70-216-1-pb

21
125 Brasília, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008. Recebido em 21 de março de 2008. Aceito em 28 de abril de 2008. DESCRIMINALIZAÇÃO DO DELITO DE POSSE DE ARMAS NO BRASIL Douglas Morgan Fullin Saldanha D RESUMO Trata-se de estudo destinado a investigar as normas incriminadoras da Lei nº 10.826/03, conhecida como Estatuto do Desarmamento, mormente quanto ao delito de posse de armas. Para tanto, procedeu-se à divisão do tema em dois momentos. A primeira parte os elementos objetivos, sub- jetivos e normativos dos tipos penais previstos nos artigos 12 e 16 da Lei nº 10.826/03. A segunda parte debruça-se sobre as alterações sofridas pela legislação do desarmamento, concernente às campanhas de regularização e de desarmamento, que ocasionou a descriminalização da conduta de posse de armas de fogo de uso permitido e de uso restrito. Outrossim, destaca-se, sobremanei- ra, a abordagem do tema sob o prisma dos princípios constitucionais que visam conter o aparelho estatal repressor, funcionando como uma forma de controle da atuação do direito penal. Por fim, diante do amplo estudo da referida temática e dos diplomas legais pertinentes, tecem-se conside- rações acerca da necessidade de alterações na regulamentação da campanha do desarmamento de modo a evitar o efeito reflexo de acarretar a abolitio criminis nos delitos de posse de armas de uso permitido e de uso restrito. PALAVRAS-CHAVE: Estatuto do desarmamento. Posse de arma. Descriminalização. Campanha do desarmamento. DELITOS DE POSSE DE ARMA PREVISTOS NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO BREVES LINHAS SOBRE OS DELITOS DE POSSE DE ARMA A conduta insculpida no art. 12 do Estatuto do Desarmamento prevê basicamente a proibição de se possuir 1 ou manter sob sua guar- 1 Significa ser proprietário ou possuidor da arma, acessório ou munição; ter em seu poder.

Upload: guerreiro-rock

Post on 18-Dec-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

des

TRANSCRIPT

  • 125Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Recebido em 21 de maro de 2008.

    Aceito em 28 de abril de 2008.

    Descriminalizao Do Delito De Posse De armas no Brasil

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    D

    RESUMO

    Trata-se de estudo destinado a investigar as normas incriminadoras da Lei n 10.826/03, conhecida como Estatuto do Desarmamento, mormente quanto ao delito de posse de armas. Para tanto, procedeu-se diviso do tema em dois momentos. A primeira parte os elementos objetivos, sub-jetivos e normativos dos tipos penais previstos nos artigos 12 e 16 da Lei n 10.826/03. A segunda parte debrua-se sobre as alteraes sofridas pela legislao do desarmamento, concernente s campanhas de regularizao e de desarmamento, que ocasionou a descriminalizao da conduta de posse de armas de fogo de uso permitido e de uso restrito. Outrossim, destaca-se, sobremanei-ra, a abordagem do tema sob o prisma dos princpios constitucionais que visam conter o aparelho estatal repressor, funcionando como uma forma de controle da atuao do direito penal. Por fim, diante do amplo estudo da referida temtica e dos diplomas legais pertinentes, tecem-se conside-raes acerca da necessidade de alteraes na regulamentao da campanha do desarmamento de modo a evitar o efeito reflexo de acarretar a abolitio criminis nos delitos de posse de armas de uso permitido e de uso restrito.

    Palavras-chave: Estatuto do desarmamento. Posse de arma. Descriminalizao. Campanha do desarmamento.

    Delitos De Posse De arma Previstos no estatuto Do Desarmamento

    Breves linhas soBre os Delitos De Posse De arma

    A conduta insculpida no art. 12 do Estatuto do Desarmamento prev basicamente a proibio de se possuir1 ou manter sob sua guar-1 Significa ser proprietrio ou possuidor da arma, acessrio ou munio; ter em seu poder.

  • 126Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    da2, no interior de sua residncia ou dependncia desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsvel legal do esta-belecimento ou empresa, arma de fogo, munio ou acessrio sem a de-vida autorizao3. Se uma pessoa mantm uma arma de fogo, munio ou acessrio de uso permitido sem autorizao dentro de sua residncia, ou de seu local de trabalho, desde que seja o responsvel legal pelo neg-cio, pratica o crime previsto no art. 12 da Lei n 10.826/03. Lado outro, se esta mesma pessoa mantm essa arma, munio e acessrio de uso permitido em residncia alheia ou local de trabalho, desde que no seja o responsvel legal do estabelecimento, comete o crime de porte previsto no art. 14 da Lei n 10.826/03. Caso a arma, munio ou acessrio seja de uso restrito, o delito cometido ser o de porte irregular de arma de fogo de uso restrito previsto no art. 16 do Estatuto do Desarmamento, que ser comentado adiante.

    Primus ictus oculi, verifica-se a distino realizada pelo Estatuto en-tre posse de arma de fogo de uso permitido e de uso restrito. O Decreto n. 5.123/04, que regulamenta a Lei n 10.826/03, estabelece em seu artigo 10 que arma de fogo de uso permitido aquela cuja utilizao autorizada a pessoas fsicas, bem como a pessoas jurdicas, de acordo com as normas do Comando do Exrcito(...)4. J as armas de uso restri-to so aquelas de uso exclusivo das Foras Armadas, de instituies de segurana pblica e de pessoas fsicas e jurdicas habilitadas, devidamen-te autorizadas pelo Comando do Exrcito5. A norma do Comando do Exrcito que regulamenta a matria consiste no Decreto n 3.665, de 20 de novembro de 2000 que prev nos artigos 16 e 17 quais os produtos controlados de uso permitido e restrito.

    Quando o indivduo estiver na posse de arma de fogo de uso res-trito estar cometendo o crime previsto no artigo 16 da Lei n 10.826/03. Veja que a posse e o porte de armas de fogo, acessrio e munio de uso

    2 Representa a deteno da arma, acessrio ou munio em nome de terceiro.3 Vide Captulo II da Lei n 10.826/03.4 BRASIL, Decreto n 5.123, de 1 de julho de 2004, arts. 105 BRASIL, Decreto n 5.123, de 1 de julho de 2004, arts. 11

  • 127Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    restrito foram previstos em um mesmo tipo penal, ao contrrio do que ocorreu com os delitos previstos no artigo 12 e 14 do Estatuto.

    O bem jurdico protegido nesses tipos penais a incolumidade pblica e o controle da propriedade das armas de fogo. Tratam-se, por-tanto, de crimes de perigo abstrato e de mera conduta, pois dispensa a ocorrncia de qualquer resultado naturalstico.

    As condutas de adquirir e receber armas de fogo, acessrio e munio no configuram receptao como entendem alguns, mas sim fi-guras penais especficas (princpio da especialidade) previstas nos artigos 14 (em relao aos artefatos de uso permitido) e 16 (em relao aos ar-tefatos de uso restrito) da Lei n 10.826/03. A aquisio ou recebimento realizados no interesse de prtica comercial ou industrial configuram o delito do art. 17 do Estatuto.

    Os crimes de posse de arma de uso permitido e de uso restrito so normas penais em branco visto que necessitam de complementao. Observe que tais dispositivos prescrevem a conduta de possuir arma de fogo, munio ou acessrio em desarcordo com determinao legal ou regulamentar (elemento normativo do tipo).

    Nestes delitos imprescindvel que a arma esteja apta a efetuar disparos, pois do contrrio tratar-se- de crime impossvel6. No por outro motivo que por ocasio das apreenses as autoridades policiais requisitam laudo pericial indagando aos experts se o artefato capaz de produzir disparos.

    Posse De armas: Delito De Perigo aBstrato

    Os delitos de posse de armas sub examen so classificados como de perigo abstrato, ou seja, o perigo presumido, tendo em vista a simples infrigncia da norma. Nesse diapaso o legislador penal antecipa a barrei-

    6 BRASIL, Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Art. 17 - No se pune a tentativa quando, por ineficcia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, impossvel consumar-se o crime.

  • 128Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    ra de proteo legal, no exigindo a leso ou perigo concreto de leso ao bem jurdico protegido. Portanto, reputa-se que a posse de armas produz um perigo presumido incolumidade pblica, pelo que a norma probe tal conduta evitando que a vida, sade, integridade fsica e a segurana sejam maculados. Assinale-se, ainda, o crime de posse de arma como um delito de mera conduta, visto que neste no h resultado naturalstico.

    Os delitos de perigo abstrato so amplamente reconhecidos pelos tribunais ptrios conforme se pode verificar do julgado abaixo:

    PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 14 DA LEI N 10.826/03. DELITO DE PERIGO ABSTRATO.

    Na linha de precedentes desta Corte o porte de munio delito de perigo abstrato, sendo, portanto, em tese, tpica a conduta daquele que preso portando munio, de uso permitido, sem autorizao e em desacordo com determinao legal ou regulamentar. (Precedentes). Recurso provido.7

    Entretanto, parcela da doutrina e da jurisprudncia questiona a constitucionalidade dos delitos de perigo abstrato alegando que esses ofendem os princpios constitucionais da ofensividade ou lesividade, ta-xatividade e presuno de inocncia. Em relao ao princpio da ofensi-vidade, adverte-se que o direito penal s pode atuar quando determinado bem jurdico sofra alguma leso ou perigo de leso. No tocante a taxa-tividade, argumenta-se que alguns tipos penais so redigidos de forma extremamente genrica, como o previsto no pargrafo nico do artigo 4 da Lei n 7.492/868, impossibilitando o exerccio da ampla defesa por parte do acusado. Relativamente presuno da inocncia, questiona-se a presuno do perigo criado ao bem jurdico, que geraria uma espcie de inverso do nus da prova na ao penal.

    Fernando Capez, a seu turno, leciona que o princpio da ofen-sividade no pode ser levado s ltimas conseqncias, sob pena de se ocorrer o dano, quando se podia reprimir a conduta criminosa em seu estgio embrionrio, verbis:

    7 BRASIL, STJ, Recurso Especial no. 883824/RS, Rel. Ministro Felix Fischer, DJ 03.09.2007, p. 215.8 BRASIL, Lei n 7.492, de 16 de junho de 1986, Art. 4, Pargrafo nico. Se a gesto temerria.

  • 129Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    No h dvida de que um fato para ser tpico necessita produzir um resultado jurdico, qual seja, uma leso ao bem jurdico tutelado. Sem isso no h ofensi-vidade, e sem esta no exige crime. Nada impede, no entanto, que tal lesividade esteja nsita em determinados comportamentos.Com efeito, aquele que se dispe a circular pelas vias pblicas de uma cidade ilegalmente armado ou dispara uma arma de fogo a esmo est reduzindo o nvel de segurana da coletividade mesmo que no exista uma nica pessoa por perto. A lei pretende tutelar a vida, a integridade corporal e a segurana das pessoas contra agresses em seu estgio embrionrio.(...)

    No se desconhece o princpio da ofensividade ou lesividade, segundo o qual todo crime exige resultado jurdico, ou seja, leso ou ameaa de leso ao bem jurdico. Ocorre que comportamentos ilcitos, como o de possuir uma arma de fogo muni-ciada dentro de casa ou sair pelas ruas com arma de fogo sem ter autorizao para port-la, ou ainda disparar arma de fogo em plena via pblica, por si ss,j induzem existncia de risco coletividade. No se pode alegar que tais condutas no diminuram o nvel de segurana dos cidados apenas porque no se logrou encontrar ningum por perto quando de sua realizao.9

    Alguns julgados, ainda que de forma minoritria, vem rechaando a aplicabilidade dos delitos de perigo abstrato:

    A infrao penal no s conduta. Impe-se, ainda, o resultado no sentido nor-mativo do termo, ou seja, dano ou perigo ao bem juridicamente tutelado. A dou-trina vem, reiterada, insistentemente renegando os crimes de perigo abstrato. Com efeito, no faz sentido punir pela simples conduta, se ela no trouxer, pelo menos, probabilidade (no possibilidade) de risco ao objeto jurdico. (...) A relevncia criminal nasce quando a conduta gerar perigo de dano. At ento, a conduta ser atpica.10

    Segundo a tese no. 125 do Ministrio Pblico de So Paulo, Setor de Recursos Extraordinrios e Especiais Criminais, o legislador penal brasileiro no est proibido de prescrever crimes e contravenes penais de perigo abstrato.11

    constitucionaliDaDe Do Delito De Posse De armas

    9 CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento: comentrios Lei n 10.826, de 22-12-2003, 4 ed. atual., So Paulo, Saraiva, 2006, p. 45-46

    10 BRASIL, STJ, Recurso Especial no. 34.322-0/RS, Rel. Ministro Vicente Cernicchiaro, DJU 2.8.93, p. 14.11 SO PAULO, MPSP, Tese 125, DOE 12.06.2003, p. 32

  • 130Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    O crime de posse de arma consignado no artigo 12 do Estatuto do Desarmamento, foi questionado no Supremo Tribunal Federal atravs das Aes Diretas de Insconstitucionalidade n 3.586 e n 3.112. Em sntese, combateu-se o referido dispositivo alegando-se, no mbito da inconstitucio-nalidade material, ofensa aos princpios da interveno mnima, proporcio-nalidade, devido processo legal e dignidade da pessoa humana. Vale destacar que o delito previsto no artigo 16, caput do Estatuto no foi questionado.

    No que tange interveno mnima, aduz-se que o direito penal so-mente deve ocupar-se da proteo dos bens jurdicos mais caros sociedade, no merecendo reprimenda penal a mera posse de armas de uso permitido.

    Questionou-se, tambm, naquela assentada, se o princpio da proporcionalidade no estaria maculado, visto que a reprovabilidade so-cial da conduta de posse de arma no pode ser equiparada com aquelas que efetivamente lesam bens jurdicos como vida, sade, pratimnio e integridade fsica das pessoas. No se poderia, nessa viso, criminalizar o direito do cidado legtima defesa. Defendendo a inconstitucionalidade do delito de posse de armas Gilberto Thums asseverou:

    Ao proteger a segurana pblica ou a incolumidade pblica ou a segurana co-letiva, o legislador elege condutas que podem colocar em perigo o bem jurdico, conforme j fora visto anteriormente. necessrio, portanto, um controle rgido sobre as armas de fogo e explosivos.

    lcito ao legislador criminalizar as condutas que geram o mencionado perigo - o risco ao bem jurdico - que no se encontra presente no art. 12. quem mantm sob a guarda na sua casa arma de fogo de uso permitido tem o nico objetivo: proteger seu patrimnio, sua famlia e a si prprio. inaceitvel que a guarda deste objeto de defesa possa representar uma ameaa segurana pblica. inconcebvel que o cidado que quer se proteger diante da ineficincia do Estado em garantir sua segurana, esteja ameaando a coletividade.

    A criminalizao do art. 12 no passa de parania legislativa.12

    Os contrrios criminalizao do delito de posse de armas de uso permitido alegam, ainda, que a falta de razoabilidade da sobredita crimi-nalizao viola o princpio do devido processo legal material, consoante

    12 THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento - Fronteiras entre racionalidade e razoabilidade. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 77

  • 131Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    jurisprudncia do Pretrio Excelso consagrada na ADI n 1.158-8/AM, onde se afirmou que a essncia do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislao que se revele opressiva ou, como no caso, destituda do necessrio coeficiente de razoabilidade13

    Enfim, o julgamento do Supremo Tribunal Federal acabou por re-jeitar a argio de inconstitucionalidade do art. 12 da Lei n 10.826/03. Cumpre trazer a baila manifestao incisiva do relator Min. Ricardo Lewandowski quando do julgamento da ADI n 3.112:

    Considero este art. 12 constitucional, porque me parece que o Estado pode re-gulamentar a posse de arma de fogo, seja ela de uso permitido ou no permitido, submetendo o postulante s exigncias que a prpria lei estabelece.14

    Ainda nesse sentido o Ministro Marco Aurlio ponderou:

    A partir do momento em que existe a disciplina exigindo que armas em geral sejam registradas, pouco interessa haver o porte, em si, ou a guarda dessa mesma arma, que, a qualquer momento, poder ser portada. No vejo como encontrar na Constituio Federal dispositivo que, cotejado com o artigo 12, conduza concluso sobre a pecha de inconstitucional.15

    Portanto, alm da presuno de constitucionalidade das leis, nossa Corte Constitucional posicionou-se pela validade do dispositivo inscrito no artigo 12 da Lei n 10.826/03.

    Descriminalizao Do Delito De Posse De armas

    camPanhas De regularizao e Do Desarmamento

    Dentre as metas almejadas pelo Estatuto do Desarmamento est a retirada de circulao do maior nmero de armas de fogo possvel, vi-sando reduo dos ndices de violncia e o fortalecimento do sentimen-

    13 BRASIL, STF, ADI 1158-8/AM, DJ 26.05.199514 BRASIL, STF, ADI 3.112/DF, DJ 26.10.200715 BRASIL, STF, ADI 3.112/DF, DJ 26.10.2007

  • 132Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    to de segurana social. Nesse sentido j apontava o item 9 da exposio de motivos n 293, de 24 de maio de 1999:

    9. Para impedir que a violncia continue grassando, no suficiente apenas proibir a venda de arma de fogo. Necessrio que haja um posicionamento legal sobre as armas que esto em poder de particulares, na forma do art. 2, no sentido de determinar aos proprietrios das armas que as recolham s unidades das Foras Armadas, da Polcia Federal ou da Polcia Civil, garantindo-lhes a indenizao decorrente desse recolhimento.16

    Nesse nterim, a Lei n 10.826/03 previu nos artigos 30, 31 e 32 algumas formas de retirar armas de fogo de circulao, assim como regu-larizar aquelas que permaneceriam em poder da sociedade civil.

    Em seu artigo 30 Estatuto disps sobre a possibilidade dos pos-suidores e proprietrios de armas de fogo no registradas solicitarem o registro perante o go competente:

    Art. 30. Os possuidores e proprietrios de armas de fogo no registradas devero, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias aps a publicao desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de com-pra ou a comprovao da origem lcita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos.

    Este dispositivo consagrou uma espcie de anistia irrestrita que motivou a aquisio pela populao de armas no registradas, prin-cipalmente de origem estrangeira, para regulariz-las posteriormente. Ciente dessa repercusso social que a regulamentao legal ocasionou o legislador, por ocasio da recente Medida Provisria no. 417/2008, alte-rou a redao do citado artigo para prever que somente as armas de fogo de fabricao nacional, de uso permitido e no registradas, assim como as de procedncia estrangeira, de uso permitido e fabricadas anteriormente ao ano de 1997 (ano de promulgao da Lei n 9.437/97) que estaro sujeitas regularizao, verbis:

    16 Exposio de Motivos n 293, de 24 de maio de 1999 apud FIGUEIREDO, Igor Nery. Estatuto do Desarmamento: Constitucionalidade do tipo penal de posse irregular de arma de fogo de uso permitido, Revista da AGU, Braslia, Ano VI, n 52, mai. 2006.

  • 133Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    Art. 30. Os possuidores e proprietrios de armas de fogo de fabricao nacional, de uso permitido e no registradas, devero solicitar o seu registro at o dia 31 de dezembro de 2008, apresentando nota fiscal de compra ou comprovao da origem lcita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos, ou declarao firmada na qual constem as caractersticas da arma e a sua condio de proprietrio. (Re-dao dada pela Medida Provisria n 417, de 2008)

    Pargrafo nico. Os possuidores e proprietrios de armas de fogo de procedncia estrangeira, de uso permitido, fabricadas anteriormente ao ano de 1997, podero solicitar o seu registro no prazo e condies estabelecidos no caput. (Includo pela Medida Provisria n 417, de 2008)17

    O artigo 31(18) prev a possibilidade de uma arma registrada ser entregue a qualquer tempo Polcia Federal, mediante indenizao.

    J o artigo 32 da redao original do Estatuto previa a hiptese de entregar a arma de fogo no registrada, no prazo de 180 dias, Polcia Federal, desde que presumida a boa-f do possuidor ou proprietrio.

    Art. 32. Os possuidores e proprietrios de armas de fogo no registradas podero, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias aps a publicao desta Lei, entreg-las Polcia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-f, podero ser indeniza-dos, nos termos do regulamento desta Lei.

    Pargrafo nico. Na hiptese prevista neste artigo e no art. 31, as armas recebi-das constaro de cadastro especfico e, aps a elaborao de laudo pericial, sero encaminhadas, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, ao Comando do Exrcito para destruio, sendo vedada sua utilizao ou reaproveitamento para qualquer fim.19

    Vale dizer que a referida boa-f presumida desde que no conste no SINARM nenhum dado que aponte a origem ilcita da arma (apreen-dida, furtada, roubada, etc).20

    17 BRASIL, Lei n 10.826/03, art. 30 com redao dada pela Medida Provisria no. 417/08.18 BRASIL, Lei n 10.826/03, Art. 31. Os possuidores e proprietrios de armas de fogo adquiridas regularmente

    podero, a qualquer tempo, entreg-las Polcia Federal, mediante recibo e indenizao, nos termos do regulamento desta Lei.

    19 BRASIL, Lei n 10.826/03, art. 32.20 BRASIL, Decreto 5.123/04. Art. 69. Presumir-se- a boa-f dos possuidores e proprietrios de armas de fogo que

    se enquadrem na hiptese do art. 32 da Lei n 10.826, de 2003, se no constar do SINARM qualquer registro que aponte a origem ilcita da arma.

  • 134Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    Devido ao sucesso da campanha de regularizao e do desarma-mento o prazo de 180 dias fixado no Estatuto, cujo incio deu-se em 23/12/2003, teve seu termo ad quem estendido, por meio das Leis n 10.884/04, n 11.118/05 e n 11.191/05, at a data de 23/10/2005.

    Em pesquisas da rea de segurana pblica resta evidente o cont-nuo incremento das mortes por armas de fogo, que s sofreu decrscimo aps os esforos empreendidos na campanha do desarmamento que se deu entre os anos 2004 e 2005:

    Em estudo divulgado em 200521, concluiu-se que, entre 1979 e 2003, morreram mais de 550 mil pessoas vtimas de armas de fogo. Atualizando esse registro at 2006, teramos que incluir acima de 100 mil mortes, acontecidas s nesses trs anos, totalizando 648 mil vtimas de armas de fogo nos 27 anos dos quais temos dados disponveis sobre o tema. A partir desse ano, as taxas comeam a cair ano a ano. Se entre 2003 e 2004 a queda foi de 5,5%, no ano seguinte foi de 2,8%, e em 2006, de 1,8%. Os dados esto a indicar que as estratgias de desarmamento (estatuto e campanha), implementadas em 2003, conseguiram reverter um processo que vinha se agravando drasticamente ao longo do tempo, mas no foram suficiente para originar quedas sustentveis e progressivas ao longo do tempo, como a situao estava a demandar. A disponibilidade de armas de fogo no o nico componente que explica os elevados ndices de violncia letal existentes no pas. Esto comeando a incidir outros fatores, segundo apontamos no captulo referente a homicdios. Alm do desarmamento, na diminuio da violncia letal esto polticas de segurana pblica de cunho federal, estadual e/ou municipal. Mas tambm parece inegvel que ainda exista ampla margem de atuao no campo do desarmamento, no qual os ndices de mortalidade por armas de fogo so ainda extremamente elevados. Com os quantitativos acima aponta-dos, e apesar das quedas recentes, a taxa brasileira de mortes por armas de fogo continua elevada: 19,3 bitos em 100.000 habitantes, ocupando ainda lugar de destaque no contexto internacional.22

    Os resultados da campanha do desarmamento nos ndices de vio-lncia e a presso da sociedade, principalmente atravs das ONGs, levou o legislador a novamente conceder prazo de regularizao das armas, assim como reestabelecer a campanha do desarmamento, agora de forma perene.21 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mortes matadas por armas de fogo no Brasil. 1979/2003. Braslia: UNESCO,

    2005.22 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violncia dos Municpios Brasileiros 2008, Braslia, RITLA, 2008.

  • 135Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    Tal movimento culminou com a edio da Medida Provisria n. 417/2008 que alterou as condies para a regularizao das armas no registradas, conforme j destacamos, e estabeleceu uma permanente campanha do desarmamento:

    Art. 32. Os possuidores e proprietrios de armas de fogo podero entreg-las, espontaneamente, mediante recibo e, presumindo-se de boa f, podero ser indeni-zados. (Redao dada pela Medida Provisria n 417, de 2008)

    Pargrafo nico. O procedimento de entrega de arma de fogo de que trata o caput ser definido em regulamento. (Includo pela Medida Provisria n 417, de 2008).23

    Por meio da Exposio de Motivos n 09 MJ, de 30 de janeiro de 2008 o Sr. Ministro da Justia assim motivou a necessidade da imple-mentao da campanha do desarmamento sem definio de prazo para trmino:

    4. A urgncia da medida tambm se manifesta por meio da alterao que se pre-tende ao artigo 32 do Estatuto do Desarmamento, que a partir da edio desta medida provisria no mais definir um prazo final para a entrega, mediante indenizao, de armas no registradas. Essa alterao viabilizar a retomada das campanhas de entrega de armas que, por meio da conscientizao e mobilizao da sociedade retirar milhares de armas de fogo das mos dos cidados. Segundo o Mapa da Violncia dos Municpios Brasileiros 2008, a campanha de desarmamento promovida em 2004 foi diretamente responsvel pela reduo do nmero de homicdios em 5,5% em relao a 2003. Por estar-mos tratando de salvar a vida de milhares de pessoas, no h como afastarmos a urgncia e relevncia desta medida provisria.24

    A alterao legislativa imbuda de notvel esprito humanitrio acabou por acarretar, ainda que no fosse esse o objetivo, grande impac-to nas normas incriminadoras do Estatuto do Desarmamento, gerando ineficcia de dispositivos penais, como o delito de posse de armas, que tambm contribuem para a diminuio da violncia e proporcionam o controle e a reduo do nmero de armas em circulao.

    23 BRASIL, Lei n 10.826/03. art. 32.24 Exposio de Motivos n 09 MJ, de 30 de janeiro de 2008. Disponvel em http://www.planalto.gov.br/

    CCIVIL/_Ato2007-2010/2008/Exm/EM-9-MJ-MPV-417.htm. Acesso em: 02 mar. 2008.

  • 136Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    rePercusso Das camPanhas De regularizao e Do Desarmamento no Delito De Posse De armas

    A partir de 2005 o Superior Tribunal de Justia firmou entendi-mento de que as benesses consagradas nos artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento promoveram uma descriminalizao temporria (abolitio criminis temporalis), ou ainda uma vacatio legis indireta, durante o prazo de-finido em lei, no que concerne aos delitos de posse de armas de uso per-mitido e de uso restrito previstos nos artigos 12 e 16 da Lei n 10.826/03. Referido entendimento est consolidado na linha do seguinte julgado:

    AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. POSSE DE ARMA DE FOGO. ABOLITIO CRIMINIS. OCORRNCIA SE A ARMA ESTIVER NA RESIDNCIA OU NO TRABALHO DO ACUSADO. TRANSPORTE DE ARMA NO VECULO. PORTE ILEGAL. CONDUTA TPICA.

    1. Esta Corte firmou entendimento no sentido de ser atpica a con-duta de posse irregular de arma de fogo, tanto de uso permitido (art. 12) quanto de uso restrito (art. 16), no perodo referido nos artigos 30 e 32 da Lei n 10.826/2003, em razo da descriminali-zao temporria.

    2. Caracteriza-se o delito de posse irregular de arma de fogo apenas quando ela es-tiver guardada no interior da residncia (ou dependncia desta) ou no trabalho do acusado, evidenciado o porte ilegal se a apreenso ocorrer em local diverso. (...)25

    Observe-se que o entendimento acima exposado no contempla outras figuras tpicas previstas no Estatuto do Desarmamento, mas to somente as condutas de posse irregular de arma de fogo, verbis:

    HABEAS CORPUS. PENAL. ESTATUTO DO DESARMAMEN-TO. FORNECIMENTO ILEGAL DE ARMA DE FOGO (ART. 14 DA Lei n 10.826/03). ABOLITIO CRIMINIS TEMPORRIA NO-OCORRNCIA. EXTINO DA PUNIBILIDADE. IM-POSSIBILIDADE.

    1. Diante da literalidade dos dispositivos legais relativos ao pra-zo legal para regularizao do registro da arma (arts. 30, 31 e 32

    25 BRASIL, STJ, HC 83680/MS, Relator Ministro PAULO GALLOTTI, DJ 19.12.2007, p. 1237. No mesmo sentido, entre outros, RHC 19466/RS, Ministro PAULO GALLOTTI, DJ 26.02.2007 p. 641.

  • 137Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    da Lei n. 10.826/03), esta Corte tem entendido que houve sim a descriminalizao temporria, mas to-somente no que diz respeito posse de arma de fogo, a qual no se confunde com as demais figuras tpicas, tais como o porte, a aquisio e o fornecimento de arma de fogo. (...)26

    A abolitio criminis temporalis no alcana o delito de porte de armas consoante posicionamento unssono do Superior Tribunal de Justia. Al-guns doutrinadores entendem que o transporte da arma de fogo para regularizao ou entrega ao rgo competente faz presumir a boa-f do possuidor e afastar o dolo, no incidindo o delito de porte de armas. Contudo, o melhor entendimento aponta no sentido de se presumir a boa-f do possuidor somente quando este esteja portando a Guia de Trnsito27 expedida pela Polcia Federal. No caso de estar portando a citada guia o fato ser atpico:

    CRIMINAL. HC. PORTE DE ARMA DE FOGO. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. FLAGRANTE LAVRADO EM SUA VIGNCIA. POSSIBILIDADE DE REGULARIZAO DA POSSE OU DE ENTREGA DA ARMA. VACATIO LEGIS IN-DIRETA E ABOLITIO CRIMINIS TEMPORRIA. EFEITOS QUE NO ALCANAM A CONDUTA DE PORTAR ARMA DE FOGO. TRANCAMENTO DA AO PENAL. IMPOSSIBI-LIDADE. CONDUTA TPICA. ORDEM DENEGADA.

    I. A Lei n. 10.826/03, ao estabelecer o prazo de 180 dias para que os possui-dores e proprietrios de armas de fogo sem registro regularizassem a situao ou as entregassem Polcia Federal, criou uma situao peculiar, pois, durante esse perodo, a conduta de possuir arma de fogo deixou de ser considerada tpica.

    II. A vacatio legis indireta - assim descrita na doutrina criada pelo legislador tem aplicao, to-somente, para os delitos de posse de arma de fogo.

    III. A conduta de portar arma de fogo no se inclui na abolitio criminis tempo-rria.

    IV. O agente que for surpreendido portando arma de fogo, sem autorizao e em

    26 BRASIL, STJ, HC 75517/MS, Relatora Ministra LAURITA VAZ, DJ 14.05.2007, p. 360. No mesmo sentido: HC 90027/MG, Relatora Ministra LAURITA VAZ, DJ 19.11.2007, p. 267; AgRg no REsp 763840/RN, Relator Ministro HAMILTON CARVALHIDO, DJ 25.06.2007, p. 313.

    27 BRASIL, Decreto n 5.123, de 1 de julho de 2004. Art. 28. O proprietrio de arma de fogo de uso permitido registrada, em caso de mudana de domiclio, ou outra situao que implique no transporte da arma, dever solicitar Polcia Federal a expedio de Porte de Trnsito, nos termos estabelecidos em norma prpria.

  • 138Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    desacordo com determinao legal ou regulamentar, incorre nas sanes do art. 14 ou art. 16 do Estatuto do Desarmamento.

    V. Somente estaria acobertado pela abolitio criminis temporria o portador de arma de fogo de uso permitido, munido com a Guia de Trnsito expedida pelo Departamento da Polcia Federal, em conformidade com a Instruo Normativa n. 001-DG/DPF, de 26 de fevereiro de 2004, que no a situao dos autos.

    VI. Ordem denegada.28

    A descriminalizao do delito de posse de armas, segundo o Su-perior Tribunal de Justia, abrange at mesmo aquela arma que esteja com o nmero de srie raspado tendo em vista a autonomia entre o pro-cedimento de regularizao da arma e a faculdade de entreg-la Polcia Federal, verbis:

    CRIMINAL. HC. RECEPTAO. POSSE DE ARMAS DE FOGO E DE MUNIES. FLAGRANTE LAVRADO NA VIGNCIA DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. POSSIBILIDADE DE REGULARIZAO DA POSSE OU DE ENTREGA DAS AR-MAS. VACATIO LEGIS INDIRETA E ABOLITIO CRIMINIS TEMPORRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CON-CEDIDA.

    I. A Lei n. 10.826/03, ao estabelecer o prazo de 180 dias para que os possui-dores e proprietrios de armas de fogo sem registro regularizassem a situao ou as entregassem Polcia Federal, criou uma situao peculiar, pois, durante esse perodo, a conduta de possuir arma de fogo deixou de ser considerada tpica.

    II. prescindvel o fato de se tratar de arma com a numerao ras-pada e, portanto, insuscetvel de regularizao, pois isto no afasta a incidncia da vacatio legis indireta, se o Estatuto do Desarma-mento confere ao possuidor da arma no s a possibilidade de sua regularizao, mas tambm, a de simplesmente entreg-la Polcia Federal.(...)29

    oportuno lembrar que a conduta de posse de arma de fogo com numerao, marca ou qualquer outro sinal de identificao raspado, suprimido ou adulterado (artigo 16, IV, Lei n 10.826/03) no se confun-de com a conduta de efetivamente suprimir ou alterar marca, numerao

    28 BRASIL, STJ, HC 57818/SP, Relator Ministro GILSON DIPP, DJ 11.09.2006, p. 33129 BRASIL, STJ, HC 42374/PR, Relator Ministro GILSON DIPP, DJ 01.07.2005, p. 586

  • 139Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    ou qualquer sinal de identificao de arma de fogo ou artefato (artigo 16, I, Lei n 10.826/03). Consoante o posicionamento da jurisprudncia so-mente a conduta de posse de arma com numerao raspada, suprimida ou adulterada estaria abarcada pela abolitio criminis temporria.

    Questo controvertida diz respeito ao conflito de leis penais no tempo, haja vista a possibilidade de retroatividade da aludida abolitio cri-minis temporria aos delitos cometidos sob a gide da Lei n 9.437/97. O Superior Tribunal de Justia tambm j enfrentou essa questo e manifes-tou-se no sentido da retroatividade dessa descriminalizao, vejamos:

    PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 1, CAPUT, DA LEI N 9.437/97. ARTIGOS 30, 31 E 32, DO ESTATUTO DO DESAR-MAMENTO. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. FATO ANTERIOR AO INCIO DO PRAZO PARA A REGULARIZA-O DA ARMA.

    I - A Lei n 10.826/03, em seus artigos 30 a 32, estipulou um prazo para que os possuidores de arma de fogo regularizassem sua situao ou entregassem a arma para a Polcia Federal. Dessa maneira, at que findasse tal prazo, que se iniciou em 23/12/2003 e que teve seu termo final prorrogado at 23/10/2005 (cf. Lei n 11.191/2005), ningum poderia ser processado por possuir arma de fogo.

    II - A nova lei, ao menos no que tange aos prazos dos artigos 30 a 32, que a doutrina chama de abolitio criminis temporria ou de vacatio legis indireta ou at mesmo de anistia, deve retroagir, uma vez que mais benfica para o ru (APn n 394/RN, Corte Especial, Rel. p/ Acrdo Min. Jos Delgado, j. 15/03/2006).

    III - O perodo de indiferena penal (lex mitior), desvinculado para os casos ali ocorridos, dado o texto legal, alcana situaes anteriores idnticas. A permisso ou oportunizao da regularizao funcionaria como incentivo e no como uma obrigao ou determinao vinculada. A incriminao (j, agora, com a novatio legis in peius) s vale para os fatos posteriores ao perodo da "suspenso". Recurso ordinrio provido30

    Os entendimentos supra colacionados foram sedimentados luz dos artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento, em sua redao ori-

    30 BRASIL, STJ, RHC 21271/DF, Relator Ministro FELIX FISCHER, DJ 10.09.2007, p. 245. No mesmo sentido: BRASIL, STJ, Resp 895093/RS, Relatora Ministra LAURITA VAZ, DJ 06.08.2007, p. 679

  • 140Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    ginal, que previam prazos de 180 dias para regularizao e entrega vo-luntria das armas de fogo. Vale lembrar que tal prazo, cujo incio deu-se em 23/12/2003, teve seu termo final estendido, por meio das Leis n 10.884/04, n 11.118/05 e n 11.191/05, at a data de 23/10/2005.

    Em recente julgamento, o Supremo Tribunal Federal, pela sua Pri-meira Turma, decidiu que o carter temporrio das normas consignadas nos artigos 30 a 32 do Estatuto do Desarmamento no lhe conferiam a aptido para retroagir e alcanar condutas realizadas antes de sua vigncia:

    EMENTA Habeas Corpus. Posse ilegal de arma de fogo de uso restrito co-metida na vigncia da Lei n 9.437/97. Lei n 10.826/03 (Estatuto do De-sarmamento). Vacatio legis especial. Atipicidade temporria. Abolitio criminis. 1. A vacatio legis especial prevista nos artigos 30 a 32 da Lei n 10.826/03, conquanto tenha tornado atpica a posse ilegal de arma de fogo havida no curso do prazo assinalado, no subtraiu a ilicitude penal da conduta que j era prevista no artigo 10, 2, da Lei n 9.437/97 e continuou incriminada, at com maior rigor, no artigo 16 da Lei n 10.826/03. Ausente, portanto, o pressuposto fundamental para que se tenha por caracterizada a abolitio criminis. 2. Alm disso, o prazo estabelecido nos referidos dispositivos expressa, por si prprio, o carter transitrio da atipicidade por ele criada indi-retamente. Trata-se de norma que, por no ter nimo definitivo, no tem, igualmente, fora retroativa. No pode, por isso, confi-gurar abolitio criminis em relao aos ilcitos cometidos em data anterior. Inteligncia do artigo 3 do Cdigo Penal. 3. Habeas corpus denegado.31

    A interpretao do Pretrio Excelso, trazendo baila o argumento da norma penal temporria32, afastou a possibilidade de retroao da lei, mas admitiu a atipicidade das condutas perpetradas (abolitio criminis tempora-lis) no perodo inicialmente previsto nos artigos 30 e 32 do Estatuto.

    Ocorre que com o advento da Medida Provisria n. 417/2008, de 31 de janeiro de 2008, o artigo 32, que reestabelece a Campanha do Desarmamento, teve sua redao alterada no especificando prazo para

    31 BRASIL, STF, HC 90995/SP, Relator Ministro MENEZES DIREITO, DJ 07.03.2008.32 BRASIL, Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Art. 3 - A lei excepcional ou temporria, embora

    decorrido o perodo de sua durao ou cessadas as circunstncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigncia.

  • 141Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    trmino da campanha. Esta alterao foi propositada tendo em vista o item 4 da exposio de motivos retro citada que acompanhou a medida provisria.

    Considerando a tese da abolitio criminis temporalis adotada pelo Su-perior Tribunal de Justia e que, atualmente, a lei no prev qualquer pra-zo para entrega espontnea de armas de fogo Polcia Federal, conclui-se que ocorreu uma novatio legis in mellius que se irradiando-se pelo sistema jurdico acarretar a descriminalizao dos delitos de posse de armas de uso permitido e de uso restrito.

    Na dico de Fernando Capez os artigos 30 e 32 da Lei n 10.826/03 estabeleceram um paradisaco perodo de atipicidade33. Por outro lado, dizer que a novidade legislativa introduzida pela Medida Provisria no. 417/08 criou uma infernal e irrestrita descriminalizao no tocante posse de armas.

    Pode-se dizer que o legislador atirou no que viu e acertou no que no viu visto que desejava colocar restries comercializao, posse e ao porte de armas de fogo34 e acabou por descriminalizar o delito de posse de armas de fogo por via da campanha do desarmamento de prazo in-determinado.

    A nova redao do artigo 32 prev que a entrega da arma de fogo deve ser feita espontaneamente induzindo a que alguns operadores do direito entendam que o cidado surpreendido na posse da arma, p. ex. durante uma diligncia de busca e apreenso, estaria incidindo no delito de posse de armas. Ocorre que isto por si s, ainda que tenha sido a inteno do legislador, no tem o condo de afastar o entendimento j desenvolvido, visto que o dispositivo que prev a entrega de armas me-diante indenizao no prev prazo para faz-lo.

    33 CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento: comentrios Lei n 10.826, de 22-12-2003, 4 ed. atual., So Paulo, Saraiva, 2006, p. 190.

    34 Exposio de Motivos n 293, de 24 de maio de 1999 apud FIGUEIREDO, Igor Nery. Estatuto do Desarmamento: Constitucionalidade do tipo penal de posse irregular de arma de fogo de uso permitido, Revista da AGU, Braslia, Ano VI, n 52, mai. 2006.

  • 142Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    Importa notar que no houve a promulgao de nova lei deixan-do de considerar o delito de posse de armas como crime, mas sim uma derrogao implcita pela norma que institui a campanha permanente de desarmamento.

    Ainda que se propugne nova alterao legislativa para retificar essa, em nossa opinio, equivocada poltica criminal, a medida provisria alcanar as condutas perpetradas antes de sua vigncia, haja vista o dis-posto no art. 5, XL, da Contituio Federal e nos artigos 2. e 107, III, do Cdigo Penal Brasileiro.

    Note-se que temos neste caso uma medida provisria tratando de matria penal, sendo certo que isso vedado pela Constituio da Repblica. No entanto, alguns defendem que medida provisria pode disciplinar matria penal, desde que beneficie o ru:

    Como ensinam Celso Delmanto et al., regra segundo a qual a medida pro-visria no pode ser aplicada no campo penal, "deve-se abrir exceo quando for favorvel ao acusado". Assim tambm, prosseguem: o decreto-lei "embora inconstitucional, pode e deve ser aplicado em matria penal (STJ, RHC n. 3.337, j. em 20.9.1994, DJU de 31.10.1994)" . (...) No mesmo sentido, Fernando Capez ensina que, no obstante o impedimento constitucional, no se justificam as restries materiais da Carta Magna, as quais s foram estabelecidas para impedir que medida provisria defina crimes e imponha penas.35

    Outros doutrinadores, como Damsio Evangelista de Jesus, en-tendem que a medida provisria no pode tratar de matria penal, ainda que beneficie o acusado

    Como diz Gonzlez Macchi, de acordo com o princpio de reserva legal ou da legalidade, "corresponde exclusivamente lei penal tipificar os fatos punveis e as conseqncias jurdicas que eles geram. Nesse sentido, somente uma lei emanada do Poder Legislativo pode proibir as condutas consideradas punveis e impor-lhes uma sano, em virtude do princpio constitucional que regula o sistema de sepa-rao e equilbrio de poderes". (...) No podemos nos esquecer de que a finalidade da restrio a que a medida provisria reine sobre Direito Penal diz respeito a

    35 JESUS, Damsio E. de. Estatuto do desarmamento: medida provisria pode adiar o incio de vigncia de norma penal incriminadora?. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 349, 21 jun. 2004. Disponvel em: . Acesso em: 12 mar. 2008.

  • 143Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    no se permitir que a vontade nica de uma pessoa, qual seja o Presidente da Repblica, determine regras sobre direitos fundamentais(...). A admisso da ana-logia in bonam partem tambm no serve de argumento contrrio. Ocorre que nela h uma lei penal regendo matria similar, ao contrrio do que acontece com a medida provisria, a qual no lei.36

    Confirmando-se a descriminalizao anunciada pode-se vislum-brar no s a abolitio criminis do delito de posse de armas, mas tambm a de posse de munies e acessrios tendo em vista a analogia in bonam partem.37

    concluses

    Todo o arcabouo jurdico estudado revela o recrudescimento da legislao penal ptria no que tange aos delitos envolvendo armas de fogo. Indubitavelmente essa evoluo legislativa se deu em face da cres-cente violncia e dos altos ndices de mortes por arma de fogo.

    Houve, contudo, aqueles que se posicionaram desfavoravelmente s severas punies cominadas queles que fossem flagrados na posse e porte de armas de fogo. Alegou-se que o Estado no podia restringir o direito do cidado de possuir armas sem prestar-lhe um eficiente servio de segurana pblica.

    Ultrapassados os questionamentos quanto constitucionalidade das normas inscritas na Lei n 10.826/03, verificou-se uma sucesso de reformas pontuais que acabaram por desfigurar em parte o intuito re-pressor deste diploma legal.

    Um dos pontos altos da Lei de Desarme atual refere-se campa-nha de entrega voluntria de armas que possibilitou a retirada de circula-o de mais de 464.000 armas de fogo entre 2004 e 2005.

    36 JESUS, Damsio E. de. Estatuto do desarmamento: medida provisria pode adiar o incio de vigncia de norma penal incriminadora?. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 349, 21 jun. 2004. Disponvel em: . Acesso em: 12 mar. 2008.

    37 BRASIL, Constituio Federal de 1988, art. 5., XL c/c Decreto-Lei n 4.657, de 4 de setembro de 1942, art. 4.

  • 144Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Descriminalizao do Delito de Posse de Armas no Brasil

    No intuito de perpetuar esta experincia positiva, que foi elogiada em todo o mundo, o legislador brasileiro resolveu instituir, por meio da Medida Provisria n 417/2008, a campanha do desarmamento de forma permanente, ou seja, sem prazo final.

    Ocorre que na esteira do entendimento jurisprudencial firmado pelos Tribunais Superiores as normas que concediam o direito regulari-zao de armas no registradas ou sua entrega Polcia Federal, luz da redao original, acarretaram a abolitio criminis temporria dos delitos de posse de armas.

    Portanto, considerando a tese da abolitio criminis temporalis adotada pelo Superior Tribunal de Justia e que, atualmente, a lei no prev qualquer prazo para entrega espontnea de armas de fogo Polcia Federal, conclui-se que ocorreu uma novatio legis in mellius que acarretar a descriminalizao dos delitos de posse de armas de uso permitido e de uso restrito.

    Douglas Morgan Fullin salDanha

    Delegado de polcia federal

    lotado na diretoria de combate ao crime organizado e

    Ps-graduado em direito pblico e em cincias penais.

    ABSTRACT

    The aim of this study is to investigate the incriminating rules of Brazilian Law 10.826/03, known as Disarmament Statute, especially concerning to the offense of arm possession. The study was divided into two moments. The first part shows the objective, subjective and normative elements of penal types previously assumed in articles 12 and 16 of Law 10.826/03. The second part is about the changes suffered by the disarmament legisla-tion, concerning to the campaigns for regularization and disarmament, which caused the decriminalization of the conduct of the possession of allowed and restrict use firearms. A highlight is given to the approach to the theme under the prism of constitutional principles that aim to hold the oppressor national equipment, working as a way of criminal law con-trol. Finally, after the study of this subject and the relevant legal documents, there are some considerations concerning the necessity of changes in the regulation of the disarmament

  • 145Braslia, v. 1, n. 1, p. 125-145, jan./jun. 2008.

    Douglas Morgan Fullin Saldanha

    campaign in order to avert the reflex effect of causing the abolitio criminis on the allowed and restrict use firearms possession offense.

    Keywords: Disarmament Statute. Firearms possession. Descriminalization. Disarmament campaign.

    referncias

    BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal parte geral, vol. 1, 6. ed. rev. e atual., So Paulo, Saraiva, 2000

    CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento: comentrios Lei 10.826, de 22-12-2003, 4 ed. atual., So Paulo, Saraiva, 2006

    CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal parte geral, vol. 1, 8. ed. rev. e atual., So Paulo, Saraiva, 2005

    FIGUEIREDO, Igor Nery. Estatuto do Desarmamento: Constitucionalidade do tipo penal de posse irregular de arma de fogo de uso permitido, Revista da AGU, Braslia, Ano VI, n 52, mai. 2006.

    FRANA, Jnia Lessa; VASCONCELLOS, Ana Cristina de (col.); MAGALHES, Maria Helena de Andrade(col.); BORGES, Stella Maris (col.). Manual para normalizao de publicaes tcnico-cientficas. 6. ed. ver. e ampl., Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003

    GRECO, Rogrio. Curso de direito penal parte geral, vol. 1, 6. ed. rev., ampl. e atual., Rio de Janeiro, Impetus, 2006

    GONALVES, Victor Eduardo Rios. Legislao penal especial, So Paulo, Saraiva, 2005

    GUSTIN, Miracy Barbosa de Souza; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurdica:teoria e prtica, Belo Horizonte, Del Rey, 2002

    JESUS, Damsio E. de. Estatuto do desarmamento: medida provisria pode adiar o incio de vigncia de norma penal incriminadora?. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 349, 21 jun. 2004. Disponvel em: . Acesso em: 12 mar. 2008.

    SILVA, Csar Dario Mariano da. Estatuto do desarmamento: de acordo com a Lei 10.826/2003, Rio de Janeiro, Forense, 2007

    THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento - Fronteiras entre racionalidade e razoabilidade. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005

    TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal, 5. ed., So Paulo, Saraiva, 1994.

    WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violncia dos Municpios Brasileiros 2008, Braslia, RITLA, 2008.