2923-espaço conceito9995-2-pb.pdf

Upload: rafael-santos

Post on 21-Feb-2018

229 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    1/22

    ESPAO, TERRITRIO, REGIOPRESSUPOSTOS METODOLGICOS.

    Jos DAssuno Barros1

    Introduo

    Inicialmente, gostaria de agradecer a oportunidade de estar aqui para abordar esse tema,

    em um congresso partilhado por historiadores e gegrafos. Espao, Territrio e Regio so

    conceitos fundamentais para a Histria, e obviamente tambm para a Geografia. Do ponto de

    vista da Histria, alis, cada um desses trs conceitos nos remete a dilogos interdisciplinares

    particularmente importantes com a Geografia, embora no apenas com esse campo de saber, e por isso que a interdisciplinaridade entre Histria e Geografia tambm ser um dos temas

    discutidos no decurso de toda esta palestra.

    Entre os trs conceitos, certamente o de espao o mais abrangente. Os outros dois

    territrio e regio oferecem na verdade possibilidades de pensar o espao de uma certa

    maneira. Conforme logo veremos, o conceito de territrio corresponde ao gesto de fazer com

    que a noo de espao seja explicitamente atravessada pela instncia poltica, aqui entendendo o

    polticono sentido mais abrangente, que remonta aos mltiplos sentidos que a palavra poder

    pode apresentar, inclusive os micropoderes que perpassam de todas as formas a vida cotidiana e

    as relaes sociais de toda espcie. J o conceito de regio envolve a possibilidade e a

    motivao de recortar o espao, de delimitar neste ltimo um campo de observao de acordo

    com determinados critrios. Vejamos cada um destes casos, ao mesmo tempo em que discutimos

    a noo de espao no seu mbito mais geral.

    Histria: cincia dos homens no tempo e no espao

    Os j antigos movimentos em favor da diviso de trabalho intelectual no grupo das

    cincias humanas costumavam delimitar a Histria como a cincia dos homens no tempo, e a

    1Professor-Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nos cursos de Graduao e Ps-Graduao emHistria. Professor-Colaborador do Programa de Ps-Graduao em Histria Comparada da UFRJ. Doutor emHistria pela Universidade Federal Fluminense.

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    2/22

    1

    Geografia como a cincia dos homens no espao. Costumo dizer que, nos dias de hoje,

    preciso fazer uma adaptao nessa antiga definio da Histria como cincia dos homens no

    tempo uma definio que, certamente, j representou ela mesma um avano na sua poca,

    quando Marc Bloch a formulou por oposio ideia de a Histria como estudo do passadohumano. Entrementes, muito tempo j se passou desde ento. O fato que a conscincia dos

    historiadores a respeito do espao se tornou to viva ao longo das ltimas dcadas que seria bem

    melhor redefinir a Histria como o estudo do Homem no Tempo e no Espao. Embora a

    categoria do tempo seja de fato a primeira noo que costuma nos vir mente quando

    pensamos na possibilidade de definir a Histria como campo de saber especfico, no h como

    negar que os processos histricos do-se igualmente no tempo e no espao. De fato, as aes e

    transformaes que afetam aquela vida humana e social que pode ser historicamente considerada

    produzem-se e incidem freqentemente em um espao que muitas vezes um espao geogrfico

    ou poltico, e que, sobretudo, sempre e necessariamente constituir-se- em espao social.

    Tambm no de se estranhar que, da parte dos gegrafos, tem crescido a proposta de

    reivindicar cada vez mais, para a definio de Geografia, a ideia de que esta no estuda apenas o

    espao, mas tambm o tempo, no sentido de que todo espao se redefine diuturnamente a partir

    de alteraes que vo se dando no decurso do tempo. Desta maneira, considero que, se os

    historiadores tm intensificado crescentemente a sua conscincia espacial, tambm os gegrafos

    possivelmente vm trabalhando com o mesmo afinco para o desenvolvimento e explicitao

    crescentes de uma conscincia temporalno seu prprio campo de estudos.

    Obviamente que, na medida em que os historiadores tm intensificado a sua conscincia

    sobre a importncia do espao e que os gegrafos tm agregado com interesse crescente a

    conscincia temporal ao seu mbito vital de preocupaes multiplicaram-se cada vez mais os

    vnculos e as pontes interdisciplinares entre a Histria e a Geografia, estas duas cincias humanas

    cuja fraternidade epistemolgica j vem de longa data. Entrementes, devo ressaltar que, alm das

    perspectivas poltica e geogrfica sobre a espacialidade, a noo de Espao para os historiadoresparece comportar algumas alternativas a mais que nem sempre aparecem na Geografia.

    Decerto, com as expanses dos domnios histricos que comearam a se verificar no

    ltimo sculo, esse Espao tambm pode ser perfeitamente um espao imaginrio (o espao da

    imaginao, da iconografia, da literatura), e adivinha-se que, em um momento que no deve estar

    muito distante, os historiadores estaro tambm estudando o espao virtual, produzido atravs

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    3/22

    2

    da comunicao virtual ou da tecnologia artificial. Pode se dar que, em um futuro prximo,

    ouamos falar em uma modalidade de Histria Virtual na qual podero ser examinadas as

    relaes que se estabelecem nos espaos sociais artificialmente criados nos chatsda Internet, na

    espacialidade imaginria das webpagesou das simulaes informticas, ou mesmo no espao decomunicao quase instantnea dos correios eletrnicos estas futuras fontes histricas com as

    quais tambm tero de lidar os historiadores do futuro. O Cyber-Espao, portanto, afirma-se

    como um novo tipo de espao que no poder deixar de ser considerado pelas novas geraes de

    historiadores. Por hora, todavia, consideraremos apenas o Espao nos seus sentidos tradicionais:

    como lugar que se estabelece na materialidade fsica, como campo que gerado atravs das

    relaes sociais, ou como realidade que se v estabelecida imaginariamente em resposta aos dois

    fatores anteriores.

    To logo comearam a se dar conta da importncia de entender o seu ofcio como a

    Cincia que estuda o homem no tempo e no espao e essa percepo tambm se afirma de

    maneira cada vez mais clara e articulada em meio s revolues historiogrficas que principiam

    no sculo XX os historiadores perceberam a necessidade de intensificar decididamente sua

    interdisciplinaridade com outros campos do conhecimento. Emergiu da, como acima indicamos,

    uma importantssima onda de interdisciplinaridades com a Geografia, cincia que j

    tradicionalmente estudava o espao fsico. Se considerarmos outras formas de espao como o

    espao imaginrio e o espao literrio, poderamos mencionar ainda as interdisciplinaridades

    com a Psicanlise, com a Crtica Literria, com a Semitica e com tantas outras disciplinas que

    ofereceram novas possibilidades de mtodos e tcnicas aos historiadores. Na verdade, a noo de

    espacialidadefoi se alargando com o desenvolvimento da historiografia do sculo XX: do espao

    fsico ao espao social, poltico e imaginrio, e da at a noo do espao como campo de

    foras que pode inclusive reger a compreenso das prticas discursivas. Neste momento,

    contudo, iremos nos concentrar nas noes de espao que surgem a partir da interdisciplinaridade

    com a Geografia.

    Trs pontes conceituais entre a Histria e a Geografia.

    A interdisciplinaridade entre a Histria e a Geografia estabelecida, entre outros aspectos,

    atravs dos j referidos conceitos de espao, territrio, regio, e sobre eles que

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    4/22

    3

    passaremos a refletir nas prximas linhas. Em uma dos seus muitos sentidos possveis, o espao

    pode ser abordado como uma rea indeterminada que existe previamente na materialidade fsica

    (e, neste caso, ainda no estaremos considerando as noes de espao social, de espao

    imaginrio e de espao literrio que j foram mencionadas). Foi a partir desta noo fundadoraque, na Geografia tradicional, comearam a emergir outras categorias como a de territrio e de

    Regio noes de que logo os historiadores comeariam a se apropriar para seus prprios

    fins.

    Grosso modo, uma regiopode ser compreendida como uma unidade definvel no espao,

    que se caracteriza por uma relativa homogeneidade interna com relao a certos critrios. Os

    elementos internos que do uma identidade regio (e que s se tornam perceptveis quando

    estabelecemos critrios que favoream a sua percepo) no so necessariamente estticos. Da

    que a regio tambm pode ter sua identidade delimitada e definida com base no fato de que,

    dentro dos seus limites, pode ser percebido um certo padro de interrelaes entre elementos

    especficos. Vale dizer, a regio tambm pode ser compreendida como um sistema de movimento

    interno. Por outro lado, alm de ser uma poro do espao organizada de acordo com um

    determinado sistema ou identificada atravs de um padro, a regio quase sempre se insere ou

    pode se ver inserida em um conjunto mais vasto.

    Esta noo mais ampla de regiocomo unidade que apresenta uma lgica interna ou um

    padro que a singulariza, e que ao mesmo tempo pode ser vista como unidade a ser inserida ou

    confrontada em contextos mais amplos abrange na verdade muitas e muitas possibilidades.

    Conforme os critrios que estejam sustentando nosso esforo de aproximao em relao a uma

    determinada realidade histrico-social, vo surgindo concomitantemente as vrias alternativas de

    dividir o espao antes indeterminado em regies mais definidas. Posso estabelecer critrios

    econmicos relativos produo, circulao ou consumo para definir uma regio ou dividir

    uma espacialidade mais vasta em diversas regies. Posso preferir critrios culturais considerar

    uma regio lingstica, ou um territrio sobre o qual so perceptveis certas prticas culturais queo singularizam, certos modos de vida e padres de comportamento nas pessoas que o habitam.

    Posso me orientar por critrios geolgicos e estabelecer em um espao mais vasto as divises

    que se referem aos tipos de minerais e solos que predominam em uma rea ou outra ou posso

    ainda considerar zonas climticas. A Geografia, como de se esperar, privilegia certos critrios:

    muito habitualmente lana luz sobre certos aspectos que se relacionam com a materialidade

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    5/22

    4

    fsica, e pode ou no relacionar estes aspectos a outros de ordem cultural (como o caso, de

    modo geral, da Geografia Humana).

    O outro conceito, o de territrio, tem sido igualmente importante para o trabalho dos

    historiadores. Devemos entender por territrio, conforme ser visto adiante, o espao que atravessado explicitamente pelo poder. Toma-se posse de um espao, seja no mundo humano ou

    no mundo animal, e tem-se a a formao de um territrio. O conceito, obviamente, aplica-se

    tanto s relaes entre as grandes potncias, como s relaes interindividuais. O territrio,

    conforme j discutiremos, o espao que foi demarcado por um poder de qualquer tipo, e

    visando um outro indivduo ou entidade que poderia ter pretenses anlogas de assumir controle

    sobre o espao em questo.

    Tanto a noo de regio como a de territrio, conforme podemos ver, produzem

    operaes muito especficas no espao. A primeira regiocorresponde habitualmente a uma

    operao cientfica ou administrativa. A segunda territrio um fato poltico, uma operao

    associada a um empoderamento sobre o espao. So noes que, obviamente, tambm podem se

    conjugar. Antes de abordarmos estes aspectos, retomemos a histria da historiografia para

    identificar alguns momentos significativos para o desenvolvimento de uma conscincia espacial

    entre os historiadores.

    A Geo-Histria.

    No sculo passado, as contribuies dos historiadores franceses ligados primeira

    gerao da clebre Escola dos Annales esto entre as primeiras sistematizaes dos dilogos

    acadmicos da Histria com a Geografia. Uma das primeiras escolas geogrficas a terem

    merecido a ateno dos historiadores de novo tipo, e mais particularmente da historiografia

    original e derivada da Escola dos Annales, foi a escola geogrfica de Vidal de La Blache

    gegrafo que j atuava interdisciplinarmente com historiadores desde 19052

    . Lucien Febvre,ainda nas primeiras dcadas do ltimo sculo, j havia se valido francamente da concepo

    espacial de La Blache para comear a pensar as relaes entre o meio fsico e a sociedade, e o

    2Vidal de la Blache contribuiu para a Histria da Franade Ernest Lavisse com um primeiro volume intituladoTableau de la geographie de la France (Paris: ditions de la Table Ronde, 1903).

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    6/22

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    7/22

    6

    monumental ensaio historiogrfico, e sobre esta histria quase-imvel de longa durao a

    temporalidade espacializada onde o tempo infiltra-se no solo a ponto de quase desaparecer que

    se erguer o segundo ato, a mdia durao que rege os destinos coletivos e movimentos de

    conjunto, trazendo tona uma histria das estruturas que abrange desde os sistemas econmicosat as hegemonias polticas, os estados e sociedades. Trata-se de uma histria de ritmos seculares,

    e no mais milenares, e depois dela surgir o ltimo andara curta durao que rege a histria

    dos acontecimentos, formada por perturbaes superficiais, espumas de ondas que a mar da

    histria carrega em suas fortes espduas.5

    fcil perceber como o sujeito da histria, nas duas obras monumentais de Braudel,

    transfere-se do homem propriamente dito para realidades que lhe so muito superiores: o

    Espao, no Mediterrneo; e a Vida Material, na Civilizao Material do Capitalismo. So

    estes grandes sujeitos histricos que abrem o campo de possibilismos para as subseqentes

    histrias dos movimentos coletivos e dos indivduos. Tal como observa Peter Burke em uma

    sinttica mas lcida anlise de O Mediterrneo, um dos objetivos centrais de Braudel nesta obra

    mostrar que tanto a histria dos acontecimentos como a histria das tendncias gerais no podem

    ser compreendidas sem as caractersticas geogrficas que as informam e que, de resto, tem a sua

    prpria histria longa:

    O captulo sobre as montanhas, por exemplo, discute a cultura e a sociedade dasregies montanhosas, o conservadorismo dos montanheses, as barreirassocioculturais que separam os homens da montanha dos homens da plancie, e anecessidade de muitos jovens montanheses emigrarem, tornando-semercenrios.6

    O Mediterrneo e Felipe II, enfim, a insupervel obra prima em que Braudel pretendeu

    demonstrar que o tempo avana com diferenas velocidades, em uma espcie de polifonia na qual

    a parte mais grave coincide com a histria quase imvel do Espao, e onde temporalidade e

    espacialidade praticamente se convertem uma outra. Paradoxalmente, apesar de ter sido oprimeiro a propor uma histria quase imvel como um dos nveis de anlise, outra grande

    contribuio de O Mediterrneo foi a de mostrar que tudo est sujeito a mudanas, ainda que

    lentas, o que inclui o prprio Espao. De fato, a leitura de O Mediterrneo nos mostra que o

    5BRAUDEL, Fernando.On History. Chicago: University of Chicago Press, 1980, p.21.6BURKE, Peter.A Escola dos Annales. So Paulo: UNESP, 1991, p.50.

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    8/22

    7

    espao definido por este grande Mar era muito maior no sculo XVI do que nos dias de hoje, pelo

    simples fato de que o transporte e a comunicao eram muito mais demorados naquele perodo 7.

    Com isto, percebe-se que a espacialidade dilata-se ou comprime-se no tempo conforme

    consideremos um perodo ou outro nos quais se contraponham diferentes possibilidades doshomens movimentarem-se no espao. Mais uma vez, homem, espao e tempo aparecem como

    trs fatores indissociveis.

    Se o Espao est sujeito aos ditames do Tempo, por outro lado a Temporalidade tambm

    est sujeita aos ditames do Espao e do meio geogrfico. Apenas para dar um exemplo assinalado

    por Franois Dosse, o mesmo Mediterrneo de Braudel tambm nos mostra um mundo

    dicotomicamente dividido em duas estaes: enquanto o vero autoriza o tempo da guerra, o

    inverno anuncia a estao da trgua uma vez que o mar revolto no permite mais aos grandes

    comboios militares se encaminharem de um ponto ao outro do espao mediterrnico: , ento, o

    tempo dos boatos insensatos, mas tambm o tempo das negociaes e das resolues pacficas .8

    Desta maneira o Clima (um aspecto fsico do meio geogrfico) reconfigura o Espao, e este

    redefine o ritmo de tempos em que se desenrolam as aes humanas. Espao, Tempo e Homem.

    A obra de Fernando Braudel tambm nos permite iniciar outra reflexo importante, a qual

    se refere considerao de uma diferena fundamental entre durao e recorte de tempo.

    Braudel ousou estudar o grande espao no tempo longo. Quando falamos em tempo longo

    referimo-nos a uma durao ou antes: a um determinado ritmo de durao. O tempo longo

    o tempo que se alonga, ou o tempo que parece passar mais lentamente. A longa durao, enfim,

    aquela na qual, com relao observao de determinados critrios, as transformaes se

    processam em um ritmo mais lento. No devemos confundir longa durao com recorte

    extenso. O recorte de Braudel em O Mediterrneo pelo menos o recorte deste trecho da

    Histria de que ele se vale para orquestrar polifonicamente as trs duraes distintas o reinado

    de Felipe II. Braudel no estudou nesta obra um recorte temporalparticularmente estendido. Ele

    estudou um recorte tradicional, que cabe em uma ou duas geraes e que coincide com a duraode um reinado, mas examinando atravs deste recorte a passagem do tempo em trs ritmos

    diferentes. Uma outra coisa seria examinar um determinado espao grande ou pequeno em

    7Conforme ressalta Braudel, cruzar o Mediterrneo de norte a sul levava de uma a duas semanas, enquantoatravess-lo de leste a oeste podia consumir dois ou trs meses (BRAUDEL, Fernando.La Mditerrane..., op.cit.,

    p.363).8DOSSE, Franois.A Histria em Migalhas. op.cit., p.140.

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    9/22

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    10/22

    9

    econmicas, polticas, sociais e culturais que at ento haviam sido examinadas no mbito das

    dimenses nacionais.

    O modelo de compreenso do Espao proposto pela escola de Vidal La Blache funcionou

    adequadamente para diversos estudos associados a esta historiografia europia dos anos 1950 quelidava com aquilo que Pierre Goubert um dos grandes nomes da Histria Local chamava de

    unidade provincial comum, e que ele associava a unidades tal como um country ingls, um

    contadoitaliano, umaLandalem, umpaysou bailiwickfranceses.9Nestes casos e em outros, o

    espao escolhido pelo historiador coincidia de modo geral com uma unidade administrativa e

    muitas vezes com uma unidade bastante homognea do ponto de vista geogrfico ou da

    perspectiva de prticas agrcolas. Tambm se tratava habitualmente de zonas mais ou menos

    estveis bem ao contrrio do que ocorria em pases como os da Amrica Latina durante o

    perodo colonial, onde devemos considerar a ocorrncia muito mais freqente de fronteiras

    mveis. A espacialidade tipicamente europia em certos recortes temporais que no coincide

    com a de outras reas do planeta e para todos os perodos histricos permitiu que fosse

    aproveitado por aqueles historiadores que comeavam a desenvolver estudos regionais, cobrindo

    todo o Antigo Regime, um modelo onde o espao podia ser investigado e apresentado

    previamente pelo historiador, como uma espcie de moldura onde os acontecimentos, prticas e

    processos sociais se desenrolavam. Freqentemente, e at os anos 1960, as monografias derivadas

    da chamada Escola dos Annales apresentavam previamente a Introduo Geogrfica, e depois

    vinha a Histria, a organizao social, as aes do homem. A possibilidade de este modelo

    funcionar, naturalmente, dependia muito do objeto que se tinha em vista, para alm dos padres

    da espacialidade europia nos perodos considerados.

    Mais adiante veremos que logo se estabeleceria uma crtica muito bem fundamentada a

    este modelo no qual o espao era como que dado previamente. Vale dizer, os historiadores logo

    passariam a se dar conta de que, neste caso, estava sendo adotado um conceito no-operacional

    de Regio. Entrementes, nas primeiras dcadas de estudos sobre Histria Local, na Europa, asRegies costumavam vir definidas previamente, como que estabelecidas de uma vez por todas, e

    bastava o historiador ou o gegrafo escolher a sua para depois trabalhar nela com suas

    problematizaes especficas. verdade que tal tendncia tinha sua razo de ser no ambiente

    historiogrfico especificamente europeu entre as dcadas de 1950 e 1970. Freqentemente

    9GOUBERT, Pierre. Histria Local inHistria & Perspectivas. Uberlndia, 6-45-47, Jan/Jun 1992, p.45.

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    11/22

    10

    quando uma certa regio a ser examinada coincidia com um recorte poltico-administrativo que

    permanecera sem maiores alteraes desde a poca estudada at o tempo presente isto

    representava certa comodidade para o historiador, que podia buscar as suas fontes exclusivamente

    em arquivos concentrados nas regies assim definidas.

    Em seu clebre artigo sobre A Histria Local, Pierre Goubert chama ateno para o fato

    de que a emergncia da histria local dos anos 1950 havia sido motivada precisamente por uma

    combinao entre o interesse em estudar uma maior amplitude social (e no mais apenas os

    indivduos ilustres, como nas crnicas regionais do sculo XIX) e alguns mtodos que

    permitiriam este estudo para regies mais localizadas mais particularmente as abordagens

    seriais e estatsticas, capazes de trabalhar com dados referentes a toda uma populao de maneira

    massiva. Ao trabalhar em suas pequenas localidades, os historiadores poderiam desta maneirafixar sua ateno em uma regio geogrfica particular, cujos registros estivessem bem reunidos

    e pudessem ser analisados por um homem sozinho.10A coincidncia entre a regio examinada e

    uma unidade administrativa tradicional como a parquia rural ou o pequeno municpio, podemos

    acrescentar, permitia por vezes que o historiador resolvesse todas as suas carncias de fontes em

    um nico arquivo, ali mesmo encontrando e constituindo a srie a partir da qual poderia extrair os

    dados sobre a populao e a comunidade examinada.

    Com o progressivo surgimento dos novos problemas e objetos que a expanso dos

    domnios historiogrficos passou a oferecer cada vez mais no decurso do sculo XX, o modelo

    mais fixo de regio e espacialidade, que havia influenciado particularmente a Geo-Histria

    francesa de meados do sculo XX, comeou a ser questionado precisamente porque deixava

    encoberta a questo essencial de que qualquer delimitao espacial sempre uma delimitao

    arbitrria, e tambm de que as relaes entre o homem e o espao modificam-se com o tempo,

    tornando inteis (ou no-operacionais) delimitaes regionais que poderiam funcionar para um

    perodo mas no para outro. Uma paisagem rural facilmente pode se modificar a partir da ao do

    homem, o que mostra a inoperncia de considerar regies geogrficas fixas e isto se mostra

    especialmente relevante para os estudos da Amrica Latina no perodo colonial, mais ainda do

    que para os estudos relativos Europa do mesmo perodo11. De igual maneira, um territrio

    10GOUBERT, Pierre. Histria Local. op.cit., p.49.11 Mesmo para perodos posteriores, deve ser observada uma distino na espacialidade de certos pases queadquiriram centralidade em termos de domnio econmico e os chamados pases subdesenvolvidos. Milton Santos

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    12/22

    11

    (voltaremos mais adiante a este conceito) no existe seno com relao ao mbito de anlises que

    se tem em vista, aos aspectos da vida humana que esto sendo examinados (se do mbito

    econmico, poltico, cultural ou mental, por exemplo).

    A Regio compreendida como espao construdo pela anlise

    Atrelar o espao ou o territrio historiogrfico que o historiador constitui a uma pr-

    estabelecida regio administrativa ou geogrfica (no sentido que era proposto pelo gegrafo

    Vidal de La Blache no incio do sculo XX), ou vincular a escolha do historiador a uma rea

    pr-determinada de qualquer outro tipo, pode implicar em deixar escapar uma srie de objetos

    historiogrficos que no se ajustam a estes limites. A mesma comodidade arquivstica que pode

    favorecer ou viabilizar um trabalho mais artesanal do historiadorcapacitando-o para dar conta

    sozinho de seu objeto sem abandonar o seu pequeno recinto documental tambm pode limitar e

    empobrecer as escolhas historiogrficas. Uma determinada prtica cultural, para trazer o exemplo

    da conexo entre Histria Local e Histria Cultural, pode gerar um territrio especfico que nada

    tenha a ver com o recorte administrativo de uma parquia ou municpio, misturando pedaos de

    unidades paroquiais distintas ou vazando municpios. Do mesmo modo, uma realidade econmica

    ou de qualquer outro tipo no coincide necessariamente com a regio fsico-geogrfica no sentidotradicional. Tambm no precisa sequer coincidir com reas econmicas mais tradicionais, pois o

    que est sendo pesquisado pode ser relacionado produo, ao consumo, circulao, ao

    imaginrio econmico ou a inmeras das instncias que so investigadas pela Histria

    Econmica, para alm dos objetos mais tradicionais da Macro-Economia.

    O historiador que elabora o seu trabalho de Histria Local deve estar sempre atento s

    impropriedades de orientar-se atravs de recortes que coincidam necessariamente com as

    delimitaes administrativas de mbito provincial ou municipal. De igual maneira, as regies

    definidas a partir de critrios da geografia fsica tradicional podem se mostrar igualmente no-

    operacionais. Tal como j foi dito anteriormente, a regio em todos os casos uma construo do

    observa que descontnuo, instvel, o espao dos pases subdesenvolvidos igualmente mu ltipolarizado, ou seja, submetido e pressionado por mltiplas influncias e polarizaes oriundas de diferentes tipos de deciso (SANTOS,Milton. O Espao Dividido. So Paulo: EDUSP, 2004, p.21).

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    13/22

    12

    prprio historiador, que pode ou no coincidir com um recorte administrativo ou com uma regio

    geogrfica preconizada por uma Cartografia oficial.

    preciso que o pesquisador ao delimitar o seu espao de investigao e defini-lo como

    uma regio esclarea os critrios que o conduziram a esta delimitao. Algumas perguntas seimpem. A regio corresponde a um espao homogneo, ou a uma superposio de espaos

    diversos (e, neste caso, teremos espaos superpostos em fase ou em defasagem)? Existe um fator

    principal que orienta o recorte estabelecido pela pesquisa? Est se tomando a regio como uma

    rea humana que elabora determinadas identidades culturais, que possui uma feio demogrfica

    prpria, que produz certo tipo de relaes sociais, que organiza a partir de si determinado sistema

    econmico? O critrio norteador coincide com o de regio geogrfica? Com o poltico-

    administrativo? Se um critrio administrativo, o critrio administrativo de que tempo o do

    historiador, ou o do perodo histrico examinado?

    Um critrio geogrfico amparado na cartografia tradicional, da mesma forma, pode ou no

    ser pertinente a uma pesquisa que est sendo realizada. Assim, pode-se dar que um determinado

    objeto de pesquisa justifique o uso da definio estruturalista de regio, que a encara como o

    espao de uma interao marcada por determinaes recprocas entre o ambiente fsico-natural e

    os processos sociais que nele se desenvolvem. Seria o caso, ento, de se definir o peso que se

    atribui determinao geogrfica neste processo. Ou pode ser que seja pertinente um enfoque

    mais culturalista, no qual se define a regio preferencialmente a partir da influncia que os

    elementos de ordem tnica, religiosa ou cultural, de modo geral, exercida sobre a relao entre

    o homem e o seu meio12.

    O historiador deve dedicar, por outro lado, uma ateno especial aos critrios polticos e

    sociais. Uma regio pode ser delineada como um espao onde se reproduzem certos padres de

    conflitos sociais, ou como um espao onde se desenrola determinado movimento social. Nestes

    casos, o espao tornar-se-ia o cenrio, por excelncia, da luta de classes 19, e portanto a

    expresso mais concreta de um modo de produo historicamente determinado que produz estasrelaes de classe. Isto vem ao encontro da combinao do enfoque regional com a abordagem

    materialista-histrica da Histria, de acordo com esta ou aquela perspectiva mais especfica.

    Aqui, a regio construda pelo historiador deixa de ser um dado externo sociedadecomo se

    12 Conforme Paulo H. N. MARTINS, este o enfoque que, a partir de fins da dcada de 1980, predomina naSociologia Poltica (Espao, Estado e Regio: novos elementos tericos In Histria Regional: uma discusso.Campinas: UNICAMP, 1987. p.24).

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    14/22

    13

    aquela a precedesse ou como se fosse o caso de meramente se fixarem balizas para o estudo

    para passar a ser encarada como algo produzido a partir do prprio processo social examinado.

    Uma viso mltipla do espao social

    A crtica aos antigos modelos de superposio entre o recorte historiogrfico e o recorte

    regional-administrativo no surgiram apenas das novas buscas historiogrficas, mas tambm de

    desenvolvimentos que se deram no prprio seio da Geografia Humana. Tal como ressalta Ciro

    Flamarion Cardoso em um ensaio bastante importante sobre a Histria Agrria, altura dos anos

    1970 o conceito de regio derivado da escola de Vidal de la Blache comeou a ser radicalmentecriticado por autores como Yves Lacoste13 que sustentavam que a realidade impe o

    reconhecimento de especialidades diferenciais, de dimenses e significados variados, cujos

    limites se recortam e se superpem, de tal maneira que, estando num ponto qualquer, no

    estaremos dentro de um, e sim de diversos conjuntos espaciais definidos de diferentes

    maneiras.14

    A ideia de tratar sob o ponto de vista das espacialidades superpostas a materialidade

    fsica sobre a qual se movimenta o homem em sociedade, incluindo sistemas diversificados que

    vo da rede de transportes rede de conexes comerciais ou ao estabelecimento de padres

    culturais, aproxima-se muito mais da realidade vivida do que o encerramento do espao em

    regies definidas de uma vez para sempre, e associadas apenas aos recortes administrativos e

    geogrficos que habitualmente aparecem nos mapas. A realidade, em qualquer poca,

    necessariamente complexa, mesmo que esta complexidade no possa ser integralmente captada

    por nenhuma das cincias humanas, por mais que estas desenvolvam novos mtodos para tentar

    apreender a realidade a partir de perspectivas cada vez mais enriquecidas. Voltaremos

    oportunamente a este aspecto, quando discutirmos os recortes a que o historiador obrigado a se

    render na operao historiogrfica atravs da qual busca apreender a vida humana.

    Outro gegrafo importante para a discusso do espao, embora ainda pouco utilizado

    pelos historiadores, Claude Raffestin, que faz uma distino bastante interessante entre o

    13LACOSTE, Yves.La geographie, a sert dabord faire la guerra. Paris: Maspro, 1976.14CARDOSO, Ciro Flamarion.Agricultura, Escravido e Capitalismo. Petrpolis: Editora Vozes, 1979.

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    15/22

    14

    espao e o territrio. Segundo Raffestin, o territrio se forma a partir do espao, o

    resultado de uma ao conduzida por um ator sintagmtico (ator que realiza um programa) em

    qualquer nvel. Ao se apropriar de um espao, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela

    representao), o ator territorializa o espao.15 Obviamente que a definio de espaoproposta por Raffestin, a princpio ligada materialidade fsica, deixa de fora as possibilidades de

    se falar em outras modalidades de espao como o espao social, o espao imaginrio, o

    espao virtual que se constituem no prprio momento da ao humana. Mas nada impede que

    tambm apliquemos a noo de territrio como um empoderamento que se d no espao tambm

    aos mbitos virtual, imaginrio e outros. De qualquer modo, o sistema conceitual proposto por

    Raffestin particularmente importante porque chama ateno para o fato de que a

    territorializao do espao ocorre no apenas com as prticas que se estabelecem na realidade

    vivida, como tambm com as aes que so empreendidas pelo sujeito de conhecimento:

    Local de possibilidades, [o espao] a realidade material preexistente aqualquer conhecimento e a qualquer prtica dos quais ser o objeto a partir domomento em que um ator manifeste a inteno de dele se apoderar.Evidentemente, o territrio se apia no espao, mas no o espao. umaproduo, a partir do espao. Ora, a produo, por causa de todas as relaes queenvolve, se inscreve num campo de poder. Produzir uma representao doespao j uma apropriao, uma empresa, um controle portanto, mesmo se issopermanece nos limites de um conhecimento..16

    Vale ainda lembrar que a conscincia de uma territorialidade que transferida ao espao

    pode transcender o mundo humano. Tambm os animais de vrias espcies, que no apenas o

    homem, costumam territorializar o espao com as suas aes e com gestos que passam a delinear

    uma nova representao do espao. O lobo que marca o seu te rritrio cria para si (e pretende

    impor a outros de sua espcie) uma representao do espao que o redefine como extenso de

    terra sob o seu controle. Demarcar o territrio demarcar um espao de poder. No mbito da

    Macro-Poltica, no seno isto o que fazem os Estados-Naes ao constituir e estabelecer umrigoroso controle sobre suas fronteiras17.

    15RAFFESTIN, Claude.Por uma Geografia do Poder. So Paulo: tica, 1993, p.143.16RAFFESTIN, Claude. op.cit., p.144.17 Por territrio entende-se a extenso apropriada e usada. Mas o sentido da palavra territorialidadecomosinnimode pertencer quilo que nos pertence... esse sentido de exclusividade e limite ultrapassa a raa humana (SANTOS ,

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    16/22

    15

    Mas a noo de territrio pode ser levada adiante. A combinao das j discutidas

    proposies de Yves Lacoste com os conceitos de espao e territrio propostos por Claude

    Raffestin tambm permitiriam falar mais propriamente de territorialidades superpostas. Em sua

    realidade vivida, os seres humanos e de formas extremamente complexas estoconstantemente se apropriando do espao sobre o qual vivem e estabelecem suas diversificadas

    atividades e relaes sociais. Um mesmo homem, no seu agir cotidiano e na sua correlao com

    outros homens, vai produzindo territrios que apresentam maior ou menor durabilidade. Ao se

    apropriar de determinado espao e transform-lo em sua propriedade seja atravs de um gesto

    de posse ou de um ato de compra em um sistema onde as propriedades j esto constitudas um

    sujeito humano define ou redefine um territrio. Ao se estabelecer um determinado sistema de

    plantio sobre uma superfcie natural, ocorre a uma nova territorializao do espao, claramente

    caracterizada por uma nova paisagem produzida culturalmente e por uma produo que

    implicar em controle e conferir poder.

    O territrio que se produz e se converte em propriedade fundiria ou em unidade

    poltica estvel para considerar um nvel mais amplo pode existir em uma durao bastante

    longa antes de ser tragado por um novo processo de reterritorializao. Contudo, se um homem

    exerce a profisso de professor, ou a funo de poltico, no momento de exerccio destas funes

    ele poder estar territorializando uma sala de aula ou um palanque por ocasio de um comcio

    poltico, por exemplo, constituindo-se estes em territrios de curtssima durao. A vida humana

    eterno devir de territrios de longa e curta durao, que se superpem e se entretecem ao sabor

    das relaes sociais, das prticas e representaes. E, sob certo ngulo, a Histria Poltica o

    estudo deste infindvel devir de territorialidades que se constituem a partir dos espaos fsicos,

    mas tambm dos espaos sociais, culturais e imaginrios.

    Os caminhos mais recentes da Geografia Humana tambm convergiram para considerar o

    espao como campo de foras. de um espao social que Milton Sa ntos est falando quando

    prope associar a noo de campoa uma Geografia Nova18

    . Abordando a questo do ponto devista do materialismo dialtico, ele chama ateno para o fato de que o espao humano , em

    qualquer perodo histrico, resultado de uma produo. O ato de produzir igualmente o ato de

    Milton e SILVEIRA, Maria Laura. O Brasilterritrio e sociedade no incio do sculo XX. Rio de Janeiro: Record,2003, p.19.18SANTOS, Milton.Por uma Geografia Nova. Rio de Janeiro: 1974, p.174.

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    17/22

    16

    produzir espao. O homem, que devido sua prpria materialidade fsica ele mesmo espao

    preenchido com o prprio corpo, alm deserespao tambm estno espao eproduzespao.

    Mas poderamos mais uma vez unir estas pontas e dizer que o ato de produzir

    igualmente o ato de produzir territrios. Cultivar a terra dominar a terra, impor-lhe novossentidos, apart-la do espao indeterminado inclusive frente a outros homens, exercer um

    poder e obrigar-se a um controle. Fabricar mercadorias (ou controlar a produo de mercadorias)

    invadir um espao, adentrar esse complexo campo de foras formado pela produo,

    circulao e consumo, e tudo isto passa tambm por exercer um controle sobre o espao vital dos

    trabalhadores, sobre o seu tempo. Produzir ideias se assenhorear de espaos imaginrios e, de

    algum modo, exercer atravs destes espaos diversificadas formas de poder. A produo de

    discursos, por fim, implica em se adequar a uma espcie de territorializao da fala, na qual

    devem ser reconhecidas aquelas regras, limites e interdies que foram to bem estudadas por

    Michel Foucault19. Em todos estes casos, aproduoestabelece territrios, redefine espaos. E de

    todos estes tipos de espaos deve se apropriar o historiador no exerccio de seu ofcio.

    Histria Local e Histria Regional

    Uma discusso conceitual importante para a historiografia brasileira, embora no tanto para

    a historiografia europeia, aquela que se dirige a uma melhor delimitao a cerca das distines

    possveis entre Histria Local e Histria Regional. Esta ser certamente uma operao terica um

    pouco mais ambgua, pois nem todas as lnguas historiogrficas apresentam estas duas expresses

    como designativas de modalidades historiogrficas distintas. Na Frana, por exemplo, sempre se

    falou em Histria Local, e nesta designao enquadram-se tanto pesquisas que no Brasil

    poderiam se relacionar Histria Local, como pesquisas que poderiam se relacionar mais

    propriamente Histria Regional. De fato, para a historiografia brasileira, o simples recorteespacial-localizado no implica necessariamente em Histria Regional.

    19Em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e distribudapor certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimentoaleatrio, esquivar sua pesada e terrvel materialidade (FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. So Paulo:Edies Loyola, 1996, p.8-9).

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    18/22

    17

    Porque no aproveitar a riqueza da lngua portuguesa, que tem abrigado as duas expresses

    histria local e histria regional para definir o regional como aquilo que se refere ao

    lugar integrado a um sistema, embora dotado de sua prpria dinmica interna? A idia de

    regio, neste sentido mais especfico, associa-se noo de que temos agora um lugar que seapresenta, ele mesmo, como sistema com sua prpria dinmica interna, suas regras, sua

    totalidade internae que habitualmente se encontra ligado ou a uma rede de outras localidades

    anlogas, ou a um sistema mais amplo (por exemplo, as vrias regies econmicas ou polticas

    que, no perodo do escravismo colonial, ligam-se a este sistema nacional mais amplo, a uma rede

    comercial mais abrangente, ou a qualquer outra realidade que termine por se apresentar como um

    sistema de sistemas).

    Em contrapartida, o Local poderia se relacionar quele lugar que recortado por um

    problema transversal (cultural, poltico, por exemplo). Quando examino a literatura de cordel de

    determinada comunidade, com vistas a compreender certa conexo entre este gnero cultural a

    determinados aspectos que podem ser polticos, culturais, econmicos, ligados ao imaginrio ou

    s mentalidades, relativos a certas heranas culturais trazidas por movimentos demogrficos

    especficos, posso estar trabalhando mais propriamente com uma Histria Local do que com uma

    Histria Regional. Isto porque neste momento no estou interessado em trabalhar a localidade

    como um sistema, como uma totalidade social, como um sistema ancorado no espao que se liga

    a outra espacialidade mais ampla. A localidade, nestes casos, tratada mais como lugar do que

    como regio.

    O pequeno recorte de uma vizinhana, ou de uma comunidade de migrantes, ou de uma

    prtica cultural que se localiza no interior de um lugar (por exemplo, no interior de uma cidade)

    tambm pode nos remeter ao local, e no ao regional. De outra parte, tal como tambm

    necessrio ressaltar, dependendo da abordagem empregada, poderemos tambm estar falando

    aqui em Micro-Histria. Micro-Histria e Histria Local, alis, tambm constituem conexes

    possveis, j que o universo de observao da Micro-Histria pode corresponder tambm aorecorte local (mas tambm pode corresponder trajetria de vida de um indivduo, de uma

    famlia, ou aos desenvolvimentos de uma determinada prtica cultural). De todo modo, Micro-

    Histria e Histria Local, em que pese constituam modalidades historiogrficas bem

    diferenciadas, tambm se abrem para os seus possveis dilogos.

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    19/22

    18

    Pensar estas nuances possveis entre o local e o regional constitui apenas uma proposta,

    um exerccio de imaginao historiogrfica, j que frequentemente, entre ns, Histria Local e

    Histria Regional so expresses empregadas de maneira quase sinnima. Uma vez que temos

    ao dispor de nossa linguagem historiogrfica as duas expresses, o que no ocorre com ahistoriografia de outros pases, podemos tirar partido desta duplicidade de designaes, fazer

    delas um instrumento para nos aproximarmos de uma maior complexidade relacionada aos

    diversos objetos historiogrficos possveis.

    H tambm certa tendncia, no Brasil, a utilizar a utilizar a expresso histria local para o

    estudo de localidades menores do que aquelas regies geogrficas ou administrativas mais

    amplas que podem corresponder a um estado, ou mesmo a uma rea consideravelmente grande

    dentro de um estado. Assim, a histria local, na historiografia brasileira, costuma se referir a

    cidades, bairros, vizinhanas, aldeias indgenas, enquanto a expresso histria regional volta-se

    mais habitualmente para as regies mais amplas (o Vale do Paraba, o sul de Minas, o estado do

    Piau, e assim por diante). Mas isso praticamente uma especificidade de pases de dimenses

    continentais como o Brasil. Na Europa, onde esta modalidade historiogrfica surgiu (por volta

    dos anos 1950) no se justificava muito uma distino entre os dois vocbulos. Isso facilmente

    compreensvel, uma vez que na Europa os espaos so muito mais reduzidos do que em pases

    como o Brasil, a Argentina, os Estados Unidos ou o Canad. Existem estados brasileiros nos

    quais caberiam diversos pases europeus, como o caso do Amazonas, um estado cujas

    dimenses superam a rea somada de todos os pases da Europa, se desconsiderarmos a Rssia

    europia. O Estado de So Paulo, por exemplo, tem uma rea equivalente de todo o Reino

    Unido.

    Por isso, no de se estranhar que na Frana, quando despontaram mais sistematicamente

    os primeiros trabalhos de histria local, os historiadores no tenham encontrado nenhuma

    necessidade de cunhar uma palavra para a modalidade historiogrfica que lidava com as

    localidades menores, e outra para aquela que lidava com as regies mais amplas. A Franaanterior Revoluo Francesa (1789), por exemplo, estava dividida em 39 provncias. Se

    considerarmos que o estado brasileiro de Minas Gerais do tamanho da Frana, poderemos

    entender a espacialidade mais reduzida a que se refere cada uma das provncias francesas da

    Frana do Antigo Regime. Historiadores como Pierre Goubert, um dos pioneiros nos estudos de

    histria local na Frana, costumavam trabalhar precisamente com esta unidade de espao que

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    20/22

    19

    Goubert chamava de unidade provincial comum, e que ele associava a un idades tais como um

    countryingls, um contadoitaliano, umaLandalem, umpaysou bailiwickfranceses20.

    Nestes e em outros casos, o espao escolhido pelo historiador coincidia, de modo geral,

    com uma certa unidade administrativa. Muitas vezes tambm correspondia a uma unidadebastante homognea do ponto de vista geogrfico, ou da perspectiva de prticas agrcolas.

    Tambm se tratava habitualmente de zonas mais ou menos estveis bem ao contrrio daquilo

    que, durante o perodo colonial, acontecia em pases como os da Amrica Latina, com seus

    entremeados de reas conturbadas e de disputas polticas para as quais devemos considerar a

    ocorrncia muito mais freqente de fronteiras mveis (vale dizer, de fronteiras flutuantes entre

    as regies, e constituintes de uma geografia poltica que se redefinia com uma freqncia bem

    maior do que nos pases europeus).

    O padro tipicamente europeu de organizao da espacialidade poltica permitiu que fosse

    aproveitado, por aqueles historiadores que comeavam a desenvolver estudos regionais cobrindo

    todo o Antigo Regime, um modelo no qual o espao podia ser investigado e apresentado

    previamente pelo historiador, como uma espcie de moldura na qual os acontecimentos, prticas

    e processos sociais se desenrolavam. Freqentemente, e at os anos 1960, as monografias

    derivadas da chamada Escola dos Annales apresentavam previamente uma introduo geogrfica,

    e depois vinha a histria, a organizao social, as aes do homem. A possibilidade de este

    modelo funcionar, naturalmente, dependia muito do objeto que se tinha em vista, para alm dos

    padres da espacialidade europia nos perodos considerados, conforme j vimos. De todo modo,

    esse foi o padro inicial da chamada histria local, nos seus primrdios situados na

    historiografia europia de meados do sculo XX.

    No Brasil, pas de dimenses continentais, a dinmica das expresses Histria Local /

    Histria Regional tambm pode ser utilizada para estabelecer essa relao entre espaos menores

    e espaos maiores, que os integram. Esses usos passam por decises dos prprios historiadores

    envolvidos nesses estudos. muito comum a utilizao da designao histria regional para osespaos mais amplos, por exemplo, nos casos em que a Histria Local estabelece conexes com a

    Histria Econmica. Mas no uma regra, obviamente.

    20GOUBERT, Pierre. Histria Local inHistria & Perspectivas, Uberlndia, 6-45-47, Jan/Jun 1992, p.45.

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    21/22

    20

    Consideraes Finais

    Os conceitos de Espao, Territrio e Regio, conforme vimos, so essenciais para a

    historiografia, seja aquela que trabalha com unidades espaciais maiores, seja aquela que buscaexaminar problemas historiogrficos a partir de um espao menor de observao. Os trs

    conceitos, por outro lado, tm se beneficiado de redefinies diversas, e as realidades que eles

    ajudam a definir devem ser sempre e em todos os casos considerados como construes do

    historiador. Por fim, eles constituem as principais pontes conceituais que permitem estreitar os

    dilogos entre Histria e Geografia, dois campos de estudos que j h muito tempo estendem um

    para o outro fraternas propostas de dilogos interdisciplinares e transdisciplinares. Prosseguir

    com a discusso destes conceitos no futuro ser sempre fundamental no sentido de encaminhar

    pesquisas problematizadas, seja no mbito da Histria ou da Geografia.

    BIBLIOGRAFIA

    BLOCH, Marc. Apologia da Histria, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

    BRAUDEL, Fernando. La Mditerrane et le monde mditerranen lpoque de Philippe II. Paris: Flammarion, 1966.

    BRAUDEL, Fernando. Civilisation matrielle et capitalisme. Paris: Flammarion,1967.

    BRAUDEL, Fernando. crits sur lHistoire, Paris: Flammarion, 1969.

    BRAUDEL, Fernando. On History. Chicago: 1980.

    BURKE, Peter. A Escola dos Annales. So Paulo: UNESP, 1991.

    CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, Escravido e Capitalismo. Petrpolis: EditoraVozes, 1979.

    DOSSE, Franois. A Histria em Migalhas, So Paulo: Editora Ensaio, 1994.

    FEBVRE, Lucien. La terre et la evolution humaine, Paris: Albin Michel, 1922.

    FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso, So Paulo: Edies Loyola, 1996.

    GOUBERT, Pierre. Histria Local in Histria & Perspectivas, Uberlndia, 6-45-47, Jan/Jun1992.

    LA BLACHE, Vidal de. Tableau de la geographie de la France. Paris: ditions de la TableRonde, 1903

    LACOSTE, Yves. La geographie, a sert dabord faire la guerra. Paris: Maspro, 1976.

    RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. So Paulo: tica, 1993.

    SANTOS, Milton. O Espao Dividido.So Paulo: EDUSP, 2004.

  • 7/24/2019 2923-espao conceito9995-2-PB.pdf

    22/22

    SANTOS, Milton e SILVEIRA, Maria Laura. O Brasilterritrio e sociedade no incio dosculo XX,Rio de Janeiro: Record, 2003, p.19.

    SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. Rio de Janeiro: 1974.