homens desvinculados de seu estado natural e associados

na esfera do estado social. O caráter societário rousseauniano é, portanto, uma

representação da evolução humana do nível das pulsões para o da vida em

sociedade.

De acordo com Rosseau apud Coutinho (2011, p.33), o contrato social

legítimo apresenta-se como solução para um problema fundamental, que é

exatamente o de encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um,

unindo-se a todos, obedece, porém, apenas a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.

A utopia democrática de Rousseau extrapola os limites do liberalismo ao

elevar a igualdade ao mesmo patamar da liberdade. Para o filósofo iluminista em

questão a associação democrática só pode existir em uma sociedade de homens

livres, iguais (inclusive no âmbito do controle das riquezas materiais) e

submetidos à vontade comum (COUTINHO, 2011).

Rousseau não propõe a socialização ou a supressão da propriedade

privada, mesmo reconhecendo nela a causa primeira da desigualdade social. O

filósofo vislumbra o alcance de um ponto ótimo de igualdade material e de

respeito ao direito de propriedade, que seria ao menos suficiente para assegurar

a predominância da vontade geral sobre os interesses particulares. A supremacia

da vontade comum sobre o interesse privado se daria, então, pela via da restrição

do direito de propriedade e por sua subordinação ao interesse público mais amplo

(COUTINHO, 2011).

Em síntese, Coutinho (2011) afirma que a utopia democrática de Rousseau

ultrapassou os limites do liberalismo clássico, adotou o conceito de igualdade e

defendeu a impossibilidade da coexistência de desigualdade e democracia. A

democracia em Rousseau só poderia existir segundo os pressupostos da

soberania popular, da participação coletiva e do exercício de uma vontade comum

constituída por um consenso (contrato) sobre os diversos conteúdos e

procedimentos referentes à vida em sociedade.

Uma análise objetiva da democracia em Rousseau evidencia que tal

modelo talvez tenha logrado maior êxito no Brasil, se comparado aos modelos

socialistas que emanam das idéias de Gramsci. Esse otimismo, no entanto,

possui intensidade e duração limitadas, uma vez que princípios de liberdade e

igualdade foram comprometidos em diversas fases da história de nosso país.

Na contemporaneidade verificamos o delineamento de ampla possibilidade

de exercício das liberdades individuais e civis e o concomitante formato de um

Estado de Direito que, pelo menos em tese, determina a submissão dos

interesses particulares à vontade geral. No entanto, a desigualdade social no

Brasil pode ser rotulada, ainda hoje, como brutal, em função das diferenças de

concentração de renda e de propriedades existentes entre os extremos mais e

menos abastados da pirâmide social.

A desigualdade social, aliás, é um problema secular no Brasil, que remete

à colonização nas figuras dos proprietários, dos senhores de engenho e de

escravos e dos próprios negros africanos, despojados de propriedades e eles

mesmos apropriados, como se coisas fossem, pelo homem branco. Não havia

igualdade geral, como também inexistia liberdade para todos.

O período republicano abrigou modificações que impulsionaram o cidadão

brasileiro na direção de liberdades individuais e civis constitucionalmente

estabelecidas, com exceção de períodos específicos, como a ditadura militar

instalada em 1964 e que vigorou até 1985. No entanto, o “pecado da

desigualdade continuou a habitar entre nós”, inviabilizando a construção de uma

democracia de modelo rousseauniano no Brasil.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo histórico de formação da cultura brasileira não se constituiu

prioritariamente a partir de consensos, assimilações pacíficas e experiências

felizes e solidárias de aclimação social; na verdade foi a aculturação imposta de

forma unilateral e freqüentemente violenta que forjou um modo brasileiro de

pensar, ser e agir. Ainda que relatos literários românticos apontem para a

plasticidade social e para a democracia racial como elementos constitutivos da

magia da cultura nacional, estudos fundamentados na epistemologia dialética

indicam a existência de dicotomias, polaridades e contraposições que se

equilibram em constante tensão.

Fosse a cultura um processo dotado de finitude histórica e cronológica,

inúmeras das tensões inerentes à cultura brasileira expostas neste trabalho

estariam petrificadas pela desesperança em um porvir diferente do que está posto

em nossa atual realidade cotidiana; mas felizmente as concepções e práticas

intelectuais, sociais e políticas estão em permanente transformação, o que abre

espaços para a emancipação do homem brasileiro e para alguma concretude nas

utopias.

Os desequilíbrios existentes entre o coletivo e o individual, entre o público e

o privado e entre a participação política e a apatia social, para citarmos apenas

três das tensões estabelecidas no âmbito da cultura brasileira, podem ser

corrigidos a partir da ótica de uma racionalidade comprometida com a felicidade

humana e não com a consolidação da miséria e da barbárie. Como assinala Bosi

(2001) com notável propriedade, a cultura pressupõe o porvir, o devir, a

construção permanente de um projeto.

A República brasileira herdou dos tempos coloniais e imperiais o

fisiologismo, o clientelismo, a privatização do público e a submissão popular à

tutela do poder constituído: talvez por isso o Rio de Janeiro republicano “não

tenha sido”, como afirma José Murilo de Carvalho. Ora, o que ainda não foi pode

vir a ser, graças à historicidade determinada pelas construções humanas.

A formação da cultura política brasileira se constituiu a partir dos alicerces

da colonização impositiva e da racionalidade instrumental, conceituada por

Adorno e Horkheimer (1985), na Dialética do Esclarecimento, como o domínio do

homem sobre a matéria e sobre outros homens de acordo com a razão utilitária

voltada para a afirmação do poder e para o atendimento das demandas de um

sistema capitalista ávido por acumulação material. Tais circunstâncias

contribuíram, evidentemente, para o enfraquecimento das utopias de ordem

democrática no Brasil.

A era moderna, caracterizada por indicadores econômicos e demográficos

radicalmente diferentes daqueles existentes na Idade Antiga, impossibilita a

adoção de democracias diretas fundamentadas em deliberações provenientes da

praça pública. A Revolução Francesa, os estados modernos e a

contemporaneidade abriram espaços para novas formas de organização

democrática, que em tese poderiam se efetivar, por exemplo, pela via de um

Estado Ampliado ideal constituído por perfeito equilíbrio entre as sociedades

política e civil. No entanto, na história brasileira, conforme os relatos contidos

nessa produção acadêmica, a “balança do poder” quase sempre se deslocou no

sentido da sociedade política (do Estado stricto sensu), o que impediu o exercício

da soberania popular.

As revoluções passivas que caracterizaram nossa história desconstruíram

oportunidades de efetiva fundação da democracia brasileira e dividiram espaço

com algumas construções democráticas representadas pelas conquistas de

direitos e liberdades civis e individuais. Sobretudo a universalização do direito ao

voto, e nem tanto a sua imposição como ato obrigatório, concorreu para o

fortalecimento de princípios políticos democráticos. Avanços no campo da

liberdade, como a Abolição da Escravatura, em 1888, e a retomada do direito à

livre expressão após o fim da ditadura militar, em 1985, representaram situações

em que o fortalecimento da democracia se viu contemplado.

O exercício do voto no atual sistema político representativo brasileiro, aliás,

representa construção democrática no que se refere à participação popular, mas

simboliza desconstrução quando se restringe a atuações bissextas (episódicas)

do povo desvinculadas de mobilizações políticas de acompanhamento das ações

dos integrantes dos poderes legislativo e executivo do Estado.

As tensões existentes entre as construções e desconstruções democráticas

no cenário político brasileiro se prendem, de acordo com as concepções da

democracia em Rousseau, às intensidades da igualdade e da liberdade. À época

do Brasil Colônia não havia, em termos gerais, igualdade tampouco liberdade, o

que representou desconstrução democrática; por outro lado o período

republicano, sobretudo em sua fase mais madura e mais liberal (na segunda

metade do século XX, com exceção da ditadura militar), apresentou construções

democráticas originadas de maiores e mais intensas articulações entre

segmentos da sociedade civil, como sindicatos e associações de classe, que

passaram a atuar na esfera da sociedade política. Tais articulações, no entanto,

não foram e não são ainda suficientes para a formação de um legítimo Estado

Ampliado de contornos gramscianos no Brasil. Nossas históricas desigualdades

sociais são também elementos que, com maior ou menor intensidade na

dependência do recorte cronológico, sempre colaboraram para a desconstrução

democrática nacional: a esse respeito lembremo-nos que Rousseau não admite a

existência de democracia sem igualdade.

Por fim, devemos destacar que as utopias comunista e socialista não

lograram êxito no Brasil, uma vez que foram sempre barradas pelas

modernizações conservadoras e pelas revoluções pelo alto que, dissociadas da

efetiva participação popular e comprometidas com interesses elitistas e

conservadores, camuflaram pela via dos discursos progressistas as reais

intenções de modificar a conjuntura e preservar a estrutura.

O Brasil do século XXI é ainda um país socialmente desigual, mesmo que

alguns indicadores de distribuição de renda tenham evidenciado evoluções em

relação a esta questão; é um país cujas liberdades se afirmam cotidianamente e

cuja sociedade civil busca paulatinamente maior intensidade de associação

política; é uma nação em que setores privados se apropriam do público; é um

território continental em que os limites geográficos estão preservados, enquanto

as fronteiras ideológicas parecem ter se dissolvido quase que por completo; é um

Estado cuja maturidade institucional parece adquirir maior profundidade; enfim, é

um país que entre tensões e contradições, algumas delas seculares, ainda busca

a efetiva democracia.

Em uma época caracterizada por sólidos que se desmancham no ar (Marx

apud Berman, 1982) este texto buscou se ancorar em tensões, contradições,

construções e desconstruções que não representam apenas objetos de estudo

acadêmico, mas elementos essenciais para o exercício intelectual de fundação da

nação democrática brasileira. Nesse sentido a teoria adquire teleologia específica

e se converte em práxis.

REFERÊNCIAS

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