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Religião, prisão e violência.

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    SEM DERRAMAMENTO DE SANGUE: RELIGIO E VIOLNCIA NA PRISO

    Eliakim Lucena de ANDRADE1*

    RESUMO: O objetivo deste trabalho refletir sobre religio e violncia entre os internos da Rua dos irmos da Casa de Privao Provisria de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto (CPPL II), Itaitinga-CE, espao marcado pela existncia do Projeto Renascer, que orienta a vida dos presos a partir de uma moralidade crist pentecostal. A partir de uma abordagem essencialmente etnogrfica, que faz uso do olhar, do ouvir e do escrever, o trabalho demonstra como a religio, na casa de custdia, exerce sobre os presos uma ao de civilidade, controlando as emoes e regulando os conflitos cotidianos dos presos.

    PALAVRAS-CHAVE: Priso. Violncia. Religio.

    Introduo

    O objetivo deste trabalho refletir sobre religio e violncia entre os inter-nos da Rua dos irmos da Casa de Privao Provisria de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto (CPPL II), Itaitinga-CE, espao marcado pela existncia do Projeto Renascer, que orienta a vida dos presos a partir de uma moralidade crist pentecostal.

    De modo geral, o cotidiano das prises brasileiras no o caos apresenta-do pelas redes miditicas. H um regime de conduta a ser seguido risca pelos presos: o no seguir as regras de procedimento pode acarretar em consequncias srias ao indivduo. No Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), por exemplo, no vacilo de 1000, o transgressor violentado fisicamente, e no vacilo de

    * Mestre em Sociologia UFC Universidade Federal do Cear Programa de Ps-Graduao em Sociologia. Fortaleza CE Brasil. 60020-181. [email protected]

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    Sem derramamento de sangue: religio e violncia na priso

    morte, a pena capital. J na CPPL II, o vacilo rapidamente disciplinado na tranca ou transferido de presdio. A violncia fsica, instigada outrora em ocasies de desvio, agora negada a favor de uma punio pacfica, sem derra-mamento de sangue.

    A partir de uma abordagem essencialmente etnogrfica, que faz uso do olhar, do ouvir e do escrever (OLIVEIRA, 2006), o trabalho demonstra como a religio, na casa de custdia, exerce sobre os presos uma ao de civilidade, controlando as emoes e regulando seus conflitos cotidianos.

    Dessa forma, a pesquisa de campo foi distribuda em duas fases: a primeira, voltada observao etnogrfica e s conversaes; e a segunda, vinculada ao desenvolvimento de entrevistas abertas. No entanto, essas fases no esto separadas rigidamente; elas, em diversos momentos da pesqui-sa, se alternam dinamicamente de acordo com as situaes nas quais estive envolvido.

    A CPPL II

    Atualmente, a rede penitenciria cearense composta por quatro peni-tencirias, dois presdios, duas colnias agrcolas, uma casa de albergado, cinco casas de custdia, dois hospitais e 131 cadeias pblicas1. A rede tem capacidade para 9.057 detentos, contudo, no Semanal do Efetivo de Presos Existentes nas Unidades Penais do Estado do Cear, divulgado no ltimo ms de dezembro, demonstra-se que o nmero de internos na rede de 17.657, convergindo com a atual situao carcerria do Brasil, na qual h uma popu-lao 514.582 pessoas ocupando um espao com capacidade mxima de 306 mil vagas2.

    Localizado na BR 116, Km 27, no municpio de Itaitinga, Regio Metropolitana de Fortaleza, o Complexo Penitencirio Itaitinga II constitu-do por trs Casas de Privao Provisria de Liberdade; so as CPPLs II, III e

    1 A distino entre uma instituio e outra est no tipo de regime que o interno deve cumprir. No caso de Presdios (ou Penitencirias), o regime fechado. Em Colnias Agrcolas, o cumprimento da pena semi-aberto. Em Casas de Albergado, aberto. J as cadeias pblicas so o destino de presos provisrios, assim como as Casas de Custdia, que tambm so chamadas de Casas de Privao de Liberdade. 2 DadosdoInfogrficoBrasilatrsdasgrades(2012).Disponvelem:.Acessoem:25ago.2015.Essasituaodesuperlotao,segundoMarcosBretas(2009,p.10),[...] afronta a condio humana dos detentos, aumenta a insegurana penitenciria, o abuso sexual, o consumo de drogas, diminui as chances de reinsero social do sentenciado, alm de contrariar as condies mnimas de exigncias dos organismos internacionais.

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    Eliakim Lucena de Andrade

    IV3. Incluindo CPPL I e a CPPL de Caucaia tambm chamada pelos detentos de Carrapicho as Casas de Custdia foram criadas para encarcerar presos provisrios oriundos das delegacias, que ainda no foram julgados pelos seus cri-mes. A provisoriedade dos presos distingue as CPPLs dos presdios. Contudo, as Casas esto abarrotadas de presos julgados pelos mais diversos crimes, cujos mais comuns so: trfico de entorpecentes (art. 33), furto (art. 155), formao de quadrilha (art. 288), receptao (art. 180), porte ilegal de armas (art. 14), roubo (art. 157) e homicdio (art. 121)4.

    A Casa de Privao Provisria de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto (CPPL II) relativamente nova, fora inaugurada em 2009, custando 11 milhes de reais aos cofres pblicos. Sua arquitetura inovadora separa os presos da socie-dade atravs de alambrados, que so guarnecidos por oito guaritas externas. Segundo a primeira administradora da Casa, capit Sara5, uma questo de economia, pois sai muito mais caro voc construir uma muralha de concreto do que voc utilizar os alambrados. Porm, essa economia em dinheiro provoca as tentativas de fugas dos internos, que veem a CPPL II como umas das prises mais fceis de fugir.

    Chamado pelos presos de cerca de arame farpado, o alambrado gera conflito entre os grupos que dirigem a Casa. Enquanto um enfatiza que mant--lo representa uma questo de economia, outro reclama da estrutura fsica da Custdia, que permite maior facilidade para fugas e outros tipos de desvio, por exemplo, a comunicao entre uma Rua e outra atravs dos cobogs, que so entradas de ar das celas. Segundo o diretor-adjunto, os presos fazem o trem6 e

    3 H tambm o Complexo Penitencirio Itaitinga I, que constitudo pelo Hospital Geral e pelo Sanatrio Penal Professor Otvio Lobo (HGSPPOL), pelo Instituto Presdio Professor Olavo Oliveira 2 (IPPOO 2), pelo Instituto Psiquitrico Governador Stnio Gomes (IPGSG), e pela Casa de Privao Provisria de Liberdade Agente Luciano Andrade Lima (CPPL I). 4 Quanto aos tipos de delitos e suas frequncias, cheguei a essa concluso aps dezenas de entrevistas fechadas, via questionrios, realizadas nas atividades do Censo Penitencirio.5 Os nomes dispostos neste artigo no condizem com a realidade, so aluses que o pesquisador faz a personagens daBblianosentidodemanteroanonimatodossujeitosdapesquisa.Emtemasperigosos(BARREIRA,1998,p.19),devemosreconhecerqueresguardaraprivacidadedenossosinformantesapenasumafacetadaquestoticaqueenvolveapesquisacomgruposhumanos(FONSECA,2008,p.45).

    6 Tremumfiofeitocomsacolasplsticas,ligadodeumacelaaoutra(oudeumaruaaoutra),quefazotrans-porte de objetos dos mais variados. A tcnica corporal despendida para conectar um trem de um ponto a outro extraordinria. Amarra-se uma chinela numa ponta que perpassada com a mo atravs dos cobogs e lanada com fora e jeito para o outro lado, onde h outra mo esperando o trem a ser aparado. Neste aparelho so dispostos osmaisvariadosobjetos,masasdrogassoocarrochefedessatransferncia,pode-sedizerqueotrficodeumarua a outra mediado pelo trem.

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    estabelecem o comrcio de armas e drogas entre as Ruas. Os internos tambm ressaltam que a estrutura fsica da CPPL II facilita as fugas: tem preso a que quebra isso em cinco minutos com uma barra de ferro, afirmou um dos presos apontando para os cobogs.

    Por isso, a Custdia ainda conta com oito guaritas externas, que funcio-nam como torres de vigilncia, que resguardam os limites entre a sociedade e o mundo prisional, sendo circundadas pelo alambrado (cerca de arame far-pado). Entrementes, durante as tentativas de fugas, os presos e os criminosos que esto em sociedade criaram uma estratgia de cobrir as guaritas por uma cortina de balas desferidas pelos que esto de fora enquanto aguardam os presos em fuga.

    Alm da administrao, da enfermaria e quatro salas de aula, a Casa possui seis Vivncias, que tambm so chamadas de Ruas, ou BRs; so elas: A, B, C, D, E & F. Cada Rua tem 26 celas, chamadas pelos presos de casinhas. Cada uma delas tem capacidade para abrigar seis detentos, possuindo, assim, seis pedras ou comarcas de concreto chumbadas com ferro nas paredes; elas servem como camas nas quais os presos acomodam panos e colches de espuma, deixando-as mais confortveis. Entrementes, em cada cela, normal o nmero de internos ultrapassar a capacidade mxima, obrigando a alguns dormirem na pista, isto , no pavimento. Os novatos sempre iniciam sua vida na priso dormindo no cho. Nas outras Ruas, os noiados, viciados em drogas, princi-palmente no crack, tambm dormem na pista, pois, comumente, em algum momento, na fissura (vontade) para ficar de rock (ficar sob o efeito das dro-gas, muito louco, para ver babau), trocam o possvel conforto da comarca de concreto com colcho por pedras de crack.

    No fundo da casinha h uma latrina, um tanque e um pequeno espao para o banho. Esse micro espao separado das comarcas por uma cortina, garantido maior privacidade na hora da evacuao das necessidades fisiolgicas e da assepsia corporal, auxiliada por uma cunha (recipiente de plstico), porque no h chuveiro. A exposio contaminadora, analisada por Goffman (1974), nas instituies totais7, camuflada na CPPL II na medida em que os presos usam panos no sentido de impedir a visualizao das celas atravs das grades, assim como as cortinas nos lavatrios.

    7 A exposio contaminadora a situao em que a fronteira que o indivduo estabelece entre seu ser e o ambienteinvadidaeasencarnaesdoeusoprofanadas(GOFFMAN,1974,p.31).SegundoGoffman(1974,p. 31), existe a violao da reserva de informao quanto ao eu. Os dormitrios so coletivos, os banheiros no tm portas [...] As celas de priso com barras de metal como paredes permitem essa exposio.

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    Alm das casinhas normais, h dez celas de isolamento comumente chamadas de tranca ou disciplina que, no total, comportam 20 detentos. Elas so separadas das ruas. O preso indisciplinado, baderneiro que, geralmen-te, espirrado (expulso) das Ruas pelos prprios presos, jogado l e fica a merc da administrao. Foram ouvidas diversas narrativas sobre esse espao, que representado como um lugar escuro e sujo; o preso, neste stio, tem acesso limitado gua e no recebe visita.

    Na CPPL II, h tambm duas quadras nas quais os internos tm momen-tos dedicados s prticas esportivas. No entanto, o futebol e outros exerccios corporais so praticados em espaos de 20m, entre uma Rua e outra. Nesses lugares tambm possvel o banho de sol, pois, sendo necessrio um maior contingente de agentes para deslocar os presos das Ruas s quadras, esse pro-cedimento no realizado. Dessa maneira, esses espaos dificilmente so uti-lizados pelos presos.

    A rua dos irmos

    O que distingue a Rua dos irmos em relao ao restante da Casa a obra, tambm conhecida como a doutrina do Projeto Renascer (doravante, PR). Criado em 2009, por um grupo de 30 internos, o PR rene os presos que optaram por seguir um conjunto de regras orientadas por uma cultura de paz pautada na Bblia. Segundo a ex-diretora da CPPL II, a capit Sara:

    O Projeto Renascer nasceu a partir de seis internos, por conta de uma inicia-tiva nossa, enquanto direo, de fazer com que fizesse uma autoadministrao carcerria por parte dos prprios internos na vivncia carcerria, e esse projeto no deu certo... A at que sugiram seis internos, e disseram: diretora, se a senhora quiser que d certo, a senhora precisa separar o joio do trigo, d pra ns um pavilho, que a gente passa para l s pessoas que queiram andar numa conduta diferenciada na cadeia, que realmente abrace, sem derrama-mento de sangue, sem droga, sem celulares, e com a presena de Deus... Eu disse assim: ento, faamos isso8.

    8 EntrevistaconcedidaaositedaIgrejaBatistaCentraldeFortaleza.Vdeodisponvelem:.Acessoem:11ago.2015.

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    Sem derramamento de sangue: religio e violncia na priso

    Dessa forma o PR constitudo por um afastamento, que tem como finalidade classificar e separar os internos em dois tipos9: um primeiro grupo de presos convertidos, ansiosos por recuperao; e um segundo grupo formado por aqueles que desejam perder-se cada vez mais (Ex-diretora, capit Sara)10.

    Na CPPL II o ajuste entre saber-verdade e prticas divisrias est inti-mamente combinado ao discurso religioso pentecostal e ao interesse da admi-nistrao em manter o ambiente prisional pacfico. O preso que detm certo conhecimento sobre a Bblia e a administrao se associaram para criar uma nova forma de conduzir a vida no interior da CPPL II, que representada atravs da doutrina do Projeto Renascer.

    Sobre o significado do termo Renascer, o jovem interno Isaas comenta:

    A bblia diz que Jesus falou para Nicodemos: necessrio nascer de novo. A eu acho que baseado nesta palavra, renascer, necessrio nascer de novo. Ento, eu acho que quando a pessoa do crime. Ns que ramos do crime, quando aceitamos Jesus, acreditamos que ns nascemos de novo. Ns morre-mos para as coisas do mundo e nascemos para uma nova vida. Ento, renascer mais ou menos comear de novo a nossa histria, uma nova vida (Entrevista concedida no dia 12 de dezembro de 2012).

    Renascer, que denomina o Projeto, significa que o preso est morto na priso, que est tudo acabado, que ele est nas trevas, e o PR a oportuni-dade para recomear uma nova vida.

    A partir dessa crena, a princpio, havia um discurso entre presos e dire-toria, que descrevia o espao interno da CPPL II como um ambiente de paz. Os presos convertidos estavam distribudos em cinco Ruas. So elas, a saber, A, B, C, D & E.

    9 Seja na Histria da loucura na Idade Clssica (FOUCAULT, 2012a) seja no Vigiar e punir, histria da violncia nas prises (FOUCAULT, 2012b), a excluso espacial e, consequentemente, social sempre foi um tema caro para MichelFoucault,queadefiniucomoprticasdivisriasmododeobjetivaonoqualosujeitodivididonoseu interior e em relao aos outros, por exemplo, o louco e o so, o doente e o sadio, os criminosos e os bons meninos(FOUCAULT,1995,p.231).PaulRabinow(1999),sagazintrpretedopensamentofoucaultiano,afirmaque as prticas divisrias so modos de manipulao que combinam a mediao de uma cincia (ou pseudo--cincia) e a prtica de excluso, geralmente num sentido espacial, mas sempre num sentido social (RABINOW, 1999,p.32).

    10 Palavrasproferidaspelaex-diretora,capitSara,emProjetoRenascerCPPLII.Disponvelem:.Acessoem:4out.2011.

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    Eliakim Lucena de Andrade

    Ns ramos seis, de seis foi para trinta, e com esses trinta ns ganhamos uma rua e, hoje, para misericrdia de Deus, somos entorno de novecentos e cinquenta irmos, glorificando o nome de Deus; sendo capacitados, sendo libertados... E eu tenho f em Deus que essa cadeia mesmo vai ser testemunha l na frente que Deus vai isentar ela (Pastor Eli11).

    E esses seis homens, hoje, se multiplicaram nos novecentos que a gente tem, e de um pavilho ns temos cinco (Capit Sara)12.

    Segundo os presos a CPPL II uma cadeia totalmente pacificada; proble-mas tm, mas minoria. Aqui, h felicidade dentro da cadeia. Pois ser cristo conquistar a liberdade e preservar nossa vida.

    A suposta reduo da violncia e a pacificao da CPPL II se deram com auxlio da administrao do presdio que, vale ressaltar, composta em sua maio-ria por adeptos de igrejas pentecostais da capital cearense. Os diretores nunca esconderam a adeso s congregaes pentecostais, e defendiam a continuidade e a expanso do Projeto a outras Ruas. Para um deles, o Projeto Renascer a menina dos olhos da Sejus, que transformou a CPPL II em presdio modelo no estado. O atual diretor, fiel confesso de uma igreja pentecostal, afirmou que o Projeto Renascer saiu do corao de Deus para os coraes dos homens. Em uma situao de conversao, um encarcerado da Rua dos irmos comenta o seguinte sobre essa dinmica de pacificao na priso: quando o diretor sabe que tem uma rua cheia de droga, celular e faca e ele resolve entregar esta rua para os irmos, ele faz o seguinte. Ele transfere os presos para outras ruas ou para outras prises. Quando a Rua est vazia, ele entrega para o pastor Eli13.

    11 Pastor Eli o detento que coordena o Projeto Renascer no interior da CPPL II. Ele ordenado pelos prprios presos evanglicos, e, posteriormente, membros da Igreja Assembleia de Deus Montese o instituram como Pastor da Rua dos irmos. 12 Ambas as citaes foram transcritas da entrevista concedida ao site da Igreja Batista Central de Fortaleza. Vdeo disponvelem:.Acessoem:11ago.2015.

    13 Assim,apacificaodaRuaC,porexemplo,ocorreudoseguintemodo:1)esvaziamentocompletodaRua,conduzindo os presos mais problemticos para outras prises ou transferindo-os para Vivncias ainda no paci-ficadas;2)comunicarocompletoesvaziamentodaRuaaosinternos.Diantedesseanncio,aadministraoconvoca-os adeso ao Projeto e aceitao das regras ou transferncia imediata outra priso. Aps o esva-ziamento, os irmos invadiram a Rua com vassouras, rodos, panos e sabo, e iniciaram o trabalho de limpeza dela.Elestambmsedividiramentreas26celasparaidentificaroslocais(tocas)nosquaisosoutrosdetentosescondiamarmas,drogas,celulareseoutrosobjetosproibidosnointeriordaCasa.Aetapafinaldesseprocessodepacificao,almdalimpezafsica,alimpezaespiritual.Segundososirmos,aRuaprecisaserconsagradapara Deus com oraes.

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    Sem derramamento de sangue: religio e violncia na priso

    Nos primeiros passos desta pesquisa na CPPL II14 a priso estava ganha pelo PR e a diretoria relegara a Rua F aos presos que no desejavam a paz. Num perodo anterior, a prpria Rua F fora pacificada pelo PR. Contudo, como explica Isaas,

    A vivncia F, ela foi ganha para os irmos, mas a o que foi que aconteceu, um usou uma faca, usou um celular, ele no foi disciplinado e no saiu da rua, a com certeza o outro ver: meu irmo, vou botar um celular pra mim tambm, a bota celular. A t cheio, cara, cheio de celular, cheio de droga, cheio de faca (Entrevista concedida no dia 12 de dezembro de 2012).

    Segundo o lder do PR, pastor Eli, a Rua F funciona como uma espcie vlvula de escape que agrupa os presos que no aderiram doutrina. Ela continuamente representada como Rua da Babilnia.

    Com o desenvolver do trabalho de campo, no entanto, foi observado que lentamente pequenas revoltas, como tentativas de fugas e rebelies, e atos extremos de violncia, como linchamentos e assassinatos, foram organizando o espao prisional no sentido de espirrar (expulsar) e restabelecer territorialmente os presos que no aceitavam a doutrina, relegando cada vez mais aos presos integrantes do PR o isolamento das Ruas A e B.

    Com o passar do tempo, os presos dessas Ruas, que concordavam em um primeiro momento com a doutrina, rebelaram-se em um segundo momento contra os presos integrantes do PR, separando o convvio de uma vez por todas entre os presos da A e da B. A primeira Rua ficou constituda apenas por presos integrantes do PR e os presos que concordam com a austeridade da doutrina. Ambos os grupos so constitudos de irmos evanglicos pentecostais que tra-balham ou no no PR, alm de no adeptos dessa crena, que exercem ou no alguma atividade na obra.

    A segunda Rua formada por presos no convertidos crena evanglica e presos adeptos do cristianismo pentecostal, todos insatisfeitos com o modo de orientao da conduta imposto pela doutrina do PR. Antes do cisma, por meio da proximidade fsica, os presos das Ruas A e B conviviam no banho de Sol e as visitas de uma Rua a outra eram frequentes, bastando apenas ter a permisso de um integrante do PR. Foi o Pastor da obra que optou pela separao, para evitar contatos, pois joio e trigo no se misturam. Assim, de uma vez por todas, a grade que separa as duas Ruas fora trancada.

    14 Na segunda metade de 2011.

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    Eliakim Lucena de Andrade

    Contudo, os motivos pelos quais o racha ocorreu tambm foi deman-da da outra parte envolvida, pois os internos da Rua B reforam que a dou-trina da Rua A muito rgida, reprimindo os presos lentamente sob as fun-daes de suas regras, ao passo que os irmos da Rua B so mais liberais. Essa viso compartilhada por presos de outras Ruas. Por exemplo, um interno que est encarcerado na Rua D, afirmou, certa vez, que no est na Rua A porque os irmos so opressores. Um habitante da Rua A explicou que Joo trocou a A pela B porque esta mais liberal que aquela, alm de ser mais tranquila.

    Ao passo que na Rua B possvel fumar cigarro e ouvir msicas mun-danas, alm de jogar cartas e andar sem camisa na Rua, a maconha proibida. Contudo, um jovem interno, certa vez, revelou que comum fumarem o cigar-ro do diabo (cannabis) no interior da Rua B. Segundo Jos, a Rua B

    Est cheia de droga, tem celular l dentro, o cara botando droga e celular l dentro. E dessa maneira vai complicando a convivncia da Rua B. Eu e o pastor Eli estamos cuidando da Vivncia A e a gente no tem como interferir o que est acontecendo na Vivncia B porque quem est dirigindo a rua B o Samuel. [...] Nas demais Ruas, a rua D, a Rua E, ns tentamos impor o trabalho desta forma: s pregar o evangelho, no proibir arma, droga, faca e este tipo de coisa, a gente no ia bater de frente com este tipo de coisa, s bastava pregar o evangelho, porque a Bblia diz que a palavra que liberta. E os irmos tentaram, na Rua B, dessa forma, mas depois que o crime se estabe-lece na rua, que ele domina. Porque o crack uma peste no sistema carcerrio, l fora, em todo canto. O que acontece, depois que o cara se estabiliza, bota droga, domina a rua, a ele pega e tira os irmos da rua, o que eles chamam de espirrar. Por qual motivo eles fizeram isso? Porque eles tm medo que os irmos delatem para a direo quem que est traficando, quem que tem celular, quem tem droga.

    Uma vez que o crime toma conta da Rua, a obra do PR no tem mais poder de comando perante a massa de presos, que so agora controlados pelos chefes do trfico. Ento, seus dirigentes retrocedem, no entrando em conflitos com os presos que comandam o crime, pois, segundo relato do Pastor Eli, a bblia diz que a nossa guerra no contra o sangue e a carne, mas sim contra principados e potestades; ento, a gente sai. A partir da a Rua, no mais paci-ficada pelo PR, passa a ser parte constituinte da Babilnia.

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    Por isso, Isaias explica que o PR est com quase quatro anos e infelizmente tem que ter essa doutrina, porque se no tiver, vira Babilnia, e continua:

    Na rua B, os irmos, na realidade, so ditados pelo crime; por qu? Porque na rua A, uma rua de irmos, que no tem droga (todos sabem que no tm), o diretor ainda d uma geral l dentro. De vez em quando ele d uma geral na Rua B e aparece celular. O celular pior do que uma arma, droga, porque com celular aqui dentro o cara manda sequestrar as pessoas l fora, manda matar, manda deixar droga num canto no outro, manda cobrar dvidas, do golpes [...] Alguns pastores da liberdade j falaram para gente que s pregasse o evangelho e no batesse de frente com o crime, mas, infelizmente, o PR est com quase quatro anos e infelizmente tem que ter essa doutrina, porque se no tiver, vira Babilnia.

    Assim, ser rgido bater de frente com o crime. no se adequar perante desejos e interesses dos presos que permanecem no trfico, que tem a menta-lidade da delinquncia. Segundo Jos, conviver na rua A na tora (difcil) mesmo. Se o cara for bandido, mas ele respeitar a doutrina, no botar droga pra dentro, no botar celular, ele vai puxar os dez anos dele tranquilo. E a famlia pode ir pra casa dormir sossegada. Isaas explica, contrariando a fala de outros encarcerados, que o preso, na Rua dos irmos:

    Independente dele ser catlico ou no, independente de ele professar o cris-tianismo ou no, ns vivemos em unio, sempre pregando o evangelho, mos-trando para eles que Jesus da mesma forma que libertou Paulo e Silas, Jesus quer libertar ele tambm e dar uma nova vida para ele.

    s vezes acontece confuso dentro da rua, a gente vai e apazigua. Quando acontece de dois brigarem, independente de quem seja no pode continuar na Rua, porque a doutrina diz que no pode brigar. Independente de ser irmo ou no ser, de ser catlico ou umbandista, ns convivemos todos dentro da rua e o direito igual para todos. Agora, a nica coisa que a gente pede, den-tro da vivncia, que respeite a doutrina, de no usar droga, de no ter faca, porque se eu tenho faca dentro de uma rua dessa eu tenho uma maldade com algum. Se algum fizer alguma coisa comigo, e eu no gostar, vou dar uma facada nele; ento, a gente v dessa forma.

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    Eliakim Lucena de Andrade

    No entanto, esse controle absoluto revela-se em pequenas situaes coti-dianas no relacionadas ao crime, mas sim referentes vida contrria ao ascetis-mo evanglico protestante, que delimita com muita propriedade a linha divisria entre os caminhos de deus e o mundo:

    Agora, o que que a gente pede a todas as pessoas que chegam? Que man-tenha aquela doutrina. Porque a gente tem a conscincia de uma coisa. Se eram cinco Ruas de irmo e agora s tem uma, e a realidade essa, se abrir mo da doutrina na Rua A, ela, em questo de dias, vira Babilnia. Ento, eu creio dessa forma, no tem como ter o Projeto Renascer sem a doutrina. So de 11 a 13 regras (Isaas em situao de entrevista concedida no dia 12 de dezembro de 2012).

    O controle, portanto, delineado a partir de um conjunto de regras que se sustentam na cosmologia judaico-crist e buscam promover posturas, regular gestos e movimentos, instituindo e punindo os comportamentos que so ditos como desviantes.

    1. Nesta Vivncia s seguimos o que for permitido na Lei de Deus (Tiago, c. 1, v. 25); 2. Nenhum tipo, espcie ou qualidade de armas. No admitimos violncia ou qualquer tipo de agresso fsica ou moral, paz total (Jeremias, c. 22, v. 3; e Eclesiastes, c. 9 v. 18); 3. No admitimos nenhum tipo de vcio, (Daniel, c. 6, v. 4; e I Corntios, c. 9, v. 10); 4. Jamais em momento algum faltar com desrespeito com os agentes penitencirios e profissionais desta uni-dade, (Romanos, c. 13, v. 1, 2) 5. Na ocorrncia de trem para outras Vivncias automaticamente a cela ser desativada, (Romanos, 13, c. 1, v. 2); 6. Aqui no permitido gritarias, brincadeiras de mau gosto e apelidos, (Efsios, c. 4, v. 31); 7. Aqui proibido andar sem camisa no corredor ou quando tivermos visitas de irmos de fora ou da direo e nas horas de culto e orao, (Marcos, c. 5, v. 15); 8. Nesta Vivncia no permitido falar das coisas do mundo, (Salmo, c. 34, v. 13; e I Joo, c. 4, v. 4, 5); 9. Manter a Rua limpa, no varrer o lixo para o corredor e nem jogar o lixo pelas janelas, para trs da vivncia. Ao pagar das quentinhas nos dias de domingos, 1 sero pagas as quentinhas dos presos que esto com visitas, 2 ficar uma pessoa responsvel por essa tarefa, logo aps ser pago as quentinhas dos outros irmos, (I Corntios, c. 14, v. 40); 10. Os horrios de silncio nas Vivncias [so]: das 12 s 14, e aps s 22 horas, silncio total, (Eclesiastes, c. 3, v. 1-7); 11. No permiti-

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    do deixar o cabelo e a barba grande, nem o cavanhaque, (Isaias, c. 15, v. 2); 12. O principal de todos: amor, humildade e igualdade, (Efsios, c. 4, v. 2; e Provrbios, c. 10, v. 12).15.

    Percebe-se nesse conjunto de regras impostas pelo Projeto um regime de moralidade que constitudo de sistemas de percepo e avaliao do mundo que operam distinguindo o bem do mal, o justo e o injusto, como princpios de ao (RIFIOTIS; DASSI; VIEIRA, 2010, p.8).

    Portanto, no apenas a contribuio do preso no crime, como portar algum tipo de arma ou cometer o trem que delimita ou no sua presena na Rua A, mas tambm prticas ordinrias do dia a dia que, no entanto, so con-sideradas desviantes entre os presos da obra, quais sejam, andar sem camisa, usar de gritarias, brincadeiras de mau gosto e apelidos para se comunicar com o outro, falar das coisas do mundo, deixar o cabelo e a barba grande e ouvir msicas do mundo.

    Por isso, h um tabu sobre as coisas do mundo. Neste caso, em especial, as msicas mundanas, que devem ser eliminadas do cotidiano dos presos, caso contrrio, as impurezas do mundo profano podem contaminar e afastar os irmos da esfera do sagrado. Porm, no somente as msicas mundanas so proibidas no interior da Rua A, mas tambm o trafego sem camisa e o uso de apelidos e palavres no tratamento com o outro.

    Goffman (1974) nos chama ateno mortificao do eu, isto , prti-cas de despojamento do papel social que o indivduo desempenhava no mundo externo16. Dessa forma, os processos de admisso, arrumao, programao e enquadramento so rituais que separam o indivduo da interao existente entre seus familiares, amigos etc. e o adqua de acordo com a disciplina prisional, tornando o corpo encarcerado visivelmente homogneo na medida em que introduzido na rotina da instituio.

    Os presos que esto enclausurados na Rua A sofrem um tipo especfico de mortificao do eu. Alm do ritual caracterstico de despersonalizao cons-tituinte de todas as instituies totais, o preso que aceita a doutrina e opta

    15 Essas regras foram transcritas em algumas cpias de papel ofcio e distribudas entre os presos. No meu primeiro dia em campo (no dia 26 de setembro de 2011), ganhei uma dessas cpias, tenho-a conservada no meu arquivo de pesquisa.16 Muitofrequentementeverificamosqueaequipedirigenteempregaoquedenominamosprocessosdeadmisso:obterhistriadevida,tirarfotografias,pesar,tirarimpressesdigitais,atribuirnmeros,procurareenumerarbenspessoais para que seja guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituio, darinstruesquantoaregras,designarumlocalparaointernado(GOFFMAN,1974).

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    por morar na Rua dos irmos tolera outros protocolos de despojamento de sua identidade. Segundo Mc Levi, as palavras devem ser controladas. No se pode falar qualquer coisa. Cantar ou ouvir musicas do mundo est veemente proibido, andar sem camisa tambm.

    Mas, isso no quer dizer que os internos que esto na Rua dos irmos aceitem de forma pacfica as ordens postas pelo PR e no cometam nenhum tipo de desvio. Ao contrrio, revistas de mulheres nuas circulam de mo em mo, no interior das celas. O que veementemente proibido virou projeto (moeda) de troca entre os presos. Alguns presos relatam que, s vezes, fumam cigarros amparados pela circulao de ar dos cobogs.

    Assim, possvel precisar a partir da fala dos presos da obra que apenas a Rua A a Rua dos irmos. Contudo, como foi observado, os encarcerados da B tambm afirmam que sua Rua dos irmos, mas sem a austeridade da doutrina do PR. De acordo com os irmos da obra e tambm pelos os irmos da B, todo o restante das Ruas, no apenas a Rua F, a Babilnia. Porm, h irmos nessas Ruas, inclusive na F, fazendo trabalhos evangelsticos sem, contudo, bater de frente com o crime, expondo a palavra de Deus para os presos que no aceitaram o modo de conduzir a vida proposto pelos irmos do Projeto Renascer.

    Segundo um interno que est encarcerado na D, o regime em sua Rua de paz, mas diferente. Sem derramamento de sangue, mas h situaes em que inevitvel, por exemplo, quando um preso mexe com as coisas (mulher ou qualquer outro pertence) de outro preso. Os irmos da Rua D pregam a palavra somente, e deixam os presos fumarem cigarros ou pacai, alm de usarem facas e celulares.

    Apesar da existncia de irmos nas Ruas B, C, D, E e F, elas so reconhe-cidas pelos irmos do Projeto Renascer como Ruas da Babilnia, cuja vida de seus encarcerados transpassada pela sociabilidade violenta, a qual repre-sentada por uma ordem social em que a relao entre as produes simblicas e as prticas marcada pela violncia.

    Isso expressa que a violncia usada de maneira instrumental, sem refern-cia alguma a moral ou a valores, mas como um fim em si mesmo. Assim como em outras prises, o cdigo de tica da Babilnia baseado na delinquncia. Portanto, conduzir a vida neste espao direcionar seu comportamento perante uma [...] ordem que funciona pelo avesso, dessa ordem que funciona na desor-dem na qual as normas so rgidas e quem deve paga com a vida (CASTRO, 1991, p.63).

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    Sem derramamento de sangue: religio e violncia na priso

    Babilnia, conforme os internos que integram o Projeto, faz referncia a Babilnia narrada nos textos bblicos, cuja conduta de seus habitantes era des-prezvel aos olhos de Jav, deus do povo Hebreu. Na Babilnia, segundo os irmos da obra, esto os presos que no querem compromisso com Deus e no respeitam a doutrina. Essa caracterizao faz com que os irmos da obra se paream mais valorosos perante os mpios da Babilnia, alm de contribuir para que os primeiros cerrem fileiras contra os segundos.

    Assim, a autoafirmao por parte dos irmos da obra do carisma gru-pal, que uma virtude especfica compartilhada por todos os seus membros e que falta aos outros (NORBERT, 2000, p.20) tem como consequncia o gozo de prestgios e vantagens em relao aos internos que no esto socialmente integrados em um grupo especfico e no possuem coeso social para reivindicar alguma pendncia com a diretoria, por exemplo.

    perceptvel, entre os irmos da obra, um alto grau de coeso interna e, consequentemente, uma maior disponibilidade de controle comunitrio. Deste modo, um grupo estritamente integrado supe que o estilo de vida dos indivduos est intimamente ligado ao conjunto de normas. A observao dos padres faz com que internos faam parte do carisma grupal e, consequen-temente, tomem parte dos privilgios. Para tanto, cada integrante deve pagar um preo para participar do carisma do grupo. O interno deve submeter-se s normas, deve sujeitar-se aos padres especficos de controle dos afetos (NORBERT, 2000, p.26). Dessa forma, seguir criteriosamente as prescries sempre vlido, pois os indivduos encarnaro o carisma grupal; assim, [...] a satisfao que cada um extrai da participao no carisma do grupo compensa o sacrifcio da satisfao pessoal decorrente da submisso s normas grupais (NORBERT, 2000, p.26).

    Ao contrrio, os internos encarcerados nas Ruas da Babilnia so classi-ficados como instrumentos do diabo ou bodes por no respeitarem as regras impostas pela obra. Segundo os internos do Projeto, a visita de qualquer pessoa um perigo imenso, pois os bodes possuem facas e barras de ferro, assim como outras armas por exemplo, o cossoco, uma pequena faca feita artesanalmente a partir de grades de ferro, escova de dente e outros materiais aproveitveis , ins-trumentos comuns nas celas da Babilnia. Drogas, celulares, jogos e violncia, seja ela fsica ou simblica, esto presentes nestas Ruas.

    Histrias sobre espancamentos, homicdios e tentativas de fugas por parte dos internos que habitam as Ruas da Babilnia, narradas pelos internos e tam-bm pelos funcionrios da administrao prisional, correspondem expectativa

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    atribuda m reputao dos internos que esto nestas Ruas e contribuem para a construo da perspectiva ns-eles.

    Vacilos, punies & formao

    Segundo os presos da CPPL II, h no interior das prises cearenses dois tipos especficos de vacilo, isto , transgresso regra: o vacilo de morte e o vacilo de 1000.

    O vacilo de 1000, no qual o transgressor violentado fisicamente (por usar, por exemplo, algum item do companheiro de cela sem a devida permisso), um vacilo pago, no raro, com as mos esmagadas por uma barra de ferro. O rato de cela, aquele que furtou um pertence de outro preso, tambm puni-do dessa forma. Segundo Manoel, todo vacilo passvel de morte. Contudo,

    Quando no mata, eles tm uma barra de ferro que tem a grossura desse objeto aqui (direciona o dedo indicador ao gravador), dessa grossura aqui de largura, desse tamanho aqui mais ou menos (1 metro), uma barra de ferro, a eles botam a mo do cara assim (acredito que em alguma base de concreto) e quebram.

    H tambm o vacilo de morte, que a falta cuja pena capital; por exemplo, olhar para a mulher do outro durante o dia de visita. Esse desvio no inclui somente o direcionamento do olhar, mas tambm o tocar e o falar: os encarcerados relataram o caso de um interno que atribuiu valores escusos a todas as mulheres do bairro Bom Jardim sem saber que em sua cela tinha presos que eram habitantes desta comunidade. Manoel continua sua descrio sobre os vacilos e as punies:

    A se for uma coisa mais grave como eles chamam na cadeia, tipo tu t preso e tem tua esposa, a outro preso d um jeito e consegue o nmero da tua esposa e comea a xavecar tua esposa e consegue mesmo entrar na mente da tua esposa, e a esposa vem ver o cara no lugar do marido dela. Toma a mulher. A l eles chamam de boca de prata. Boca de prata o cara que toma a mulher do outro. Acontece demais. Quando os caras descobrem, a os caras pegam e matam. Dar em cima de mulher de preso e for descoberto tambm grave. Tu no pode olhar pra mulher do preso. Se tu for pego olhando, s olhando a mulher do preso, a j um vacilo de sair da rua todo quebrado de barrada de ferro ou morrer.

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    Assim, no interior do universo penal as senhoras como os encarcerados chamam suas esposas so tratadas como tabu no interior do crcere, no qual o olhar, o tocar ou o falar so punidos da forma mais severa possvel pela massa de presos.

    O X9, tambm denominado de cagueta, perseguido nos corredores prisionais pelo seu carter desviante. Entre outras punies, a caguetagem passvel de ser punida com a pena capital.

    Nos corredores da CPPL II os presos que fazem parte da obra so rotulados pelos encarcerados da Babilnia como possveis caguetas, que delatam o movimento dos presos com a finalidade de angariar confiana e privilgios junto direo do presdio. Logo, a rua dos irmos reconhecida como rua do seguro, que salva o preso cagueta, boca de prata, duzento, rato de cela, etc.

    Mas nem sempre o preso rotulado como vacilo errou perante as regras impostas pelo regime de cadeia. Os conflitos entre os presos podem culminar em um tipo especfico de processo de acusao17 na priso cujo nome forma-o.

    A formao , invariavelmente, apontada pelos presos da CPPL II como uma estratgia de resoluo de conflitos entre os encarcerados da Babilnia na qual o lado mais forte sempre vence. Na verdade a formao, como empre-endimento acusatrio, uma estratgia do traficante para ver-se livre dos seus inimigos. Por meio do crack, ele (traficante), exerce profunda influncia sobre a vida dos presos e decide quem morre ou no na priso18.

    Em uma situao de conversao, Zaquel declarou: irmo, aqui na cadeia quem manda o crack... com 10g d pra matar quem quiser na priso. Sabe quanto custa 10g? Duzentos reais... No tem lei pra preso no, quem man-da o crack [...]. Sobre o crack nas prises, Joo comenta:

    17 Becker (2008) nos aconselha a enfatizar os processos de acusao. Isto , a observar no seio das relaes sociais, quem acusa quem? Acusam-no de fazer o qu? Em quais circunstncias essas acusaes so bem sucedidas, no sentido de serem aceitas por outros (pelo menos por alguns outros)?18 O crack presena marcante na CPPL II. No somente nela, mas em todas as prises brasileiras, ele usado continuamente por boa parte dos internos, que geralmente se viciam atrs das grades. Essa constatao foi efetuada porJonasnoseguinteregistro:[...]ocrack responsvel pela destruio de muitas famlias l fora e dentro da cadeia. O transporte do crack, segundo os presos, realizado pela visita e viabilizado pelos agentes carcerrios, que recebem uma parcela para fechar os olhos diante da revista. Mas no so todas as visitas que passam livre-mente neste procedimento. Ouvi diversas histrias sobre mes ou senhoras que caram na revista e esto presas no Instituto Penal Feminino (IPF).

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    Ento, o tipo da coisa, hoje em dia, est complicado para a pessoa viver no sistema prisional numa rua que se diz ser babilnia, porque quem manda na cadeia quem tem dinheiro e comanda a venda do crack na cadeia. Se esse cara no for com sua cara e ele disser que voc olhou para a mulher dele, aqueles caras que usam droga, que dependem da droga, todos vo acatar o que ele diz.

    Alm de um produto rentvel financeiramente, o crack uma espcie de trunfo nas mos do traficante, que o utiliza para influenciar as aes dos viciados contra seus inimigos ou concorrentes no interior da Babilnia.

    Portanto, os esforos contnuos dos obreiros no controle da Rua A visam evitar no somente o contato poluidor entre os presos que esto na obra e os encarcerados que esto na Babilnia, mas tambm a entrada do crack que , segundo os presos, uma droga que veio para matar mesmo, para destruir o mundo inteiro.

    Na tranca

    O controle, na Rua dos irmos, estabelecido por uma ampla diviso do trabalho religioso19 entre os obreiros. As funes dispostas hierarquicamente vo do pastor geral ao diretor da disciplina, do co-pastor ao dirigente de interseo oficial, do pastor das vivncias ao auxiliar, do presbtero ao dicono. O pastor das vivncias, por exemplo, controla, em dias de visitas, a entrada e a sada de uma rua a outra pelos presos.

    Dessa forma, essa diviso do trabalhado entre os obreiros faz com que haja um olhar hierrquico um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as tcnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coero tornem claramente visveis aqueles sobre quem se aplicam (FOUCAULT, 2012b, p.143) sobre si mesmo e sobre os outros20.

    19 Segundo Bourdieu, [...] o trabalho religioso realizado pelos produtores e porta-vozes especializados, investidos do poder, institucional ou no, de responder por meio de um tipo determinado de prtica ou discurso a uma categoria particular de necessidades prprias a certos grupos sociais (BOURDIEU,2009,p.32-33).20 Trata-se de um microfsica do poder que desloca funo do Estado como centro de ressonncia do poder. A instituio estatal ter seu papel redimensionado, perdendo, assim, seu lugar de ncleo controlador das relaes sociais, ao passo que, [...] entre cada ponto do corpo social, entre homem e mulher, entre membros de uma fam-lia, [...] entre cada um que sabe e cada um que no sabe [da existncia de] relaes de poder (FOUCAULT apud MAIA,1995,p.88).

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    Na CPPL II, o poder disciplinar caractersticos das instituies penais deslocado aos irmos da obra, que orientam a conduta de vida dos presos atravs da doutrina do Projeto Renascer. Assim, o PR funciona como um brao informal da direo do presdio. Um comando paralelo, mas que, na verdade, no paralelo, subsidiado ao comando do diretor.

    Os obreiros, ento, desenvolvem um contnuo estado de vigilncia entre si e os outros presos, que optaram pelo encarceramento na Rua A. Conforme constatado, os irmos da obra esto em profundo movimento de viglia no sentido de encontrar algo que distora as regras de orientao da vida postas pela doutrina.

    Dessa forma, o interno que no se adqua doutrina, aps trs chamadas de ateno, conduzido tranca, dispositivo de controle tambm dominado de Regime Disciplinar Diferenciado (doravante, RDD). Institudo em 2003, atravs de alteraes na Lei de Execues Penais, o RDD um modo de separar os criminosos de alto risco ligados s grandes faces do crime organizado, con-forme explica Dias (2011).

    No entanto, no espao da CPPL II, os obreiros promoveram um deslo-camento prtico e simblico em que o RDD constitui-se como um espao de separao no qual os integrantes indisciplinados permanecem em celas isoladas. Este afastamento parcial, pois os demais presos tm livre acesso ao espao em que aqueles se encontram. Neste espao, os internos que no obedecem s regras so orientados pelos obreiros a agirem de forma que no as desrespeitem mais; a orientao dirigida pela leitura da Bblia e por oraes.

    Antes da resignificao e do novo uso da tranca pelos irmos da obra, ela empregada pela administrao da CPPL como uma solitria, que pune presos revoltosos. Ela tambm constitui um espao de segregao do preso espirrado pelos companheiros da Babilnia. Neste caso, a tranca no constitui o seguro, pois este um stio de encarceramento permanente e aquela um local de separao temporrio. Geralmente, os cativos vo tranca por causa de brigas e discusses. Ela descrita, entre os presos, como um lugar escuro e sujo. O preso, neste stio, tem acesso limitado gua e no recebe visita.

    A tranca no caso da Rua dos irmos uma sala de disciplinamento, segundo os obreiros, que isola o interno rebelde, ao passo que o orienta, atra-vs dos obreiros, a agir de forma correta na Rua A.

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    Nesse sentido, de acordo com a noo de poder disciplinar de Foucault (2012b)21, a tranca funciona como uma frmula geral de dominao que per-mite o controle minucioso das operaes do corpo, que realiza a sujeio cons-tante de suas foras e impe uma relao de docilidade-utilidade (FOUCAULT, 2012a); ou seja, a tranca um mecanismo que faz frente a uma urgncia de obter um efeito de controle mais ou menos imediato sobre os corpos dos inter-nos, transformando-os em corpos dceis que seguem as regras sem question--las e produtivos que trabalham para manuteno do poder exercido pela obra do Projeto.

    Dessa forma, os internos que integram o Projeto Renascer empreendem um trabalho cotidiano sobre si, sobre os outros e sobre seu entorno. A docilidade e a sujeio, produzidas a partir da tomada do poder sobre os corpos, podem ser o resultado de certas formas de cuidado de si (FOUCAULT, 2006), um modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar aes, de ter relaes com o outro, mas que, tambm, podem ser aes pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transfiguramos (FOUCAULT, 2006, p.14). Enfim, so maneiras por meio das quais o sujeito se relaciona consigo mesmo e torna possvel a relao com o outro.

    Consideraes Finais

    Neste artigo foi efetuado um estudo etnogrfico sobre as relaes entre violncia e religio a partir do trabalho de campo realizado na Casa de Privao Provisria de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto (CPPL II), mais especifica-mente na Vivncia A, reconhecida, entre os cativos dessa instituio, como Rua dos irmos (ou Rua da obra).

    Foi percebido que a dominao da obra um exerccio de poder minu-cioso e contnuo sobre o cotidiano dos presos que aceitaram as regras da doutri-na. No , pura e simplesmente, imposio da vontade de uns sobre os outros,

    21 Em Vigiar e punir (FOUCAULT,2012b),Foucaultobservaque,apartirdofimdosculoXVIIIenoinciodosculoXIX,desenvolve-seeestrutura-seumanovatecnologiadeaproveitamentoeutilizaodaforadoscorpos.As disciplinas passam a ser utilizadas maciamente. Instituies fundamentais ao funcionamento da sociedade industrial capitalista tais como fbricas, escolas, hospitais, hospcios, prises etc. estruturam-se e tm como lgica de funcionamento as tcnicas e tticas provenientes deste processo de disciplinarizao. Nas palavras de Foucault, a disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dceis. A disciplina aumenta as foras do corpo (em termos econmicos de utilidade) e diminui essas mesmas foras (em termos polticos de obedincia). Emumapalavra:eladissociaopoderdocorpo;fazdele,porumlado,umaaptido,umacapacidade,queeleprocuraaumentar;einverte,poroutrolado,aenergia,apotnciaquepoderiaresultardisso,efazdelaumarelaodesujeito(FOUCAULT,2012a,p.119).

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    mas uma relao competitiva entre as vontades. Quem tem poder, no caso, a obra, faz valer a sua vontade sobre os internos, ao passo que estes garantem um espao pacfico no interior do universo prisional. Assim, o processo de domi-nao a capacidade de impor obedincia e aceitao de certa orientao da conduta de vida, que so as margens de ao e as capacidades de atribuir sentido ao praticada.

    Num espao social marcado pela instabilidade constante no qual no h como prever as aes individuais, foi observado que o controle das emoes (e consequentemente das aes) por parte da obra garantia para os presos um espao pacfico, distante da violncia prisional.

    NO BLOODSHED IN PRISON: RELIGION AND VIOLENCE IN PRISON.

    ABSTRACT: The objective of this paper is to discuss religion and violence among inmates of Rua dos Irmos from Casa de Privao de Liberdade Professor Clodoaldo Pinto (CPPL II), Itaitinga-CE, space marked by the existence of Projeto Renascer, which guides the life of prisoners from a Pentecostal Christian morality. From an essentially ethnographic approach, which makes use of the look, the hearing and the writing, the work shows how religion, at the referred prison, exerts an action of civility on inmates, controlling emotions and regulating prisoners everyday conflicts.

    KEYWORDS: Prison. Violence. Religion.

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