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Vim viver em Madri o que lá é muito mais difícil. Sou brasileira, continuo brasileira, mas sou mais uma brasileira puta, fora do Brasil. Aqui ser mulata é diferente, ganho com isso. Lá sou só mais uma neguinha, só isso.”. Foi assim que Marlene, moça de 32 anos, se referiu às matrizes de sua identidade: profissão: puta; nacionalidade: brasileira; cor: mulata. Puta, brasileira, mulata, mas na Europa. A linda moça de voz rouca, mas suave acrescentou algo intrigante “sou da cor do Brasil e isso na Espanha tem força”. Meditando sobre esses fragmentos captados em duas longas entrevistas, nota-se que a junção das três referências seria suficiente para amarrar problemas do entendimento de alguns dilemas contemporâneos: a condição da mulher, o exercício da prostituição em escala internacional, e as questões raciais e relações de classes. Tudo submetido aos processos e/imigratórios no mundo globalizado. Afinal, qual o significado da articulação das menções expressas por Marlene? A prostituição vista em escala internacional merece enquadramento nas molduras da globalização acelerada que se traduz em trânsito e tráfico de grupos em movimento de uma região do planeta para outra 1 . Não bastam mais os crité- rios analíticos anteriores que se esgotavam em limitações da- das por velhas perguntas e obsoletas soluções de pesquisas 2 . É sob esse desafio que se inscreve a questão de brasileiros – em particular das brasileiras – que, no exterior, trabalham com o próprio corpo 3 . Tal atividade vem assumindo posições de destaque na avaliação da modernidade, colocando inclusive em questão o problema de fronteiras e direitos sob a ordem internacional. Retraçando os fundamentos da mobilidade de fronteiras, pergunta-se da moral de certos bloqueios e, nessa linha, questiona-se o comportamento de algumas instituições 1 Entre tantos trabalhos, cabe destacar o registro feito pela ativista dos direitos humanos Lydia Cacho (2010). 2 Cf. PHETERSON, 2000, p. 32. 3 Em particular, Adriana Piscitelli tem se dedicado ao tráfico de mulheres brasileiras no cenário da prostituição internacional. Dessa autora, leia-se, entre outros, Piscitelli (2011). Vidas putas: globalização e prostituição de mulheres brasileiras na Europa 1 José Carlos Sebe Bom Meihy 2 1 Este texto é resultado de entrevistas feitas com mulheres brasileiras que se prostituem em países europeus. O projeto – em andamento – pretende analisar o fluxo de brasileiras que, usando o próprio corpo como meio de sobrevivência, veicula situações que cruzam temas como: emigração, gênero e problemas históricos que projetam a figura da mulher como agente de transformação de valores culturais. 2 Professor titular aposentado do Departamento de História da Universidade de São Paulo e coordenador do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO/USP).

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Este texto é resultado de entrevistas feitas com mulheresbrasileiras que se prostituem em países europeus. O projeto– em andamento – pretende analisar o fluxo de brasileirasque, usando o próprio corpo como meio de sobrevivência,veicula situações que cruzam temas como: emigração,gênero e problemas históricos que projetam a figura damulher como agente de transformação de valores culturais.

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  • Vim viver em Madri o que l muito mais difcil. Sou brasileira, continuo brasileira, mas sou mais uma brasileira puta, fora do Brasil. Aqui ser mulata diferente, ganho com isso. L sou s mais uma neguinha, s isso.. Foi assim que Marlene, moa de 32 anos, se referiu s matrizes de sua identidade: profisso: puta; nacionalidade: brasileira; cor: mulata. Puta, brasileira, mulata, mas na Europa. A linda moa de voz rouca, mas suave acrescentou algo intrigante sou da cor do Brasil e isso na Espanha tem fora. Meditando sobre esses fragmentos captados em duas longas entrevistas, nota-se que a juno das trs referncias seria suficiente para amarrar problemas do entendimento de alguns dilemas contemporneos: a condio da mulher, o exerccio da prostituio em escala internacional, e as questes raciais e relaes de classes. Tudo submetido aos processos e/imigratrios no mundo globalizado. Afinal, qual o significado da articulao das menes expressas por Marlene?

    A prostituio vista em escala internacional merece enquadramento nas molduras da globalizao acelerada que se traduz em trnsito e trfico de grupos em movimento de uma regio do planeta para outra1. No bastam mais os crit-rios analticos anteriores que se esgotavam em limitaes da-das por velhas perguntas e obsoletas solues de pesquisas2. sob esse desafio que se inscreve a questo de brasileiros em particular das brasileiras que, no exterior, trabalham com o prprio corpo3. Tal atividade vem assumindo posies de destaque na avaliao da modernidade, colocando inclusive em questo o problema de fronteiras e direitos sob a ordem internacional. Retraando os fundamentos da mobilidade de fronteiras, pergunta-se da moral de certos bloqueios e, nessa linha, questiona-se o comportamento de algumas instituies

    1 Entre tantos trabalhos, cabe destacar o registro feito pela ativista dos direitos humanos Lydia Cacho (2010).

    2 Cf. PHETERSON, 2000, p. 32.

    3 Em particular, Adriana Piscitelli tem se dedicado ao trfico de mulheres brasileiras no cenrio da prostituio internacional. Dessa autora, leia-se, entre outros, Piscitelli (2011).

    Vidas putas: globalizao e prostituio de

    mulheres brasileiras na Europa1

    Jos Carlos Sebe Bom Meihy2

    1 Este texto resultado de entrevistas feitas com mulheres brasileiras que se prostituem em pases europeus. O projeto em andamento pretende analisar o fluxo de brasileiras que, usando o prprio corpo como meio de sobrevivncia, veicula situaes que cruzam temas como: emigrao, gnero e problemas histricos que projetam a figura da mulher como agente de transformao de valores culturais.

    2 Professor titular aposentado do Departamento de Histria da Universidade de So Paulo e coordenador do Ncleo de Estudos em Histria Oral (NEHO/USP).

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    que precisam ser pensadas segundo aspectos culturais e de direitos contrastantes. Marlene, a baiana de Feira de Santana, sabia que em qualquer lugar do Brasil seria sempre uma pobre, uma vadia, mais uma mulher da vida, sem futuro. Na Europa, seus alcances seriam outros e, sem laivos melanclicos, reforava l, no Brasil, eu no passava de uma bbb: biscate, boba e barata. Sem esconder uma pon-ta de orgulho, pensando na prpria trajetria emendou sabe, eu queria mais para minha vida. Sim, submeteu-se a situaes difceis, mas era o preo que tinha que pagar e completou custou caro; caro demais. Em outra passagem, confidenciou sobre uma relao que lhe permitiu viajar: eu sabia que ele no me queria pra casar, pra ser dona de casa, me de espanhoizinhos. Falava de tal Juan Manuel, senhor maduro de Valencia que na altura dos mais de 50 anos facilitou sua entrada como possvel futura espo-sa, de acordo com preceitos legais firmados. Marlene tinha, portanto, visto oficial de entrada, ainda que a inteno da visita fosse de permanncia prolongada. A passagem, ela mesma pagou em prestaes tosto por tosto, com dinheiro que juntei para dar l de entrada, e aqui com o que ganhei trabalhando primeiro nas ruas, depois em boates e agora por minha conta. Contudo, nada foi sem sacrifcios medidos. Como tantas ao chegar estamos falando de mais de 8 mil mulheres e homens que se prostituem em solo espanhol , Marlene teve o passaporte confiscado pelo suposto namorado; serviu sexualmente a ele com exclusividade, tanto como domstica, quanto como mulher; foi seviciada pelo companheiro que mais tarde a abandonou deixando-a sem documentos4. Levando em conta tudo isso a moa ainda avaliou: valeu a pena, era o preo que tinha a pagar, e, enfatizando, garantiu: faria tudo outra vez, tim--tim por tim-tim.

    Mesmo num voo de pssaro, examinemos esse fragmento de caso que abriga muito mais do que resignao ou passividade. De partida, deixemos os preconceitos que nos reduzem a crticos, donos de um paternalismo barato5. Que tal ver na atitude de Marlene, mais do que a postura de vtima, mulher enganada e perdida em um jogo de poderes internacionais. O que interessava realmente Marlene era sair do Brasil, ir para a Europa, tentar outras aventuras, apostar em si. O casamento com gringo seria alternativa de melhoria de vida, mas em essncia a meta era criar oportunidade de qualificao social, e ela estava disposta a arriscar fosse qual fosse o nus. Com escassa instruo, despreparada para outros ganhos profissionais expressivos, restava pouco quela moa. As fantasias de ir para a Europa, virar a pgina do passado sem grana e principalmente poder viver a vida do jeito que eu acho que a vida deve ser vivida representou a ela empoderamento autonomia resultante das condies possibilitadas pelos atributos da modernidade. A vida de Marlene dividiu-se em antes e depois de sua ida, e a conscincia

    4 A captura de documentos uma das prticas mais consequentes e amedrontadoras para quantos so submetidos a ela. O medo de solicitar nova documentao funciona como inibidor de reaes capazes de melhor qualificar a atitude de ilegais.

    5 Um dos temas mais polmicos da abordagem sobre a prostituio de brasileiras, bem como de moas advindas de pases em desenvolvimento a vitimizao eternizada em posturas que anulam a capacidade de reao de quantas so inscritas nesses processos. Por reconhecer a capacidade de reao de muitas mulheres, valoriza-se o artigo assinado por Thaddeus G. Blancette e Ana Paula da Silva (2011), intitulado O mito de Maria, uma traficada exemplar.

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    disso justifica suas palavras: cresci. Aprendi muito. Sou outra pessoa. Pensou se tivesse ficado no Brasil?, e arrematou: sim, quero voltar, mas s volto quando me sentir por cima.

    Sopesando essas passagens despontam questes. Marlene se ajeitaria no clich que temos mitificado sobre a mulher brasileira: mulata bonita, pobre, enganada por gringos mafiosos? Ou tocaria perfil-la em outra condio: moa esperta, sagaz, tinhosa, dona de saber atilado capaz de estabelecer critrios coerentes com o mundo que a explica como puta? Deixemos o problema em aberto e vejamos outra histria.

    Dorah, moa de classe mdia alta, paulistana, mas que morou bastante tempo na zona sul do Rio de Janeiro, ex-danarina de programa dominical da televiso, procedeu tambm a busca de espaos adequados a sua problemtica pessoal e familiar: optei, diz, por ir para a Europa viver a vida do meu jeito6. Com o dinheiro da famlia combinado com o prprio, conseguido em programas que fazia Brasil afora, depois de considerar sua personalidade aventureira inata e passadas as brigas e desentendimentos com os pais, resolveu estudar moda em Paris e, no sem ironia, desabafou: at me matriculei e fui a algumas aulas na Maison Yves Saint Laurent, mas eu queria mesmo era outra coisa, queria gozar a vida, ser profissional do sexo. Dorah disse que, ante sua deciso, por incrvel que parea, houve alvio de todos, e assim avaliou a mudana: foi bom para mim em primeiro lugar porque eu queria mesmo ser livre e gosto de ser garota de programa; aos pais valeu, pois se livraram da vergonha das escolhas da filha que afinal estava estudando em Paris.

    Estabelecida com apartamento em plena Rue Blanche, em Pigalle, explicava Dorah: eu precisava fazer alguma coisa por mim. E continuava: no Brasil no conseguia porque eu no nasci para ser patricinha, me formar, casar, ter filhos, levar crianas no bal ou no jud. Com apartamento grande, confortvel, alm de atender os prprios clientes, Dorah aluga quartos por jornadas para outras amigas, na maioria mulheres brasileiras, moas que tambm escolheram ser putas e assim, como ela disse, vivo minha vida, pago minhas contas, guardo dinheiro e gosto do que fao. Gosto muito, viu.. Ostentando um elegante caderninho de endereos, Dorah mostrou-se realizada: viajo bastante, conheo gente interessante do mundo todo, me divirto, gozo e ainda ganho por isso. Quer melhor?. Com autonomia de quem sabe o que quer, declarou: at meus parentes hoje me respeitam, e com competncia garantiu: vivo minha opo de vida. A experincia de Dorah merece ser vista alm da moldura convencional que cola explicaes da prostituio sempre inscrita nos limites da pobreza, do engano de meninas inocentes que, sem alternativas, se valem da sobrevivncia pelo uso do corpo. Por contraste, a escolha da ex-danarina remoa alternativas que se ligam ao prazer e viso da atividade profissional do sexo segundo enquadramentos modernos e lgicas

    6 Sobremaneira interessa a narrativa de Dorah por indicar variaes pouco consideradas no perfil das prostitutas. Economicamente bem situada, com alternativas de vida profissional, bem estabelecida em termos de moradia, Dorah representa outro tipo de experincia, fato interessante para pensar abertamente a questo da prostituio feminina brasileira em particular em nvel internacional.

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    morais condizentes com a realidade do mundo globalizado7.

    Deixem-me tambm contar a histria de Elizngela, que, na altura de seus 24 anos, conhecida como Clara, na cidade de Zurique. Ela trabalha numa boate, indicativamente chamada Piranhas bar no distrito vermelho. Essa casa, alis, a mesma que inspirou o escritor Paulo Coelho a escrever o livro Onze minutos, e onde atuam cerca de 20 moas, todas brasileiras. a mesma boate descrita no livro Snia Brasil, da prostituta que detalhou suas peripcias Europa afora. A experincia de Elizngela d mostras de uma trajetria que foge do padro das duas primeiras narrativas.

    Moradora de comunidade pobre da zona norte do Rio de Janeiro, foi criada, segundo suas palavras, como menina certinha, de famlia. Pais evanglicos, trabalhadores, viviam com mais duas filhas em modesto barraco no Complexo do Alemo: elas estudaram mais, eu no, porque era mais velha tive que tomar conta delas. Logo depois do quarto ano escolar, ainda mocinha: fui obrigada a trabalhar primeiro por ali mesmo, mas depois na zona sul, em casa de famlia. O longo trajeto para atravessar a Avenida Brasil a fazia acordar muito cedo, mas mesmo assim chegava sempre atrasada. Foi essa rotina que a obrigou a optar por dormir no servio, no quartinho dos fundos do elegante apartamento. Aos 16 anos, foi violentada pelo patro, um senhor de seus 60 anos, aposentado, daqueles que permanecem em casa enquanto todos saem para trabalho ou estudo. Com medo de tudo e de todos, nada revelou, mesmo tendo o ato se repetido muitas vezes, por anos. Aprendeu a ser submissa, dominada pelo medo que a acompanhou sempre. Levando vida dupla, comeou namorar o porteiro do prdio, que parecia ser um moo bom, vindo do nordeste, trabalhador. O romance ia correndo at que um belo dia, o Berto me levou para a feira de So Cristovo e de l para o barraco onde morava. Fui outra vez violentada, e como o Berto viu que eu no era mais virgem ficou furioso e me obrigou a virar amante dele.. Ele mudou completamente. Dizendo-se duplamente explorada, pelo patro e pelo namorado, Elizngela comeou a flertar com o portugus da padaria, um quarento que lhe dava toda ateno do mundo e sempre era muito educado.

    Demorou, mas seu Joaquim um belo dia a convidou para sair. No foi difcil ela se desvencilhar do Berto, dizendo que ia visitar a famlia. lgico que o portugus no a levou para o cinema, e sim para cama. Sem saber muito que acontecia consigo, Elizngela mantinha o medo de todos e tanto temia que um soubesse do outro que passou, segundo conta, a ter problemas de sade. Vivia com medo.. Quando fez 19 anos, ainda presa aos trs casos, Sr. Joaquim resolveu que voltaria para Portugal, pois tinha acumulado bom dinheiro e l queria abrir um negcio. Convidou Elizngela que iria como empregada8. Foi difcil convencer os pais, deixar a famlia para trs, mas era uma oportunidade nica,

    7 Entre outras, no Brasil, Margareth Rago (2008) inovou a reflexo sobre a prostituio aliviando a carga pesada que enquadrava o tema nos limites moralistas e limitadores de alternativas outras que no a pobreza e violncia.

    8 Sobre a presena de brasileiras na prostituio em Portugal, leia-se SOS Racismo (2008).

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    concluiu. Depois de algum esforo, com passagem a ser paga com trabalho, logo ao chegar o quadro mudou. Joaquim a queria sim como empregada de um pequeno restaurante, mas no s para isso9. Aos poucos as complicaes iam aumentando e ela comeou a atender clientes arranjados pelo patro que ficava com o dinheiro. De empregada virei rapariga, disse sem esconder que apanhei, peguei doenas, fui roubada. Nessa toada, Elizngela conheceu outras brasileiras, muitas brasileiras que esto l para programas. Uma delas, mais experiente, arranjou uma viagem como acompanhante de dois suos que passavam frias em Portugal. Foi assim que a moa fugiu, sem levar quase nada, mas com documentos. Em Zurique, primeiro fez rua at que chegou ao Piranhas, onde eu a entrevistei por duas vezes no intervalo de trs anos10. Sintetizando o priplo dessa moa, ouvi entre lgrimas, uma narrativa que dimensionava o padro da vtima: menina pobre, enganada, iludida, solitria, deprimida e sem perspectiva. Incapaz de dizer se pretendia ou no voltar para o Brasil, muito trmula concluiu no sei, no sei.

    Precisei das trs histrias para ferir alguns pontos importantes da reflexo sobre um dos fenmenos mais exuberantes e inexplicados de nossos dias: a prostituio internacional e, nela, o caso das mulheres e homens do Brasil. A fim de medir a gravidade da questo, consideremos que se contabilizam, no presente, cerca de 75 mil mulheres brasileiras se prostituindo na Europa, em particular na Espanha, em Portugal, na Itlia, na Sua e na Alemanha11. Sabe-se que h duas grandes correntes animando o comrcio europeu de prostituio:

    1. a linhagem eslava em particular com russas, romenas e blgaras12; e

    2. a oriunda de algumas ex-colnias europeias Brasil, Colmbia, Equador e diversos pases africanos e asiticos, principalmente a Tailndia e as Filipinas.

    Ainda que ambas as linhagens concorram no mesmo mercado, no oeste europeu, as estratgias de atuao e os resultados dessas atividades variam bastante e devem ser distinguidas a fim de se promoverem reflexes afinadas com cada caso13.

    9 Com o pseudnimo Paula Lee, uma prostituta brasileira criou um blog e escreveu o livro Alugo meu corpo (2008), onde narra sua trajetria internacional comeando por Portugal.

    10 Entre os livros mais importantes escritos por mulheres que passaram pela prostituio, Entre as fronteiras (BRASIL, 2003), tambm conhecido como Manuscrito de Snia (BRASIL, 2005), merece ateno, inclusive porque relata as peripcias de algum que viveu a movimentao do trabalho com o sexo em Zurique, na Sua. O livro de Paulo Coelho Onze minutos (2003) foi baseado na histria de Mariana Brasil.

    11 Em 18 de maio de 2008, O Estado de S. Paulo publicou artigo denunciando o referido nmero de prostitutas brasileiras na Europa. Cf. CHADE, 2008.

    12 Chamadas vulgarmente de Natashas, as mulheres do leste europeu so identificadas de forma negativa como aponta a reportagem da revista Veja, de 18 de maro de 1998. Cf. TIPO..., 1998.

    13 Ao se falar do trnsito de prostituio na chamada era globalizada, importante levar em conta a existncia de uma geografia que articula espaos nacionais e rotas. Nesse sentido, o papel da Turquia fundamental, tanto por significar lugar de prostituio, quanto por ser centro de captao de

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    Frente s duas faces, o ponto de partida para a compreenso de seus funcionamentos deve levar em conta: a origem dos protagonistas; o perfil dos aliciados e dos aliciadores; as formas de recrutamento das moas e dos rapazes em seus nichos; e as tramas de ingresso e controle dessas atividades nos espaos profissionais. claro que os efeitos devem tambm implicar os retornos, sejam fsicos, pessoais ou econmicos. Isso, diga-se, varia radicalmente de uma linhagem para outra, pois as chamadas mfias europeias exercem um domnio quadrilheiro articulado, entranhado no trfego de pessoas, armas e drogas. Essa constatao traz um desafio imediato: pode-se pensar separadamente no fluxo de trabalhadores do sexo sem as demais faces do trfico? possvel construir conhecimento capaz de nutrir polticas pblicas, levando-se em conta os fatores conjuntos dessa manifestao sem a ateno ao caso especfico das prostitutas? Afinal, o que sabemos sobre prostituio brasileira no exterior?

    Tomemos uma referncia sintomtica capaz de dar n no entendimento da questo. Todos os meses, cerca de 40 mulheres so expatriadas da Espanha para o Brasil, pas de origem. Sem compreender os argumentos espanhis, o que se l so os artifcios jurdicos que no levam em conta que temos mais de 8 mil mulheres exercendo a atividade de prostitutas nas ruas de cidades espanholas. O agravante ainda diz respeito ao fato de cerca de 95% estarem ilegalmente e mais de 40% em trnsito, seja no prprio pas ou na Europa14. Vale, ento, o estabelecimento de poltica de reciprocidade como resposta a esse problema? Podemos solver a questo com leis de igualdade de tratamento? Quem so essas mulheres, quais os mecanismos que as movem, pergunta-se?

    Partamos, pois, de uma hiptese: precisamos saber de quem falamos e das alternativas que levam tais pessoas a engrossarem o recente fenmeno de pessoas que deixam o pas. Temos hoje entre 3,5 a 5 milhes de brasileiros fora do pas15. O perfil da imigrao internacional mudou radicalmente, e agora as preferncias pelo Brasil se do, preferencialmente, em nvel sul continental. Ainda que recentemente o refluxo se torne acelerado devido crise geral , em termos da prostituio no se nota o mesmo, pois o grande destino permanece a Europa. Pelo contrrio, ampliam-se os quadros e os lances so dramticos16.

    Visto no singular, o caso brasileiro, ainda que com interfaces com o movimento geral do trfico de drogas, armas e rgos, comporta-se de maneira variada. Violenta tambm, mas com peculiares que

    mulheres de diferentes espaos mundiais. Sobre o tema, leia-se o captulo intitulado Turquia: el tringulo dorado in Esclavas del poder (CACHO, 2010).

    14 Disponvel em: .

    15 Cf. OS 10..., 2008.

    16 Cf. ASOCIACIN..., 2000, p. 12.

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    merecem cuidados. exatamente nesse ponto que se questiona o papel da crtica, que deve inscrever o tema em suas pautas, tanto para promover o reconhecimento do problema nos quadros da lgica histrica brasileira, como propor polticas pblicas que complementem as normas internacionais. Infelizmente, o que tem ocorrido o reverso. So os problemas do contexto que tm ditado nossas regras de conduta. Entre ns, o tema, em coerncia com o trato dado s histrias pessoais, tem sido legado a planos marginais, implicando estranho silncio.

    As vises populares sobre a prostituio permanecem acomodadas em jarges como: a mais antiga profisso do mundo; mal necessrio; atividade natural existente em todos os lugares. Preside ainda, alm da folclorizao e o piadismo machista, a imagem da mulher fixada negativamente por alguns autores ilustres da nossa literatura. A isso se somam as figuras divulgada nas propagandas tursticas que reforam esteretipos consequentes, tudo a comprometer o feminino brasileiro suspeito. A repetio ad nauseam dessas prticas comea a desafiar, internacionalmente, a reputao das brasileiras, e as consequncias despontam. O turismo sexual e infantil que o digam. Sem a devida investigao crtica, isso, alm de confundir a opinio pblica, dana outras interpretaes e assim presta desservio causa dos direitos civis e trabalhistas. O resultado mais reclamado das agendas analticas , pois, a requalificao da matria a partir da renovao de mtodos e pressupostos de investigao. Desafio imediato: a necessidade de se rever a produo sobre o tema, considerando a voz dos envolvidos. O trato, em geral, como se os personagens no existissem de carne e osso e vontade. Temos, ento, duas consequncias imediatas: o tema fugido das pautas de pesquisa e a invisibilidade das histrias pessoais.

    O apagamento do objeto das reas de estudo sintomtico e revelador de falhas capazes de colocar o nosso papel intelectual e crtico em tela de juzo. Por que se pergunta existem to poucos estudos sobre esta matria? preciso buscar apoio em temas correlatos como: imigrao, estudos de gnero, anlises do corpo, para se falar de prostituio. At quando os estudos sobre as mulheres da vida sero adjetivos? A academia no tem responsabilidades nesse tipo de escolha? notvel que as disciplinas acadmicas em geral tenham privilegiado os chamados grandes temas e assim a importncia dos casos de prostituio rebaixado. O saber produzido sobre a matria, de regra, se basta com nmeros, sem histrias. Silenciamento crnico esse. Decorre disso um conhecimento desumanizado, descolado dos problemas populares e da cultura, gerador de deformaes interpretativas. E no se trata de instrumentao do saber, no. Advoga-se o suposto plantado por Foucault que atualiza a funo do intelectual especfico e diagnosticador do presente, pois, afinal, a cultura, alm de alimentar pautas cumulativas internas ao seu papel, deve apresentar subsdios aos direitos civis.

    Assim se abre o convite descontruo das abordagens postas. Nota-se, em geral, um quase imobilismo da postura acadmica que, ao invs de compreender para explicar e propor polticas de reconhecimento, se compraz em duas situaes:

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    3. na repetio de prticas teorizantes que tm perpetuado o status quo da questo; e

    4. no emprstimo de anlises estrangeiras, feitas em cima de material de pesquisa diverso da nossa realidade.

    Sem as histrias das moas e rapazes brasileiros, que do sentido a essa atividade, o que se tem na academia um autodesdobramento de posturas analticas pouco evoludas, repetidas e sem efeito poltico. Faltam fontes criativas que possibilitem apontamentos de problemas pertinentes, e essa lacuna implica continuidade do processo bandido. A condio humana pessoal, o meio imediato, a famlia, os amores tangveis e desafetos vividos na circunstncia cotidiana de cada caso, bem como a proximidade de experincias enfeixadas em lgicas contguas, s nossas, suscita revises que se realizam na qualificao do pequeno no amplssimo, do imediato no geral, ou, como apregoou Foucault, do eterno no presente. No mais basta encaixar essas experincias nas linhas mecnicas do push/pull ou repetir as ligaes que se esgotam na formulao de redes sociais. A aludida crtica para transformar, ento, sugere o registro das histrias pessoais, capazes de instruir programas de estudos que impliquem colees de histrias pessoais que levem a diagnsticos do presente.

    A prostituio como atividade, vista no atacado, menos e menor do que a vida dessas mulheres ironicamente reconhecidas como faladas. Faladas, sim. Escritas nunca. Alis, aqui se registra um fenmeno singular: os efeitos da oralidade versus a considerao acadmica redutora do potencial dos experimentos pessoais narrados. Naquela situao das tais mulheres faladas , o registro da reputao que afeta o imediato das pessoas submetidas ao crivo da sociedade atua como argumento socialmente classificatrio, e as putas, replicando seu papel, no valem nada. Nesta circunstncia, sob a mira do exclusivismo terico, quase sempre, se cai no crculo vicioso da repetio, que, isolando a vida puta da crtica historiogrfica, deixa tudo como est. Aponta-se, ento, um caminho de volta, no qual o prostituir, como instituio, cederia espao para a prostituta, pessoa com nome, personalidade e papel social reconhecido. Com histria tambm e, mais do que isso, como pessoas capazes de dar indicaes de situaes dilemticas da nossa cultura.

    O contrrio, contudo, tem prevalecido e, sem o reconhecimento das construes identitrias mnimas, como se uma maldio fatal, uma espcie de execrao pblica, determinasse a existncia dessa prtica despersonalizada, universalmente presente e continuada, com enredo constante e, no mximo, inexplicavelmente, tolervel. Tolerncia termo perverso nesse caso, pois condena um segmento sempre marginalizado perpetuao de uma prtica que no tem merecido percepo como agente ativo. Por claro, no se supe que histrias isoladas, no varejo, deem conta do geral. No. Mas sem elas, no possvel qualificar um dos mais longos processos histricos apregoados como prtica perene.

    verdade que todas as gneses sociais abrigam ladres, assassinos, mendigos e prostitutas,

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    como demonstrou Mollat17, mas, salvo excees honrosas, onde esto os relatos das putas? O que se tem, de regra, so os documentos produzidos sobre elas e seu mundo, assim a tentativa de se proceder de maneira diversa mope ou quase cega. Inovaes, portanto, so requeridas para a verificao de contrrios estabelecidos, e uma delas diz respeito ao tratamento da recolha das histrias, da considerao dada aos relatos18. Ouvindo narrativas de vida puta aprende-se muito de gente que, no anonimato, fermenta aspectos pouco aventados da vida19. Um dos erros a serem corrigidos, por exemplo, a capacidade de tantas e tantos que desenvolvem saberes que explicam a sobrevivncia sem polticas do Estado. Nem s inocentes como Elizngela engrossam a lista das vtimas. Alm dos problemas sociais, outros de ordem moral, por exemplo, fermentam a questo Marlenes e Dorahs que o digam. O que se aprende com isso? Duas lies, pelo menos:

    5. a capacidade de reao das prostitutas na busca de lugares sociais onde a sociedade lhes nega o direito de voz; e

    6. a premncia de atualizao dos critrios de investigao.

    Isso sem falar da necessidade de reviso de preconceitos que tambm afeta a agenda intelectual.

    Aonde se quer chegar, pergunta-se? E as respostas brotam profcuas. A ressignificao da cultura acadmica uma delas, e a humanizao do conhecimento, outra. O respeito aos agentes que motivam o processo, mais uma. O reconhecimento do direito prpria histria na Histria daria oportunidade de se pensar que, mais do que render tributo a mtodos e prticas universitrias, as fronteiras do conhecimento tm que se abrir aventura social crtica. Que o reconhecimento do papel das prostitutas, pois, sirva de amparo a novos gozos intelectuais.

    17 Michel Mollat (1989), ao analisar Os pobres na Idade Mdia, demonstra que sempre existiram prostitutas, ladres e assassinos.

    18 Existem alguns estudos que so bsicos quanto abordagem da voz feminina, da prostituta: Medeiros (2000) e Osborne (1991).

    19 Em trabalho anterior, recortando a inscrio das prostitutas brasileiras em vista do conceito de colonialidade, pela perspectiva da histria oral, analisei a Prostituio brasileira em Portugal: uma odisseia ps-moderna? (MEIHY, 2012).

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  • Vidas putas

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