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Conjectura, v. 16, n. 1, jan./abr. 2011 183 Pensar ética é pensar sobre o modo como as pessoas relacionam-se consigo mesmas, com o outro, com a sociedade e em alguns casos, com o sobrenatural e o ambiente. Ou seja, pensar a ética é pensar a totalidade das relações que se desdobram sobre o horizonte da historicidade humana. Isso não é fácil, muito menos simples. E, quando o assunto em pauta é ética, parece que todos entendem; ou ainda, quando não entendem usam um argumento infalível [unfehlbar], qual seja, “a ética é subjetiva, então, depende de cada um”, logo, a contenda é encerrada. Essa postura, além de relativista, demonstra a necessidade de um estudo profundo e profícuo sobre a ética para, assim, compreender que ela é uma maneira de agir a partir de princípios e/ou valores definitivamente refletidos e fundamentados. A tentativa de James Rachels, no seu livro Elementos da filosofia moral, é exatamente esta: abordar temas centrais do pensamento moral com a finalidade de mostrar seus fundamentos e seus argumentos sejam eles sustentáveis ou não. Rachels, filósofo norte-americano, nasceu em Columbus, Geórgia em 30.5.1941 e faleceu em 5.9.2003. Proferiu aulas nas seguintes universidades: University of Richmond, New York University e na University of Alabama at Birmingham onde permaneceu por 26 anos. Sua primeira obra intitulada Moral problems (1971), ao ser lançada, contribuiu para que as faculdades norte-americanas repensassem o modelo de ensino da ética, ou seja, nesse momento, nos EUA, a metaética dominava os debates nas universidades, de modo que sua obra contribuiu a que o ensino da ética se voltasse para questões morais de envergadura prática. 1 * Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul e Ebenhard Karls Universität Tübingen. 1 Cf. Disponível em: < http://www.jamesrachels.org/ >. Acesso em: 31 dez. 2010. Keberson Bresolin * 10 RACHELS, James. Elementos da filosofia moral. Trad. de Roberto C. Filho. 4. ed. Barueri: Manole, 2006.

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  • Conjectura, v. 16, n. 1, jan./abr. 2011 183

    Pensar tica pensar sobre o modo como as pessoas relacionam-seconsigo mesmas, com o outro, com a sociedade e em alguns casos, como sobrenatural e o ambiente. Ou seja, pensar a tica pensar a totalidadedas relaes que se desdobram sobre o horizonte da historicidadehumana. Isso no fcil, muito menos simples. E, quando o assuntoem pauta tica, parece que todos entendem; ou ainda, quando noentendem usam um argumento infalvel [unfehlbar], qual seja, a tica subjetiva, ento, depende de cada um, logo, a contenda encerrada.Essa postura, alm de relativista, demonstra a necessidade de um estudoprofundo e profcuo sobre a tica para, assim, compreender que ela uma maneira de agir a partir de princpios e/ou valores definitivamenterefletidos e fundamentados. A tentativa de James Rachels, no seu livroElementos da filosofia moral, exatamente esta: abordar temas centraisdo pensamento moral com a finalidade de mostrar seus fundamentos eseus argumentos sejam eles sustentveis ou no.

    Rachels, filsofo norte-americano, nasceu em Columbus, Gergiaem 30.5.1941 e faleceu em 5.9.2003. Proferiu aulas nas seguintesuniversidades: University of Richmond, New York University e na Universityof Alabama at Birmingham onde permaneceu por 26 anos. Sua primeiraobra intitulada Moral problems (1971), ao ser lanada, contribuiu paraque as faculdades norte-americanas repensassem o modelo de ensino datica, ou seja, nesse momento, nos EUA, a metatica dominava os debatesnas universidades, de modo que sua obra contribuiu a que o ensino datica se voltasse para questes morais de envergadura prtica.1

    * Doutorando em Filosofia pela Pontifcia Universidade do Rio Grande do Sul e EbenhardKarls Universitt Tbingen.1 Cf. Disponvel em: < http://www.jamesrachels.org/ >. Acesso em: 31 dez. 2010.

    Keberson Bresolin*

    10RACHELS, James. Elementos

    da filosofia moral.

    Trad. de Roberto C. Filho. 4. ed. Barueri: Manole, 2006.

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, jan./abr. 2011184

    Em 1975, no incio dos debates em torno de questes bioticas,Rachels escreveu um artigo intitulado Active and passive euthanasia.No ano de 1986 aparece, ento, o livro The elements of moral philosophy[Elementos da filosofia moral] e, no mesmo ano publica The end of life(1986) e, em seguida, Created from animals2 (1990), Can ethics provideanswers? (1997), The legacy of Socrates (2007). Pouco antes de serdiagnosticado com cncer, Rachels conclui seu livro Problems fromphilosophy, que foi publicado postumamente. Alm disso, escreveuinmeros ensaios e artigos e editou vrios livros, mas seu best-seller ,sem sombra de dvidas, o livro Elementos da filosofia moral.3

    Esse livro j est na sua quarta edio no Brasil, justamente por serum excelente livro de filosofia moral. Apresenta uma linguagem simples,sem deixar de ter argumentos extremamente bem-elaborados. Combinade maneira formidvel exemplos prticos com teorias ticas complexas,sem ser, por isso, leviano ou descritivo. Diferentemente de outros livros,os quais abordam a tica com a metodologia por autores, o livro de Rachelsaborda temas, dentro dos quais desenvolve os principais autores queabordaram tal assunto. Dessa forma, os temas escolhidos paraestigmatizarem os captulos so postos no com uma preocupaohistrico-temporal, mas, a nosso ver, com uma preocupao de inserir einstruir o leitor nos mais importantes debates/temas ticos.

    Rachels elaborou 14 captulos para seu livro, sendo que podemosencontrar nele no apenas questes centrais da milenar tica normativa,mas tambm questes da jovem metatica. Como todo bom livro, oprimeiro captulo (O que a moralidade?) desenrola uma discussosobre a natureza da moral. Faz isso de maneira inusitada utilizando-sede trs exemplos prticos nos quais a deciso moral no simples. Osexemplos: a beb Teresa (beb anencfalo), Jodie e Mary (gmeos siamesas)e Tracy Latimer (vtima de paralisia cerebral), de cunho prtico, soapresentados em toda a sua complexidade e dificuldade de resoluo.Depois disso, Rachels apresenta o que ele chama concepo mnima demoralidade, a qual, a nosso ver, reflete uma postura utilitarista. A

    2 Rachels arguiu a favor do vegetarianismo moral e dos direitos dos animais. Neste livroCreated from Animals, ele assevera que a viso de mundo darwinista tem implicaesfilosficas fundamentais e [deveria] altera[r] o modo como tratamos os animais no-humanos.3 Cf. Disponvel em: < http://www.jamesrachels.org/ >. Acesso em: 31 dez. 2010.

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    concepo mnima de moralidade o esforo ou, pelo menos, o esforopara dirigir nossa conduta por razes ou, ainda, fazer aquilo que nosmostre as melhores razes para fazer sem deixar de ser, ao mesmo tempoimparcial, ou seja, considerar os interesses de todos os envolvidos naao de maneira no parcial. Segundo Rachels, essa a melhor concepomoral porque ela mnima, ou seja, aquilo que todos podem igualmenteconcordar em fazer, no exigindo uma moralidade austera ou ascticado agente.

    No segundo captulo intitulado O desafio do relativismo cultural,Rachels aborda de maneira genuna o problema que o relativismo culturaldesencadeia para a moral. Primeiramente, o autor se coloca na posturade um relativista cultural de maneira a extrair da as consequncias sriasde ser relativista cultural. Demonstra, ento, que no poderamos criticaroutras culturas pelas suas aes e atos, visto que o certo e o errado sorelativos de cada cultura em um determinado momento espaciotemporal.Faz isso utilizando-se de inmeros exemplos, como a exciso no Togo, asdiferentes e antigas prticas funerais entre os gregos e os Calatinos (tribode indianos). Os exemplos/fatos so algo marcante em toda obra,tornando-a, pois, atraente no apenas a estudantes de tica, mas tambma pessoas leigas no assunto que possuem uma centelha de curiosidadepela tica.

    O subjetivismo em tica o ttulo do terceiro captulo, no qualaborda o relativismo em uma dimenso domstica, ou seja,particularista-subjetivo. Aborda, alm disso, a questo do sentimentomoral e sua nova estruturao dada pelo emotivismo e a complexa questoposta pela oposio cognitivista versus no cognitivista em moral, qualseja, existem ou no fatos morais? No quarto captulo, Depender amoralidade da religio?, o autor realiza uma excelente anlise sobre arelao religio/moral e como elas se aproximaram ao longo do processotico-histrico. Rebate categoricamente o fato de algumas pessoas creremque, se no existir um Deus punidor, ento, no h motivo algum parahaver aes morais, ou seja, por que agir moralmente se no h castigo,nem vida ps-morte? Ausculta, ainda, a teoria dos mandamentos divinos,demonstrando como esse argumento carente de fundamentao. Fazisso a partir da clebre afirmao de Scrates no dilogo Eutifron, noqual se pergunta se o comportamento correto porque os deusesordenaram ou os deuses ordenaram porque correto. Aborda, tambm,com alguma mazela a teoria da lei natural.

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    No quinto captulo aborda O egosmo subjetivo no qual seapropinqua da possibilidade de altrusmo. Mas, a nosso ver, o captulosexto intitulado O egosmo tico muito mais consistente e persuasivo.Trabalha com argumentos a favor e contra o egosmo e acaba com olendrio mito de que todo indivduo egosta moralmente mau. Egosmo uma concepo moral. Ser egosta preservar unicamente seusinteresses. No captulo stimo A abordagem utilitarista e o oitavo Odebate sobre o utilitarismo, Rachels aborda genialmente o utilitarismo,demonstrando, ento, a origem do mesmo e, em seguida, novamentecitando vrios casos concretos, prope argumentos prs e contras. Comoj dito anteriormente, o livro, segundo nossa leitura, possui um cunhoutilitarista leviano, ou seja, no compromete a obra, muito menos atorna tendenciosa. A prpria soluo apresentada por Rachels aorelativismo cultural, no captulo segundo, ou seja, um critrio neutro deavaliao cultural, apresenta, indiscutivelmente, personalidadeutilitarista.

    Ao tratar de Kant, nos captulos nono e dcimo, o autor perscrutao mago da concepo moral kantiana. No captulo nono, proposto emforma de pergunta (haver regras morais absolutas?), objetifica amoralidade kantiana, demonstrando os dois imperativos: categrico ehipottico. A partir da perspectiva kantiana a resposta pergunta queoriginalmente est posta no ttulo do captulo sim. Rachels demonstraque o imperativo categrico no suporta exceo e, por isso, toda regrade conduta que surge dele categoricamente absoluta. Essa regra apresentada como obrigao da razo e consiste, ento, tanto em umaobrigao para fazer como uma obrigao para no fazer alguma ao. Oautor trabalha com o famoso texto kantiano Sobre o suposto direito dementir por amor humanidade para enfatizar a absolutidade das regrascategricas, inclusive, em momentos nos quais a mentira poderia salvaruma vida. O captulo dcimo Kant e o respeito pelas pessoas no foifeliz como o anterior. Deixa a desejar na concepo kantiana de dignidadehumana. Utiliza-se de uma interpretao da qual no pensamos serkantiana o suficiente para abarcar a profundidade de tal percepo.

    A seguir, Rachels, junto com Hobbes, expe A ideia de contratosocial (ttulo do dcimo primeiro captulo), no qual ratifica o paradigmado filsofo britnico ao afirmar o carter no social e egosta do homem.A natureza fez os homens to iguais que inevitvel o conflito, uma vezque as necessidades so semelhantes, e os recursos, finitos, sendo, pois,

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    necessrio um Estado poderoso, o Leviat, para administrar tais conflitos.Apresenta tambm o famigerado dilema do prisioneiro para assoalharque a deciso fundamentada em princpios cooperativos a melhor escolha.

    No captulo dcimo segundo Feminismo e a tica do cuidado,Rachels analisa um tema recente em filosofia moral. A partir dos estgiospropostos pelo psiclogo Lawrence Kohlberg e de suas constataesrealizadas a partir do dilema de Heinz de que o menino estaria emnvel superior de moralidade ao ser comparado com uma menina de mesmaidade, Rachels desenrola um debate, com o auxlio das ideias de CarolGilligan, sobre como h diferena na construo de juzos de valoraoentre homens e mulheres. Enquanto os homens prezam por uma ticaprincipialista, a tica feminista possui um cunho de cuidado. Esse captulo excelente, porque o autor parte dos diferentes aspectos psicolgicosque h entre homens e mulheres para chegar, ento, a visualizar comotais diferenas influenciam a construo de juzos de valor.

    No penltimo captulo, o autor aborda a tica das virtudes. Esseparadigma tico no est preocupado, como enfatiza ele, em formularobrigaes morais, mas em compreender o que torna o carter bom. Oque virtude? Como pratic-las? Quantas so? tornam a preocupaocom essa tica diferente das demais, embora continue sendo normativa.Dessa maneira, o autor demonstra a especificidade da tica das virtudesem relao s ticas dos mandamentos morais, elaborada, principalmente,a partir da modernidade.

    No ltimo captulo, Rachels faz uma reflexo em torno de comoseria uma teoria moral satisfatria. Aqui os traos utilitaristas do autorso ainda mais claros. Evidenciando o fato de que existem inmerasteorias ticas, que so, em muitos casos, incompatveis entre si, Rachelspergunta-se: como seria uma teoria moral satisfatria? Promover osinteresses de todas as pessoas de maneira imparcial, tratando cada umadelas como merecem, ou seja, por serem agentes racionais devem sertratados sem distino simplesmente por possurem o poder de escolha.

    Todavia, o autor ressalva que a ideia de promover de forma igual osinteresses de todos no parece conseguir captar a amplitude da vidamoral, fazendo, pois, uma reserva em relao questo do merecimentopessoal, ou seja, considerao das individualidades. Dito isso, o autorcomenta as concepes de Smith e o utilitarismo dos motivos deSidgwick, acerca do qual no se mostra simptico e prope o utilitarismo

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    de estratgias mltiplas, ou seja, o fim fundamental continua sendo obem-estar geral, mas se pode defender estratgias diferentes como meiopara buscar esse fim. Consoante Rachels, h aqui uma combinao demtodos, motivos e virtudes de tomada de deciso que ser melhor parao agente, considerando as suas circunstncias, o carter e as capacidades.Aqui necessrio pensar melhor no sentido de otimizar as condies depossibilidade de o agente ter uma boa vida, ao mesmo tempo que otimizaas possibilidades de as outras pessoas terem vida boa.

    Sem dvida, o livro Elementos da filosofia moral uma excelenteobra de introduo a questes ticas. Mostra-se de grande valor no ensinoda tica, uma vez que isso se torna claro diante da quantidade de casose exemplos utilizados ao longo de toda obra, sem deixar a desejar, aomesmo tempo, um contedo fundamentado. No um livro catequtico,pelo contrrio, apresenta, na maioria das vezes, argumentos prs e contras teoria abordada, embora, como j mencionado, segundo nossa leitura,possua um fio condutor utilitarista.

    Recebido em 20 de junho de 2010 e aprovado em 1 de setembro de 2010.