8 análises e discussões - educação

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105 FORMAÇÃO DOCENTE INICIAL E O ENSINO AO ALUNO COM DEFICIÊNCIA EM CLASSE COMUM NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA CAPÍTULO 8 ANÁLISES E DISCUSSÕES 8.1 UMA DISCIPLINA SÓ NÃO FAZ VERÃO... Inicio minha análise deste eixo, que tem por objeto de discussão e reflexão a disciplina Intervenção Pedagógica e Necessidades Educativas Especiais, fazendo uma livre adaptação de um dito popular bastante conhecido: “Uma andorinha só não faz verão”, que teve sua origem na filosofia, com Aristóteles 1 , mas que foi redimensionado pela cultura popular. Seu significado consiste no pensamento de que quanto mais se trabalha sozinho, menores são as possibilidades de alcançarmos êxito. Em complementação a este, poderíamos citar outro ditado: “A união faz a força”. A partir do ditado aqui empregado, procuro fazer uma analogia com a situação da disciplina mencionada. No grande grupo das disciplinas pedagógicas que a FACED oferta a todos os cursos de licenciatura, ela se move, até certo ponto, isolada em meio às disciplinas voltadas para a Psicologia, Sociologia, Filosofia, Didática, Estágios Supervisionados etc. Em minha pesquisa pelos cursos de licenciatura que contêm essa disciplina, descobri algumas outras que poderíamos classificar como disciplinas afins a essa. Cito aqui algumas delas: Acessibilidade e tecnologia assistiva na educação inclusiva; Educação especial, docência e processos inclusivos; Educação especial e inclusão; Educação de surdos; Educação: a criança e o adolescente excluídos da escola; 1 Aristóteles fez menção ao ditado no livro Ética a Nicômano (384-322 a.C.). Originalmente, o filósofo grego escreveu “uma andorinha só não faz primavera”, cujo contexto vem da história de um rapaz que gastou sua fortuna em jogos e luxúria. Quando ficou pobre, restou-lhe somente uma capa para protegê-lo do frio. Ao ver uma andorinha no céu, ele concluiu erroneamente que a primavera estava chegando e resolveu vender a capa para recuperar sua fortuna. Infelizmente, o inverno foi implacável. Sem a capa, o rapaz morreu congelado. A alusão à andorinha não é por acaso. As andorinhas costumam voar em grandes grupos (até 200 mil). No início do outono elas costumam migrar para a América do Sul, de onde voltam no início de abril, prenunciando a primavera.

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Analise na educação especial

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  • 105

    FORMAO DOCENTE INICIAL E O ENSINO AO ALUNO COM DEFICINCIA

    EM CLASSE COMUM NA PERSPECTIVA DA EDUCAO INCLUSIVA

    CAPTULO 8 ANLISES E DISCUSSES

    8.1 UMA DISCIPLINA S NO FAZ VERO...

    Inicio minha anlise deste eixo, que tem por objeto de discusso e

    reflexo a disciplina Interveno Pedaggica e Necessidades Educativas

    Especiais, fazendo uma livre adaptao de um dito popular bastante

    conhecido: Uma andorinha s no faz vero, que teve sua origem na filosofia,

    com Aristteles1, mas que foi redimensionado pela cultura popular. Seu

    significado consiste no pensamento de que quanto mais se trabalha sozinho,

    menores so as possibilidades de alcanarmos xito. Em complementao a

    este, poderamos citar outro ditado: A unio faz a fora.

    A partir do ditado aqui empregado, procuro fazer uma analogia com a

    situao da disciplina mencionada. No grande grupo das disciplinas

    pedaggicas que a FACED oferta a todos os cursos de licenciatura, ela se

    move, at certo ponto, isolada em meio s disciplinas voltadas para a

    Psicologia, Sociologia, Filosofia, Didtica, Estgios Supervisionados etc. Em

    minha pesquisa pelos cursos de licenciatura que contm essa disciplina,

    descobri algumas outras que poderamos classificar como disciplinas afins a

    essa. Cito aqui algumas delas:

    Acessibilidade e tecnologia assistiva na educao inclusiva;

    Educao especial, docncia e processos inclusivos;

    Educao especial e incluso;

    Educao de surdos;

    Educao: a criana e o adolescente excludos da escola;

    1 Aristteles fez meno ao ditado no livro tica a Nicmano (384-322 a.C.). Originalmente, o

    filsofo grego escreveu uma andorinha s no faz primavera, cujo contexto vem da histria de um rapaz que gastou sua fortuna em jogos e luxria. Quando ficou pobre, restou-lhe somente uma capa para proteg-lo do frio. Ao ver uma andorinha no cu, ele concluiu erroneamente que a primavera estava chegando e resolveu vender a capa para recuperar sua fortuna. Infelizmente, o inverno foi implacvel. Sem a capa, o rapaz morreu congelado.

    A aluso andorinha no por acaso. As andorinhas costumam voar em grandes grupos (at 200 mil). No incio do outono elas costumam migrar para a Amrica do Sul, de onde voltam no incio de abril, prenunciando a primavera.

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    Pessoa portadora de necessidades especiais: normalizao e integrao;

    Aspectos psicossociais da incluso;

    Psicologia da diferena e incluso social;

    Diversidade e desenvolvimento humano;

    Psicologia do excepcional II;

    Fundamentos da educao fsica especial.

    Das onze disciplinas citadas, a primeira delas que aparece em minha

    lista vem sendo ofertada em alguns cursos, tais como a Histria e a Qumica,

    por exemplo. Ela trabalha com uma abordagem especfica, que trata do uso da

    tecnologia assistiva em forma de recursos que iro proporcionar a eliminao

    de barreiras para a incluso da pessoa com deficincia, como o caso de

    softwares, equipamentos de comunicao alternativa, leitores de voz, prteses

    etc. As cinco disciplinas seguintes pertencem ao quadro curricular da

    Pedagogia. As outras quatro subsequentes so do quadro curricular da

    Psicologia. Finalmente, a ltima faz parte da Educao Fsica.

    A nica disciplina voltada para o ensino/atendimento ao aluno com

    deficincia que ofertada a todos os cursos de licenciatura (e alguns de

    bacharelado), que possui um carter mais generalista, a disciplina em estudo.

    Alm dela, h ainda a disciplina de LIBRAS, que apresenta o mesmo poder de

    alcance e obrigatoriedade. Entretanto, uma disciplina direcionada ao

    atendimento de uma categoria especfica, que so os alunos surdos. Alm

    disso, seus professores apresentam concepes diferentes sobre a incluso e

    o ensino/atendimento a esses alunos, inclusive com vinculaes a

    departamentos diferentes (DEE).

    Ento, voltamos nossa andorinha, que relativamente nova, mas

    possui antecedentes: a disciplina Introduo Educao Especial, criada na

    dcada de 1990 no curso de licenciatura em Pedagogia, sendo pertencente ao

    DEE e ministrada pelos professores doutores Carlos Skliar e Hugo Beyer.

    Ainda na mesma dcada, foi criada a disciplina Integrao e Normalizao da

    Pessoa Portadora de Necessidades Especiais, cuja titular era a profa. Cleonice

    Rech. Logo depois, essa disciplina alterou sua designao para a atual

    Interveno Pedaggica e Necessidades Educativas Especiais. Seu espao,

    naquela poca, era bem restrito, sendo obrigatria, a princpio, apenas para a

    Pedagogia e a Matemtica. Alm destes cursos, a disciplina aparecia como

  • 107

    eletiva para algumas outras licenciaturas, porm o nmero de alunos que a

    cursavam no era significativo.

    Em uma sesso de 23 de maro de 2005, numa ao inovadora, a

    UFRGS aprovou no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extenso CEPE a

    Resoluo n 08/2005, que alterou o artigo 1 da Resoluo n 04/2004 do

    CEPE, que regulamenta as Diretrizes para o Plano Pedaggico das

    Licenciaturas da UFRGS. A alterao se deu pela incluso, no artigo 1, de

    dois pargrafos, o 4 e o 5, nos quais se exige a obrigatoriedade de uma

    disciplina que capacite o futuro docente a atender estudantes que apresentem

    necessidades educacionais especiais, visando ao desenvolvimento de tal

    competncia (UFRGS, 2005). Alm disso, estabelece um prazo de dois anos

    para que os cursos de licenciatura da UFRGS se adaptassem a essa

    obrigatoriedade.

    Num primeiro momento, direcionou-se tal obrigatoriedade para o ensino

    da disciplina de LIBRAS e fomentou-se a contratao de professores para ela.

    A disciplina de meu estudo continuava com pouca projeo, fazendo parte da

    rea da Psicologia no DEBAS e sem professores exceo do titular

    especficos para lecion-la, alm de figurar como eletiva em quase todos os

    cursos de licenciatura.

    Em 2009 exatamente o ano em que assumi como professora

    substituta da referida disciplina , criou-se todo um movimento interno em

    torno dela, atravs da COMGRAD de Pedagogia e, sobretudo, da COORLICEN

    no sentido de discutir institucionalmente sobre a necessidade de ampliao

    dessa disciplina, em decorrncia de a mesma ter sido eleita a disciplina qual

    se referia a Resoluo n 08/2005. Ento, conforme a Ata n 07/2009 da

    COORLICEN-UFRGS quatro anos aps a Resoluo , deliberou-se a

    incluso obrigatria da disciplina Interveno Pedaggica e Necessidades

    Educativas Especiais nos currculos de todos os cursos de licenciatura no

    semestre letivo de 2010/2.

    Essa deliberao ocasionou, como j relatamos anteriormente, uma

    reao em cadeia, embora um tanto discreta: a primeira seleo para professor

    substituto especfico da disciplina e a abertura de edital de concurso para o

    primeiro professor de Educao Especial na FACED, bem como o aumento de

    turmas ofertadas aos cursos, uma maior circulao de alunos por ela, maiores

  • 108

    possibilidades de debates a respeito dos temas relativos incluso, deficincia

    e educao especial. Para os professores, surgiu a possibilidade mpar de

    trabalhar a recontextualizao do conhecimento por meio de um discurso

    instrucional e regulativo sem tantas marcas ou referncias de outras reas, j

    que, de certa maneira, ela se configura em disciplina quase indita dentro de

    seu contexto educacional. Fora isso, a diversidade de cursos, representados

    por seus alunos em cada turma, pode viabilizar de forma mais ampla a

    compreenso de conceitos como diversidade, preconceito, respeito s

    diferenas etc.

    Com a insero crescente da disciplina na rotina curricular dos cursos de

    licenciatura, mais a ampliao das discusses referentes incluso escolar por

    meio de fruns e seminrios e da mdia em geral, talvez seja possvel que

    gradativamente, os alunos que cheguem FACED para cursar essa disciplina

    comecem a encar-la com menos estranhamento e preconceito, visto que, em

    seu ambiente, podem vislumbrar a oportunidade de discutir temas que se

    encontram na ordem do dia do fazer pedaggico.

    Rosa (2007), em sua tese, consegue descrever brilhantemente o

    estranhamento demonstrado pelos licenciandos ao chegarem FACED,

    esperando aprender tcnicas e metodologias de ensino inovadoras, ou

    chegam com vises preconceituosas com relao regio da Educao em

    funo (p. 133). A autora nos fornece a caracterizao do discurso horizontal2

    que permeia as disciplinas pedaggicas da FACED. Segundo a autora, esse

    discurso constitudo pelas ideias a seguir:

    1) centralidade do aluno e do processo de aprendizagem na relao pedaggica; 2) valorizao da criatividade para o desenvolvimento de metodologias e de materiais didticos para o ensino; 3) crtica aos contedos de livros didticos; 4) valorizao dos debates e discusses como forma de construo de perspectivas crticas; 5) desvalorizao da posio hierrquica de autoridade do professor; 6) valorizao da noo de professor como facilitador da aprendizagem;

    2 De acordo com a teoria de Bernstein (1996), o discurso horizontal abrange o conhecimento

    cotidiano ou mais comumente chamado de conhecimento do senso comum. Consiste em um conjunto de estratgias locais, que so organizadas de forma segmentada e dependente de um contexto especfico.

  • 109

    7) desvalorizao da transmisso de contedos (ROSA, 2007, p. 133-134).

    A mencionada autora continua sua descrio do estranhamento sentido

    pelos alunos das licenciaturas (em sua tese, especificamente, ela trabalhou

    com alunos do curso de licenciatura em Cincias Biolgicas, mas

    perfeitamente aplicvel aos demais cursos), ao se depararem com outras

    formas de organizao do ensino s quais no esto acostumados: a

    valorizao do debate e da capacidade argumentativa, bem como a

    confrontao de valores oriundos de outros grupos de alunos; a organizao do

    espao fsico, geralmente com as cadeiras dispostas em crculo para facilitar as

    discusses, mas que tambm expe os alunos uns aos outros; e o contato com

    palavras do jargo da Pedagogia com as quais no esto to familiarizados,

    como sujeito, epistemologia, cognio etc. (ROSA, 2007). No caso

    especfico da disciplina Interveno Pedaggica e Necessidades Educativas

    Especiais, acrescentam-se outras palavras mais, prprias do linguajar da

    Educao Especial, como por exemplo: diferena; diversidade; desvantagem;

    limitao; incapacidade; deficincia; avaliao; incluso; etc.

    O estranhamento desses alunos acaba sendo potencializado pelas

    relaes que algumas comisses de graduao de determinados cursos

    mantm com a FACED, nem sempre amistosas. As queixas so as mais

    variadas possveis, e vo desde aspectos relacionais at formas de dominao

    do discurso pedaggico. Passam pela falta de dilogo por parte dos

    professores da faculdade de educao na criao de disciplinas pedaggicas e

    sua distribuio pelos currculos dos diversos cursos de licenciatura. Pela

    desconexo entre os saberes das licenciaturas e das disciplinas pedaggicas.

    Pela montagem de horrios em que elas so ofertadas. Pela prpria

    disparidade de pensamento entre os professores de uma mesma disciplina

    pedaggica, o que ocasiona uma quebra na sequncia de conhecimentos a

    serem trabalhados, principalmente quando h disciplinas sequentes (I, II, III

    etc.). Pelo distanciamento entre o que discutem e o ambiente da sala de aula

    que os licenciandos encontraro, quando formados.

    Em minhas entrevistas, ouvi as opinies emitidas pelos sujeitos-

    coordenadores a respeito das disciplinas da FACED, e identifiquei uma espcie

  • 110

    de reserva s vezes, animosidade direcionada a essa faculdade e seus

    professores. H relatos bem contundentes a esse respeito, quando eu

    perguntava a opinio deles sobre as disciplinas pedaggicas, como poderemos

    ver a seguir:

    Eu acho pssimas. As disciplinas da Faculdade de Educao so as piores. A Faculdade de Educao, no meu entender, contribui muito negativamente com a formao dos nossos professores. So muito ruins as disciplinas, os professores so ruins, os alunos sempre reclamam. As disciplinas dadas por ns so muito boas, ns temos gente muito competente, mas da faculdade de educao, eu tenho muita queixa. Por exemplo, aluno que nunca frequentou as aulas e passa com conceito A. Isso histrico. Dez anos atrs, quando eu fui coordenador, j era assim. Trinta anos atrs, quando eu comecei a lecionar aqui, j era assim (sujeito-coordenador3).

    H sujeitos-coordenadores que reconhecem a importncia de se estudar

    as disciplinas pedaggicas do currculo, no entanto avaliam as dificuldades

    pelas quais essas disciplinas passam com relao ao curso e ao alunado:

    Eu ouo falar, em contato com os alunos, que na maior parte das vezes, elas [as disciplinas pedaggicas da FACED] so dispensveis. Eu no concordo com isso, honestamente. Eu acho que grande parte dos contedos pode se sobrepor, e a o que a FACED assume, alguns professores daqui poderiam assumir, como o caso dos estgios, por exemplo, que alguns deles j esto sendo dados pelos professores da casa. Mas acredito que algumas disciplinas sejam de competncia da educao, por uma questo bvia: eu no espero que venha algum da faculdade de educao me dizer o que eu devo ensinar aos meus alunos do ponto de vista da teoria, ento eu tambm no me sinto credenciado para dizer aos especialistas da educao o que eles devem ensinar pros seus alunos pros nossos alunos, inclusive, no que diz respeito formao pedaggica. Ento, eu tento no entrar nesse debate, que para mim mesquinho. De qualquer modo, eu acho que uma distribuio mais racional das disciplinas dentro do currculo do curso fizesse alguma diferena, porque da maneira como esto colocadas, elas parecem no fechar muito bem com uma ideia que o aluno tem de uma licenciatura, com aquilo que se pratica em geral aqui. H, portanto, um abismo muito grande entre duas perspectivas de pesquisa e de abordagem em geral, o que pode criar uma certa tenso (sujeito-coordenador).

    3 Neste captulo de anlise das informaes, optei por no enumerar ou nomear cada sujeito individualmente. Para fazer a diferenciao entre eles e preservar seu anonimato, decidi nome-los de acordo com seu grupo: sujeito-aluno; sujeito-coordenador; e sujeito-professor.

  • 111

    Com relao s tenses voltadas para os aspectos relacionais, tambm colhi relatos que descreviam os professores da FACED, nas reunies de COMGRAD ou de COORLICEN, como pessoas arrogantes e resistentes ao dilogo, como neste que segue:

    Eles [professores da FACED] pareciam estar em outro mundo eu sou muito importante, eu que sei, eu que ensino. Eu nunca vi tanta arrogncia junto. No era um grupo que estava l para compartilhar. Era um grupo s para dizer: Olha, assim (sujeito-coordenador).

    Por todas as narrativas coletadas, observou-se haver um relativo

    desgaste nas relaes estabelecidas entre a FACED e os cursos de

    licenciatura da UFRGS, um desgaste que parece vir de muitos anos e que cria

    impasses que prejudicam a formao docente como um todo. Ora, tal desgaste

    tambm acaba alcanando a disciplina Interveno Pedaggica e

    Necessidades Educativas Especiais, que aos olhos de quem empreende a

    contenda, perde sua identidade como uma disciplina recente, que possui um

    discurso pedaggico prprio e que foi criada com o objetivo de atender a

    necessidades educativas que se encontram na ordem do dia, que o ensino a

    alunos com deficincia que tm chegado progressivamente s classes comuns

    das escolas regulares de ensino.

    Assim, justificam-se as manifestaes iniciais de estranhamento por

    parte dos alunos. Partindo da argumentao de Rosa (2007) confrontao

    desses alunos com um discurso horizontal caracterstico das disciplinas

    pedaggicas e formas de organizao do ensino diferentes , soma-se a

    antipatia generalizada que muitos desses alunos demonstram por todas as

    disciplinas pedaggicas da FACED, sem distino. Alm desses argumentos

    aqui expostos, penso ser importante acrescentar outros, e esses especficos da

    disciplina Interveno Pedaggica e Necessidades Educativas Especiais: o

    preconceito historicamente enraizado com relao aos alunos com deficincia

    e o desconhecimento (por anos de silncio e isolamento) de quem sejam e de

    como trabalhar pedagogicamente com eles.

    Para alm desses argumentos mais prximos, h um que se encontra

    intrinsecamente ligado questo do domnio do discurso pedaggico dentro de

    uma instituio educacional. A prerrogativa de quem se encarrega pela

    recontextualizao pedaggica de um campo de conhecimento e com isso,

  • 112

    domina o discurso pedaggico traz vantagens tanto com relao a esse

    campo de conhecimento quanto com relao visibilidade dentro dessa

    instituio. A existncia de uma disciplina, portanto, tem sua reverberao na

    rea onde se insere e no departamento onde se vincula. Na faculdade como

    um todo, abre espao para novas atividades ligadas pesquisa e extenso.

    Quanto mais se amplia, mais conhecimento; quanto mais conhecimento, mais

    poder e maior abrangncia do discurso.

    Quanto ao aspecto institucional, um dos sujeitos-professores apresentou

    o seguinte pensamento:

    Me inquieta essa animosidade entre a FACED e outras faculdades. As pessoas sabem que ter espao nas grades curriculares ter poder poltico na instituio. Ter uma disciplina significa contratar professor. Ento, se eu tenho a disciplina mesmo que seja para lecionar para a Matemtica ou para a Educao Fsica, por exemplo , o professor vai ser nosso, e ns que vamos decidir quem esse professor. E eu espero que agora, com a instituio de um espao de discusso que comeou a acontecer [atravs da rea da Educao Especial], mas tmido ainda, que as pessoas tornem seriamente isso, pois seno haveria um enfraquecimento no da disciplina, mas um enfraquecimento da FACED dentro da UFRGS, e isso seria muito ruim (sujeito-professor).

    Pessoalmente, acredito que o poder de alcance dessa disciplina s

    tenda a aumentar, no porque de uma hora para a outra a comunidade

    educacional da UFRGS se conscientizou da importncia de estudar sobre um

    tema atual e emergente, que possui uma poltica governamental apoiando, ou

    porque inesperadamente todos conseguiram ultrapassar a barreira do

    desconhecimento ou do preconceito e passaram a apoiar a incluso escolar do

    aluno com deficincia. Acredito, por conseguir vislumbrar um processo

    dinmico se desenvolvendo na minha frente, como um rio e seus afluentes

    caminhando todos para uma foz: a criao de uma disciplina, sua

    obrigatoriedade nos currculos das licenciaturas, o acesso cada vez maior de

    pessoas com deficincia escolarizao em classes comuns, a demanda de

    profissionais com formao para ensin-los/atend-los, o aumento do nmero

    de pesquisas em torno do tema, uma poltica educacional e uma legislao a

    favor da incluso, o interesse crescente do alunado sobre assuntos da

    Educao Especial etc.

  • 113

    Com relao ao interesse dos alunos sobre esse tema, poderia dar

    como exemplo a realizao do I Seminrio de Intervenes Pedaggicas e

    Incluso Escolar, que aconteceu nos dias 21, 23, 24 e 25 de maio de 2012, na

    sala 601 da FACED. Foi uma iniciativa em conjunto dos professores da

    disciplina Interveno Pedaggica e Necessidades Educativas Especiais, mas

    em resposta s solicitaes de seus alunos, que queriam aprofundar alguns

    tpicos da disciplina para os quais no havia espao nela. A cada noite, eram

    convidados dois profissionais para palestrarem sobre os temas escolhidos

    alunos com surdez no ensino regular, tecnologias digitais acessveis, educao

    profissional e a pessoa com deficincia etc. Cada aluno s tinha a

    obrigatoriedade de se inscrever em uma das noites do evento, em substituio

    aula daquela semana. Entretanto, vrios deles se inscreveram em mais de

    uma noite, perfazendo um total de 150 alunos inscritos, e num perodo de

    paralisao pelo qual a Universidade passava4. Ora, penso que esses dados

    queiram dizer algo quem sabe, que culturas estejam sendo mudadas e que

    paradigmas estejam sendo quebrados.

    Penso tambm que como forma de direcionar tanta diversidade de

    pensamentos e concepes, que advm dos alunos das turmas da disciplina,

    que a maioria dos professores no deixe de proceder ao que Bernstein (1996)

    coloca como o domnio do discurso regulador sobre o instrucional. Ou seja, que

    se trabalhe preferencialmente os valores e concepes que compem o

    discurso pedaggico. E com uma viso de professor mediador de que Vygotsky

    fala. Isso fica claro quando um sujeito-professor afirma:

    Primeiro, eu trabalho a questo da sensibilizao. Eles [os alunos] tm de estar sensveis ao tema, se encontrar com o tema da diversidade, se implicar com isso. Sem isso, o resto acmulo de papel. Acho que a principal questo eles poderem se encontrar com esse lugar de professor, lugar de ensinante, lugar da diversidade. [...] Depois, eu trabalho temas que podem ajud-los com seus alunos [...]. Mas se tu no passas pelo primeiro, no chegas aos outros. No tm sentido os outros. preciso que tu tenhas entendido isso (sujeito-professor).

    4 Houve vrios momentos de paralisao dos funcionrios da UFRGS durante o primeiro semestre de 2012, que precederam a greve pela qual as universidades brasileiras passaram, no segundo semestre do mesmo ano.

  • 114

    Fica claro que no basta apenas dominar competncias de como

    ensinar/atender a um aluno com deficincia na classe comum. preciso estar

    sensibilizado para a situao de ensino do aluno com deficincia, ter a

    convico de que esse aluno tem direito a essa educao junto aos outros

    alunos, e que sua incluso, por mais desafiadora que seja, possvel e

    benfica no s para ele, mas para toda a comunidade escolar e sociedade.

    Os textos reflexivos que utilizei durante o perodo em que lecionei a

    disciplina traziam, ainda que no explicitamente, esse objetivo. Os exerccios

    de reflexo, por meio de perguntas-chave, davam a possibilidade de os

    sujeitos-alunos se colocarem no lugar da pessoa com deficincia. Como foi o

    caso do exerccio no qual solicitei que completassem a frase: Eu me sinto

    excludo quando......../ Eu me sinto includo quando........ Atravs dele, eles

    puderam pensar a respeito das situaes em que se sentem excludos e do

    quanto tal sensao incmoda. As respostas foram variadas, e se

    procurarmos ler com ateno, poderemos perceber que elas poderiam ter sido

    fornecidas por quaisquer pessoas com deficincia em situao de excluso:

    Eu me sinto excludo quando: - estou em ambientes com pessoas desconhecidas e as mesmas esto discutindo assuntos que no so do meu conhecimento e, alm disso, no procuram me incluir na conversa [...]; - sou julgada precipitadamente pelo meu jeito sincero, atrelado ao tom de voz alto; - no participo das decises e assuntos que me dizem respeito; - decidem por mim; - sou colocado de lado pelo grupo em que estou, minhas opinies e sugestes no so aceitas ou sequer levadas em conta; - me julgam incapaz de realizar uma determinada ao, baseado somente em aparncias externas; - em um grupo, algum que est falando para todos, dirige-se e interage com todos, menos comigo; - no consigo me comunicar com outras pessoas e no tenho minhas necessidades mnimas de relacionamento e compreenso atendidas (sujeitos-alunos).

    Por fim, penso que embora uma disciplina s no faa vero ou

    seja, embora uma nica disciplina no d conta da abrangncia de uma

    formao docente para o ensino ao aluno com deficincia em classe comum na

    perspectiva inclusiva , a disciplina Interveno Pedaggica e Necessidades

  • 115

    Educativas Especiais apresenta um potencial de expanso, por toda a

    argumentao que venho expondo neste eixo de anlise. Exponho, ento, meu

    ltimo argumento: a forma como os professores dessa disciplina vm

    trabalhando em conjunto, a articulao entre seus saberes e concepes.

    Como j foi relatado anteriormente, antes de se iniciar o ano letivo de

    2012, esses professores se reuniram para que pudessem compartilhar suas

    intenes com relao disciplina, discutir a respeito de suas ideias,

    procedimentos docentes, metodologia, para planejarem seu fazer pedaggico,

    e principalmente para criarem foras entre si e razes dentro da disciplina,

    dentro da FACED, nas parcerias com as outras disciplinas pedaggicas e nas

    articulaes com os outros cursos em que ela ofertada. Esse o princpio da

    intersubjetividade, da forma como foi explorado por Vygotsky. No se trata de

    negar o conflito, mas de buscar uma espcie de entendimento e por que

    no, de parceria? para alm do conflito.

    So professores que possuem interesses, campos de conhecimento e

    referenciais tericos distintos e, ao mesmo tempo, interligados. Vm da

    Psicologia, da Pedagogia e da Educao Especial. Trabalham com autores

    como Freud, Bateson, Foucault e Deleuze. O que importante ressaltar que

    mesmo com essas diferenas, todos eles possuem vivncia em Educao

    Especial que os credencia para o cargo. E principalmente, possuem premissas

    que os unem, como por exemplo, o reconhecimento dos direitos dos alunos

    com deficincia a uma educao de qualidade e que no os segregue, e que

    tm uma tarefa significativa para a sedimentao da disciplina, que buscar

    parceiros que comunguem dessas mesmas premissas.

    Dessa forma, a diversidade de conhecimentos e referenciais, em vez de

    ser um fator de dificuldade para o andamento da disciplina, acaba por se tornar

    benfica, uma vez que ir constituir um discurso pedaggico mais abrangente,

    o que far com que todos saiam ganhando.

    8.2 UM COMEO, AINDA QUE TARDIO, SEMPRE UM COMEO...

    Neste eixo de anlise, proponho uma espcie de enigma: como j havia

    anunciado anteriormente, o eixo pretende analisar a formao docente inicial. A

    partir da, pode surgir o questionamento: mas a qual comeo o subttulo se

  • 116

    refere? A formao docente inicial no existe h tempos na UFRGS, contexto

    de nosso estudo? Sim, existe. Entretanto, estou me referindo aqui a uma

    formao docente inicial voltada para o ensino ao aluno com deficincia em

    classe comum na perspectiva da educao inclusiva. A, sim, podemos

    considerar um comeo. Ainda que tardio.

    Por que um comeo? Basta nos restringirmos ao contexto da

    Universidade pesquisada a UFRGS para que justifiquemos nossa

    afirmao. A disciplina que sustenta essa formao docente inicial a

    disciplina Interveno Pedaggica e Necessidades Educativas Especiais

    uma disciplina recente. At o perodo em que eu a lecionei na FACED, entre os

    anos de 2009 e 2010, ela se restringia a duas turmas; era classificada como

    disciplina eletiva na maioria das grades curriculares dos cursos de licenciatura,

    embora sua obrigatoriedade tivesse sido instituda desde 2005, atravs da

    Resoluo n 08/2005 CEPE/UFRGS; no possua uma rea prpria dentro do

    DEBAS, era considerada um apndice da rea da Psicologia; no possua um

    professor especfico para ela, aprovado em concurso pblico.

    Com todas as mudanas que ocorreram a partir de sua criao,

    podemos considerar que, em relao s disciplinas pedaggicas da FACED,

    ela um beb, como afirmou um dos sujeitos-professores. Lecion-la,

    portanto, tem sido um desafio pela sua novidade (e estranhamento que o novo

    provoca nas pessoas), pelos seus passos ainda inseguros no que tange

    seleo dos contedos a serem trabalhados, pela visibilidade que precisa

    adquirir para se firmar como disciplina de excelncia, dentro e fora da FACED.

    Entretanto, penso que seu maior desafio se encontra justamente no peso que

    lhe foi colocado nos ombros: ser a disciplina responsvel pela formao

    docente que ir (supostamente) preparar os alunos para atuarem como

    professores da educao bsica numa perspectiva inclusiva.

    E por que um comeo tardio? Porque, como foi explanado no captulo 2

    desta tese, temos todo um histrico educacional permeado por leis, decretos,

    resolues, bem como polticas e programas governamentais, que desde a

    dcada de 1990 vm aprovando, sancionando e apresentando em seus textos

    uma linguagem voltada para um ensino pautado pela perspectiva da educao

    inclusiva, contendo orientaes quanto formao docente que esteja de

    acordo com essa perspectiva. A questo que nos surge agora : como dar

  • 117

    conta, em pouco tempo de criao, de uma formao docente inicial em

    direo a uma poltica que j vem se desenvolvendo h um tempo

    relativamente significativo, e que impulsionou o acesso de alunos com

    deficincia s classes comuns, que estimulou a busca pelo conhecimento de

    seus direitos e a exigncia de seu cumprimento?

    Todos esses desafios aqui apresentados no pesariam tanto se, como

    suporte da disciplina em estudo, houvesse toda uma estrutura de formao

    docente slida e consolidada. Parece que a realidade no se apresenta dessa

    forma, e isso pode ser ratificado pela fala dos sujeitos da pesquisa. Um dos

    professores da referida disciplina argumenta: A fragilidade no est somente

    na disciplina. O que est frgil a prpria formao de professores, o projeto

    de formao docente da UFRGS. H situaes em que a disciplina tem de ser

    oferecida, em outras no precisa... Como assim? (sujeito-professor).

    Talvez, ento, fosse o caso de se pensar quem sabe, numa anlise

    mais aprofundada sobre o tema que o que se encontra no cerne da questo,

    ao que parece, seja a prpria formao docente e a qualidade de ensino nos

    cursos de licenciatura, cursos que formam o futuro professor. Leite et al. (1998)

    afirmam que um currculo para essa formao dever contemplar pelo menos

    trs esferas do saber humano, que devero dialogar entre si: (a) senso comum

    memria e autorreflexo para a formao do ensinador interativo; (b) cincia

    para formao do pesquisador e ensinador tcnico-profissional; e (c) crtica

    filosfica para a formao do crtico radical do conhecimento, de si e da

    sociedade.

    Durante minha coleta de material emprico, observei dois fatos

    intimamente ligados que pretendo descrever aqui.

    O primeiro fato diz respeito ao alunado que ingressa nos cursos de

    licenciatura. Observei que uma parcela significativa dos alunos que recebi em

    minhas turmas de Interveno Pedaggica e Necessidades Educativas

    Especiais no possui a pretenso, necessariamente, de ser professor. Algumas

    vezes, optaram por um curso de licenciatura porque, segundo informaes

    colhidas por alguns deles, os cursos de licenciatura so os mais fceis de

    possibilitar o ingresso na Universidade5. Em decorrncia, vrios alunos

    5 Vem-me lembrana, no incio do ano de 2010, quando estava dando aula em uma turma da Pedagogia na FACED, um alarido de vozes do lado de fora. No consegui distinguir o que

  • 118

    migram para outros cursos, cursam as disciplinas de forma lenta, concluindo a

    graduao muito tempo depois, ou simplesmente evadindo-se. Aparentemente,

    tais cursos no exigem um nvel de conhecimento to alto no concurso

    vestibular quanto outros cursos tradicionais, como por exemplo, Medicina ou

    Direito. Com esses alunos, torna-se difcil exigir um compromisso com a

    docncia e com a qualidade do curso de licenciatura no qual ingressaram.

    Um dos sujeitos da pesquisa assim afirma:

    Como coordenador, me sinto um pouco frustrado, pois a gente no consegue influir no input de alunos. Os nossos alunos em geral, quando entram na licenciatura, no so os melhores alunos do vestibular. [...] Ento, isso um pouco frustrante. Voc no consegue melhorar o input de alunos. Ento, o output, a quantidade de alunos que a gente forma no muito grande. Embora eu ache que a gente faz um bom trabalho. Mas a gente gostaria de ter alunos mais qualificados na entrada (sujeito-coordenador).

    Mesmo quando ingressam convictos do que querem nos cursos de

    licenciatura, alguns alunos demonstram muita dificuldade em desenvolver uma

    conscincia de professor e o que significa s-lo. Tambm lhes difcil

    desenvolver a noo de que ensino e aprendizagem fazem parte de um mesmo

    processo, e que um est ligado ao outro. Lembro que numa aula, na qual

    procurava desmistificar a ideia errnea de turma homognea e reafirmava o

    esforo do professor em encontrar metodologias que sejam adequadas aos

    alunos para que nenhum fique excludo desse processo, um aluno interrompeu

    e falou: Eu no tenho de aprender tudo isso. Eu s preciso aprender minha

    matria, chegar na sala e dar a minha aula (sujeito-aluno).

    O segundo fato tem a ver com o prprio andamento dos cursos de

    licenciatura. Durante as entrevistas com os sujeitos-coordenadores, tomei

    conhecimento de que vrios cursos estavam passando por uma reestruturao

    curricular, devido a estarem com seus contedos defasados, o que fazia com

    que no fossem atraentes para curs-los, ou por apresentarem uma fraca

    demanda. H inclusive um curso que foi suspenso at segunda ordem,

    somente aps ser devidamente reestruturado.

    gritavam, e pedi ajuda aos alunos para descobrir. Os alunos (em sua maioria mulheres) me olharam um pouco constrangidos e explicaram que eram alunos recm-ingressados no curso de Direito que, numa forma de provocar os alunos de Pedagogia, passavam pelo prdio gritando: Segunda opo! Segunda opo!.

  • 119

    No havia alunos. Os alunos no terminavam o curso. Diversos outros coordenadores tinham tentado, tinham feito muito esforo de arrecadar pessoas, de tentar... E as pessoas entravam e no concluam. Quando eu peguei [a coordenao], acho que ns tnhamos uns quatro alunos da licenciatura. Entravam pouqussimos. At entravam mais, mas logo em seguida, quando conseguiam o primeiro emprego, saam. A licenciatura s era til porque eles ficavam vinculados universidade, tinham acesso biblioteca, tinham alimentao... Mas no concluam. Ento essa foi uma situao que ns pegamos aqui, que j era assim. E a nica coisa que fiz foi suspender o oferecimento da licenciatura para evitar novas entradas e novas frustraes (sujeito-coordenador).

    Nunca demais lembrar que uma possvel causa para essa situao

    esteja relacionada s origens e s formas como os cursos de licenciatura se

    estabeleceram. Em nosso pas, os cursos de licenciatura foram criados

    atrelados s antigas faculdades de filosofia, a partir da dcada de 1930, tendo

    como objetivo principal a regulamentao do preparo de docentes para a

    escola secundria. O currculo se constitua da seguinte forma: os trs

    primeiros anos dedicados s disciplinas conteudistas, e somente no ltimo ano,

    o ensino das disciplinas pedaggicas, cujas matrias apresentavam uma

    justaposio de umas sobre as outras, sem evidenciarem qualquer inter-

    relao ou conexo entre si.

    No contexto selecionado pela pesquisa, temos acompanhado um

    esforo por parte das coordenaes das licenciaturas no sentido de ofertarem,

    cada vez mais cedo, as disciplinas pedaggicas em seus currculos. O maior

    impasse, na voz dos sujeitos deste estudo, fica por conta da justaposio ou

    desconexo entre os temas trabalhados nessas disciplinas pedaggicas e nas

    prprias de cada curso. Portanto, no seria totalmente absurdo fazer uma

    analogia entre a formao docente como ainda se apresenta e a metfora que

    Jacques Busquet (apud PEREIRA, 1999) utiliza para critic-la:

    Imagine uma escola de natao que se dedica [] a ensinar anatomia e fisiologia da natao, psicologia do nadador, qumica da gua e formao dos oceanos, custos unitrios das piscinas por usurio, sociologia da natao (natao e classes sociais), antropologia da natao (o homem e a gua) e, ainda, a histria mundial da natao, dos egpcios aos nossos dias. Tudo isso, evidentemente, base de cursos enciclopdicos, muitos livros, alm de giz e quadro-negro, porm sem gua. Em uma segunda etapa, os alunos-nadadores seriam levados a observar, durante outros vrios meses, nadadores

  • 120

    experientes; depois dessa slida preparao, seriam lanados ao mar, em guas bem profundas, em um dia de temporal (JACQUES BUSQUET apud PEREIRA, 1999, p. 112).

    A comparao que Busquet faz entre a escola de natao e os trs

    momentos da formao docente inicial estudo das disciplinas tericas,

    estgios supervisionados, e finalmente, a prtica ao final toma contornos

    muito mais srios se, quando lanados ao mar (que a escola) em um dia de

    temporal, os futuros professores ainda tenham a possibilidade de se deparar

    com seres marinhos os mais diferentes e variados possveis, cada qual com

    suas particularidades, potencialidades e dificuldades, e todos solicitando sua

    ateno, nisso que seria nadar no mar da incluso.

    Encontramo-nos num impasse quando falamos de formao docente

    inicial voltada para o ensino ao aluno com deficincia em classe comum: luz

    da teoria de Bernstein, falamos de uma agncia recontextualizadora (a

    UFRGS) que no procedeu como um todo recontextualizao do discurso

    pedaggico oficial que lhe chegou s mos, que o discurso da incluso

    (sobre isso, falaremos mais no terceiro eixo). Mais grave identificar um

    discurso pedaggico a ser transmitido nos cursos de licenciatura no qual h um

    discurso regulador baseado em uma ideologia que procura vir na contramo de

    tudo o que j se desenvolveu em termos de concepes sobre os alunos com

    deficincia, de que eram incapazes, inferiores e deveriam aprender em

    separado.

    Vivenciamos um momento em que h uma aposta na capacidade de

    aprendizagem desses alunos e o incentivo ao desenvolvimento de suas

    potencialidades. Cabe ao professor buscar adequaes ao seu processo de

    aprendizagem. At a, tudo bem. At o momento em que se pergunta o que se

    faz com o discurso instrucional, ou seja, que conjunto de destrezas compe

    esse discurso e que supostamente dar suporte para o fazer pedaggico do

    futuro professor em sala de aula.

    Afinal, como Glat et al. (2006) alertam, h inegavelmente uma realidade

    inclusiva que bate porta da Universidade e cobra dela uma melhor formao

    docente:

    O fato que, de maneira geral, as licenciaturas no esto preparadas para desempenhar a funo de formar professores

  • 121

    com uma orientao inclusiva de atuao profissional. Isso preocupante, pois os alunos bem ou mal esto sendo includos e cada vez mais as salas de aula se diversificam, embora, evidentemente, no no ritmo desejado [...]. Em outras palavras, trata-se de uma incluso precarizada (GLAT et al., 2006, p. 6).

    Assim, imprescindvel que, para abarcar um projeto to amplo como

    o da educao inclusiva, preciso que os cursos de formao docente inicial

    se fortaleam e se tornem bem sedimentados, investindo em uma formao

    terica slida, que ultrapasse a simples aquisio puramente tecnicista,

    acelerada e pouco reflexiva, que logicamente no contribui para o processo

    educacional como um todo, seja o aluno com ou sem deficincia. Essa viso

    reforada pelas palavras de Barbosa e Prista (2010):

    Nesse contexto, a formao inicial como preparao profissional tem um papel inicial para possibilitar que os professores se apropriem de determinados conhecimentos e possam experimentar, em seu prprio processo de aprendizagem, o desenvolvimento de competncias necessrias para atuar nesse novo cenrio. A formao de um profissional de educao tem que estimul-lo a aprender o tempo todo, a pesquisar, a investir na prpria formao e a usar sua inteligncia, criatividade, sensibilidade e capacidade de interagir com outras pessoas (BARBOSA e PRISTA, 2010, s/p).

    Uma das alternativas para o investimento na formao docente inicial se

    d atravs da criao de disciplinas como a pesquisada neste estudo nos

    cursos de licenciatura. Bueno e Marin (2011), a partir de informaes colhidas

    junto a acadmicos envolvidos com a Educao Especial, afirmam haver

    atualmente um nmero significativo de Universidades e instituies de ensino

    superior que decidiram pela incluso, nos currculos das licenciaturas, de

    disciplinas voltadas para o estudo de temas relativos Educao Especial ou

    Educao Inclusiva, contendo abordagens bem diversificadas.

    Uma outra forma de investimento consiste em fomentar a pesquisa

    acerca da formao docente, abrangendo a organizao curricular de cursos

    de formao inicial que procurem contemplar, por exemplo, estudos sobre as

    deficincias e sobre os processos de incluso escolar. H tambm a

    possibilidade de instalao de fruns permanentes de discusso sobre os

    cursos de formao docente, estimulando o debate nas instituies de ensino

  • 122

    superior e a realizao de propostas para os cursos de licenciaturas (MARQUES

    e PEREIRA, 2011).

    Outra ideia seria estimular o aspecto transversal da disciplina, atuando

    em conjunto com as licenciaturas, fazendo conexes entre elas e articulando a

    possibilidade de prticas pedaggicas na perspectiva da incluso, quem sabe

    por meio de estgios supervisionados em espaos onde os alunos possam

    entrar em contato com ambientes inclusivos.

    O que fica evidente que da maneira como vem se ampliando o quadro

    de matrculas de alunos com deficincia nas classes comuns e se expandindo

    a construo de espaos para o Atendimento Educacional Especializado, urge

    que haja um redimensionamento do papel do professor universitrio na

    formao docente inicial. Essa exigncia demanda novas atribuies ao

    professor formador, Universidade como agente recontextualizador

    pedaggico, fomentando investigaes de novos referenciais tericos que

    possam investir em aes de ensinar e aprender relativas educao na

    perspectiva inclusiva. E no possvel parar o tempo para empreender uma

    formao docente em sua total plenitude, quando existem alunos que precisam

    de um ensino inclusivo agora.

    Isso me faz lembrar um fato que ocorreu em sala de aula, durante um

    dos semestres em que lecionei a disciplina Interveno Pedaggica e

    Necessidades Educativas Especiais, em cuja turma havia um aluno cego.

    Estvamos justamente discutindo sobre formao docente e sobre estratgias

    de interveno pedaggica, quando um aluno resolveu se manifestar, alegando

    que do jeito que ocorreu o processo inclusivo nas escolas da educao bsica,

    da noite para o dia6, no houve tempo para que se preparasse de forma mais

    adequada para receber os alunos com deficincia nas classes comuns. E

    continuou argumentando que deveria ter havido antes toda uma discusso em

    nvel nacional acerca da viabilidade de um projeto inclusivo, que deveria ter tido

    6 J se comentou, na introduo desta tese, que alm da frase que desencadeou em mim o desejo de pesquisar sobre formao docente inicial No fui preparado para atender a esse aluno h uma frase subsequente, que seria: Ns dormimos excludentes e acordamos inclusivos. Esta ltima frase nos induz erroneamente a acreditar que a incluso escolar tenha ocorrido de forma rpida, da noite para o dia. Tal crena no leva em conta todo um movimento em prol da incluso escolar, que vem desde as agncias internacionais, se estendeu pelos setores de educao especial e se intensificou nas associaes de pessoas com deficincia. Para esses segmentos, a luta pela incluso escolar tem sido longa, rdua e tardia.

  • 123

    tempo para os professores se formarem, para se remover barreiras

    arquitetnicas, produzir materiais adaptados etc. A sim, se procederia

    incluso. Ao que o aluno cego rebateu: Est certo. E enquanto isso, o que

    que eu fao? Fico trancado no quarto, esperando?. Fez-se um silncio na

    sala. S consegui pensar isto: O tempo no para.

    Mas afinal, o que faz parte do currculo de um curso de formao

    docente inicial pautado na perspectiva inclusiva? E que tipo de professor se

    quer formar sob essa perspectiva? H realmente alguma preparao efetiva

    para ensinar o aluno com deficincia na classe comum? Skliar (2006) pondera

    a respeito: Parece que ainda no existe nenhum consenso sobre o que

    significa estar preparado, e muito menos, acerca de como deveria se pensar a

    formao quanto s polticas de incluso propostas em todo o mundo (SKLIAR,

    2006, p. 31).

    Ferreira (2006) tambm nos aponta que o novo perfil do professor para

    incluso ainda uma incgnita para os sistemas educacionais e suas

    caractersticas escapam aos acadmicos, [...] s comunidades escolares e,

    tambm, aos prprios professores (p. 230).

    Dorziat (2011) nos d pistas sobre a dificuldade em traar um perfil

    docente inclusivo e aposta numa abordagem sistmica, a partir da qual todos

    os aspectos que permeiam a formao se encontrem interligados e vistos em

    seu todo:

    A indefinio do perfil docente para a incluso , nesse sentido, decorrente da dificuldade de uma abordagem sistmica sobre formao de professores, que envolva todos os alunos, e no apenas os alunos com deficincia. Essa abordagem pode permitir ao professor desenvolver a capacidade de compreender e praticar o acolhimento s diferenas, com uma postura de abertura s singularidades humanas na experincia prtica, a fim de poder planejar aulas que levem em conta tais informaes (DORZIAT, 2011, p. 150).

    preciso, pois, buscar uma nova concepo de professor que possa

    atuar em situaes prticas de forma reflexiva. Que no se restrinja a questes

    meramente instrumentais, mas que considere a complexidade dos fenmenos

    educativos. Que vise ruptura de paradigmas, ao pensamento de uma nova

    escola, com uma nova proposta de formao docente. Que esteja consciente

  • 124

    de que sua prtica envolve uma atitude de observao, de reflexo crtica e

    reorganizaes de suas aes.

    Nas palavras de Mizukami (2002),

    [...] aprender a ser professor, nesse contexto, no , portanto, tarefa que se conclua aps estudos de um aparato de contedo e tcnica de transmisso deles. uma aprendizagem que deve se dar por meio de situaes prticas que sejam efetivamente problemticas, o que exige o desenvolvimento de uma prtica reflexiva constante. Exige ainda que, alm de conhecimentos, sejam trabalhadas atitudes, as quais so consideradas to importantes quanto os conhecimentos (MIZUKAMI, 2002, p. 12).

    8.3 CULTURA TAMBM SE MUDA...

    Se eu tivesse uma viso pessimista acerca do que estou pesquisando,

    poderia intitular este eixo com outra frase: A moda da incluso. Vou contar

    aqui uma pequena histria para explicar:

    Incio do sculo XXI, tnhamos (a equipe de Educao Especial do ento Departamento de Educao Especial do Estado do Par, da qual eu fazia parte) implantado o projeto-piloto de incluso escolar nas escolas estaduais situadas no municpio de Belm, procurando nos adaptar a duas situaes novas: trabalhar diretamente nas escolas, assessorando professores, gestores e tcnicos, dando formao em servio aos educadores, sensibilizando a comunidade escolar para a incluso; trabalhar internamente com o significado de nos tornarmos agentes de incluso, e todos os desdobramentos que essa posio carregava, para o bem e o mal. Quando j havamos passado um primeiro ano turbulento por conta das adaptaes, resistncias e embates no ambiente escolar e caminhvamos em direo a um patamar de aceitao e um vislumbre de um trabalho colaborativo, estava andando pela rua e reencontrei casualmente uma ex-professora de minha graduao. Aps abraos efusivos e perguntas sobre a vida de cada uma, veio a primeira pergunta: Ainda ests no DEES?, ao que eu respondi que sim. Ento, veio a pergunta fatal: E a, vocs ainda continuam com essa moda de incluso?.

    Essa ltima frase ficou ressoando por muito tempo em minha mente, a

    tal ponto que ainda agora, quando estou analisando a atuao da universidade

    na incluso escolar do aluno com deficincia, ela continua a reverberar em

    minha memria. Fiquei, durante um bom tempo, questionando o porqu de as

    universidades brasileiras e principalmente as universidades federais, que

  • 125

    so mantidas pelo governo federal no terem tomado para si a tarefa de

    implementar aes inclusivas em seu interior e dissemin-las para os outros

    nveis de ensino poca em que as polticas educacionais com vis inclusivo

    foram lanadas, como geralmente ocorre quando se lanam polticas

    educacionais do governo. Afinal, as universidades sempre foram as agncias

    de vanguarda e disseminadoras de aes educacionais, que vo se

    estendendo para os outros nveis de ensino.

    Mas tal questionamento nunca tinha me provocado tanto at o momento

    em que me tornei professora substituta de uma universidade brasileira

    reconhecidamente de prestgio, onde constatei que a disciplina que iria lecionar

    se constitua na nica disciplina de formao docente, de carter generalista,

    que tinha o encargo de transmitir contedos afinados com tais polticas

    educacionais inclusivas. Como? No h outras? E espaos de pesquisa, de

    estgio, de extenso? E o que pode uma disciplina?

    Mais impactada ainda eu fiquei quando, ao pesquisar a respeito do

    assunto, formao docente inicial, utilizei-me da teoria de um autor da

    sociologia da educao o socilogo Basil Bernstein , que descreve a

    trajetria de construo do discurso pedaggico desde a origem at chegar

    sala de aula. Tomei o quadro relativo ao processo de construo do referido

    discurso e fui aplicando a ele o discurso voltado para a incluso escolar do

    aluno com deficincia.

    Parti da origem, o campo internacional, e identifiquei nele todos os

    movimentos ocorridos em meados/finais do sculo passado e no incio deste

    sculo em direo educao inclusiva, como por exemplo, a Conveno

    Mundial de Educao para Todos (1990) e a Declarao de Salamanca (1994).

    No campo do Estado, revi todas as leis, decretos, resolues e polticas que

    tm dado o suporte legal para a implementao da incluso escolar. No campo

    de recontextualizao oficial, de onde parte o discurso pedaggico oficial,

    consegui identificar o Ministrio da Educao MEC e a Secretaria de

    Educao Especial SEESP, que distriburam esse discurso para o campo

    recontextualizador pedaggico. Quanto a este campo, localizei o Departamento

    de Educao Bsica DEBAS da Faculdade de Educao FACED e a sua

    rea mais recentemente criada, a rea da Educao Especial, aos quais a

    disciplina Interveno Pedaggica e Necessidades Educativas Especiais se

  • 126

    encontra vinculada. No que tange reproduo/mudana do discurso

    pedaggico, localizei a prtica pedaggica exercida pelos professores dessa

    disciplina, que so os responsveis pela seleo dos contedos a serem

    transmitidos em sala de aula.

    Quando terminei a identificao da trajetria do discurso pedaggico no

    quadro fornecido por Bernstein, me dei conta de que, em algum momento, um

    elemento se perdeu nesse quadro (e na histria da trajetria do discurso

    pedaggico voltado para a incluso): a Universidade como um todo. Embora

    tenha identificado um departamento que contm uma rea de conhecimento

    dentro de uma faculdade de educao que se identifica com tal discurso, no

    se consegue identificar esse discurso abrangendo toda a Universidade. Esse

    fato me causou estranhamento, se partirmos do pressuposto de que as

    universidades, principalmente as pblicas, se constituem nos contextos

    considerados de vanguarda em termos de inovao educacional e de

    disseminao de polticas governamentais. De acordo com Bernstein (1996),

    constituem-se em agncias modeladoras, responsveis diretas pelo

    desenvolvimento ou transformao das formas simblicas que ocorrem dentro

    das cincias e das artes.

    Rossetto (2009) j havia refletido a esse respeito em sua tese sobre a

    incluso de sujeitos com deficincia no ensino superior, quando refere:

    [...] vemos hoje uma Universidade que, embora fosse de seu conhecimento haver uma poltica nacional de educao pautada nos princpios inclusivos h pelo menos oito anos, parecia dormir em bero esplndido no que se refere adeso como um todo a tal poltica, restringindo seu campo de pesquisa e formao a poucas linhas de pesquisa. Ressalte-se que, como instituio formadora de profissionais (dentre eles, professores), como agncia formadora de opinio no que diz respeito implantao de novos padres culturais e vanguarda no campo cientfico, era de se esperar que essa Universidade tivesse tomado a frente em tal empreitada, principalmente as Universidades pblicas, que teriam relaes mais estreitas com quaisquer polticas governamentais. No entanto, o que se tem visto, no geral, uma Universidade despreparada diante da insero cada vez maior de alunos com deficincia no ensino superior, ultrapassando todas as previses pessimistas quanto ao seu sucesso educacional (ROSSETTO, 2009, p. 220-221).

    Descobrir as possveis causas dessa lacuna deixada pela Universidade

    torna-se uma tarefa complexa. Cristalizao de prticas docentes

  • 127

    tradicionalistas que no do espao a novos discursos? Desarticulao com os

    rgos oficiais para a implantao dessas prticas? Dificuldade de interao

    dialgica entre os rgos internos (faculdades, departamentos, campos de

    conhecimento etc.) para viabilizar um trabalho conjunto? Conflito em torno de

    quem possui o controle simblico? Descrdito quanto possibilidade de

    ingresso do aluno com deficincia no ensino superior? Descrdito quanto

    possibilidade de tal poltica vingar, como se fosse uma moda, com os dias

    contados para passar?7

    As possibilidades de justificativas so muitas. Entretanto, dedicar-me a

    elas, neste momento, seria at certo ponto infrutfero e poderia me desviar do

    que penso ter potencial para analisar. Ento, retorno ao subttulo deste eixo de

    anlise. E vou contar mais uma histria:

    Havia eu sido convidada, pelos idos de 2006, para palestrar sobre educao inclusiva em uma instituio educacional de uma rede municipal de ensino. Poucas pessoas, em sua maioria representantes de diversos setores da educao. Aps minha exposio, passamos s perguntas, todas elas voltadas para a famosa Cartilha do Ministrio Pblico8, que segundo essas pessoas, mandava fechar todas as escolas especiais. Todos queriam saber minha opinio a respeito do fechamento ou no de suas escolas especiais, e eu mansamente falei: Se essas escolas trabalham com base em um modelo clnico teraputico, penso que devam ser transformadas em instituies especializadas; se tiverem um modelo pedaggico [que, segundo essas pessoas, era o adotado], acredito que possam se transformar em escolas regulares com classes comuns. Mal terminei de falar, comearam a surgir manifestaes de todos os lados, com todos falando ao mesmo tempo, inconformados. Os questionamentos eram das ordens mais variadas possveis, passando por formao docente, atitudes preconceituosas, at a gratificao especfica para a educao especial. A cada questionamento, eu procurava argumentar calmamente, pois havia alguns nimos exaltados. O ltimo questionamento era de que pais com filhos ditos normais nunca iriam querer matricul-los em uma escola onde tradicionalmente sempre estudaram crianas com deficincia. A essa altura, eu j estava rouca, e no conseguia mais me

    7 O que tem se verificado, nos processos de implantao de projetos inclusivos em redes de ensino ou em instituies educacionais em nosso pas, que tais processos, em sua maioria, no ocorrem como iniciativa dessas redes ou instituies como um todo. Geralmente, so iniciativas isoladas de rgos ou de profissionais ligados Educao Especial. Ao que parece, na UFRGS esse processo vem acontecendo da mesma maneira.

    8 MINISTRIO PBLICO FEDERAL. O Acesso de Alunos com Deficincia s Escolas e Classes Comuns da Rede Regular. Ministrio Pblico Federal: Fundao Procurador Pedro Jorge de Melo e Silva (orgs.). 2. ed. rev. e atualiz. Braslia: Procuradoria Federal dos Direitos do Cidado, 2004.

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    fazer escutar, em meio a tantas vozes. Foi ento que um rapaz, representante discente, nico homem na sala e que tinha permanecido todo o tempo calado, levantou a mo diante dos olhares espantados e falou: Gente, cultura tambm se muda.... E naquele momento, fiquei com vontade de dar-lhe um grande abrao...

    Se h uma convico que eu tenha e que criei no s por estar em

    consonncia com o referencial terico que adotei, mas porque a vivncia tem

    me demonstrado , a de que a cultura se encontra sempre em processo de

    mudana. E no poderia ser diferente, partindo do referencial histrico-cultural.

    Vygotsky baseou sua teoria justamente nos processos culturais pelos quais o

    homem passa, no como ser passivo a eles, mas ativo no sentido de produzi-

    los, e ao mesmo tempo, estar neles imerso. Cultura , simultaneamente, o

    produto da vida social e da atividade social dos homens (VYGOTSKY apud PINO,

    2005, p. 18).

    Como o prprio nome diz, a teoria histrico-cultural acaba por estudar os

    processos culturais ao longo da histria que podem ir desde a histria

    microgentica, por exemplo, da aquisio de um comportamento dentro da

    histria de desenvolvimento de uma pessoa, at a histria filogentica, da

    evoluo da espcie. A marca da cultura a marca do humano.

    Ento, quando me perguntam, por exemplo, se eu acredito na incluso,

    eu costumo dizer que sim, mas no numa viso romntica de incluso, com

    todos vivendo harmoniosamente e aprendendo tudo, ou da mesma maneira.

    At porque esse um processo complexo que envolve muitos aspectos

    polticos, histricos, atitudinais, econmicos, estruturais etc. Mesmo assim,

    acredito nela com as credenciais de quem j possui um percurso de mais de

    duas dcadas trabalhando na educao especial, e que vem observando

    transformaes, ao longo desse percurso, em direo a uma educao cada

    vez mais inclusiva.

    Alguns sinais so observveis ao longo desse perodo, como o caso

    do ingresso, a cada dia mais numeroso, de alunos com deficincia na classe

    comum. Como o interesse gradual, embora insuficiente, das universidades

    pelos temas inclusivos ou da educao especial. E se me dizem que a incluso

    utopia (eu prefiro antes olh-la dialeticamente), costumo me lembrar de um

    poema de Eduardo Galeano, que citei em minha dissertao de mestrado.

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    Ela est no horizonte. [...] Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcanarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.

    No tanto o resultado que conta; o caminho. o que penso retratar o

    texto de um ex-aluno:

    [...] Vista assim, a incluso parece tarefa de gigantes, e talvez seja, e cada um ter de assumir uma parte deste emaranhado de ns e ir desatando aos poucos. Uma coisa certa: este um caminho sem volta. Temos de trilhar buscando levar adiante as aes necessrias, aproveitando todas as frestas para avanar, procurando agregar, ampliar as relaes sociais para construir conhecimento, desenvolver cidadania, reinventar novas formas de interao e convivncia com as diferenas no somente nas escolas, mas tambm na sociedade como um todo (sujeito-aluno).

    Quando perguntado sobre o que fazer para proporcionar uma maior

    incluso na Universidade, um professor respondeu:

    A Poltica [Nacional de Educao Especial na Perspectiva da Educao Inclusiva] recente. A gente precisa de tempo para a lei reverberar. As universidades so tradicionais, as estruturas so muito rgidas. Algumas mudanas iro acontecer, mesmo sem as estruturas mudarem. Talvez uma sada seja exatamente a entrada cada vez maior de alunos com deficincia, que entram apesar do nosso desconforto, convocando ao debate. A partir dessa presso, da entrada por obrigao da lei, tambm nos sentiremos obrigados a rever nossas estratgias, nossos espaos, o compromisso do professor em sala de aula, dos grupos de pesquisa, interinstitucionais, nas diferentes instncias. Os sujeitos da Educao Especial e ns, professores da rea, vamos esburacando os muros. Por isso, precisamos da UFRGS, de um projeto poltico pedaggico que nos d sustentao (sujeito-professor).

    Ao final da anlise deste eixo, quero compartilhar minha forma de pensar

    a incluso escolar do aluno com deficincia e de que maneira a escola (neste

    caso, a Universidade e, mais especificamente, a UFRGS) pode trabalhar para

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    tornar-se um espao de excelncia para o ingresso e permanncia de seu

    aluno, seja ele com deficincia ou no. Tomo por base o Index para a Incluso:

    desenvolvendo a aprendizagem e a participao nas escolas, um material

    criado pelos autores ingleses Tony Booth e Mel Ainscow, em 2000 (primeira

    verso), como forma de auxiliar o processo de incluso escolar no Reino

    Unido. Segundo os autores, incluso escolar envolve:

    Valorizar igualmente todos os estudantes e Pessoal.

    Aumentar a participao de estudantes e reduzir sua excluso das culturas, currculo e comunidades das escolas locais.

    Reestruturar as polticas, culturas e prticas nas escolas de forma que respondam diversidade de estudantes na localidade.

    Reduzir barreiras aprendizagem e participao para todos os estudantes, e no apenas aqueles com impedimentos ou categorizados como tendo necessidades educacionais especiais.

    Aprender a partir das tentativas de superar as barreiras ao acesso e participao de certos estudantes, a fim de promover mudanas que beneficiem os estudantes de modo mais geral.

    Enxergar as diferenas entre estudantes, vistas como recursos de apoio aprendizagem, ao invs de serem vistas como problemas a resolver.

    Reconhecer o direito que os estudantes tm a uma educao em sua localidade.

    Melhorar as escolas tanto para o Pessoal como para os estudantes.

    Enfatizar o papel das escolas na construo da comunidade, no desenvolvimento de valores, bem como no aumento do sucesso (escolar).

    Alimentar relaes mutuamente sustentveis entre as escolas e as comunidades.

    Reconhecer que a incluso em educao um aspecto da incluso na sociedade (BOOTH & AINSCOW, 2002, p. 7).

    O Index para a Incluso oferece uma viso trialtica de como trabalhar a

    incluso, por meio de trs dimenses que interagem entre si e que precisam

    ser trabalhadas com a mesma intensidade. So estas as trs dimenses: (a)

    Produzindo POLTICAS inclusivas; (b) Desenvolvendo PRTICAS inclusivas; e

    (c) Criando CULTURAS inclusivas. Essas dimenses interligadas so a base, a

    meu ver, de qualquer trabalho em prol da incluso escolar.

    Tendo como base essa viso trialtica, procurei situ-la no contexto por

    mim pesquisado, e verificar que possveis avanos podem ser vislumbrados a

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    partir dela. Com relao produo de Polticas inclusivas: temos uma poltica

    recente sobre Educao Especial na perspectiva da Educao Inclusiva, que

    no se reduz a essa temtica. Como Poltica educacional, ela pode muito bem

    ser aplicada a todos os nveis de ensino, devido ao carter transversal que a

    Educao Especial assume, transitando por todos eles. uma diretriz que tem

    apoiado as aes governamentais e as criaes de programas educacionais.

    Por isso mesmo, imprescindvel sua leitura, seu entendimento e

    compartilhamento em todos os ambientes educacionais, e no que se limite

    aos profissionais da Educao Especial ou a pesquisadores da rea. Conhecer

    a poltica e dissemin-la j significa um avano dentro das aes inclusivas.

    Com relao ao desenvolvimento de Prticas inclusivas: penso que

    estejamos ainda bem no incio neste item, se percebermos que tais prticas

    restringem-se basicamente a um programa (o Incluir), que em minha pesquisa

    ficou constatado ser do desconhecimento da maioria; a uma disciplina de

    formao docente inicial, generalista, que no pode nem tem a pretenso

    por sua reduzida carga horria, nmero insuficiente de docentes etc. de

    desenvolver prticas pedaggicas para alm do espao da sala de aula; a

    disciplinas esparsas no currculo da Pedagogia; disciplina de LIBRAS que, ao

    que parece, tambm no proporciona uma aplicabilidade em campo; etc.

    Entretanto, quero acreditar que isso seja apenas o comeo. A tendncia a

    disciplina se expandir, quem sabe criar desdobramentos dentro da FACED ou

    mesmo nos outros cursos e departamentos, conforme o interesse dos alunos,

    devido a uma possvel ampliao no mercado de trabalho que a incluso e

    com ela, a demanda por atendimento adequado possam trazer.

    Agora, quero acreditar que a potncia e o maior desafio que se

    tem em direo incluso escolar seja por meio da criao de Culturas

    inclusivas. E explico: embora sempre mude, a cultura no costuma operar

    mudanas de forma acelerada e harmnica. Em geral, mudanas culturais

    ocorrem lentamente, aos poucos, por vezes quase imperceptivelmente,

    principalmente para quem se encontra dentro do processo de mudana. Assim

    foi que precisei me distanciar de meu objeto de pesquisa para poder perceber

    um movimento de pequenas mudanas, mas que, quando conectadas,

    demonstram que, de forma discreta, culturas esto sendo criadas. Seja pela

    obrigatoriedade da disciplina, que imps aos licenciandos temticas com as

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    quais no tinham contato, e agora se encontram na urgncia de discuti-las;

    seja pelo ingresso de alunos com deficincia na UFRGS, o que impe buscar

    por conhecimento e por outras formas de proceder educacionalmente; seja

    pelo trabalho gradativo e incessante de professores, pesquisadores e de

    pessoas que acreditam no devir de uma Universidade mais acessvel, mais

    aberta, mais humana, e que procuram preencher todos os espaos possveis

    de reivindicaes (fruns, seminrios, assembleias etc.), na esperana de

    serem ouvidos; seja por isso tudo junto e muito mais...

    Os pequenos sinais de mudanas na cultura podem ser vistos. Na

    crescente naturalizao da presena da disciplina nos currculos dos cursos; no

    despertar para o que antes era imperceptvel, como alguns sujeitos narraram

    um semforo sonoro, uma rampa, um banheiro adaptado , e com esse

    despertar, o cultivo de sensibilidade para com a diferena e de indignao para

    com a injustia; o interesse pela pesquisa nesse campo de conhecimento; a

    solicitao por aprofundamento de temas, como o I Seminrio de Intervenes

    Pedaggicas e Incluso. Culturas sempre mudam e essa a nossa

    aposta.

    Incluso no a proposta de um estado ao qual se quer chegar. Tambm no se resume na simples insero de pessoas deficientes no mundo do qual tm sido geralmente privados. Incluso um processo que reitera princpios democrticos de participao social plena. Neste sentido, a incluso no se resume a uma ou algumas reas da vida humana, como, por exemplo, sade, lazer ou educao. Ela uma luta, um movimento que tem por essncia estar presente em todas as reas da vida humana, inclusive a educacional. Incluso refere-se, portanto, a todos os esforos no sentido de garantia da participao mxima de qualquer cidado em qualquer arena da sociedade em que viva, qual ele tem direito, e sobre a qual ele tem deveres (SANTOS, 2003, p. 81).

    (BRABO, Gabriela. Formao docente inicial e o ensino ao aluno com

    deficincia em classe comum na perspectiva da educao inclusiva. Tese

    de doutorado. UFRGS FACED PPGEDU. Porto Alegre, 2013, p. 105-132).