ufsc · 7 apresentaÇÃo o que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de...

215
Luiz Henrique de Araújo Dutra O CAMPO DA MENTE Introdução Crítica à Filosofia da Mente

Upload: others

Post on 09-Jul-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

Luiz Henrique de Araújo Dutra

O CAMPODA MENTE

Introdução Críticaà Filosofia da Mente

Page 2: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

LUIZ HENRIQUE DE ARAÚJO DUTRA

O Campo da Mente

Introdução Crítica à Filosofia da Mente

Florianópolis, 2017

Page 3: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

2

Page 4: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

3

Da linguagem emerge o campo da mente.

...o campo da mente deve ser coextensivo com o campo do processo social da expe-riência e comportamento e incluir todos

os componentes deste, isto é, a matriz de relações sociais e interações entre os indi-víduos que é pressuposta por ele e da qual

ele surge ou ganha existência.

— George Mead, 1934.1

1 Cf. MEAD, 1972 [1934], p. 133 e 223, n. 25.

Page 5: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

4

© 2017, Luiz Henrique de Araújo Dutra.

Todos os direitos reservados.

Este e-book é de uso exclusivo nas disciplinas de Filosofia da Mente do Curso de Graduação em Filosofia

e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Federal de Santa Catarina,

e do Curso de Doutorado em Filosofia da Universidade de Brasília.

Page 6: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

5

SUMÁRIO Apresentação 7

Parte I – O campo já explorado 11

1. Filosofia da mente, psicologia e ontologia 13

2. Dualismo e mentalismo 31

3. Erros e acertos categoriais 49

4. Intencionalidade 69

5. Materialismo, fisicalismo e funcionalismo 91

Parte II – O campo a ser descoberto 107

6. Superveniência e emergência 109

7. Determinação descendente e controle 129

8. Corporificacionismo, cognição distribuída

e mente estendida

149

9. Consciência e pessoalidade 167

10. O lugar da mente na natureza e na sociedade 187

Referências bibliográficas 203

Page 7: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

6

Page 8: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

7

APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu corpo? E mais, o que pen-saria se lhe dissessem que ela não está em parte alguma, dife-rentemente de seu corpo, que está em uma porção do espaço-tempo? — Pensaria que quem afirma essas coisas está brin-cando.

Não estamos brincando e é isso mesmo que vamos ar-gumentar. A mente é uma estrutura complexa que tem como condições de base aquilo que está em nossas cabeças, em nos-sos corpos e, além disso, no ambiente em que vivemos. Cada um de nós participa de sua mente, mas não a possui no sentido em que talvez possa dizer que possui a própria cabeça e o pró-prio corpo. Cada um de nós participa de sua própria mente de uma forma mais íntima, é claro, do que os outros podem fazer e do que cada um de nós tem de proximidade com os elemen-tos ambientais, especialmente os sociais, que também são condições de base para possuirmos uma mente. Por isso po-demos dizer que a mente de cada um de nós não está em parte alguma, mas, ao mesmo tempo, está distribuída por diversos elementos e se realiza através deles, inclusive nosso corpo e as situações naturais e sociais das quais somos parte.

Se essas ideias ainda parecem estranhas, este livro deve então procurar torná-las compreensíveis, mesmo que, por fim, não sejam aceitas. Assim sendo, vamos procurar explicar o que existe no campo da mente, que é onde, metaforicamente fa-lando, podemos dizer que ela está, ou pelo menos por onde está distribuída, onde podemos encontrar sinais de sua exis-tência. Ela é uma dessas coisas que existem sem estarem em parte alguma, coisas das quais os filósofos falam.

Este livro não é um livro introdutório do tipo mais co-mum. Ele não contém apresentações detalhadas — e, na medi-da do que é apropriado, simplificadas — das teorias e posições dos autores importantes na filosofia da mente, embora faça referência a elas. Além disso, ele apresenta também diversas noções menos comuns às filosofias da mente mais conhecidas

Page 9: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

8

e mesmo mais prestigiadas dos dias de hoje e do passado. E, contudo, este livro pode ser utilizado como uma introdução crítica à filosofia da mente ou, mais especificamente, ao que preferimos chamar de psicologia filosófica. O que entendemos por essa expressão é explicado no capítulo 1, a seguir.

A concepção da mente humana que desejamos apresen-tar depende de diversas concepções conhecidas e das ideias de autores importantes não apenas no domínio específico da filo-sofia da mente, mas também de outras áreas, como a psicolo-gia científica, a antropologia, a sociologia, a neurofisiologia e a biologia evolutiva. Ela se inscreve na tradição emergentista e, dizendo o mais resumidamente possível, encara a mente hu-mana como um sistema complexo, como uma das complexida-des emergentes no mundo, uma das complexidades estudadas pelas ciências da vida, do comportamento humano e da socie-dade.

Uma exposição mais detalhada, extensa e aprofundada dessa teoria foi apresentada em nosso livro Autômatos geni-ais,2 em relação ao qual o presente livro é uma versão mais concisa, mas não um resumo, pois leva em conta relações com a própria história da filosofia da mente e a forma de encami-nhamento das discussões que julgamos pertinentes sobre o mentalismo humano é diferente aqui. Algumas das questões principais da filosofia da mente são tratadas de maneira mais direta. E assim como a leitura de algumas partes daquele livro pode ajudar no aprofundamento de algumas questões tratadas aqui, por sua vez, a leitura deste livro funciona como introdu-ção àquele outro.

De certa forma, os capítulos da Parte I possuem um ca-ráter mais introdutório, de fato, uma vez que recapitulam uma boa porção das doutrinas importantes na filosofia da mente desde os pensadores modernos, a partir de René Descartes. Nesses capítulos encontram-se discussões críticas sobre o dua-lismo e o mentalismo tradicionais e sobre as formas analíticas e cientificistas de crítica a essa maneira de encarar a mente humana que perdurou entre os séculos XVII e XIX. As princi-

2 Cf. DUTRA, 2017 [no prelo].

Page 10: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

9

pais oposições ao mentalismo dualista tradicional se consoli-daram em posições hoje muito conhecidas na filosofia, como os materialismos reducionista e eliminativista, o funcionalis-mo, a abordagem intencional e a abordagem da superveniên-cia, além do eliminativismo analítico de Gilbert Ryle, autor que representa um ponto de inflexão na psicologia filosófica.

Discutimos a noção de superveniência juntamente com aquela de emergência a partir do capítulo 6, que inicia a Parte II do livro e que não traz recapitulações de teorias da mente mais conhecidas, mas se dedica mais diretamente à exposição da concepção que desejamos defender. Há uma relação estrei-ta entre as duas noções — superveniência e emergência —, de maneira que muitas vezes elas são ou confundidas uma com a outra, ou deliberadamente identificadas. Contudo, a posição dos defensores da superveniência ainda é parte das concepções mais comuns que, embora tenham dado contribuições concei-tuais importantes às discussões sobre o mentalismo humano, a nosso ver, deixam de lado um aspecto essencial, que é o cará-ter complexo da mente humana.

Há hoje muitas teorias da complexidade e também não é o caso de fazermos uma revisão delas. O tipo de complexida-de específica a que nos referimos em relação ao mentalismo humano é aquele no qual a mente humana ganha lugar no mundo como parte de uma estruturação que surgiu evolutiva-mente e que envolve, de um lado, nosso aparato neurofisioló-gico e, de outro, as realidades sociais, unicamente dentro das quais encontramos o ser humano comum e sua mente em fun-cionamento. É para uma caracterização do mentalismo huma-no nesses termos que aquelas disciplinas acima mencionadas dão contribuições mais relevantes que a própria filosofia da mente padrão, digamos assim. E é para um entendimento ade-quado dessa complexidade que consideramos a posição emer-gentista adequada.

Nessa parte do livro, além da noção de emergência e da noção correlativa que vamos apresentar, de mútua dependên-cia entre o mental, o neurofisiológico e o social, vamos discutir algumas das teorias que também são alternativas atuais à filo-sofia da mente tradicional e cujas ideias convergem com aque-las que desejamos defender, especificamente, o corporificacio-

Page 11: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

10

nismo, a teoria da mente estendida e a teoria da cognição dis-tribuída. Em parte, nossa concepção do mentalismo humano se baseia também nessas posições, mas pretende ir além delas.

Um dos aspectos nos quais pretendemos isso é aquele tratado no penúltimo capítulo, que recoloca a noção de consci-ência reflexiva nesse quadro da complexidade da mente hu-mana. O outro, de especial interesse e que será objeto do últi-mo capítulo, é o papel da linguagem verbal em virtude da co-nexão que ela permite entre o domínio psicológico — no senti-do das capacidades mentais individuais — e o domínio social — no sentido das realidades compartilhadas entre os seres humanos, especialmente as instituições.

Para aproveitarmos a metáfora de Mead, é nessa com-plexidade, que dá lugar tanto às capacidades mentais indivi-duais quanto àquelas que compartilhamos socialmente, que emerge o que esse autor denominou o campo da mente. A nos-so ver, essa é outra forma de expressão daquilo a que no livro Autômatos geniais nos referimos como os espaços linguístico e cultural. Para a forma de encarar o mentalismo humano que desejamos delinear neste livro, a linguagem é o elemento mais essencial, de fato, e como ela é (neste planeta pelo menos) ex-clusividade dos seres humanos, o tipo de mente que desejamos discutir também é uma exclusividade dos seres humanos. A linguagem e a sociedade na qual vivemos fazem toda a diferen-ça para o tipo de mente que possuímos ou, talvez melhor di-zendo, da qual participamos.

Em resumo, a concepção de mente aqui discutida é também naturalista e evolutiva, e não vê uma descontinuidade entre o mentalismo humano e aquele de outras espécies ani-mais. Mas há diferenças que não podem ser desconsideradas e que tornam nossos estados mentais e as realidades no mundo às quais eles estão conectados coisas decorrentes do fato ex-clusivamente humano de falarmos e de organizarmos a convi-vência entre nós da forma como o fazemos.

§

Page 12: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

11

PARTE I

O CAMPO JÁ EXPLORADO

Page 13: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

12

Page 14: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

13

1

FILOSOFIA DA MENTE, PSICOLOGIA E ONTOLOGIA A filosofia da mente se tornou nas últimas décadas uma das áreas filosóficas mais ativas e produtivas. Há hoje uma varie-dade bastante grande de abordagens, teorias e modelos volta-dos para o entendimento do mentalismo humano. Há também a interação com áreas científicas de ponta, como a ciência cog-nitiva, a neurofisiologia e as ciências da computação, sem falar nas disciplinas mais tradicionais, digamos, que também se ocupam do mentalismo humano, como a biologia evolutiva. O assunto já aparece no próprio livro de Darwin The Descent of Man.3 O filósofo da mente se vê na necessidade de tomar em consideração os resultados mais relevantes dessas áreas cientí-ficas antes de se aventurar em análises conceituais e discus-sões de caráter ontológico. Ele se vê na obrigação de dialogar com os profissionais dessas outras áreas e de ser levado a sério também por eles, e não só por seus pares filósofos. Além disso, esse filósofo da mente de hoje muitas vezes se surpreende mui-to próximo do psicólogo e esse último, por sua vez, assim como o filósofo, sente a necessidade de dialogar com os demais pro-fissionais que procuram entender o funcionamento do menta-lismo humano. Afinal, todos eles estão falando da mesma mente humana. Então é de se esperar que em algum momento eles descubram que o que um diz é relevante para aquilo que o outro pensa. Isso dito assim, abstratamente, está muito bem, mas, de fato, em todas essas áreas mencionadas que se dedicam ao estudo da mente humana há certa dificuldade de ter clareza sobre sua própria identidade intelectual. Cada uma parece sempre tender a avançar sobre o domínio das outras e não apenas depender delas. Em termos bem simples e diretos, po-

3 Cf. DARWIN, 2013 [1871].

Page 15: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

14

demos então perguntar: o que o filósofo da mente pode fazer que o psicólogo não poderia? E o que esses dois, que geralmen-te estão muito próximos em abordagens e no emprego de de-terminados conceitos, podem fazer que os demais pesquisado-res — biólogos, cientistas cognitivos, profissionais da informá-tica e neurofisiologistas, para ficarmos apenas com os já men-cionados — não poderiam fazer? Alguns autores — em geral, filósofos, obviamente, mas não apenas eles — às vezes falam de uma psicologia filosófica. Essa disciplina é a própria filosofia da mente? Ou ela é uma versão não empírica, mas mais con-ceitual, da própria psicologia?

A psicologia filosófica pode ser entendida como uma espécie de psicologia mais abstrata, aquela que se dedicaria ao estudo dos conceitos mais fundamentais empregados nos pro-gramas empíricos de pesquisa em psicologia.4 E a filosofia da mente, da parte do entendimento mais comum dos filósofos, não seria apenas isso, mas também o exame direto de questões que têm mais relevância para a própria tradição filosófica des-de os pensadores gregos clássicos, como Platão e Aristóteles. E mesmo os pensadores da época moderna, que hoje são reco-nhecidos como pioneiros ou precursores da filosofia da mente contemporânea em alguma medida, como Descartes, Spinoza e Leibniz, abordam algumas questões que o filósofo de hoje res-ponde de forma diferente, mas que ainda considera relevantes, como a natureza do mental e a distinção entre corpo e mente. E essas são questões sobre o mentalismo humano que talvez interesse menos (ou mesmo muito menos) aos outros profissi-onais antes mencionados, inclusive o psicólogo. Uma solução de conciliação para dar alguma significa-ção especial e aceitável à expressão “psicologia filosófica” pode ser aquela de entender a disciplina correspondente como um projeto de colaboração entre o filósofo e o psicólogo, resultan-do numa combinação equilibrada entre o estudo dos funda-mentos da psicologia empírica e a discussão de questões onto-lógicas que estão envolvidas no entendimento de quaisquer

4 Cf., por exemplo, MARTIN; SUGARMAN; SLANEY, 2015, e DU-TRA, 2017, ambas as introduções desses volumes.

Page 16: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

15

pesquisas sobre a mente humana e, em última análise, sobre qualquer tipo de mente, presumindo que há mentes diferentes da nossa, como as que seriam relativas às mais diversas espé-cies animais com um sistema nervoso suficientemente sofisti-cado. Esse seria o caso não apenas dos grandes primatas, mas provavelmente dos mamíferos em geral. Essa solução não é meramente terminológica porque parece contemplar o que muitos profissionais de renome no domínio da filosofia da mente fazem hoje. Essa psicologia filosófica, assim entendida, todavia, continua se vendo na necessidade de dialogar com as demais áreas que se dedicam ao estudo do mentalismo huma-no. E deverá dizer algo distinto do que se diz nessas áreas para conviver com elas. Vamos ver um exemplo que ilustra bem isso. Se ne-garmos o dualismo tradicional, que é identificado como uma posição que remonta pelo menos a Descartes, e afirmarmos que não existe qualquer substância mental, ou qualquer prin-cípio mental que não seja de mesma natureza que o resto do mundo estudado pelas mais diversas ciências naturais, como poderíamos sustentar que, mesmo assim, falar de um estado mental não é a mesma coisa que falar de um estado neurofisio-lógico de nosso cérebro? Como veremos num dos próximos capítulos, há aqueles filósofos que afirmam exatamente que não há, por isso, qualquer diferença a não ser do vocabulário utilizado que possa distinguir um estado mental de um estado neurofisiológico. E esse filósofo se vê em consonância com muitos profissionais das outras áreas mencionadas. Sua posi-ção, contudo, não só não é pacífica, como nem mesmo é majo-ritária na tradição filosófica. Mesmo sustentando o que costu-mamos chamar de monismo de substância, alguns defendem que ainda podemos sustentar um dualismo de propriedades entre o físico e o mental, ou pelo menos um dualismo concei-tual.

Nesse último caso, alguns sustentam, por exemplo, que o vocabulário mentalista que utilizamos para descrever os es-tados mentais humanos não é redutível ao vocabulário fisica-lista que é utilizado na descrição de estados ou processos neu-rofisiológicos e físicos em geral. E isso não deixa de implicar que a mesma realidade no mundo possa ser vista de duas ma-

Page 17: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

16

neiras completamente distintas e mesmo irreconciliáveis. Co-mo isso seria cientificamente sustentável, justificável? A filoso-fia da mente ou a psicologia filosófica devem então mostrar ou que sim, ou que não. De seu ponto de vista, a questão não pode ficar sem resposta.

Com isso já avançamos para um dos temas polêmicos com os quais vamos lidar nos próximos capítulos. Voltemos então um instante aos temas mais gerais, de caráter talvez mais metodológico que envolvem as pesquisas e elaborações conceituais que são necessárias para entendermos o menta-lismo humano.

O conceito de mente já é para o filósofo um tema a ser debatido. O autor cuja obra em meados do século XX fez reno-var o interesse dos filósofos pelo mentalismo humano, Gilbert Ryle, deu a seu livro que surtiu esse efeito exatamente o título de The Concept of Mind.5 Essa obra, além de dirigir uma críti-ca contundente e bem fundamentada ao dualismo cartesiano, discute um dos problemas que já preocupavam os próprios psicólogos, a saber, estudar a mente humana é estudar exata-mente o quê? Hoje, em virtude da divulgação dos estudos de caráter neurofisiológico, computacional e cognitivo, costuma-mos ter uma ideia inicial segundo a qual a mente humana é uma espécie de computador natural, um sistema sofisticado de processamento de informação e controle tanto das funções orgânicas quanto do comportamento. O próprio jargão das ciências da computação é muitas vezes empregado metafori-camente na descrição dos processos mentais. Não estamos sugerindo com esse comentário que o cérebro humano não possa ser encarado por meio desse tipo de comparação, mas a questão é: o que explica o cérebro automaticamente explica a mente?

Antes da influência da neurofisiologia e das ciências da computação sobre os filósofos da mente, o que eles pretendiam era entender a mente humana ou como aquilo que controla a ação, ou como a própria ação. Nesse último caso, tanto na psi-cologia quanto na filosofia da mente daquele tipo proposto por

5 Cf. RYLE, 2002 [1949].

Page 18: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

17

Ryle, a ação era encarada como o comportamento manifesto dos indivíduos humanos. Para essa abordagem, entender a mente humana é entender o que os seres humanos fazem e como fazem, não necessariamente por que o fazem, se essa busca pelos porquês for entendida como a referência a fatores não aparentes no próprio contexto em que o comportamento humano ocorre. Em suma, nesse caso, entender a mente é en-tender o comportamento humano de uma forma observacio-nal. Qualquer referência a fatores não observáveis, sob cujo controle estaria o comportamento humano, é encarada nesse caso como até mesmo um erro categorial, que é a postura ex-plicitamente adotada por Ryle. E muitos dos psicólogos analis-tas do comportamento na tradição behaviorista, tal como B. F. Skinner, sustentam o mesmo, em última instância.6

Entendida dessa maneira, a filosofia da mente — ou es-sa psicologia filosófica — está muito próxima da filosofia da ação. Nessa área, uma discussão comum é aquela a respeito dos critérios para identificarmos uma ação racional. Um mo-delo bastante divulgado do que é a ação racional de um indiví-duo humano é aquele que identifica agir racionalmente com agir em função de razões ou, mais especificamente, crenças, opiniões, conceitos, valores, objetivos preestabelecidos criteri-osamente, adaptação deliberada dos meios aos fins, e assim por diante. Em contraste com a ação racional, assim entendi-da, estariam aquelas coisas que as pessoas fazem em virtude de causas ou naturais, ou sociais, ou mesmo psíquicas. Esse seria o caso do indivíduo que não adapta os meios aos fins que supostamente pretende alcançar, ou é levado por impulsos de natureza psíquica, ou fisiológica, ou simplesmente para satis-fazer necessidades básicas das quais ele se vê obrigado a se ocupar em virtude de sua condição social. Outra possibilidade ainda é que o indivíduo aja por estar na dependência de algu-ma ideologia, ou política, ou religiosa etc. Então, se afastarmos todas essas formas de determinação e pudermos identificar uma ocasião em que o indivíduo humano age apenas motivado por razões, aí temos o exemplo claro de ação em oposição aos

6 Cf., por exemplo, SKINNER, 1965 [1953] e 1976.

Page 19: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

18

seus comportamentos determinados pelos fatores ou ambien-tais, externos, ou internos, neurofisiológicos e psíquicos. Em suma, a mente humana nesse caso é vista como algo muito próximo da noção tradicional de razão humana.

A diferença fundamental entre uma tal concepção e aquela defendida, por exemplo, por Descartes, é que a razão (ou a mente) não é identificada com uma substância não mate-rial.7 Mas há aqui, de qualquer modo, um dualismo, que pode ser entendido como um dualismo apenas de linguagem, con-ceitual, nesse sentido exato. A forma de linguagem que descre-ve a ação ou o comportamento racional é uma forma que em-prega conceitos que não são traduzíveis em conceitos que permitam descrever aqueles fatores sociais ou psíquicos que determinam as formas não racionais do comportamento. Mas a explicação para esse dualismo ainda pode ser, do ponto de vista ontológico, um pouco mais comprometedora, digamos. Pois ela pode ser aquela segundo a qual os seres humanos ad-quirem propriedades mentais, além de suas propriedades neu-rofisiológicas, por exemplo. Desse modo, ser racional não é uma capacidade neurofisiológica dos indivíduos humanos, mas mental, embora tenha de pressupor a existência de pro-priedades neurofisiológicas em nossos cérebros.

Esse tipo de dualismo, ao contrário daquele de caráter meramente linguístico, não tem como não envolver então uma explicação sobre como se relacionam as instâncias mental e neurofisiológica. Se as propriedades mentais — e, portanto, nossos estados mentais que delas decorrem — não são de cará-ter apenas nominal, mas substancial ou real, é preciso que te-nham algum tipo de relação com aquelas propriedades e esta-dos neurofisiológicos do cérebro. Essa é uma problemática que tem sido enfrentada pelos defensores da superveniência do mental sobre o físico (ou neurofisiológico) e pelos defensores

7 Essa concepção é defendida por Descartes particularmente em três de suas obras, a saber: o Discurso do método, as Meditações e as Paixões da alma; cf. DESCARTES, 1953, para todas elas, que tam-bém se encontram em diversas edições e traduções em diversas lín-guas.

Page 20: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

19

da emergência do mental. Os dois grupos às vezes se confun-dem, mas às vezes se distinguem claramente. A polêmica entre eles, nesse caso, é se os estados ou processos mentais possuem algum poder de determinação sobre os estados ou processos no âmbito neurofisiológico. Em termos mais simples, a ques-tão é se o mental é de natureza ou caráter meramente epife-nomenal ou se, ao contrário, o mental traz consequências para a realidade ou a ordem do mundo.

Esse tipo de questão costuma ser levantado especifica-mente a respeito de nossos estados de consciência ou, mais especificamente, de consciência reflexiva, que seriam aqueles estados nossos nos quais não apenas nos damos conta de al-guma coisa, mas também nos damos conta de nos darmos con-ta daquilo. Se essa distinção entre uma forma básica de consci-ência e uma forma superior for feita, então é possível argu-mentar que a primeira é essencial para o comportamento hu-mano e animal, mas a segunda não. Isto é, de um ponto de vista naturalista, só fazemos certas coisas porque entre o estí-mulo ambiental e nossa resposta há um estado (ou processo) interno de consciência. Sem ele, a resposta apropriada ao es-tímulo não seria possível. Nesse caso, estamos falando não de atos reflexos, mas de ações ou comportamentos que requerem certa discriminação. Um organismo (animal ou humano) pode retirar seu membro das proximidades de certos estímulos aversivos ou se aproximar de certos estímulos premiadores, por exemplo, mediante a ocorrência de um estado de consci-ência básica, como a dor ou o prazer. No caso humano, isso é na maior parte das vezes acompanhado de um estado de cons-ciência superior ou reflexiva. Ou seja, o indivíduo humano se dá conta de sentir dor ou prazer. Mas esse estado de consciên-cia superior não parece necessário para que haja a resposta apropriada da parte do organismo. Essa consciência reflexiva é que seria então meramente epifenomenal.

Quando questões desse tipo são tratadas pela filosofia da mente, ela se especializa numa espécie de filosofia da cons-ciência. Essa tem sido uma das subáreas mais produtivas e prestigiadas da filosofia da mente nas últimas décadas. Mas tem sido também aquela que mais tem se mostrado dependen-te das pesquisas na neurofisiologia. Quando essas pesquisas

Page 21: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

20

não são (muito) levadas em conta, surgem teorias relativamen-te bizarras sobre o mentalismo humano, como aquela que con-sidera a possibilidade dos chamados zumbis (zombies, em in-glês).8 Esses seriam seres (certamente não humanos, devemos dizer, se puderem existir, apesar das aparências) que poderiam fazer tudo exatamente como fazemos, mas que não teriam qualquer consciência reflexiva, que nunca se dariam conta de fazerem o que fazem. E, contudo, eles fariam tudo o que é pre-ciso fazer para que o mundo natural e social humano funcio-nasse adequadamente. É claro que não pode haver uma hipó-tese mais absurda sobre o mentalismo humano e mesmo sobre o mentalismo animal. Do ponto de vista evolutivo, trata-se de uma hipótese contrária a todos os princípios da biologia. Algo tão extraordinário como a consciência reflexiva não deve haver no mundo para não ter nenhuma serventia. Não é preciso ser um especialista em filosofia da mente para se dar conta disso. Há, todavia, filósofos muito prestigiados que tomam a sério uma hipótese como essa.

A consciência reflexiva deve ser estudada pela filosofia da mente tendo em conta sua funcionalidade central nos negó-cios humanos. Sem ela, toda a ordem social seria impossível. E a sociedade tem um papel decisivo não apenas no desenvolvi-mento da mente humana, mas, devemos dizer, em seu próprio surgimento tanto no plano ontogenético quanto no plano filo-genético. A consciência reflexiva não é um bônus inútil que a evolução nos legou. Ela pode não ser responsável por uma par-te de nosso comportamento, mas certamente é responsável por outra. As relações entre a mente e, mais especificamente, a consciência superior e a ordem social devem também ser obje-to de estudo do filósofo da mente. Mas essa é uma temática para a qual só agora, bem recentemente, o profissional dessa área tem despertado.

8 O assunto é discutido seriamente por diversos filósofos da consci-ência da atualidade. Pode-se consultar, por exemplo, CHALMERS, 1996 e 2010, que é um dos filósofos representativos dessa especiali-dade.

Page 22: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

21

A situação não é diferente na psicologia, pelo menos na análise experimental do comportamento, para a qual, tradicio-nalmente, os processos conscientes não eram encarados como variáveis relevantes na explicação do comportamento. Por exemplo, para o behaviorismo radical de Skinner, apenas vari-áveis ambientais de caráter natural contam para o comporta-mento animal e humano. Por meio de sua noção de compor-tamento encoberto, Skinner reconhece que os seres humanos (mas talvez não os outros animais) são capazes de internalizar certos comportamentos ou, ao contrário, de antecipar episó-dios de ação. Mas esses episódios de comportamento encober-to continuam sob o controle das mesmas variáveis ambientais. E essas estão relacionadas com necessidades básicas relativas à sobrevivência, como comida, abrigo e sexo. As possíveis vari-áveis de caráter social aparecem apenas como substitutos de variáveis naturais. No mundo humano, o dinheiro e o prestígio social, por exemplo, são fatores determinantes do comporta-mento, mas apenas porque eles podem ser trocados por itens básicos, como os acima citados.

Contudo, é claro que para muitas outras escolas de psi-cologia não é assim. Nossa natureza animal nos leva a valorizar tudo aquilo que é necessário para a sobrevivência e a reprodu-ção, mas a emergência da consciência superior e das realidades sociais que ela possibilita muda o cenário humano radicalmen-te. Passamos a ter novas necessidades e a viver em função de-las, necessidades que os seres sem consciência reflexiva real-mente não podem ter. É muito difícil reduzir noções como aquelas de amor próprio, orgulho, vergonha e mesmo do eu a noções meramente naturalistas ou fisicalistas. E devemos re-conhecer que essas são variáveis determinantes do comporta-mento humano tanto quanto aquelas de caráter natural ou mais básico.

Assim, a ontologia adequada para uma boa psicologia filosófica dos seres humanos deve incluir realidades sociais. Uma explicação do que somos e do que fazemos deve levar em conta variáveis ambientais, mas também variáveis sociais e psíquicas irredutíveis. Orgulho e vergonha, por exemplo, são noções cuja origem é claramente social. Mas amor próprio não, embora só possa surgir em determinadas condições soci-

Page 23: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

22

ais. O amor próprio está ligado à personalidade de um indiví-duo, e a personalidade de uma pessoa é também determinante de muito do que ela faz, para além de todas as determinações naturais e sociais que há sobre ela. Essa personalidade não saiu do nada e foi formada em condições sociais e neurofisio-lógicas específicas, mas ela é uma realidade mental ou psíquica cuja presença no mundo faz diferença não apenas para o pró-prio indivíduo, para o modo como ele encara as coisas, mas para os outros, já que sua ação traz consequências sociais.

Esses são aspectos do mentalismo humano levados em conta na psicologia, mas raramente na filosofia da mente. Mas eles são inevitáveis numa boa psicologia filosófica, naquela disciplina que pode tornar a filosofia da mente um domínio respeitável do ponto de vista dos outros profissionais que se dedicam ao estudo do mentalismo humano. Isso não quer di-zer que o filósofo da mente não traga para as discussões sobre o mentalismo humano noções importantes e, por que não di-zermos, essenciais mesmo para seu entendimento. De escopo mais amplo do que o conceito de racionalidade, que já menci-onamos, é aquele de intencionalidade.

Entre os filósofos que, no século XX, mais insistiram na noção de intencionalidade ou, para utilizarmos a forma de ex-pressão de um deles, os que mais insistiram na abordagem intencional aos fenômenos mentais estão Davidson, Searle e Dennett.9 Segundo esse último, a abordagem ou postura inten-cional é aquela que adotamos quando explicamos a ação com base em crenças, desejos, propósitos etc. do agente. A aborda-gem intencional, segundo Dennett, pode ser aplicada até mesmo no entendimento de estruturas não vivas às quais, es-tritamente falando, não atribuímos uma mente, como os com-putadores de grande porte, capazes de, por exemplo, jogar xadrez com um grande mestre (humano) e ganhar dele. Mas é claro que, nesse caso, essa atribuição de intencionalidade não

9 Cf. respectivamente DAVIDSON, 1980, SEARLE, 1983; 1992 e 1999, e DENNETT, 1981; 1987 e 1996. De Brentano, citado a seguir, cf. BRENTANO, 2009 [1874].

Page 24: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

23

deixa de ser um tanto artificial, digamos, uma espécie de faz-de-conta explicativo.

Para Searle, ao contrário, a intencionalidade é uma propriedade da mente humana, propriedade essa que se em-presta à linguagem e, por meio dessa, da qual dependem as realidades sociais, se empresta também a essas últimas. Essa intencionalidade derivada da ação humana tem sua origem na intencionalidade primitiva da mente, que é uma questão bioló-gica, diz o autor. Para Davidson, por sua vez, a intencionalida-de é a noção a ser empregada no entendimento da ação huma-na, mas por meio da distinção entre duas formas de lingua-gem. Os estados mentais são descritos por meio de expressões intencionais primitivas e não redutíveis a expressões não in-tencionais, que são aquelas que utilizamos para descrever os eventos físicos.

Esses autores e outros adotam a noção de intencionali-dade sustentada por Franz Brentano, mas interpretando-a, como vimos, de diferentes maneiras. Para Brentano, a intenci-onalidade ou relacionalidade é a marca do mental, é o fato de que um evento mental sempre faz referência a um objeto. As expressões de atitude proposicional, como “gostar de”, “saber que”, “ter a intenção de” etc., mostram claramente esse caráter essencialmente relacional dos fenômenos mentais. Essas ex-pressões são algumas que pertencem àquele vocabulário es-sencialmente intencional de que Davidson fala.

Para Brentano a intencionalidade é a característica ex-clusiva do mental; mas a nosso ver, não é assim. As realidades culturais são também caracteristicamente intencionais. Mas, mesmo assim, segundo Searle, trata-se de uma intencionalida-de derivada, emprestada da intencionalidade primitiva do mental. Com isso também não estamos de acordo. Veremos nos próximos capítulos que, do ponto de vista emergentista, as realidades sociais são também primitivamente intencionais. Contudo, mesmo não sendo encarada como a marca exclusiva do mental, a intencionalidade é uma característica essencial do mentalismo humano (e animal). De qualquer forma, trata-se de um assunto que a filosofia da mente não pode deixar de discutir.

Page 25: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

24

Se o que desejamos é uma visão ampla e informativa da mente humana, na medida do possível, atualizada em relação às realizações científicas recentes e bem refletida quanto a seus conceitos e suas relações, então a filosofia da mente deve nos apresentar uma imagem do mentalismo humano que exiba pelo menos as características acima mencionadas, como: cons-ciência reflexiva, intencionalidade e racionalidade, além da relação dos eventos mentais com suas condições de base neu-rofisiológicas e ambientais, naturais e sociais. E nesse quadro não poderia faltar a linguagem ou, para sermos mais específi-cos, a linguagem verbal ou simbólica, tal como temos nas lín-guas naturais.

Tem sido um tema de grande controvérsia entre os filó-sofos a relação entre linguagem e pensamento. Definir a pri-meira é bem mais fácil do que o segundo. Num certo sentido do verbo “pensar”, podemos dizer que muitas outras espécies animais também pensam. Um cão ou um gato que hesitam entre um pote de comida e um de água, olhando ora para um, ora para outro, até que se dirige para um deles, podem ter seu comportamento interpretado como aquele de raciocinar e de-cidir, de pensar, portanto. Mas esses animais não falam, não possuem uma forma de linguagem simbólica como a nossa. Mesmo que eles pensem, diremos que eles não pensam propo-sicionalmente, isto é, eles não pensam por meio de palavras e orações. Se o pensamento é isso, então apenas os seres huma-nos pensam.

Todavia, para a filosofia da mente, a questão crucial não é essa, mas aquela que diz respeito à relação entre a lin-guagem verbal e a consciência reflexiva. As pesquisas em neu-rofisiologia e comportamento animal sugerem hoje que apenas os seres humanos possuem uma forma plenamente desenvol-vida de consciência superior ou reflexiva. Os grandes primatas, como chimpanzés e gorilas, por exemplo, parecem possuir apenas uma espécie rudimentar de consciência desse tipo. E a hipótese de diversos autores, inclusive neurofisiologistas, co-

Page 26: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

25

mo Gerald Edelman,10 é que a emergência da consciência su-perior depende da posse da linguagem verbal. Mas, de fato, também se pode argumentar que, inversamente, a linguagem verbal depende da consciência reflexiva. Então, o mais prová-vel, se essas hipóteses são plausíveis, é que ambas linguagem e consciência superior tenham surgido em nossa espécie conjun-tamente e que elas sejam mutuamente dependentes uma da outra. Essa é a ideia de Terrence Deacon, por exemplo, que sustenta a tese da coevolução em sentido darwinista entre lin-guagem e mente e, de modo mais radical ainda, entre lingua-gem e cérebro.

De qualquer forma, uma teoria da mente humana deve tratar também da linguagem. A nosso ver, nem todo processo racional necessita da linguagem verbal, como certos processos de cognição distribuída que ultrapassam os limites do indiví-duo humano tomado isoladamente, permitindo falarmos então de uma mente estendida, uma mente que envolve além do su-jeito humano determinados dispositivos ambientais. Mas, mesmo assim, aqueles processos cognitivos racionais e inter-nos do sujeito humano requerem uma forma de linguagem simbólica. E, mais ainda, grande parte dos sistemas de cogni-ção distribuída que possuem interações entre indivíduos hu-manos como partes suas requerem também o uso da lingua-gem verbal.

Uma visão da mente humana dessa maneira, ao contrá-rio do isolamento em que era retratada pelo dualismo cartesi-ano e por outras formas do mentalismo tradicional, no qual podemos incluir também certas teorias cognitivas atuais, colo-ca a mente no seio da natureza e da sociedade humana. Trata-se de uma mente inseparável de seu corpo, como defendem os autores ligados à postura corporificacionista. A nosso ver, tra-ta-se também de uma mente inseparável de sua sociedade. Assim, a psicologia filosófica adequada nos parece ser uma psicologia social, e não apenas uma psicologia naturalizada. A mente humana é parte da natureza e é parte também da socie-

10 Cf. EDELMAN, 1990 e 2004, e sobre Terrence Deacon, autor a quem nos referiremos em seguida, cf. DEACON, 1997 e 2012.

Page 27: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

26

dade humana que, por sua vez, também é parte da natureza justamente por via do mentalismo humano.

As considerações que estivemos fazendo neste capítulo antecipam muitas das discussões que virão nos próximos, de forma mais pormenorizada e aprofundada. Nossa intenção é mais de despertar a curiosidade intelectual do leitor para os próximos capítulos. Ainda de caráter mais geral, há dois as-suntos que gostaríamos de comentar aqui. O primeiro é aquele da relação entre a mente e os critérios de pessoalidade (vamos traduzir assim o termo inglês “personhood”), que é algo com-pletamente diferente de personalidade. Essa última noção é eminentemente psicológica, enquanto que a noção de pessoa-lidade é ontológica. Ou seja, trata-se da questão sobre os crité-rios que utilizamos para decidir quando estamos diante de uma pessoa humana.

É claro que, em primeiro lugar, aqueles indivíduos que vamos considerar pessoas são os que pertencem à mesma es-pécie biológica que nós mesmos. Mas isso não é suficiente para resolver todos os casos. Para o dualismo cartesiano, a pessoa, propriamente falando, era sua mente, ainda que o ser humano em geral fosse visto por Descartes como a união substancial entre o corpo e a alma. Mas era o espírito, alma, mente ou ra-zão o que identificava cada indivíduo humano. Essa ideia ain-da está presente nos critérios atuais de pessoalidade. Se um de nós perder completamente a memória, não reconhecendo mais seus familiares e amigos, não se lembrando de suas habilida-des, do conhecimento que adquiriu, esse indivíduo vai estar completamente inabilitado para o convívio social nas mesmas circunstâncias de antes. Em casos assim, que parcialmente ocorrem em decorrência de algumas doenças neurológicas, intuitivamente, costumamos dizer que ali não está mais a mesma pessoa. E mesmo em casos mais simples, que não en-volvem qualquer patologia, como naquele de uma pessoa que conhecemos mas que, depois de algum tempo, exibe formas de comportamento completamente diferentes daquelas com as quais a identificávamos, vamos também dizer que ela parece ser outra pessoa.

Há desse modo uma tendência para identificarmos aquilo que um indivíduo pensa e como ele age, que são atribu-

Page 28: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

27

tos mentais seus, com sua pessoa. E, portanto, a pessoa parece ser uma parte de sua mente. De fato, o conceito de mente é mais amplo, sobretudo se tomarmos o termo também no sen-tido em que os corporificacionistas e defensores da noção de mente estendida o fazem. Assim como não podemos identificar a mente apenas com as ideias ou representações internas do indivíduo, com suas memórias, portanto, no sentido geral, não podemos identificar a mente com sua personalidade, ou seu caráter, ou com suas formas de agir, com seus comportamen-tos etc. Nem, por outro lado, podemos identificar a mente com o cérebro, ou o sistema nervoso central, ou o sistema nervoso como um todo. E o mesmo vale para a noção de pessoa.

Assim, de fato, tanto a noção de pessoa quanto a noção de mente são mais abstratas, embora as duas estejam intima-mente relacionadas e, por sua vez, cada uma esteja também intimamente relacionada com aqueles demais aspectos que enumeramos acima. E, a rigor, devemos reconhecer que a no-ção de pessoa é mais abstrata do que aquela de mente, como veremos no penúltimo capítulo. Mas, por ora, para terminar este capítulo, vamos discutir esse ponto, isto é, o fato de que, aparentemente, ao lidarmos com as noções de pessoa e de mente, estamos lidando com realidades abstratas.

À primeira vista, talvez nada nos pareça a cada um de nós mais concreto do que nossa mente, isto é, concreto no sen-tido de ser uma realidade acessível e inegável. Ainda que acei-temos a noção freudiana de inconsciente, ou de subconsciente, que são noções que passaram para o vocabulário comum da psicologia, embora menos da filosofia da mente, pelo menos uma parte de nossa vida mental é acessível a cada um de nós e, logo, algo indubitável. Nem por isso é concreto no sentido ontológico mais geral desse termo. Personalidade também é uma noção abstrata, mas parece que, ao contrário, mente não seria. A pessoa, da qual faz parte a personalidade do indivíduo, parece poder ser tomada como algo abstrato, mas não a mente.

Abstrato em oposição a concreto, segundo a maneira em que esses termos são empregados em geral na ontologia, é aquilo que não pode ser localizado no espaço e no tempo, aqui-lo, portanto, que não é tangível, que não possui propriedades físicas. Os corpos materiais são o exemplo típico de coisas con-

Page 29: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

28

cretas, enquanto que as entidades matemáticas, como núme-ros e figuras geométricas, são os exemplos típicos de coisas abstratas. Uma coleção é algo abstrato. Há também termos coletivos, gramaticalmente falando, e são coletivos os termos para espécies naturais e para tipos de coisas fabricadas; esses são termos genéricos. Eles denotam entidades abstratas. Po-demos em alguns casos indicar os indivíduos concretos que fazem parte de uma coleção, como aquela dos filósofos da mente vivos hoje, mas a coleção é algo abstrato.

O problema da maneira na qual as coisas abstratas existem não é um problema fácil para a filosofia desde Platão. Os filósofos profissionais ainda se ocupam dele na ontologia ou, para utilizarmos o termo mais tradicional, na metafísica. Quando indicamos aquelas realidades que são de natureza mental, como nossas representações internas, nossas ações, emoções etc., estamos enumerando aquelas coisas ou estados nossos que agrupamos na coleção denominada mente. Assim, se rejeitarmos a noção metafísica tradicional segundo a qual a própria mente é uma substância diferente das coisas físicas, então não há como não reconhecermos que a mente é algo abstrato. A nosso ver, a mente encarada de forma não substan-cial é mais semelhante a um sistema, em vez de ser propria-mente uma coleção. Pois as coleções não possuem um arranjo ou estrutura interna; a mente sim. Desse modo, como vamos ainda discutir no último capítulo, assim como nosso próprio organismo é um tipo de sistema orgânico, formado de outros sistemas, nossa mente também é uma realidade sistemática nesse sentido.

Por isso podemos dizer, como fizemos acima, na Apre-sentação deste livro, que a mente é uma dessas coisas que não estão em parte alguma. Mas, mesmo assim, não é uma ficção; ela é real. E sabemos que ela é real porque sua presença no mundo faz alguma diferença na ordem das coisas. A mente humana tem poder de determinação sobre uma parte da reali-dade. Assim, ela é uma dentre outras realidades, embora, dife-rentemente de muitas delas — as que consideramos concretas —, a mente seja uma realidade abstrata. Nisso ela é semelhante a determinadas realidades sociais, como as instituições, que também são coisas reais, mas que, igualmente, estritamente

Page 30: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

29

falando, não estão em parte alguma. E, mesmo assim, as insti-tuições também são conhecidas por seus efeitos sobre outras partes da realidade.

* Questões para revisão

1. De que maneira podemos caracterizar a filosofia da mente como psicologia filosófica, destacando suas rela-ções com a neurofisiologia e a psicologia científica?

2. Por que um monismo materialista de substância é compatível com um dualismo de propriedades (ou con-ceitos)?

3. Por que, do ponto de vista evolutivo, a consciência re-flexiva parece ser algo necessário para a ação e não um mero epifenômeno?

4. Por que, dentre outras propriedades da mente, a inten-cionalidade parece ser uma das principais?

5. Qual é a relação entre a noção de mente humana e a noção de pessoa?

Leitura adicional recomendada No sentido de compreender a mente humana no quadro geral dos acontecimentos naturais, é interessante a leitura do texto de John Searle “Como nos encaixamos no universo: A mente como fenômeno biológico”, capítulo 2 de seu livro Mente, lin-guagem e sociedade (SEARLE, 2000). Atividade complementar Depois da leitura do texto de Searle, discuta a afirmação desse autor de que as questões sobre o mentalismo humano são, em última instância, questões de caráter biológico.

§

Page 31: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

30

Page 32: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

31

2

DUALISMO E MENTALISMO Os acontecimentos que presenciamos no mundo são relações entre objetos e esses, por sua vez, possuem propriedades que lhes permitem entrar nas relações que presenciamos entre eles. Assim, de um modo intuitivo, podemos dizer que um evento é feito de coisas em relação. Mas quando voltamos nos-sa atenção para uma dessas coisas e observamos algumas de suas propriedades, nos perguntamos também de que são feitas essas coisas. A resposta que a ciência da natureza nos dá tradi-cionalmente é que os corpos, por exemplo, que são aquelas coisas que primeiro chamam nossa atenção ao olharmos para a paisagem do mundo, são feitos de matéria. Mas a física con-temporânea, a microfísica, nos diz que os corpos macroscópi-cos que interagem com nossos sentidos são feitos de partículas microscópicas, e que essas últimas possuem propriedades muito diferentes daquelas que nos parecem ser as dos corpos. De que são feitas essas partículas? Essa é uma questão cujas respostas hoje no domínio da física são bastante controverti-das. Mas, voltando a falar dos corpos e entendendo por maté-ria a aparência que as partículas criam em nossos sentidos quando se organizam de forma a constituir esses corpos, de qualquer forma, temos uma resposta para a pergunta: de que são feitos os corpos? Para a pergunta “de que são feitas as mentes?” não te-mos uma resposta disponível equivalente, nem respostas mais plausíveis dentre uma multiplicidade delas hoje encontradas nas ciências que se ocupam do mentalismo humano, nem na filosofia da mente. A dificuldade é tal que não são incomuns abordagens que presumem que as mentes não são coisas no mesmo sentido em que os corpos são coisas; isto é, no caso das mentes, parece mais difícil encontrar uma coleção estável de características ou propriedades que permitiriam identificar qualquer uma delas. A principal dificuldade do ponto de vista

Page 33: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

32

ontológico é que as mentes não são diretamente observáveis, ao contrário dos corpos. Mesmo que digamos que as mentes são subestruturas neurofisiológicas dentro de nossas cabeças, elas não são observáveis, não da mesma forma que um corpo fora de nós é observável. Podemos observar os neurônios, por exemplo, e as redes neuronais que eles formam, e podemos ver que há atividade nessas redes ao mesmo tempo que há da par-te de um sujeito alguma atividade de consciência, por exemplo. Mas não há uma correlação direta entre determinado estado de consciência específico e a atividade neuronal em uma parte do cérebro. As observações provocadas por testes com o cére-bro humano não nos dão evidências claras desse tipo de corre-lação.11 Elas são suficientes apenas para reafirmarmos a con-vicção da ciência contemporânea de que nossas mentes estão intimamente ligadas à atividade cerebral, mas nada mais que isso. Assim, mesmo que digamos que nossas mentes são feitas de redes neuronais, a resposta não é tão clara e convincente quanto dizermos que os corpos fora de nós são feitos de maté-ria, ou então de partículas. Pode ser que a neurofisiologia do futuro nos dê essas respostas convincentes, mas por ora temos de procurar outras maneiras de discutir a natureza da mente. Mesmo para o dualismo tradicional — vamos presumir que ele remonte a Descartes naquelas suas obras já citadas no capítulo anterior — essa correlação entre mente e cérebro era pacífica.12 Nem por isso esse autor, assim como outros de sua época e muitos depois dele, acharam que seria possível identi-ficar a mente com o cérebro ou, de forma mais ampla, com o sistema nervoso central. A principal razão é a grande dispari-dade entre as propriedades da mente e as propriedades dos

11 É possível localizarmos mais ou menos em certas partes do sistema nervoso central algumas funções mentais, mas não de maneira tão exata como gostaríamos. Em geral, foram lesões cerebrais acidentais que levaram a tais constatações e deram ocasião a pesquisas sistemá-ticas. Sobre isso, cf. o interessante livro de Antônio Damásio (1994; 2012). 12 Cf. as obras já citadas desse autor in DESCARTES, 1953, ou em outras edições e traduções, especialmente As paixões da alma.

Page 34: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

33

corpos. Para Descartes, que possuía uma teoria física do mun-do bem elaborada, os corpos se caracterizam sobretudo pela extensão, isto é, por ocuparem uma porção do espaço e, com isso, por estarem sujeitos a processos mecânicos, como resis-tência, choques, movimento etc., enfim, todos aqueles fenô-menos estudados na ciência da mecânica. E eles possuem tam-bém determinadas características secundárias, como aquelas que apreendemos por meio de nossos sentidos, como cor, sa-bor, cheiro etc. Para Descartes, a essência dos corpos é a ex-tensão, enquanto que essas outras propriedades são aciden-tais. Um corpo pode perder todas elas, mas continuará sendo um corpo enquanto conservar a extensão. Por isso mesmo Descartes indica pela expressão “res extensa” (coisa extensa) a matéria. Essa é a natureza do mundo material. Na cosmologia geral de Descartes há também dois ou-tros tipos de substância: a res divina e a res cogitans (a coisa pensante). Ao contrário da matéria, essas duas últimas não se localizam no espaço. A primeira dessas duas realidades não físicas é Deus, para Descartes, e não se localiza também no tempo. A segunda que ele identifica com a alma humana se localiza no tempo de algum modo, já que podemos observar sua duração, pelo menos enquanto ela estiver unida ao corpo. Como a própria expressão utilizada pelo autor sugere, a natu-reza da alma ou espírito humano é o pensamento. Mas esse, por sua vez, é também uma coisa, no sentido metafísico, ou seja, uma substância, algo que existe por si e que permanece enquanto tal, podendo ser aniquilada apenas por Deus, assim como é também o caso da matéria. A união entre o corpo humano que, para Descartes, é uma máquina hidráulica assim como os corpos dos outros animais, e a alma humana é denominada por ele de união substancial, que não é uma noção metafisicamente muito fácil de entender, já que corpo e alma são duas substâncias distin-tas. Mas era assim que Descartes pensava. Os outros animais, que não possuem almas, são apenas máquinas hidráulicas, não possuindo as propriedades da coisa pensante, como razão e sentimento. A interação entre o corpo e a alma nos seres humanos é algo bastante complicado, que Descartes procura explicar na

Page 35: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

34

obra As paixões da alma. De fato, o autor elabora uma compli-cada teoria fisiológica (ou, poderíamos dizer, neurofisiológica, antes mesmo que a noção de neurônio ou célula nervosa exis-tisse), introduzindo a noção de espíritos animais, que são cor-púsculos que circulam pelo organismo através dos nervos, permitindo a comunicação entre a periferia do corpo e o cére-bro. A glândula pineal, ou epífise neural, que se encontra abai-xo dos hemisférios cerebrais, foi identificada por Descartes como o lugar de comunicação entre o corpo e a alma, de onde partem os espíritos animais para levar informação para os membros e para onde voltam, trazendo informação à alma. Por mais bizarra que essa teoria de Descartes possa nos parecer hoje, ela permitiu, contudo, fazer descobertas importantes. Descartes foi o primeiro autor a descrever o mecanismo dos nossos reflexos. Contudo, a grande dificuldade da teoria residia propri-amente em seus pressupostos metafísicos, isto é, no fato de que sendo corpo e alma participantes de duas substâncias dis-tintas, era muito difícil explicar sua interação, mesmo que por meio da teoria resumida acima. Pois os fenômenos físicos do corpo, para Descartes, são fundamentalmente fenômenos do movimento, provocados por choques entre os corpos. Mas a alma não possui qualquer propriedade que lhe permita ser afetada por esse tipo de acontecimento mecânico. Quando nos voltamos para a alma, para Descartes, o que observamos são ideias, pensamentos, sentimentos, coisas desse tipo que pare-cem exibir propriedades completamente distintas das proprie-dades primárias e secundárias dos corpos. Apesar da dificuldade que a metafísica de Descartes cria para sua teoria da mente, não é sem razão que esse autor ocupa um lugar de destaque nas reflexões sobre o mentalismo humano até hoje. Pois, de uma forma descritiva, ele aborda os eventos mentais também com precisão, como a mesma obra citada acima, As paixões da alma, também demonstra. Embo-ra essa psicologia filosófica de Descartes também seja ultra-passada, tanto quanto sua fisiologia, ela não deixa de ser histo-ricamente um grande feito, um passo importante para abrir novos domínios de pesquisa.

Page 36: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

35

Hoje em dia, muito poucos autores ousam defender um dualismo de substância comparável àquele de Descartes, mas muitos defendem o chamado dualismo de propriedades, se-gundo o qual as propriedades ou características de nossas mentes são completamente outras e irredutíveis àquelas pro-priedades das coisas físicas. Essa postura que podemos deno-minar ainda de mentalismo enfrenta, por sua vez, uma dificul-dade teórica equivalente àquela que Descartes enfrentou em sua obra. Pois o dualismo de propriedades deve procurar mos-trar como um mundo cuja natureza básica é física ou material pode dar lugar a propriedades não físicas. O mentalismo contemporâneo, nos termos acima indi-cados, no plano metafísico é uma forma de monismo, isto é, sustenta que tudo no mundo é feito de matéria e, por conse-guinte, daquilo de que a matéria é feita, tal como comentamos no início deste capítulo. O termo “substância” é o mais tradici-onal na metafísica, e por isso essa forma de monismo é deno-minada de monismo de substância, sendo associado então a um dualismo de propriedades. O termo “estofo” em português não tem a mesma significação de “stuff” em inglês, mas se aceitarmos a introdução de um anglicismo, podemos dizer que o referido monismo do mentalismo contemporâneo é um mo-nismo de estofo. Isto é, tudo no mundo é feito do mesmo esto-fo, mas nem tudo no mundo exibe as mesmas propriedades dos corpos. Isso conduz a problemas ontológicos também difí-ceis, alguns dos quais serão discutidos nos próximos capítulos. Na época de Descartes, sua postura dualista era certa-mente adotada pela maioria dos filósofos, mas não por todos eles. Inserindo-se na mesma tradição que remonta aos atomis-tas gregos e latinos, como Leucipo, Demócrito e Lucrécio, ha-via alguns autores que também sustentavam um monismo de estofo ou substância, entre eles Thomas Hobbes, que foi con-temporâneo e crítico de Descartes. Nos primeiros capítulos de sua obra mais conhecida, o Leviatã,13 Hobbes apresenta uma

13 Cf. HOBBES, 1994 [1651]. Assim como de outros autores consa-grados na história da filosofia, as obras de Hobbes existem em diver-sas edições e traduções, inclusive em português, sendo que o mesmo

Page 37: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

36

teoria monista da mente humana, segundo a qual também os eventos mentais são fenômenos do movimento, mas do movi-mento que começa fora de nossos corpos e que neles penetra, movendo então as partes do sistema nervoso e, assim, ocasio-nando nossa atividade mental. Além disso, mesmo autores mais próximos de Descar-tes no sentido de pertencerem à mesma tradição do raciona-lismo continental europeu, como Spinoza e Leibniz, apresenta-ram teorias alternativas àquela de Descartes. E ambos esses autores são monistas em certo sentido. Spinoza é um monista radical, afirmando na Ética que tudo o que há é uma única realidade, uma única substância, sendo que extensão e pensa-mento são atributos seus.14 Esse monismo spinozano é radical não apenas por sustentar que há apenas uma substância, mas também porque essa única substância é, na verdade, um único indivíduo. Os indivíduos que conhecemos em nossa experiên-cia comum são apenas modos da única substância. Leibniz, por sua vez, sustenta que há uma pluralidade de indivíduos, que são as mônadas, que para ele são átomos metafísicos.15 Mas elas são de uma única natureza, que é aque-la de serem representativas. Por isso ele sustenta também uma forma de monismo. As mônadas são unidades fechadas e que não se comunicam. Mas elas todas possuem uma representa-ção de todas as outras. E como a mônada divina, que criou as demais, providenciou que elas estejam desde sempre em acor-do umas com as outras, havendo entre todas uma harmonia preestabelecida, há a aparência de comunicação entre as mô-nadas. Nesse caso, como naquele de Spinoza, não há problema da relação entre corpo e alma. O problema nem sequer pode ser levantado naqueles termos em que Descartes o fez. Ainda que para o pensamento filosófico contemporâ-neo o dualismo cartesiano seja algo implausível, as metafísicas de Spinoza e Leibniz são mais ainda. O dualismo de proprie-

vale para os autores que serão adiante mencionados, a saber, Spino-za, Leibniz e Aristóteles. 14 Cf. SPINOZA, 1994 [1677]. 15 Cf. LEIBNIZ, 1695 e 1990 [1714].

Page 38: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

37

dades, que hoje é algo bastante comum entre os filósofos da mente, como veremos em alguns dos próximos capítulos, con-serva o problema da relação entre o físico e o mental, embora em termos diferentes daqueles em que o problema existia na filosofia de Descartes. Assim, podemos dizer que o dualismo de propriedades é o legado que o pensamento cartesiano dei-xou para a filosofia da mente. Quando empregarmos o termo “mentalismo” no restante deste livro, estaremos nos referindo a essa posição que não coincide com o dualismo de estofo, mas que, ao contrário, sustenta uma metafísica monista, que assu-me o dualismo de propriedades.16 Veremos nos próximos capí-tulos também que esse próprio mentalismo é negado por al-gumas filosofias da mente, de diferentes maneiras, com argu-mentos e princípios bem distintos. O mentalismo que provém do dualismo tradicional, de qualquer forma, é a postura segundo a qual a mente pode e deve ser estudada por si mesma. As teorias que argumentam radicalmente contra o mentalismo são, em última instância, como veremos nos casos da filosofia de Ryle e das formas do materialismo eliminativista, teorias eliminativas do mental. Não é esse o caso de outras modalidades do monismo de esto-fo, como o supervenientismo e o monismo anômalo de David-son, de um lado, e do emergentismo, de outro, para citarmos alguns que também veremos nos próximos capítulos. A nosso ver, apesar da importância indiscutível das obras de alguns dos eliminativistas, como o próprio Ryle, e da influência que o pensamento de alguns desses autores têm na filosofia da mente contemporânea, imprimindo uma tendência crítica que é salutar nesse campo de pesquisa, o mentalismo é a própria base da psicologia filosófica, assim como da psicolo-gia empírica. Ou seja, devemos tomar a mente como uma rea-lidade, por mais difícil que se apresente o problema de saber-

16 Tal como já utilizado no capítulo anterior e acima neste capítulo, o termo “mentalismo” neste livro também se refere às características, ou constituição, ou natureza da mente, traduzindo o termo inglês “mentality”, que não quer dizer mentalidade (em português), mas, diferentemente, o caráter do mental.

Page 39: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

38

mos a natureza dessa realidade. Voltemos então a alguns dos pontos por onde começamos este capítulo. Pode ser o caso que a mente seja o tipo de realidade sobre a qual não caberia perguntar de que ela é feita. Essa é uma lição que devemos aprender do eliminativismo de Ryle, que veremos no próximo capítulo. Podemos perguntar de que são feitos os corpos, como vimos acima, e as ciências nos darão boas respostas. Podemos também, de forma mais ordinária, perguntar de que são feitas mesas, livros, automóveis etc. Mas não parece ter cabimento, em analogia com tais perguntas, perguntarmos também: de que são feitas as mentes dos seres humanos? De que são feitas as mentes dos gatos, dos cães, dos golfinhos etc.? Como vimos, a resposta aparentemente óbvia, de dizer que elas todas são feitas de neurônios, não tem cabi-mento. Seus cérebros são feitos de neurônios, mas não suas mentes. Uma mente pode, além disso, ser encarada como uma coleção de eventos. Talvez devamos então falar apenas de eventos mentais, e não de mentes, como se fossem coisas. Se, por exemplo, perguntarmos de que são feitos os acidentes de automóveis, não é pertinente que se responda que eles são feitos de automóveis. Eles apenas envolvem automóveis. Mas, enquanto eventos, eles são outro tipo de realidade. E talvez o mesmo se deva dizer da mente ou, mais precisamente, dos eventos mentais. Essa seria uma possibilidade, mas, de fato, acreditamos que as coisas na filosofia na mente não são tão simples assim. De qualquer forma, falar de eventos mentais ainda é sustentar o mentalismo, ainda é se afastar das posições eliminativistas ou deflacionárias na filosofia da mente, como se diz às vezes. Um tipo de teoria deflacionária do mental, também contrário ao mentalismo, consistiria, por exemplo, em afirmar algo parecido com o materialismo reducionista, que também vamos comentar num dos próximos capítulos. Desse ponto de vista, podem-se conservar alguns termos mentalistas, mas apenas na medida em que eles ainda não foram reduzidos a termos fisicalistas, na medida em que determinados eventos supostamente mentais ainda não foram explicados como a aparência criada por eventos neurofisiológicos. Assim, o men-

Page 40: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

39

talismo implica também sustentar que há eventos genuina-mente mentais, que devem ser entendidos por meio de concei-tos eminentemente mentalistas, expressos em um vocabulário mentalista irredutível ao vocabulário fisicalista da neurofisio-logia ou de quaisquer outras disciplinas às quais os problemas da psicologia seriam reconduzidos. Voltemos um instante àquela questão sobre aquilo de que seriam feitas as mentes. Vamos comparar essa questão com outra que hoje não se faz, mas que era comum até meados do século XIX, a saber: de que são feitos os seres vivos? Colo-cada assim, a questão é meio redundante mesmo então, pois lembremos que o próprio Descartes, dois séculos antes, já sus-tentava de um modo cientificamente aceitável para a época que os seres vivos são feitos de matéria. A questão mais perti-nente, já levantada mesmo na antiguidade pelos filósofos gre-gos, era sobre aquilo que anima os seres vivos, aquilo que faz com que eles se movam mesmo sem sofrerem ação externa. Aristóteles, por exemplo, distinguia entre uma alma vegetati-va, uma alma sensitiva e uma alma racional, princípios dife-rentes presentes em diversos seres vivos, mas sendo que ape-nas nos seres humanos os três estão presentes ao mesmo tem-po.17 Se o termo “alma” parecer inconveniente em virtude de sua associação com determinadas doutrinas religiosas, pode-mos substituí-lo pelo termo “princípio” ou por qualquer termo que indique uma capacidade ou propriedade que não precise ser identificada com uma substância, com algum estofo. Do ponto de vista do próprio comportamento manifesto dos mais diversos seres vivos, começando pelas plantas, pelos vegetais, podemos dizer, grosso modo, que a diferença entre uma planta e um corpo inanimado qualquer, uma pedra, por exemplo, é que o vegetal possui alguma capacidade de conservação, repa-ração e reprodução que um corpo inanimado não possui. E isso corresponderia a tal princípio vegetativo da filosofia aris-totélica. Mas as plantas não sentem, e os animais sim. Nesse caso, temos um princípio sensitivo. E, por fim, tal como ainda

17 Cf. ARISTÓTELES, 1984, Da geração dos animais.

Page 41: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

40

é comum pensar até hoje, os animais não possuem pensamen-to racional (pelo menos não comparável ao dos seres huma-nos). E aí está o princípio racional que é exclusivo de nossa espécie. Para os vitalistas até meados do século XIX, todos os seres vivos possuíam um princípio vital responsável por ani-má-los. A doutrina caiu em descrédito, embora posteriormente se encontre uma espécie de neovitalismo em alguns autores, como o filósofo francês Henri Bergson,18 que afirmava haver um élan vital que distingue os seres vivos do resto da realida-de. A razão para que o vitalismo caísse em descrédito entre os filósofos e cientistas a partir de meados do século XIX foi que a fisiologia experimental da época, na França tendo como pio-neiro o médico Claude Bernard, mostrou que podemos expli-car os fenômenos vitais, aqueles que só presenciamos nos or-ganismos vivos, com base no conhecimento das reações bio-químicas ocorridas no meio interno desses organismos.19 A diferença é que apenas os seres vivos em seu meio interno ofe-recem as condições físico-químicas (como temperatura, umi-dade, salinidade etc.) para que determinadas sínteses bioquí-micas ocorram. Com isso se podia então argumentar que, ape-sar de haver fenômenos vitais, eles não são devidos a quais-quer propriedades vitais. As propriedades dos seres vivos são as mesmas propriedades físico-químicas do restante das coi-sas. Na filosofia da mente se encontra às vezes uma analo-gia com o caso do vitalismo para argumentar contra o menta-lismo. Ou seja, assim como a ciência do passado já possibilitou sabermos que não há nenhum princípio vital, a ciência do fu-turo vai mostrar que não há nenhum princípio mental, em suma, que não há propriedades mentais, mas apenas fenôme-nos mentais. Os materialismos reducionista e eliminativista, que serão discutidos num dos capítulos adiante, argumentam mais ou menos nessa direção. Essa parece à primeira vista uma objeção de peso contra o dualismo de propriedades, isto

18 Cf. BERGSON, 1959 [1907]. 19 Cf. BERNARD, 1984 [1865].

Page 42: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

41

é, contra a concepção segundo a qual há propriedades mentais, embora elas não sejam propriedades de algum estofo mental. Segundo essa forma de entender o mentalismo humano, os fenômenos mentais seriam devidos às propriedades neurofisi-ológicas de nossos cérebros. Contudo, essa argumentação contra o mentalismo não é tão convincente quanto possa parecer à primeira vista. Pois as próprias propriedades neurofisiológicas mencionadas não podem ser pura e simplesmente propriedades físicas da maté-ria. A questão então seria: por que apenas no cérebro humano determinadas propriedades neurofisiológicas se manifestam? A argumentação contra o mentalismo baseada naquela analo-gia com o caso do vitalismo parece encarar as propriedades das coisas em geral de uma forma absoluta, como característi-cas do estofo e não como características do arranjo das coisas. Ora, a noção de meio interno introduzida na fisiologia por Claude Bernard implica que é o arranjo, a organização das coi-sas no interior dos organismos, que faz a diferença, e não as propriedades daquilo de que seriam feitos os seres vivos. Em última instância, como os seres vivos são feitos de matéria, do mesmo estofo que o restante da realidade, quaisquer proprie-dades irredutíveis têm de pertencer a esse estofo único. Aqui surge uma distinção que talvez possa ajudar. Ve-jamos. A distinção é entre propriedades redutíveis e irredutí-veis. O próprio Claude Bernard que já citamos a respeito dessa problemática dizia que a única propriedade irredutível que ele reconhecia no mundo da vida era a irritabilidade do proto-plasma celular. E dizia isso porque não via como a ciência da época pudesse mostrar de que outras propriedades da matéria a irritabilidade decorre. Mas em sua postura falibilista, Ber-nard confiava que era possível que as ciências um dia mostras-sem que essa suposta propriedade irredutível dos seres vivos seria devida a certas propriedades da própria matéria, do úni-co estofo de que todas as coisas são feitas. Do ponto de vista conceitual, isso significa que o termo “propriedade” é relativo e que aquilo que em determinado momento do desenvolvimento de uma ciência é encarado co-mo uma propriedade, depois, pode ser encarado como um fe-nômeno, isto é, como um evento decorrente de propriedades

Page 43: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

42

mais fundamentais. É claro que as ciências podem se colocar em busca das propriedades fundamentais irredutíveis das coisas. Mas é claro também que, ao longo dessa busca, elas terão de conservar propriedades que podem, em princípio, ser redutíveis, mas que, de fato, não sabemos se são redutíveis ou não a outras propriedades mais básicas. E por isso o dualismo de propriedades ainda pode ser uma postura plausível na filo-sofia da mente, assim como o mentalismo a ele associado. O dualismo de propriedades e o mentalismo podem ter o status científico de teses de caráter heurístico, teses que ori-entam a pesquisa, mas que não implicam sustentar dogmati-camente nenhum princípio inatacável. E, na verdade, no capí-tulo 6, quando discutirmos as noções de superveniência e de emergência, veremos que o mais adequado é falarmos de um pluralismo de propriedades. Esse pluralismo, como veremos, ainda poderá se associar à tese de que há propriedades irredu-tíveis que não são as propriedades últimas da matéria ou da-quilo de que a matéria é feita. Mas esse tipo de irredutibilidade deve ser explicado de maneira mais detalhada. Ele não implica sustentar quaisquer princípios misteriosos do tipo do princípio vital ou de um possível princípio mental. O mentalismo de que estamos falando aqui não implica, portanto, nenhum princípio mental irredutível. Em vez de ser ou uma coisa, uma substância, ou uma coleção de eventos, a mente pode ser um sistema. A noção mais simples e intuitiva de sistema é a de que um sistema são determinados elementos colocados em relação de tal maneira a adquirir funcionalidade. Essa noção se aplica, por exemplo, às mais diversas situações, inclusive ao nosso sistema nervoso central. Mas pode se aplicar também a uma parte dele, como o cérebro. Suponhamos então que nosso cérebro seja um siste-ma, cujos elementos postos em relação são os neurônios. Nes-se caso, é sugestiva a ideia de que a mente humana seria o cé-rebro em funcionamento. Mas, por mais que isso possa agra-dar àqueles que procuram reduzir a noção de mente a algo concreto ou eliminá-la em favor de noções inteiramente neuro-fisiológicas, encarar a mente como o funcionamento do cére-bro não resgata todos os aspectos que atribuímos ao menta-lismo humano. Isso apenas descreve o cérebro como um sis-

Page 44: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

43

tema que contribui para a existência do mentalismo humano. Ele é certamente indispensável para que um indivíduo huma-no possua uma mente, mas essa forma de explicar o mentalis-mo humano ainda encara a mente como uma coleção de fenô-menos, nesse caso, neurofisiológicos. O mentalismo a que nos referimos, como uma postura na filosofia da mente em associação com o dualismo de propri-edades ou, de forma mais ampla, em associação com o plura-lismo de propriedades, sustenta que a mente pode ser um sis-tema de outra natureza, não um sistema neurofisiológico, nem uma parte do sistema nervoso central, nem uma decorrência de seu funcionamento, mas um sistema cujos elementos são também de natureza mental. A diferença entre encarar a men-te como um sistema desse tipo e não como uma mera coleção de eventos mentais (ou talvez neurofisiológicos) é que confe-rimos à mente humana unidade, sistematicidade, algo que decorre de possuir ela uma estrutura própria.

Há duas condições básicas para que um sistema adqui-ra sua funcionalidade própria: seus elementos constitutivos e sua estrutura ou organização. Os mesmos elementos arranja-dos de duas maneiras diferentes podem dar origem a dois sis-temas diferentes. Eles serão diferentes porque possuirão fun-cionalidades diferentes. Seus funcionamentos acarretarão con-sequências diferentes. E, por outro lado, o mesmo arranjo, mas com elementos diferentes, também produzirá sistemas diferentes. Assim, de fato, além de suas duas condições básicas acima apontadas — elementos e estrutura — devemos também considerar a funcionalidade de um sistema para identificá-lo adequadamente, isto é, as consequências que seu funciona-mento acarreta. Portanto, os elementos, a estrutura e a finali-dade caracterizam juntos um sistema. E, é claro, dois sistemas distintos (quanto aos elementos e ao arranjo deles) podem ter a mesma finalidade; mas isso não faz deles apenas duas ver-sões do mesmo sistema.

Essa noção de sistematicidade se aplica bem aos orga-nismos e seus sistemas internos. Ela se aplica, por exemplo, ao sistema nervoso central, como a outros sistemas de nosso cor-po. Eles possuem o arranjo e os elementos adequados para cumprir determinadas tarefas orgânicas, para suas respectivas

Page 45: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

44

finalidades. Assim, entendê-los bem pressupõe que os tome-mos em relação com a economia geral do organismo, isto é, sabermos como cada um contribui para o funcionamento óti-mo do organismo como um todo. E isso pode, mais uma vez, fazer parecer que a estratégia adequada é aquela de identifi-carmos a mente humana com o cérebro ou com o sistema ner-voso central. Mas não é.

Podemos dizer que o sistema nervoso central e, em par-ticular, o cérebro desempenham tarefas orgânicas que contri-buem para a economia geral do organismo. Mas a mente não faz isso. Do ponto de vista do mentalismo, a finalidade aparen-te da mente é aquela de estabelecer relações com o ambiente e não aquela de contribuir para as relações internas das partes do organismo. Assim, podemos dizer que a mente humana precisa do corpo humano e, mais especificamente, de seu cére-bro ou de seu sistema nervoso para cumprir seu papel. Esses sistemas orgânicos são elementos seus, mas não sua totalida-de. Do ponto de vista mentalista, a mente como um sistema resulta da combinação adequada dos elementos orgânicos com determinados elementos ambientais. Assim ela pode alcançar sua finalidade. E essa finalidade, afinal, é bastante clara. A mente humana é, afinal de contas, aquilo que dirige a ação humana. Não fazemos o que fazemos com nossos cérebros apenas, mas com nossas mentes. Assim, a mente não é um sistema orgânico, mas um sistema de outra natureza.

De fato, o termo “mente” corresponde a uma noção teó-rica. É uma teoria das relações entre o indivíduo humano e seu ambiente que emprega essa noção para explicar o que fazemos. O que fazemos é algo extremamente variado e por isso requer um sistema que não pode se restringir às capacidades mera-mente orgânicas. É isso o que confere especificidade à psicolo-gia e à filosofia da mente como disciplinas. Essa noção teórica de mente humana é de um sistema abstrato. Isso parece à primeira vista contra-intuitivo, pois a mente de cada um de nós parece a cada um de nós algo bem tangível, pelo menos no sentido de ser algo que experimentamos o tempo todo. Mas, na verdade, o que experimentamos são seus efeitos.

Na verdade, todo sistema é abstrato. Mesmo os siste-mas orgânicos aos quais nos referimos acima são estruturas

Page 46: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

45

abstratas. Eles são formados de partes concretas, mas o arran-jo é algo abstrato. E é o arranjo que faz com que os elementos concretos que constituem o sistema adquiram sua funcionali-dade. Nosso cérebro é certamente um dos elementos que en-tram na constituição de nossa mente, mas não é tudo e ele en-tra segundo um arranjo específico, que apenas determinadas condições ambientais podem produzir. A psicologia e a neuro-fisiologia hoje têm bem claro que, no desenvolvimento mental de um indivíduo, além das condições propriamente orgânicas, é preciso haver os estímulos ambientais adequados apresenta-dos ao organismo no momento certo, as condições ambientais apropriadas. Um exemplo disso é o amadurecimento neurofi-siológico ligado ao aprendizado da fala e a aquisição da língua materna. É preciso que a criança seja estimulada pela fala dos adultos na idade certa para que ela aprenda sua língua mater-na e se torne, depois, um falante fluente. Isso é reconhecido mesmo pelos inatistas de orientação ou mais neurofisiológica, ou mais cognitivista. Isso é reconhecido, por exemplo, por No-am Chomsky, que é o autor mais célebre por defender a tese de que possuímos um órgão da linguagem que consolida deter-minadas capacidades linguísticas inatas.20

A linguagem, falar uma língua natural, é parte de nossa mente. E embora seja inegável que para falar, assim como para fazermos outras coisas, é preciso que nossos cérebros estejam funcionando bem, a fala é um tipo de evento mental. O sistema que possibilita para nós a fala, assim como outras formas de agir, é nossa mente. Esse sistema emprega nossos cérebros, certamente, mas emprega também outros elementos. Esse sistema é tão abstrato quanto a própria linguagem. Seria tolo querermos localizar a linguagem tomada não apenas como competência, mas também como realização linguística, dentro de nossas cabeças e identificá-la apenas com partes de nosso sistema nervoso central. Ora, para a mente como um sistema vale o mesmo. A mente não apenas como competência de na-tureza neurofisiológica, mas também como realização na ação é uma realidade abstrata. Ela não se localiza em parte alguma.

20 Cf. CHOMSKY, 2009 [1966]; 1972.

Page 47: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

46

Mas é uma realidade inegável, assim como a linguagem que dela faz parte.

Aqui vemos então outro tipo de dualismo que está as-sociado ao mentalismo como uma postura na psicologia filosó-fica. Trata-se do dualismo entre competência e realização, que é uma distinção que encontramos na linguística, por exemplo, em autores como Chomsky, mas que se aplica ao caso mais amplo do mentalismo humano. Negar o mentalismo e susten-tar teses ou reducionistas, ou eliminativistas, é encarar a men-te como competência — possivelmente apenas neurofisiológi-ca. Mas se encaramos a mente também como realização, como o controle da ação, então o mentalismo é a atitude adequada.

Devemos, portanto, distinguir entre o mentalismo tra-dicional, em geral associado ao dualismo de substância, e o mentalismo hoje como uma espécie de atitude que preside a um programa de pesquisa, a uma postura na filosofia da men-te, postura essa segundo a qual a mente humana é uma reali-dade irredutível a realidades materiais, uma realidade que possui funcionalidade própria e propriedades específicas, que podem e devem ser estudadas por si mesmas. A teoria da men-te que vamos delinear sobretudo nos capítulos da segunda parte deste livro é mentalista, mas não é dualista. Ela parte do pluralismo de propriedades, mas continua fiel ao monismo de estofo.

* Questões para revisão

1. Por que perguntar de que é feita a mente humana não é simplesmente equivalente a perguntar de que é feito o corpo humano?

2. Qual é a postura que, nas considerações contemporâ-neas sobre a mente humana, identificamos como men-talismo?

3. Comente a analogia entre o vitalismo na filosofia da bi-ologia e o mentalismo na filosofia da mente.

4. Comente a noção de mente humana como um sistema.

Page 48: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

47

5. Por que a concepção da mente humana como simples-mente uma coleção de eventos mentais não resolve al-gumas questões que consideramos pertinentes?

Leituras adicionais recomendadas Para ter uma noção mais exata do dualismo de Descartes e do problema da relação entre corpo e mente colocado por ele, pode-se ler a Sexta meditação (Meditações), assim como a Quinta parte do Discurso do método e, especialmente, a Pri-meira parte das Paixões da alma. Para uma concepção alter-nativa sustentada por um contemporâneo e crítico de Descar-tes, é interessante ver os capítulos 1 a 5 da Primeira parte do Leviatã, de Thomas Hobbes. Vale também conferir os dois primeiros capítulos do livro de Damásio (2012), O erro de Descartes, para ter noção de algumas descobertas recentes no domínio da neurofisiologia e suas implicações para a filosofia da mente. Atividade complementar Procure discorrer de forma crítica sobre a ideia de que a mente humana é um sistema e, como todo sistema, algo abstrato, tendo em conta a estreita dependência que há entre nossa ati-vidade mental e a atividade do sistema nervoso central.

§

Page 49: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

48

Page 50: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

49

3

ERROS E ACERTOS CATEGORIAIS Dissemos no capítulo anterior que a mente humana pode ser considerada um sistema, em vez de ser considerada uma coisa, tal como o dualismo cartesiano e tradicional afirma, e em vez de ser considerada uma coleção de eventos — os eventos ou fenômenos mentais — que podem ser simplesmente decorrên-cia do funcionamento de nossos cérebros. Outra forma de en-carar a mente humana, distinta dessas três alternativas, con-siste em tomá-la não como aquilo que nos leva a fazermos o que fazemos, mas como aquilo mesmo que fazemos. Nesse caso, a mente se confunde com a ação; e falar dela é apenas falar de modo alternativo de nosso próprio comportamento.

À primeira vista, essa concepção da mente pode pare-cer implausível, já que a impressão que temos é que experi-mentamos pelo menos muitos dos efeitos de possuirmos uma mente, como nossos estados de consciência que nos revelam estarmos pensando e sentindo o tempo todo. Contudo, essa forma de encarar a mente possui apelo porque, de um lado, ela permite eliminar uma série de problemas complicados e mes-mo aparentemente insolúveis, como o problema da relação mente-corpo. E, de outro lado, essa concepção segundo a qual a mente são nossas próprias ações se vale da noção também já mencionada de que a mente é uma realidade de caráter abstra-to, ao contrário de nossos cérebros que são, obviamente, coisas concretas.

O autor que mais explorou essa abordagem ao menta-lismo humano e que é também o responsável pelo surgimento da filosofia da mente contemporânea como uma especialidade é Gilbert Ryle. Em seu livro, hoje considerado um clássico nes-se domínio de estudos filosóficos, The Concept of Mind,21 Ryle

21 Cf. RYLE, 2002 [1949].

Page 51: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

50

faz uma extensa e convincente crítica ao dualismo cartesiano e ao mentalismo em geral. O ponto central de sua argumentação é que a forma tradicional de encarar a mente humana, dualista e mentalista, comete um grande erro categorial, isto é, aplica uma noção onde não tem cabimento aplicá-la. A nosso ver, as críticas de Ryle são merecedoras de atenção cuidadosa, uma vez que elas podem, de fato, denunciar falsos problemas filosó-ficos. Mas, não obstante as intenções desse autor, sua obra também nos conduz a descobrir não apenas erros categoriais na consideração do mentalismo humano, mas também deter-minados acertos, digamos assim. Ainda que o dualismo meta-físico realmente receba da parte da argumentação de Ryle um golpe praticamente fatal, o mentalismo não, como veremos, entendendo por mentalismo, como dissemos no capítulo ante-rior, a posição segundo a qual há algo de específico na mente humana que não se reduz a propriedades neurofisiológicas de nossos cérebros. Há dois pontos principais na argumentação de Ryle. Um é sua denúncia do mito cartesiano do fantasma dentro da máquina, o outro é a noção de erro categorial e a noção correlativa de graus de abstração.

Ryle começa seu livro discutindo o referido mito carte-siano ou, mais precisamente, o que ele denomina de doutrina oficial sobre o mentalismo humano, assumida por psicólogos, filósofos e pessoas ligadas a religiões, doutrina essa que re-monta na época moderna a Descartes, ou que pelo menos pode ter uma de suas versões na obra desse filósofo. Segundo essa doutrina, o corpo humano é uma máquina, aspecto ao qual já nos referimos no capítulo anterior, e a mente humana é uma entidade de natureza não física que habita aquela máquina — daí o uso da expressão “fantasma dentro da máquina”. Além disso, diz Ryle, a própria mente é concebida em analogia com o corpo, sendo então como uma máquina fantasmagórica. Ou seja, são atribuídas à mente propriedades e formas de atuação que são típicas dos corpos.

É verdade que se examinarmos atentamente os textos do próprio Descartes, veremos que essa crítica de Ryle não se aplicaria a ele tão facilmente assim. Vale lembrarmos, por exemplo, o comentário de Descartes na Sexta Meditação, na qual esse autor diz que a forma como a alma está relacionada

Page 52: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

51

com o corpo não é aquela de um piloto dentro de seu navio.22 Ao contrário, diz Descartes, a união substancial entre o corpo e a alma faz com que a relação entre as duas coisas seja mais íntima. É claro que a analogia com o piloto dentro do navio, que Descartes recusa e que daria realmente margem àquela crítica de Ryle, ainda faz algum sentido, pois o dualismo carte-siano presume que a mente é aquilo que dirige os movimentos do corpo, é o que controla a ação. Mas justamente, o que a re-cusa de Descartes da comparação com a situação do piloto dentro do navio indica é que esse controle da mente sobre o corpo não se dá de forma mecânica. A teoria dos espíritos animais, que comentamos no capítulo anterior, presume que a mente se vale de um tipo de mecanismo corporal para contro-lar o próprio corpo; mas não se trata, obviamente, de um me-canismo mental. Assim sendo, pelo menos a segunda parte da crítica de Ryle ao mito cartesiano não procede, embora, de fato, a primeira sim.

Pois, realmente, se a mente é aquilo que controla o cor-po, então essa não deixa de ser uma concepção do fantasma dentro da máquina, ou seja, de uma entidade não material que dirige as operações do corpo como uma máquina natural. Essa crítica de Ryle, nesse tom jocoso, na verdade, tem um objetivo ontológico bastante razoável, que é aquele de recusar o dua-lismo de substância ou estofo. Mas, além disso, o outro ponto da argumentação do autor ao qual nos referimos acima visa à recusa também do dualismo de propriedades. Segundo Ryle, é um erro categorial falar da mente como se ela fosse uma coisa capaz de possuir propriedades ou capacidades. Para ele, falar da mente é apenas falar do comportamento humano por meio de uma forma alternativa de linguagem, é falar dos mesmos fatos sobre o comportamento humano em um nível de abstra-ção maior do que falar dos movimentos do corpo.

Para explicar isso, Ryle utiliza uma comparação bastan-te sugestiva. Ele convida seu leitor a imaginar um indivíduo que fosse visitar uma universidade e que, depois de conhecer todas as instalações dessa universidade e as pessoas que ali

22 Cf. DESCARTES, 1953, ou outras edições e traduções.

Page 53: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

52

trabalham e estudam, ainda quisesse conhecer a própria uni-versidade. Ora, falar da universidade, diz Ryle, é falar de tudo aquilo em outro nível de abstração. A universidade não é uma entidade que possa estar na mesma coleção que reúne suas instalações, pessoas etc. Por isso há aqui um erro categorial. Esse tipo de erro consiste em aplicar um conceito fora de seu âmbito próprio de aplicação; consiste, portanto, em não res-peitar diferentes níveis de abstração.

Vejamos outro exemplo que pode ser acrescentado para ilustrar esse ponto. Suponhamos que depois de um dia de tra-balho num escritório, uma pessoa chegue em casa e diga a ou-tra que trabalhou muito durante aquele dia todo. Então essa outra pessoa lhe pergunta o que ela fez, e essa diz que datilo-grafou relatórios, fez cálculos em uma calculadora, procurou documentos em um arquivo, arquivou outros documentos etc. E, diante disso, seu interlocutor diz: mas por que você está dizendo que trabalhou muito? Onde está o trabalho? É claro que essa outra pessoa está confundindo os níveis de abstração. Pois quando a primeira disse que trabalhou, ela estava resu-mindo num nível mais alto de abstração aquilo que, num nível mais baixo, pode ser relatado como: datilografar, calcular, ar-quivar etc. Trabalhar não é uma ação que se some a essas ou-tras.

Em analogia com exemplos desse tipo, Ryle argumenta que ao descrevermos o que fazemos por meio de uma forma mentalista de linguagem, supostamente nos referindo então a estados mentais, estamos descrevendo em um nível diferente de abstração os mesmos fatos que podem ser descritos por meio de uma forma fisicalista de linguagem, quando nos refe-rimos a nossas ações. Logo, não só a mente não é uma coisa, uma substância, como também ela não é algo que possa possu-ir propriedades de re. Isto é, quaisquer características mentais dos indivíduos humanos têm apenas o caráter de dicto; elas descrevem por meio de uma forma mais abstrata de linguagem os mesmos acontecimentos no mundo da ação, do comporta-mento humano, que podem ser descritos por meio de uma forma de linguagem mais concreta, digamos.

É claro, por conseguinte, que existem padrões do com-portamento que podemos identificar e que, de forma mais abs-

Page 54: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

53

trata, podemos relatá-los como se fossem devidos a supostas propriedades mentais dos indivíduos. Mas isso é apenas uma forma alternativa de falar. Por isso tais propriedades são ape-nas de dicto. Por exemplo, podemos dizer que certo indivíduo é alegre, mas a alegria não é uma sua propriedade mental, es-tritamente falando. Ao dizermos que ele é alegre, estamos ape-nas dizendo em maior grau de abstração que na maior parte das vezes que o vemos ele está sorrindo ou exibindo outras formas de comportamento expansivo. E mesmo que digamos que ele tem a propensão para exibir esse tipo de comporta-mento em determinadas circunstâncias, essa propensão não é nenhum tipo de propriedade oculta. Quando falamos dela também estamos apenas dizendo em um nível mais alto de abstração o que sabemos de seu comportamento passado.

Essa concepção da mente humana de Ryle é por vezes indicada na literatura como um behaviorismo analítico ou lógico. Ou seja, sua ideia é que os predicados mentalistas são redutíveis a predicados comportamentais, que a forma de lin-guagem que os emprega é apenas uma forma mais abstrata de linguagem, em relação à qual a forma de linguagem que des-creve diretamente episódios do comportamento humano é mais concreta. Assim, toda filosofia e toda psicologia que pre-tenda falar de supostas propriedades mentais dos seres huma-nos está cometendo erros categoriais, está confundindo níveis de abstração, está misturando duas formas alternativas de lin-guagem.

Esse behaviorismo de Ryle não é a única forma que en-contramos entre os filósofos da tradição analítica influencia-dos por Wittgenstein.23 Já nos anos 1920s, Rudolf Carnap, em seu Aufbau, ao apresentar seu sistema construcional, explica 23 No caso de Carnap, como veremos a seguir, temos claramente uma espécie de behaviorismo definicional, segundo o qual os predicados mentalistas são definidos por meio de predicados fisicalistas. Esse não é exatamente o caso de Ryle, para quem as linguagens mentalista e fisicalista são formas alternativas de linguagem, sem que haja uma tradução completa de uma na outra. De qualquer forma, há seme-lhanças entre as posições desses autores, como também vamos expli-car.

Page 55: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

54

que a forma como ele reconstrói racionalmente os conceitos ou objetos que ele denomina heteropsicológicos se aproxima do behaviorismo metodológico de John Watson.24 Há certa seme-lhança entre as abordagens de Carnap e Ryle. Os conceitos heteropsicológicos são aqueles que empregamos no entendi-mento dos estados mentais dos outros sujeitos humanos ou, como se costuma dizer, das outras mentes. Como o sistema construcional de Carnap no Aufbau tem uma base fenomena-lista e pressupõe o solipsismo metodológico, ou seja, a noção de que todos os objetos de conhecimento são construídos a partir de objetos fundamentais que são as vivências elementa-res de um sujeito humano, os seus dados dos sentidos, os con-ceitos que Carnap denomina autopsicológicos são primitivos no sistema. A partir deles é que os demais objetos (físicos, he-teropsicológicos e culturais, tomados progressivamente) po-dem ser construídos. Os conceitos correspondentes nessas três esferas serão cognitivamente legítimos se puderem ser reduzi-dos a conceitos das esferas ou níveis inferiores até atingir o nível fundamental dos objetos autopsicológicos.25

Desse modo, quando tomamos os predicados mentais (como “alegre”, nosso exemplo anterior), esse objeto hete-ropsicológico deve ser redutível a objetos físicos, a modifica-ções no corpo do indivíduo em questão. Como no caso da aná-lise de Ryle, pode-se dizer que aquele indivíduo está em tal estado mental se houver modificações em seu corpo e compor-tamento que sejam correspondentes, ou seja, que ele esteja sorrindo e tendo outras formas de comportamento expansivo. Isso permite então legitimar os conceitos da psicologia como

24 Cf. CARNAP, 1969. O título do livro no original empregava a pala-vra “Aufbau” (construção, em alemão), razão pela qual o livro é as-sim referido. Cf. também WATSON, 1970 [1930]. 25 Em um momento posterior de sua obra (cf. CARNAP, 1934), esse autor defendeu uma base fisicalista para o sistema da ciência unifi-cada. Nesse caso, o nível básico é constituído de objetos físicos e a linguagem fisicalista é tomada como uma linguagem universal, capaz de expressar todos os conceitos científicos genuínos. Voltaremos a comentar essa forma de fisicalismo no capítulo 5.

Page 56: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

55

análise do comportamento manifesto, mas elimina como desti-tuídos de significação empírica ou cognitiva os conceitos men-talistas que não puderem ser reduzidos a conceitos físicos e, em última instância, a conceitos autopsicológicos.

Nessa perspectiva não há sequer a possibilidade de dis-cutir a realidade da mente, nem se há propriedades mentais, pois o que é real é aquilo que corresponde aos objetos constru-ídos no sistema. Por isso essa forma de oposição ao mentalis-mo tradicional se aproxima da postura adotada por Watson. Não cabe discutir a natureza do mental, mas apenas o compor-tamento manifesto. A tradição behaviorista entre os psicólo-gos, contudo, abriga posições teóricas e mesmo experimentais variadas, algumas das quais se distanciam de maneira bem importante desse behaviorismo metodológico de Watson, co-mo, por exemplo, o behaviorismo radical de B. F. Skinner. Embora Skinner também se oponha ao mentalismo tradicional e às teorias dos filósofos e de outras escolas de psicologia sobre o mentalismo humano, ele concebe o comportamento de for-ma muito diferente daquela de Watson. Mas antes de comen-tarmos isso, voltemos um instante a um dos pontos comuns entre Carnap e Ryle, a saber, que a significação dos predicados mentalistas é aquela dada por predicados fisicalistas sobre o comportamento manifesto.

Isso implica que os termos mentalistas, quando são cognitivamente informativos, são definidos de maneira exten-sional. Tal como no exemplo antes citado, “alegre” deve ser substituído por uma conjunção de termos fisicalistas, como: “sorrindo”, “expansivo” etc. Assim sendo, um enunciado que empregue o termo mentalista “alegre” deve ser traduzido para enunciados que empreguem esses termos fisicalistas que defi-nem o primeiro. Isso é semelhante a um verbete de dicionário e, enquanto tal, não oferece grande problema, pois é também a forma como ensinamos a um estrangeiro a significação de uma palavra de nossa língua que ele não conhece. A enumeração e a ostensão são realmente métodos eficientes para essa finalida-de. Mas a questão é: como chegamos ao conhecimento dessas equivalências de significações?

Na vida comum, se um indivíduo está sorrindo e tendo outros comportamentos expansivos e se por acaso não esti-

Page 57: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

56

vermos entendendo por que ele está assim e lhe perguntarmos, ele vai dizer que é porque está alegre. E, ao contrário, supondo que esse indivíduo, que habitualmente sorri e é expansivo, está com o semblante contraído, falando pouco, quieto em um can-to, sem sorrir, e lhe perguntarmos por que ele está assim, ele vai dizer que está triste, ou deprimido, ou algo nessa direção. Mas isso é assim e funciona na vida diária porque todos nós aprendemos com nossa comunidade epistêmica, ao aprende-mos a língua que falamos, que devemos empregar esses termos quando estamos em tais estados mentais para comunicarmos isso aos outros. Contudo, é a observação que o próprio sujeito pode fazer de si mesmo, de seus estados mentais que não são acessíveis aos outros, mas apenas a ele mesmo, que permite fazer essas associações e delas tirarmos aquelas definições ex-tensionais dos predicados mentalistas. Nesse caso não há co-mo não empregarmos o método da introspecção ou, em outros termos, o método da observação de nossos próprios estados mentais que não são observáveis para os outros.

Os autores behavioristas acima citados rejeitam a in-trospecção como um método legítimo na psicologia, embora as razões de uns e outros nem sempre coincidam a esse respeito. Contudo, em geral, a ideia é que a introspecção é um procedi-mento puramente subjetivo, privado e arbitrário, não possuin-do confiabilidade científica, conduzindo mais a equívocos e a falsos problemas do que a descobertas e explicações satisfató-rias. E, de fato, há boas razões metodológicas para desconfi-armos da introspecção, sobretudo se houver a sugestão de que ela seria o procedimento de observação fundamental na psico-logia. Mas, por outro lado, não há psicologia humana que pos-sa se abster dos relatos do próprio indivíduo, nem que seja para contestá-los com base em determinadas observações de seu comportamento.

Por exemplo, suponhamos uma pessoa que se diga tole-rante, mas que o tempo todo se comporta de maneiras opostas a isso, ou seja, criticando os outros e os rejeitando em suas particularidades. Nesse caso, alguém pode argumentar com ela com base na observação de seu comportamento que ela está equivocada em sua autoavaliação. De certa forma, na psicaná-lise, o procedimento do terapeuta é em grande medida esse,

Page 58: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

57

embora por meio de formas indiretas e sutis de diálogo com o paciente. Assim, é verdade que a introspecção não é um proce-dimento confiável, mas na mesma medida em que não é confi-ável a própria auto-observação dos indivíduos em relação a seu comportamento manifesto. Mesmo assim, o que o indivíduo observa de si mesmo é relevante para entendermos seus esta-dos mentais. Metodologicamente, o importante é termos uma espécie de chave de leitura de seu relato subjetivo, tal como propõe a já citada psicanálise.

O fato de que os seres humanos possuem consciência reflexiva e, portanto, possam ser observadores de si mesmos, do que fazem e do que sentem e pensam, era para Skinner uma desvantagem metodológica. E por isso ele considerava que a observação do comportamento animal em contextos controla-dos era mais reveladora daquilo em função do que se dá o comportamento, ou seja, das variáveis que controlam o com-portamento tanto animal, quanto humano. Mas isso para ele não significava negar que os seres humanos sejam capazes daquilo que ele denominou comportamento encoberto, o comportamento que se dá dentro da pele (expressão do pró-prio Skinner), que não é acessível aos outros, mas que está sob o controle das mesmas variáveis ambientais — e não mentais, no sentido do mentalismo tradicional.

Ao contrário de Watson, que via o comportamento co-mo uma relação direta entre estímulos ambientais e respostas do organismo, que Skinner chamou de comportamento res-pondente, esse último introduz uma noção mais elaborada, aquela de operante ou comportamento operante.26 O ambien-te apresenta diversos estímulos ao organismo, mas esse res-ponde a uns e não a outros, o que pode ser inicialmente aleató-rio. Ao emitir uma resposta a certo estímulo, o organismo pro-voca no ambiente consequências que podem ser para ele ou premiadoras, ou punitivas. No primeiro caso aumenta a pro-babilidade de, no futuro, o organismo responder a um estímu-lo da mesma classe. No segundo, diminui essa probabilidade.

26 Cf. SKINNER, 1965 [1953] e 1976.

Page 59: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

58

O ponto principal enfocado por Skinner é aquele do controle do comportamento. Para ele a questão é mostrar que nosso comportamento não é controlado ou dirigido pela mente ou por nossos estados mentais dentro da pele, mas pelas con-tingências do reforçamento, ou seja, pelas variáveis ambien-tais. E, como já dissemos, mesmo o comportamento encoberto, aquelas formas do comportamento que são acessíveis apenas ao indivíduo, também estão sob o controle de variáveis ambi-entais. É claro que o que é reforçador para cada espécie animal vai variar, assim como, dentro da mesma espécie, vai variar também o que é reforçador para cada indivíduo, uma vez que sua história de reforçamento também conta para entendermos seu comportamento. Logo, o que está dentro da pele ou, se quisermos ser mais específicos, no sistema nervoso, ou em nossos cérebros, apenas faz a mediação entre elementos ambi-entais (estímulos oferecidos ao indivíduo e consequências de suas respostas).

Skinner é contrário também ao uso comum da noção de predisposição para o comportamento. Ele tinha certa razão, pois as noções disposicionais são muitas vezes de pouco poder explicativo. É famosa, por exemplo, a sátira de Molière na qual se diz que o ópio dá sono porque possui um poder sonífero. Mas, de qualquer modo, o processo de condicionamento ope-rante descrito por Skinner conduz a modificações do organis-mo. Essas modificações podem não ser permanentes e tam-bém, é obvio, elas não são representativas da natureza huma-na. Mas elas predispõem o indivíduo para responder de formas específicas a certos estímulos. E nesse caso não haveria grande problema em encararmos as predisposições dos indivíduos para a ação como uma forma mais abstrata de falarmos de sua história de reforçamento e das expectativas que temos em re-lação a seu comportamento futuro. E isso, em última instância, não deixa de ser aquilo que podemos entender como a mente do indivíduo.

Nesse caso, é claro que estão afastadas as noções de uma mente substancial e de características mentais imutáveis dos indivíduos (humanos e animais), mas, de qualquer modo, esse discurso mentalista entendido como uma forma mais abs-trata de falar do comportamento não só é legítimo como per-

Page 60: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

59

mite também identificarmos e descrevermos determinadas propriedades mentais dos indivíduos. A questão então é se vamos interpretar esses termos ou noções que se referem a tais propriedades de uma forma de dicto ou de re. É claro que to-dos os quatro autores acima mencionados — Ryle, Carnap, Watson e Skinner — diriam que estamos falando apenas de propriedades de dicto. Mas isso não é tão simples assim como possa parecer à primeira vista, pois depende também do grau de sistematicidade dessa mente do indivíduo, mesmo que en-carada como uma forma mais abstrata de falarmos de seu comportamento manifesto.

Normalmente, encaramos as propriedades das coisas como características permanentes delas. Isso é assim, tipica-mente, no caso de propriedades físicas e químicas, por exem-plo. A água é líquida em determinado intervalo de temperatu-ra, sólida em outro e se torna vapor em outro. Mas, nas mes-mas condições de temperatura (e pressão), a água será sempre ou líquida, ou se torna gelo, ou vapor. Ela não adquiriu a capa-cidade de ser sólida na primeira vez em que a temperatura ficou abaixo de zero, nem foi preciso que isso acontecesse al-gumas vezes para que ela se tornasse capaz de virar gelo. Uma superfície que exibe a cor azul sob a luz branca, sob a luz ama-rela vai exibir a cor verde, mas ela também não adquiriu essa propriedade porque uma ou mais vezes a luz amarela incidiu sobre ela.

No caso dos seres vivos, especialmente animais, obvi-amente, admitimos a possibilidade de que determinadas carac-terísticas sejam adquiridas, ainda que outras sejam encaradas como permanentes. Essa é a distinção comum entre instinto e conhecimento ou entre capacidades de agir de determinadas formas independentemente de aprender pela experiência e aquelas capacidades que os indivíduos adquirem apenas quando passam por um processo de aprendizagem. Uma gata que tem filhotes pela primeira vez faz tudo o que precisa fazer para seu bem estar e de seus filhotes. Ela não precisou apren-der isso de sua mãe. E por isso se costuma dizer que ela age por instinto. Mas essa gata aprendeu a caçar com sua mãe. Sem isso ela não saberia caçar, ou talvez acabasse aprendendo com muito maior esforço e menor rendimento. E por isso se

Page 61: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

60

costuma dizer que nesse caso ela, ao caçar, age em virtude de ter determinado conhecimento, que é uma característica ad-quirida.

Os seres vivos possuem uma característica fundamental que não aparece em estruturas inanimadas, que é a plasticida-de, isto é, a capacidade de reagir ao ambiente e de, por assim dizer, se amoldar a ele. Se há uma mudança ambiental e de-terminado ser vivo não é capaz de reagir de forma a se acomo-dar a ela, podemos dizer que isso foi além de sua capacidade plástica. Quanto mais complexo for o sistema nervoso de um animal, tanto maior será essa sua capacidade de reagir ao am-biente. Maior será, portanto, sua plasticidade. Embora Skinner não empregue explicitamente essa noção, podemos dizer que ela está pressuposta em sua explicação do condicionamento operante. Pois esse é um processo ambiental que leva o orga-nismo a reagir aos estímulos ambientais e suas consequências e, portanto, a se amoldar ao ambiente. Também aqui, como no caso das espécies vivas em geral da perspectiva darwinista, a capacidade de reagir convenientemente ao meio depende de características inatas que os indivíduos recebem de seus ances-trais. E Skinner entendia sua análise experimental do compor-tamento em continuidade com a teoria da evolução das espé-cies pela seleção natural. Em suma, o ambiente também sele-ciona comportamentos.

Tem sido um tema bastante polêmico no domínio da biologia evolutiva se as características adquiridas podem ser de uma forma ou de outra incorporadas àquelas características que são passadas de geração em geração. Esse é um dos pontos que distingue a perspectiva de Darwin daquela de transformis-tas como Lamarck. Mas há mesmo darwinistas que admitem essa possibilidade sob determinadas condições especiais, o que seria possível, por exemplo, por meio de um mecanismo que tem sido denominado Efeito Baldwin.27 De qualquer modo,

27 Essa denominação se refere ao psicólogo evolucionista americano James Mark Baldwin, considerado um dos descobridores de tal fe-nômeno. Sobre toda a controvérsia a respeito desse tópico, cf. WE-BER; DEPEW, 2003.

Page 62: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

61

essas considerações mostram que, no caso dos seres humanos e daqueles animais com um sistema nervoso bastante elabora-do (em geral, os mamíferos e os pássaros), é difícil determinar com clareza o que é conhecimento adquirido e o que é habili-dade inata. De forma geral, podemos dizer que a plasticidade é a capacidade de utilizar habilidades inatas para adquirir co-nhecimento, para que o indivíduo adquira predisposições para o comportamento que o tornem mais capaz de responder em seu benefício ao ambiente em que está.

Então é claro que mesmo que não saibamos quais são exatamente os mecanismos neurofisiológicos (ou talvez, de modo mais amplo, fisiológicos) do organismo que lhe confe-rem certa plasticidade, essa não é meramente uma forma de dicto de nos referirmos a suas capacidades. Trata-se de uma plasticidade de re. Ela está nas coisas, no organismo, pois lhe permite lidar com o ambiente em que vive. E se essa plastici-dade conduz a certa modelagem de seu comportamento, quer o processo que leva a isso seja aquele apontado por Skinner, quer seja outro, se o indivíduo é modificado de forma a res-ponder no futuro de maneiras diferentes do que fez no passa-do, então essa sua modificação interna, mesmo que ocorrida em virtude de fatores ambientais (em conjunção com sua plas-ticidade), lhe confere uma nova sistematicidade que não é de dicto. O indivíduo não precisa adquirir características imutá-veis para isso, pois em certa medida aquela mesma plasticida-de lhe dá a capacidade de se modificar convenientemente se for preciso.

Quando falamos dessa plasticidade como aquela carac-terística mais representativa do que seria a suposta natureza animal e humana, estamos então falando de um modo mais abstrato do que se nos referíssemos especificamente aos me-canismos fisiológicos que tornam os animais capazes de se modificarem por meio da exposição aos fatores ambientais. Mas nem por isso se trata de uma plasticidade de dicto. Ela é algo mais abstrato do que os supostos mecanismos fisiológicos, mas é real. A relação entre ela e tais mecanismos fisiológicos é a mesma que há naquele exemplo dado antes entre trabalhar, de um lado, e datilografar, calcular, arquivar etc., de outro.

Page 63: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

62

Portanto, a análise de Ryle não conduz apenas a de-nunciar os equívocos do mentalismo tradicional, mas também a percebermos os acertos do mentalismo uma vez sendo ele separado do dualismo de substância. Os animais adquirem propriedades mentais que não se encontram nem nas plantas, nem nas estruturas inanimadas. E tais características não pre-cisam ser perenes e imutáveis para serem consideradas pro-priedades de re. Curiosamente, o próprio Skinner admitia a possibilidade de que uma neurofisiologia mais sofisticada do futuro tornasse a análise experimental do comportamento proposta por ele obsoleta. E a razão é que tal ciência revelaria os mecanismos neurofisiológicos responsáveis pelo condicio-namento operante de forma inequívoca e convincente. Mas isso não torna sua doutrina um mero faz-de-conta, assim como as explicações da microfísica atual não tornam mero faz-de-conta aquelas dadas pela química tradicional como estudo das reações entre os elementos da tabela periódica. A diferença é apenas que os animais possuem uma capacidade que a matéria bruta não tem. Ainda que a plasticidade dos animais seja, em última instância, redutível à irritabilidade, que já comentamos no capítulo anterior, ela não deixa de ser uma propriedade real dos animais. E ela acarreta que eles possuam propriedades mentais.

O resultado dessas discussões é nos permitir ver que a mudança para outros níveis de abstração não leva automati-camente a concluirmos que aquelas realidades dos níveis mais abstratos de descrição do mundo sejam apenas entidades fictí-cias. Logo, as análises dos behavioristas em geral, inclusive aquela de Ryle, não trazem a consequência de que o mentalis-mo é um ponto de vista equivocado; não eliminam os predica-dos mentalistas e não reduzem a referência às propriedades mentais dos indivíduos animais, especialmente humanos, a meras formas alternativas de falar que, se tomadas em um pressuposto existencial, conduziriam necessariamente a erros categoriais.

Os erros categoriais ainda podem ocorrer, mas apenas se não respeitarmos os níveis de abstração. Por exemplo, como diz Ryle, realmente não se pode querer tratar do problema da relação corpo-mente da maneira como a filosofia tradicional o

Page 64: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

63

concebeu. Embora nosso aparato neurofisiológico seja parte das condições de base para haver eventos mentais, os concei-tos relativos a cada uma dessas instâncias não estão no mesmo nível de abstração. E isso não significa que não haja mentes e que não haja propriedades mentais dessas mentes. Há certa-mente uma correlação entre as duas ordens de realidades, as neurofisiológicas e as mentais, e também entre as formas de comportamento manifesto e essas outras duas. Mas essas cor-relações são de um tipo diferente daquele que há entre reali-dades do mesmo nível de abstração, como veremos nos próxi-mos capítulos. Só não podemos confundir essas ordens de rea-lidades e esses níveis de abstração.

O comportamento, contudo, é tido como uma série de ocorrências observáveis, assim como os processos neurofisio-lógicos, enquanto que as realidades mentais não são observá-veis, podemos dizer. De certo modo, isso está correto. Mas, enquanto que datilografar em um teclado, calcular em uma calculadora e arquivar em um arquivo são acontecimentos observáveis, trabalhar também não é. Contudo, se vemos uma pessoa em um escritório fazendo todas aquelas coisas e dis-sermos que ela está trabalhando, não deixamos de descrever esse seu trabalho como um acontecimento observável. Pois estamos vendo essa pessoa trabalhando. E, além disso, veja-mos bem que, por exemplo, datilografar também não é em si observável, pois o que observamos é a pessoa batendo os dedos sobre as teclas. Quando dizemos que ela está datilografando, também estamos passando para outro nível de abstração.

Assim, de fato, mesmo o comportamento e os processos neurofisiológicos já são acontecimentos em si inobserváveis. Quando falamos deles estamos também já em certo nível de abstração. Por exemplo, não vemos um indivíduo respondendo a certo estímulo (seu comportamento), mas apenas que ele faz certos movimentos e atua sobre alguns objetos em seu ambien-te. E não vemos os processos neurofisiológicos sob um micros-cópio ou por meio de um aparelho mais sofisticado de imagem do cérebro. O que vemos são, no melhor dos casos, determina-das reações elétricas e químicas nos neurônios.

Assim, a mente é uma realidade abstrata do mesmo modo que trabalhar, datilografar etc., e do mesmo modo que

Page 65: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

64

se comportar ou estar em determinado estado neurofisiológi-co. O que há são encaixamentos dessas realidades abstratas de diferentes níveis de abstração umas nas outras. Desse modo, trabalhar é, mais concretamente falando, em determinada cir-cunstância, datilografar, em outra, calcular, em outra arquivar, e assim por diante. E estar em determinado estado mental é, em certas circunstâncias estar em determinado estado neurofi-siológico, e é também se comportar de determinadas formas, seja de maneira manifesta, seja de maneira encoberta.

Essas últimas considerações nos mostram que, de fato, a distinção entre o que é concreto e o que é abstrato é, de certa forma, relativa. Trabalhar é mais abstrato que datilografar, que é mais concreto, mas que é mais abstrato que golpear as teclas do teclado com os dedos, que é algo mais concreto. Se conside-rarmos real apenas aquilo que não pode, por sua vez, ser in-terpretado como um nível mais abstrato em relação a outra coisa, então teremos de esperar pela ciência do fim dos tempos para sabermos o que é real — se é que essa ciência do fim dos tempos é algo realizável. Um critério ontológico mais razoável para distinguirmos o que é real do que é fictício seria aquele segundo o qual real é alguma coisa que, em sua esfera própria de abstração, acarreta consequências.

Nesse caso, o problema que pode ser levantado é aquele a respeito do como saberemos quais são as diferentes esferas de abstração quando organizamos o mundo diante de nós. E para isso cremos que não há uma solução a priori. O conheci-mento humano em todas as suas formas, inclusive as ciências e a filosofia, em um trabalho conjunto, é que podem nos condu-zir a saber quais são as diferentes esferas da realidade. Essa questão será retomada nos próximos capítulos, ao tratarmos das noções de superveniência e de emergência.

De qualquer modo, intuitivamente, sabemos identificar diferentes esferas de abstração. Em certo sentido, podemos dizer que a fluência na língua que falamos, nossa competência semântica nela, é aquilo que nos permite fazer isso. Nesse ca-so, aquele tipo de análise proposto por Ryle e por outros filóso-fos analíticos é, de fato, útil. Pois seu resultado será aquele de nos tornarmos mais competentes no emprego dos conceitos que estão associados ao vocabulário da língua que falamos.

Page 66: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

65

Outro exemplo de Ryle é bem ilustrativo a esse respeito. No contexto da economia sabemos o que significa falar do contri-buinte comum (the Average Taxpayer, no original do livro). Sabemos que não estamos falando de nenhuma pessoa física, mas de muitas delas de forma mais abstrata. Outro exemplo do mesmo tipo que podemos dar é o de dizer que, numa certa população, a renda per capita é de x Reais. Sabemos que isso não significa que todos ganham o mesmo valor, e apenas por mera coincidência uma dessas pessoas terá essa renda. Se constatarmos isso, não vamos concluir que o comentário sobre a renda per capita é a respeito dela apenas.

Mesmo que aceitemos a argumentação de Ryle e de ou-tros behavioristas, porque seus argumentos são eficientes em mostrar que alguns problemas tradicionais da filosofia da mente são pseudoproblemas, por assim dizer, podemos fazer o feitiço virar contra o feiticeiro, como diz a expressão popular. Pois também é cometer erros categoriais não perceber o âmbi-to específico de aplicação de determinadas noções e achar que algumas delas não são aplicáveis de forma alguma, como cos-tuma acontecer com aquelas análises que consideram todos os termos mentalistas destituídos de significação empírica, cuja significação poderia ser apenas metafórica. Ao deixarmos de reconhecer o domínio próprio de aplicação do vocabulário mentalista, vamos também estar cometendo erros categoriais. O acerto, nesse caso, consiste em procurarmos entender qual é o âmbito próprio de aplicação dos conceitos mentalistas. Essa é a tarefa mais importante da filosofia da mente.

No que diz respeito à filosofia de Ryle, não há qualquer dificuldade a esse respeito, pois o autor tem clareza de que os conceitos mentalistas possuem um âmbito próprio de aplica-ção e argumenta justamente que isso deve ser respeitado, para não gerarmos falsos problemas. Isso, contudo, não deve nos conduzir a pensar que não haja formas possíveis de correlacio-nar o mental com o físico ou, mais especificamente, o neurofi-siológico. Esse tipo de correlação, como veremos nos próximos capítulos, é mais complexa e não pode ser feita da forma como o dualismo tradicional a entendeu. A abordagem de Ryle invi-abiliza qualquer tentava teórica de fazer essa correlação, mas, para o mentalismo associado ao pluralismo conceitual (ou de

Page 67: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

66

propriedades), a correlação entre o mental e outras esferas de realidades é possível e deve ser feita. Desse ponto de vista, o mental não se relaciona apenas com o neurofisiológico, mas também com o social.

* Questões para revisão

1. Explique a noção de erro categorial de Ryle quando a-plicada ao caso da mente humana.

2. Por que a redução dos objetos heteropsicológicos a ob-jetos físicos, proposta por Carnap em seu sistema cons-trucional, também é um tipo de abordagem behavioris-ta?

3. Por que, mesmo de uma perspectiva behaviorista, po-demos dizer que a mente seria uma série de predisposi-ções para o comportamento?

4. Por que a noção de plasticidade permite conservar a perspectiva mentalista, não reducionista, na interpre-tação da mente humana e animal?

5. Por que a noção mentalista de que a mente é uma rea-lidade mais abstrata que o comportamento ou que os estados neurofisiológicos não implica que ela seja uma mera ficção?

Leituras adicionais recomendadas Os argumentos da Ryle contra o mentalismo tradicional, inclu-sive sua noção de erro categorial, que ele aplica nessa discus-são se encontra no primeiro capítulo de seu livro The Concept of Mind (RYLE, 2002 [1949]). É interessante também ver o texto de Carnap, Pseudoproblemas na filosofia (CARNAP, 1980), que traz uma versão mais acessível de seu sistema cons-trucional, desenvolvido em seu livro Aufbau. A posição de Skinner é apresentada em uma versão mais acessível em seu livro Sobre o behaviorismo (SKINNER, 1995).

Page 68: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

67

Atividade complementar Discuta a questão dos erros categoriais levantada por Ryle com relação à mente humana, mas tendo em conta que um erro categorial consiste em não aplicar um conceito em seu âmbito apropriado de aplicação e não pura e simplesmente na existên-cia do conceito.

§

Page 69: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

68

Page 70: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

69

4

INTENCIONALIDADE A noção de intencionalidade empregada pelos filósofos, noção essa que remonta a Franz Brentano, não deve ser confundida com a noção comum de propósito ou intenção como a caracte-rística de uma ação deliberada. A maneira mais direta e breve de indicar a noção filosófica é a seguinte: a intencionalidade é a referência a algo como objeto. É nesse sentido que os fenô-menos mentais são intencionais. Em todos eles há a referência a um objeto ou, dizendo de outro modo, todos incluem um objeto, ou ainda: todos são relacionais por conterem um obje-to. Pensar é pensar em algo; sentir é sentir algo, e assim por diante.28 Desse modo, a intencionalidade é relacionalidade, como se costuma dizer hoje. Nossos propósitos, nossas inten-ções, no sentido comum do termo, são, portanto, intencionais, já que incluem um objeto; mas não são os únicos casos de in-tencionalidade.

Segundo Brentano, todos os fenômenos mentais são in-tencionais, enquanto que nenhum fenômeno físico é intencio-nal. Isso lhe permitia, então, separar a psicologia das ciências da natureza. Essa noção é que tem sido pressuposta por diver-sos filósofos da mente na atualidade, como, por exemplo, John Searle e Daniel Dennett. A intencionalidade tem sido apontada como a marca do mental e como um dos principais temas da filosofia da mente — senão o principal deles, segundo alguns. Esses filósofos contemporâneos, contudo, raramente se dão ao trabalho de analisar mais cuidadosamente as discussões do próprio Brentano, que antecipa e, a seu modo, resolve muitos dos problemas que agora são de interesse dos filósofos da mente. Neste capítulo, vamos discutir as ideias dos dois pen-

28 Cf. BRENTANO, 2009 [1874], livro II, cap. I.

Page 71: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

70

sadores contemporâneos acima mencionados, mas vamos também examinar um pouco mais detalhadamente o pensa-mento do próprio Brentano.

Quando uma pessoa reage por reflexo a um estímulo qualquer, como, por exemplo, retirar sua mão se ela se apro-xima de uma fonte de calor mais intenso, e com isso esbarra em outro objeto e o quebra, dizemos que a pessoa não agiu intencionalmente, isto é, de propósito. Quebrar o objeto foi um acidente que decorreu de outro acontecimento que o antece-deu e que também não foi proposital, o ato reflexo de retirar a mão. Isso também foi algo feito sem pensar, mas, ao contrário de quebrar aquele objeto por acidente, não é um acontecimen-to não intencional, embora não seja deliberado da parte da-quela pessoa. Ela não escolheu nem decidiu retirar sua mão, porque foi uma ação reflexa, mas, mesmo assim, aquele mo-vimento tinha um propósito, que era o de evitar uma queima-dura. E se tinha um propósito, então era intencional.29 Esse caso é um tanto desconcertante porque nossa no-ção comum de ter o propósito está associada a escolhas delibe-radas da parte dos sujeitos humanos, escolhas que, portanto, pressupõem a consciência reflexiva. Entretanto, não podemos dizer que retirar sua mão foi uma ação que a pessoa realizou independentemente de qualquer ato de consciência. Não se trata de um puro reflexo, como, por exemplo, contrair a pupila se uma luz mais intensa se aproxima do olho. Embora o indi-víduo possa se dar conta da intensidade da luz que variou e isso também possa ser desagradável, ele dificilmente poderia evitar a resposta reflexa. E embora na grande maioria das ve-zes em que ocorrem situações como aquela de afastar a mão do calor intenso, a resposta do indivíduo também seja automáti-ca, está a seu alcance, se ele prestar atenção ao acontecimento, evitar o reflexo. Isso não ocorre com a contração da pupila. Um caso semelhante é aquele no qual um pequeno golpe seco

29 Para evitar confusões, daqui em diante, vamos sempre nos referir à noção comum como propósito, reservando o termo “intencional” e seus cognatos para a noção filosófica.

Page 72: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

71

num ponto do joelho faz a perna se mover. Esse é também um teste de nossos reflexos automáticos. Esses dois casos, da pupila e do movimento da perna, não são propositais e não parecem ser intencionais no sentido da noção filosófica de intencionalidade, já que a consciência não participa desses reflexos e eles não parecem fazer referên-cia a um objeto. O caso de afastar a mão da fonte de calor in-tenso seria intencional nesse segundo sentido, embora tam-bém não seja algo proposital ou deliberado, de acordo com a noção comum. Mas pode ser em determinada circunstância, porque o indivíduo poderia evitá-lo se prestasse atenção e o quisesse. O fato de que a pessoa possa evitar conscientemente a resposta reflexa é contingencial, mas exibiria o caráter inten-cional daquela ação que se pode ser evitada conscientemente, também pode ser realizada conscientemente e com um propó-sito; e se tem um propósito, faz referência a um objeto. Esse seria então, apesar de certa obscuridade, um caso intermediá-rio entre aquele da contração da pupila e, por exemplo, desejar algo conscientemente ou fazer algo de propósito. Escolhemos esses exemplos que são mais difíceis de classificar porque, em comparação com eles, há casos de ações e estados claramente intencionais no sentido da noção filosófi-ca, de Brentano. Os eventos ou fenômenos mentais são inten-cionais, como adiantamos acima, no sentido específico de que estão necessariamente voltados para outras coisas. Os estados mentais de querer, desejar, pensar, escolher, crer etc. são in-tencionais porque são sempre querer algo, pensar isso ou aquilo, e assim por diante. Não podemos simplesmente dese-jar sem que haja um objeto desse desejo, ou crer sem que haja um objeto da crença, e assim por diante. Aquilo que queremos, ou no que acreditamos, ou que amamos etc. são objetos que in-existem no fenômeno mental, diz Brentano, retomando a no-ção dos filósofos medievais. Essa in-existência é a forma de relacionalidade dos estados intencionais. O objeto de um de-sejo, por exemplo, pode não possuir um correlato no mundo físico, mas ele existe no desejo. Por exemplo, podemos desejar um mundo em que todos os políticos sejam honestos, embora esse mundo não seja o mundo em que vivemos.

Page 73: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

72

Se os exemplos que demos acima desses verbos transi-tivos e seus correspondentes estados mentais intencionais são suficientemente claros, os casos da mão e da pupila são obscu-ros quando comparados com eles. Fica claro apenas que ter o propósito de, no sentido comum, é apenas um caso de estado intencional, ao lado de inúmeros outros, no sentido da noção de Brentano. Os casos da mão e da pupila não são propositais, mas se poderia argumentar que eles também não são intencio-nais. Uma das razões é que eles parecem ser respostas neurofi-siológicas (e, portanto, meramente fisiológicas ou físicas), mas não mentais, no sentido da noção de fenômeno mental que Brentano procura explicar através daqueles exemplos. Mas uma dor, para Brentano, é um estado ou fenômeno mental. Por que então o desconforto do calor intenso ou da luz mais forte seria diferente do caso da dor? O caso da dor é um dos pontos de discordância de Brentano em relação a um dos autores importantes da época no domínio da psicologia filosófica, William Hamilton,30 para o qual a dor não era intencional. Brentano argumenta, contu-do, e de maneira convincente contra Hamilton, que os senti-mentos de prazer e dor são relacionais. Ele dá exemplos inte-ressantes, que, aparentemente, Hamilton desconsidera, exem-plos que também têm a ver com nosso uso do vocabulário in-tencional.31 Brentano chama a atenção para o fato de que di-zemos, por exemplo, que alguma coisa nos agrada, outra nos machuca, outra nos dá pena etc. Assim, diz esse autor, o prazer e a dor, o amor e o ódio, o desejo e a aversão etc. se dão em 30 Para Hamilton (1859, p. 572; obra citada por Brentano), os fenô-menos do sentimento (feeling), como prazer e dor, ao contrário da-queles da consciência, não são relacionais. Mas, desse modo, para ele, em última instância, esses sentimentos não são relativos à cons-ciência. Para que essa opinião não seja absurda, é preciso então re-conhecer que há uma diferença entre estados de consciência básica e estados de consciência reflexiva, assunto ao qual voltaremos depois, pois é claro que uma dor é um estado de consciência (pelo menos básica), embora possa não envolver reflexão (cf., por exemplo, E-DELMAN, 1990 e 2004). 31 Cf. BRENTANO, 2009 [1874], p. 68s.

Page 74: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

73

relação a alguma coisa. E por isso os sentimentos de prazer e de dor, mesmo no sentido mais fisiológico em que entendamos esses termos, não podem ser considerados fora da relação com aquilo que dá prazer ou dor. Em suma, uma dor tem de ser sempre uma dor disso ou daquilo, assim como o prazer é por isso ou por aquilo, é esse ou aquele outro prazer. O prazer de um sorvete de chocolate é diferente do prazer de um banho morno; e percebemos bem a diferença. Essa conclusão de Brentano é bem interessante e nos faz voltar a considerar a relação entre os estados mentais em geral e os estados de consciência — e também nos obriga a fazer a distinção entre um tipo de consciência básica e uma consciência reflexiva ou superior, como diz Edelman. Acredi-tar, amar, odiar, pensar etc. são estados reflexivos. Não é pos-sível dizer que alguém tem uma crença mas não sabe que cren-ça é essa, que não sabe em que acredita. Nem é possível dizer que alguém ama alguém ou alguma coisa sem saber de quem ou do que se trata, e assim por diante.

Certamente, tanto com relação a crenças como com re-lação ao amor e ao desejo há casos curiosos também no dia a dia, casos que envolvem justamente determinados processos de consciência ou da falta dela. Por exemplo, uma pessoa pode amar outra (no sentido de estar apaixonada) e não se dar conta disso inicialmente. Determinadas circunstâncias é que vão fazer com que ela se dê conta disso, tome ciência ou esteja ci-ente ou convencida disso. Esse tipo de processo é bastante complexo para termos clareza sobre seus estágios, digamos. Mas quando a pessoa pode dizer sem sombra de dúvida que ama alguém, ela tem plena consciência disso e de quem é que ela ama. E o mesmo vale para o caso das crenças. Podemos ter uma crença e não nos darmos conta dela; e determinadas cir-cunstâncias é que também vão trazê-la à consciência. Mas, uma vez isso tendo ocorrido, quando a pessoa pode dizer que possui tal crença, ela tem plena consciência daquilo em que acredita.

Agora podemos perguntar então se é possível ter uma dor sem estar consciente dela. Justamente, quando estamos inconscientes, no caso, por exemplo, da anestesia geral, não sentimos dor alguma. E no caso da anestesia local, naquela

Page 75: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

74

parte do corpo também não sentimos qualquer dor. Vale lem-brarmos que os sonhos são estados de consciência, embora não de vigília. Os estados naturalmente inconscientes são aqueles denominados de sono profundo, períodos nos quais não sonhamos justamente.32 Assim, se uma dor ou um prazer são estados de consciência pelo menos no sentido do que indi-camos acima por consciência básica, algo que as outras espé-cies animais também possuem, então esses são estados inten-cionais. Eles podem não necessitar do acompanhamento da consciência reflexiva que — acredita-se — só há na espécie humana. Mas, justamente, no nosso caso, as dores são também acompanhadas de nos darmos conta de sentir a dor, acompa-nhadas de reflexão, o que torna difícil imaginarmos como seria sentir uma dor ou uma sensação prazerosa que não seriam acompanhadas de reflexão sobre elas.

Voltemos então àqueles casos obscuros, de alguém que afasta por reflexo sua mão de um calor intenso e da contração da pupila exposta a uma luz mais forte. O caso mencionado acima de uma pessoa apaixonada que ainda não se deu conta de estar assim é semelhante àquele da mão. Determinadas circunstâncias permitem que haja consciência e talvez algum controle do que se faz. A pessoa apaixonada, dando-se conta disso, deixa de se comportar automaticamente de determina-das maneiras, como fazia antes, o que pode justamente ter sido aquilo que a denunciou aos outros ou a si mesma como alguém apaixonado. E a pessoa que afastou sua mão do calor intenso automaticamente também pode depois, se for o caso, evitar isso. É, portanto, a transição para um estado de clara consci-ência nesses casos que mostra como mesmo antes de isso ocor-rer, tratava-se de casos de estados ou fenômenos intencionais.

32 Sabemos que os sonhos são estados de consciência porque depois nos lembramos (de alguns) deles e nos lembramos também que, durante os sonhos, estávamos conscientes daquilo que sonhávamos. Como veremos num dos próximos capítulos, a consciência depende dos mecanismos de memória, mais especificamente, do que se de-nomina memória operacional, que é um dos elementos do sistema de memória de curto prazo.

Page 76: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

75

Entretanto, o caso da contração da pupila ainda parece ser diferente desses. Pois aquilo de que o indivíduo terá cons-ciência será o desconforto que a luz mais forte lhe dá. A pessoa também tem consciência de certo desconforto (ou de pelo me-nos uma sensação diferente) naquele caso de um golpe seco numa região do joelho. Mas ela não tem consciência das con-trações musculares, assim como, no caso da pupila, também não tem consciência das contrações musculares e do próprio movimento da pupila. Essa parte do fenômeno, que é o fenô-meno fisiológico enquanto tal, está fora da consciência e não chega a ela. E, mesmo assim, é difícil não pensarmos esses casos como intencionais ou, melhor dizendo, relacionais. Pois, claramente, tanto o movimento da perna quanto a contração da pupila estão direcionados para uma finalidade específica.

Assim, embora Brentano pareça restringir a intencio-nalidade como referência a um objeto, ou relacionalidade, aos estados de consciência, outros estados orgânicos, ou fisiológi-cos, ou, mais especificamente, neurofisiológicos, também pa-recem ser intencionais. Mas aqui é que podemos então perce-ber a especificidade do conceito de intencionalidade de Bren-tano. Os fenômenos mentais, para ele, são intencionais quando são representacionais. Isso está claro em alguns dos exemplos que ele dá, como crer, amar, odiar, desejar etc. Pois nesses estados mentais podemos dizer que há uma espécie de conteú-do representacional. Amar alguém é de algum modo represen-tar a pessoa amada, é tê-la como objeto imanente, in-existente. Ora, de um lado, isso é relativamente duvidoso, e, de outro, é mais duvidoso ainda como uma dor possa ser representacio-nal.

Acreditamos que aqui é novamente a distinção entre consciência básica e consciência reflexiva que pode ajudar. Ter uma crença ou amar alguém são estados representacionais apenas quando acompanhados de consciência reflexiva. Ou, melhor dizendo, enquanto eventos que envolvem a consciência reflexiva, esses são estados representacionais. Pois ninguém pode, por exemplo, amar alguém tendo consciência clara disso sem saber a quem ama. Mas podemos ter uma dor — que não deixará de ser dor de alguma coisa, mesmo no caso daquelas dores difusas que não conseguimos localizar exatamente em

Page 77: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

76

alguma parte do corpo — sem haver uma representação, no sentido de haver nesse estado mental um objeto imanente. E era mais ou menos assim que Hamilton encarava a dor e o prazer quando dizia que nesses estados não há algo que possa por meio da análise ser separado do próprio estado.

A divergência entre Brentano e Hamilton, a nosso ver, pode então se resolver quando aplicamos as noções de consci-ência básica e de consciência reflexiva. Pois nos estados de consciência reflexiva é possível distinguir o objeto imanente do próprio estado mental. Esse objeto imanente tem então uma existência representacional no estado mental de consciência reflexiva. Mas nos estados de consciência básica, que não pre-cisam ser acompanhados de reflexão, embora no caso dos se-res humanos sejam, não há um objeto imanente, nem pode haver, porque ele não está representado. Mas, no caso huma-no, a reflexão a posteriori sobre um estado de dor ou de pra-zer, na medida em que identifica a modificação orgânica corre-lacionada com esses estados, permite uma representação da dor ou do prazer. Mas esse é outro estado mental, e não o es-tado mental original de dor ou de prazer.

Uma distinção semelhante encontramos em David Hume, quando ele diz que nossas ideias são cópias de sensa-ções e que, assim, são mais tênues do que elas. A dor é exata-mente um dos exemplos de Hume.33 Se nos machucamos e sentimos uma dor, esse estado tem mais intensidade do que a recordação dele. Essa recordação pode ser desprazerosa, mas nunca será tanto quanto a própria dor.

Essas reflexões, quer concordemos com Brentano, quer com Hamilton, de qualquer modo, nos mostram que o primei-ro desses autores entende por fenômeno mental, aquele que é relacional, o fenômeno de consciência reflexiva em primeiro lugar, embora de maneira um tanto problemática ele queira estender a mesma intencionalidade para aqueles fenômenos mentais que não parecem ser reflexivos, como a dor.

33 Cf. HUME, 1996 [1777], a Investigação sobre o entendimento humano, seçã0 2.

Page 78: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

77

De fato, embora Brentano diga que a intencionalidade é aquela característica principal dos fenômenos mentais, ela não é a única. Ele enumera também outras, a primeira das quais é que os fenômenos mentais são apresentações ou estão basea-dos em apresentações.34 E justamente com relação à dor Bren-tano insiste que há uma apresentação, pois segundo ele há um sentimento de dor ligado à sensação de dor.35 Mas essa distin-ção entre a sensação e o sentimento correspondente decorre para Brentano daquela entre ter uma apresentação ou ter um estado baseado numa apresentação. Para ele as duas coisas são intencionais. Além disso, diz o autor, os fenômenos mentais não são extensos, ao contrário dos fenômenos físicos, sendo essa uma distinção comum na época e que Brentano aceita. O fenômeno mental é também objeto de percepção interna. Ele é ainda o único que possui existência real, uma vez que pode-mos duvidar da existência dos correlatos de nossas percepções externas, mas não de nossas percepções internas. E, por fim, o fenômeno mental é dotado de unidade.

Ou seja, as características do mental para Brentano são várias, a saber: (i) apresentação, (ii) não extensão, (iii) intenci-onalidade, (iv) percepção interna (ou introspecção), (v) reali-dade imediata e (vi) unidade. Desse modo, podemos ver que, ao contrário dos comentários atuais a respeito da concepção de Brentano dos fenômenos mentais, a intencionalidade não é exatamente a marca do mental, como se costuma dizer hoje em dia. Pois há, segundo o autor, seis características do men-tal, sendo a intencionalidade uma delas, embora seja, segundo ele mesmo, a mais importante. A questão é talvez que, para os filósofos de hoje, as outras características são (mais) proble-máticas, embora não na mesma medida cada uma delas, e a intencionalidade não pareça ser uma noção problemática.

34 O termo utilizado aqui, “apresentação”, é aquele que geralmente traduz o termo alemão “Vorstellung”, traduzido para o inglês por “presentation” e em português às vezes por “ideia”. 35 Cf. BRENTANO, 2009 [1874], p. 65, e também p. 74s para um resumo das características aqui comentadas.

Page 79: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

78

A nosso ver, não é bem assim, como vamos argumentar na parte final deste capítulo. E há algum problema porque a intencionalidade, ao contrário do que Brentano afirma, não nos parece ser algo exclusivo dos eventos ou estados mentais. E, portanto, ela não permite distinguir mais nitidamente o mental do físico, nem a psicologia das ciências da natureza. Mas antes vamos comentar as ideias dos autores contemporâ-neos que mais se notabilizaram por empregar a noção brenta-niana de intencionalidade, Dennett e Searle.36

As abordagens desses autores são bem diferentes da-quela de Brentano, embora eles desejem se ater ao conceito apresentado por ele. Enquanto Brentano, como vimos acima, adota uma postura mentalista no sentido mais tradicional, as posturas de Dennett e Searle, assim como Davidson que, na mesma época, também se notabilizou por insistir na noção de intencionalidade, são formas distintas de mentalismo, como veremos. Deixaremos para um dos próximos capítulos os co-mentários sobre o mentalismo de Davidson, que é de viés lin-guístico, e vamos ficar aqui com o mentalismo naturalista, mais especificamente, biologista, de Searle e com a abordagem ou postura intencional de Dennett, que possui características mentalistas peculiares, oscilando entre uma forma de instru-mentalismo e uma forma de realismo evolutivo.

Para Searle, a intencionalidade é uma propriedade da mente humana e é uma característica biológica, pertencente a nossa espécie. Essa propriedade se manifesta justamente em nossos estados de consciência, fazendo com que todos eles sejam relacionais. A base desses estados de consciência é, ob-viamente, neurofisiológica, o que faz com que a intencionali-dade dos estados mentais seja uma decorrência do funciona-mento de nosso sistema nervoso central. Para Searle, há esta-dos neurofisiológicos não conscientes, aqueles que jamais po-dem ser trazidos à consciência, há estados inconscientes, que eventualmente poderão se tornar estados conscientes e, por fim, os estados tipicamente conscientes.

36 Cf. DENNETT, 1981; 1987 e 1996/1997; SEARLE, 1983; 1992 e 1999/2000.

Page 80: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

79

Além disso, essa intencionalidade primitiva da mente humana ou, mais especificamente, de nossos estados de cons-ciência se transfere para aquilo que fazemos. A primeira reali-dade que recebe por empréstimo uma forma de intencionali-dade derivada é a linguagem. Uma vez que a consciência (re-flexiva) é necessária para o uso da linguagem, a intencionali-dade da mente humana é, por assim dizer, transferida para nossa fala, para nossos episódios de comunicação verbal, para nossos atos de fala. E uma vez que alguns de nossos atos de fala criam realidades novas, que são realidades de caráter soci-al, o mundo social humano também é dotado dessa intencio-nalidade derivada ou secundária. Desse modo, ao contrário das realidades puramente físicas, o mentalismo humano é uma realidade intencional, cuja intencionalidade é intrínseca, pri-mitiva ou básica, e as realidades sociais que criamos são tam-bém intencionais, cuja intencionalidade é então derivada ou secundária, sendo que, obviamente, a própria linguagem que permite haver outras realidades sociais já é uma forma de rea-lidade em parte social (os atos de fala) fundamentada em uma realidade mental nossa.

Essa concepção naturalista da intencionalidade e da consciência defendida por Searle é bastante plausível do ponto de vista das ciências de hoje. Ela é compatível com a teoria darwinista da evolução das espécies, por exemplo. Nossa espé-cie adquiriu a intencionalidade como uma propriedade bioló-gica por meio do processo de evolução, o mesmo processo que, segundo Searle, não dotou outras espécies dessa mesma capa-cidade. E um dos aspectos atraentes dessa teoria é que as pró-prias realidades sociais, que dependem, por sua vez, do funci-onamento do mentalismo humano, obviamente, são encaradas em continuidade com nosso aparato biológico. Essa seria, por-tanto, uma forma de garantir a unidade, como continuidade, entre as ciências da vida e as ciências humanas.

Contudo, Dennett, por sua vez, que também pretende que sua abordagem ou postura intencional seja compatível com a teoria darwinista da evolução das espécies, discorda de Searle quanto à mencionada distinção entre duas formas de intencionalidade, uma intrínseca ou primitiva da mente hu-mana, outra derivada, aquela das realidades sociais. Ainda que

Page 81: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

80

ele faça uma distinção entre tipos de criaturas — e, portanto, tipos de mentes —, como veremos em seguida, e reconheça que as capacidades mentais (e também intencionais, digamos) da-quele tipo de criatura que corresponde apenas à espécie hu-mana sejam superiores, a intencionalidade está presente tam-bém nos outros tipos de criaturas. Para ele, em primeiro lugar, do ponto de vista cognitivo ou epistemológico, a postura inten-cional é uma das possibilidades de estratégia para explicarmos os acontecimentos ou o comportamento das coisas, ao lado de outras.

As três posturas, ou abordagens, ou estratégias aponta-das por Dennett são, respectivamente: a física, baseada nas leis científicas, a de projeto (design stance), baseada na consti-tuição interna de alguma coisa, e a intencional, baseada nas representações internas ou mentais de um sistema. Os exem-plos bastante simples que Dennett oferece esclarecem bem as diferenças entre as três abordagens. Quando, por exemplo, explicamos a queda livre de um corpo evocando a lei da gravi-dade, estamos adotando a abordagem física. Quando, ao con-trário, explicamos o funcionamento de uma máquina, por exemplo, com base no que observamos de sua constituição interna, estamos adotando a abordagem de projeto. E quando explicamos o que alguém ou alguma coisa faz com base em suas crenças, opiniões, valores, princípios etc., inclusive seus propósitos, estamos adotando a abordagem intencional.

Suponhamos então um supercomputador capaz de jo-gar xadrez com os seres humanos, podendo eventualmente ganhar algumas partidas por meio de jogadas bem planejadas. Podemos explicar o comportamento dessa máquina com base em conhecimentos de eletrônica, caso em que estaremos ado-tando a abordagem física. Mas podemos também explicar o que a máquina faz com base no conhecimento de suas partes internas e seu funcionamento, caso em que estaremos adotan-do a abordagem de projeto. Contudo, podemos ainda explicar o comportamento do computador atribuindo a ele objetivos e crenças, razões pelas quais ele venceu uma partida, caso em que estaremos adotando a abordagem intencional.

Entretanto, esse exemplo, embora ilustre claramente a distinção que Dennett pretende fazer entre as três abordagens

Page 82: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

81

alternativas, dá a impressão de que a atribuição de objetivos, crenças ou representações internas ao computador é apenas uma maneira de falar, de que o computador seria dotado de uma intencionalidade apenas de dicto, e não de uma intencio-nalidade de re, que supomos normalmente ser o caso dos indi-víduos humanos, como argumenta Searle, e talvez de indiví-duos de algumas outras espécies animais, se quisermos ser mais tolerantes e inclusivos. Isso fez com que alguns críticos tomassem a teoria de Dennett como uma forma de instrumen-talismo, isto é, como a postura epistemológica segundo a qual a teoria deve apenas servir para explicar e predizer o compor-tamento das coisas, sem que as capacidades que lhes atribuí-mos sejam encaradas como realidades ou propriedades das próprias coisas. Em contraste com isso, a posição de Searle é claramente uma forma de realismo biológico, pois a intencio-nalidade é uma propriedade exclusiva da mente humana com uma base neurofisiológica necessária.

Contudo, Dennett não pretende defender uma forma de instrumentalismo em relação à intencionalidade. Em primeiro lugar, os estados representacionais internos do supercompu-tador são reais. O único problema é que esse computador foi construído e programado por nós. Portanto, quaisquer cren-ças, opiniões, princípios etc. que ele siga, quaisquer propósitos que ele possa ter em seu comportamento são emprestados por nós. O computador não é consciente do que faz. Ele não só não é capaz de estar em determinados estados de consciência re-flexiva, como, por exemplo, saber que possui determinado ob-jetivo, como também não é capaz de estar em estados de cons-ciência básica, como sentir uma dor ou qualquer outro tipo de sensação. Mesmo que possamos falar da mente do computa-dor enquanto a coleção de suas representações internas, essa será uma mente muito rudimentar em comparação com a mente humana, é obvio. E Dennett está perfeitamente ciente disso.

A explanação que ele faz a respeito dos quatro tipos de criaturas que ele distingue umas das outras deixa isso claro.37

37 Cf. DENNETT, 1995, cap. 13; 1996, cap. 4.

Page 83: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

82

Esses quatro tipos são as criaturas (1) darwinianas, (2) skin-nerianas, (3) popperianas e (4) gregorianas.38 Esses tipos se sucedem em diferentes estágios da evolução das espécies, as-sim sendo que, no início, todas as criaturas na face da terra eram do primeiro tipo, as darwinianas, que são as que sobrevi-vem apenas em virtude das características herdadas (inatas, portanto) e de eventuais mutações que podem trazer vantagem em relação aos desafios apresentados pelo ambiente. As cria-turas skinnerianas, por sua vez, são mais sofisticadas, sendo aquelas que têm a capacidade de aprender do contato com o ambiente por meio do processo de condicionamento operante, ao qual já fizemos menção antes. É óbvio que elas possuem alguma vantagem em relação às criaturas darwinianas, mas nem tanto, pois sua capacidade de modificação em função do ambiente é limitada pelos próprios estímulos ambientais e por suas respostas efetivas a esses estímulos e suas consequências. No próximo estágio temos então as criaturas popperianas, que são aquelas capazes de representar internamente porções do ambiente de tal modo a poderem antecipar determinadas con-sequências. Como diz Dennett, lembrando uma forma de ex-pressão de Karl Popper, as hipóteses que essas criaturas elabo-ram sobre o mundo morrem em seu lugar. É óbvio, assim, que essas criaturas popperianas possuem um tipo mais sofisticado de mente, o que lhes dá muito mais vantagens em relação aos dois outros tipos. Por fim, as criaturas gregorianas são aquelas que, além disso, também se beneficiam das experiências dos outros e das realidades sociais que estão disponíveis; elas se beneficiam da cultura. Essas criaturas correspondem aos indi-víduos da espécie humana.

Uma vez que Dennett recusa a distinção de Searle entre intencionalidade intrínseca e derivada,39 todo comportamento desses tipos todos de criaturas é intencional. Mas é claro que há, de qualquer maneira, comportamentos intencionais mais

38 A denominação desse quarto tipo de criaturas é em homenagem ao psicólogo britânico Richard L. Gregory. 39 Cf. DENNETT, 1996, p. 50s. E cf. p. 121s para a distinção entre intencionalidade de primeira ordem e de ordens superiores.

Page 84: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

83

sofisticados que outros, como as diferentes caracterizações daqueles quatro tipos de criaturas deixam claro. Por exemplo, apenas as criaturas gregorianas (os indivíduos humanos) são claramente capazes não apenas de ter crenças e desejos, por exemplo, sobre outras coisas, que são estados intencionais, mas também crenças e desejos sobre crenças e desejos, logo, um tipo de intencionalidade de segunda ordem, podendo ha-ver intencionalidade de ordens mais superiores que essa. En-tão está claro que as capacidades mentais das criaturas capazes de chegar à intencionalidade de ordens superiores lhes confe-rem uma vantagem extraordinária em relação àquelas que não têm essa possibilidade. É a consciência reflexiva que permite isso.

Como essa é para Dennett uma questão evolutiva, con-vivem no mundo atual criaturas dos quatro tipos, o que faz com que haja certa continuidade entre as espécies animais quanto a suas capacidades mentais, mas, ao mesmo tempo, diferenciações importantes. Não se trata, portanto, em ne-nhum caso de uma intencionalidade de dicto. Mas é claro que há diferentes fenômenos intencionais de re de níveis ou com-plexidades diferentes. E aqui podemos então incluir as melho-res máquinas que construímos, como os supercomputadores, entre os sistemas intencionais. Na melhor das hipóteses, até hoje, eles estariam juntamente com as criaturas darwinianas. Essas estão próximas dos autômatos, uma vez que não possu-em qualquer capacidade de modificar suas representações in-ternas, ou, melhor dizendo, seus estados internos que seriam responsáveis por seu comportamento adequado em determi-nado ambiente. Tais estados internos podem não ser represen-tações, como seria aquele caso dos instintos nas diversas espé-cies animais. Mas até podem ser representações de algum tipo, como no caso da programação do computador. Mas tais siste-mas intencionais de primeira ordem não têm a capacidade de modificar suas representações internas. As criaturas gregoria-nas, no extremo oposto, ao contrário, não apenas possuem estados intencionais de ordens superiores, mas, em virtude deles exatamente, são capazes de modificar suas representa-ções internas. De fato, as próprias criaturas popperianas, tal como caracterizadas por Dennett, já são capazes disso em certa

Page 85: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

84

medida, pois elas podem fazer simulações e antecipações de eventos ambientais. Elas mudam seu comportamento por mo-dificarem suas representações internas de uma forma mais sofisticada que as criaturas skinnerianas, cujas modificações internas, tal como Dennett as compreende, são equivalentes aos instintos, que são o único recurso das criaturas darwinia-nas para lidarem com o ambiente, já que o processo de condi-cionamento operante é um processo de aprendizagem que não precisa ser encarado como uma forma de modificação de re-presentações internas (crenças ou opiniões, por exemplo), mas apenas de aquisição de hábitos como puras modificações neu-rofisiológicas.

Na concepção de Dennett, como podemos ver, a inten-cionalidade é mais claramente relacionalidade de forma mais ampla. Não apenas as representações internas das criaturas dotadas de intencionalidade de ordem superior são relacionais nesse sentido específico da intencionalidade. Os sistemas in-tencionais, segundo Dennett, são aqueles sistemas cujo com-portamento pode ser compreendido com base em suas modifi-cações internas, inclusive representações mais detalhadas de partes do ambiente, que os tornam capazes de lidar com esse ambiente em que estão de maneira direcionada. A nosso ver, uma concepção da intencionalidade como essa de Dennett abre caminho para pensarmos a intencionalidade como um tipo de relacionalidade factual, que inclui certamente sempre capacidades mentais dos diversos tipos de criaturas ou mentes, mas que não se reduziria a tais capacidades mentais internas. É essa ideia de uma intencionalidade factual que desejamos explorar no restante deste capítulo.

Voltemos àquela distinção de Searle entre a intenciona-lidade intrínseca da mente humana e a intencionalidade deri-vada dos objetos culturais, inclusive a linguagem. Na medida em que não há objeto cultural sem que alguns indivíduos hu-manos o reconheçam enquanto tal, é claro que é a perspectiva humana que faz com que alguma coisa no mundo social seja intencional. Um exemplo (entre tantos outros) é o de uma nota de dinheiro, que possui algum valor monetário em virtude do que nela está estampado e da compreensão que os indivíduos humanos têm sobre sua função em determinadas relações so-

Page 86: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

85

ciais. Sem isso e sem a linguagem que usamos para estampar na nota a informação sobre seu valor monetário, ela é apenas um pedaço de papel com manchas de tinta. Então é claro que não é possível entender esse objeto cultural, assim como tan-tos outros, independentemente dos estados mentais dos indi-víduos que o reconhecem enquanto tal. A nota de dinheiro é claramente relacional tanto em sua função monetária específi-ca quanto em sua dependência da perspectiva humana. Mas a nosso ver isso não quer dizer que sua intencionalidade seja apenas derivada, enquanto a intencionalidade dos estados mentais humanos seria intrínseca ou primitiva, como diz Sear-le.

De nosso ponto de vista, a explicação de Searle da in-tencionalidade dos objetos culturais tem a ver mais com sua origem do que com sua função. Muitos objetos culturais são objetos concretos ou materiais que adquirem significações especiais para os seres humanos, como o caso da nota de di-nheiro ilustra. Outros objetos culturais são inteiramente abs-tratos, embora possam se manifestar, digamos, em determi-nadas situações que envolvem coisas materiais. Um caso que ilustra isso é o das instituições, que são entidades abstratas, mas se tornam aparentes no mundo em virtude do comporta-mento das pessoas e da forma como elas lidam com certos ob-jetos materiais. As instituições e os demais objetos culturais que não possuem uma documentação fixa em algum objeto material também são de natureza perspectivista, no sentido de serem o que são apenas segundo a compreensão que os seres humanos têm deles. Mas essa compreensão tem a ver mais com sua função social, e não com sua origem. Naquele exem-plo da nota de dinheiro, seu caráter intencional é patente em virtude de sua função social. É isso o que faz dela um objeto de valor (monetário) em vez de ser apenas um pedaço de papel (cujo valor monetário pode ser irrisório se comparado com o valor que ela tem estampado). Suponhamos que uma nota de 100 Reais valha 1 Real enquanto papel e tinta. Se ela for autên-tica (porque foi produzida na Casa da Moeda e posta em circu-lação pelo Banco Central), ninguém vai vendê-la por 1 Real. E isso porque ela tem uma função social especial.

Page 87: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

86

A perspectiva de Dennett, como vimos acima naqueles casos dos quatro tipos de criaturas dos quais ele fala, nos ajuda a prestar atenção à função das realidades mentais. São suas diferentes funções no quadro da vida de relação das mencio-nadas criaturas que nos levam a pensar em diferentes ordens de intencionalidade. Por exemplo, a funcionalidade dos esta-dos representacionais das criaturas gregorianas que exibem a intencionalidade de segunda ordem — de terem crenças sobre crenças — é diferente daquela de outros estados intencionais, permitindo às criaturas gregorianas lidar com o ambiente de maneira mais sofisticada.

Assim, podemos conceder a Searle que a emergência de realidades sociais (como a nota de dinheiro) pressupõe reali-dades mentais de criaturas gregorianas, que possuem consci-ência reflexiva e uso da linguagem verbal, mas não implica que o caráter intencional dos objetos culturais não seja também próprio. De certa forma, é o emprego dessa noção de proprie-dade intrínseca por parte de Searle que representa alguma dificuldade. A distinção entre propriedades intrínsecas e pro-priedades relacionais é complicada e difícil de ser sustentada. Pois em todos os domínios da realidade as propriedades das coisas se tornam aparentes nas relações que elas têm umas com as outras. Concordamos que a intencionalidade da nota de dinheiro e dos demais objetos culturais é funcional nesse sentido de ser uma intencionalidade aparente apenas no con-texto das relações entre os seres humanos de determinada cul-tura. E é claro também que a funcionalidade de nossos estados mentais é de outro tipo. Mas só sabemos também de seu cará-ter intencional nas relações com outras coisas.

Retomemos o caso da dor, que discutimos no início deste capítulo. Na economia interna do organismo, a dor pos-sui uma função específica. E essa, como vimos, era a razão principal para Brentano sustentar que os sentimentos em ge-ral, como dor e prazer, também são estados mentais intencio-nais. A dor é relacional, mas apenas no contexto da economia interna do organismo. Passemos agora ao caso daqueles esta-dos mentais claramente representacionais, como as crenças. Ora, esses são estados intencionais em virtude de sua relação com elementos ambientais, em virtude de seu papel na vida de

Page 88: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

87

relação do organismo. Ainda que de maneira abstrata possa-mos pensar o objeto da crença como algo in-existente ou ima-nente a ela enquanto estado representacional, sua função é relacional e tem a ver com aquilo que ela representa do ambi-ente para o sujeito. Se não fosse assim, não haveria para nós qualquer diferença relevante entre crenças falsas e verdadei-ras. Desejamos nos livrar de nossas eventuais falsas crenças justamente porque elas não têm funcionalidade ou, melhor dizendo, elas não cumprem o papel que devem cumprir as crenças na vida de relação do organismo humano, já que elas não ajudam a lidar com o ambiente de maneira adequada.

Se considerarmos os estados intencionais dessa forma, podemos então encarar a intencionalidade como funcionali-dade relacional, isto é, como o fato de determinado objeto estar necessariamente relacionado com outros em virtude de seu papel em determinado sistema ou contexto. Essa noção ainda é compatível com aquela defendida por Brentano, pois podemos dizer que aqui também há a referência de um objeto a outro. A funcionalidade relacional também é intencionalida-de como referência a algo como objeto. A diferença é, contudo, que essa relacionalidade é imanente não porque um objeto in-exista no outro, mas porque ambos os objetos in-existem no sistema ou contexto nos quais eles têm uma relação necessária. É nesse sentido que podemos dizer que essa é uma noção de intencionalidade factual. Ela não se aplica apenas aos estados ou fenômenos mentais, mas também a outros tipos de coisas.

Se aceitarmos essa definição mais ampla, incluímos como intencionais todos os objetos vitais, mentais e sociais, e continuamos e excluir os objetos físicos ou puramente materi-ais. Ou, mais especificamente, mediante a noção de intencio-nalidade como funcionalidade relacional, podemos identificar um objeto intencional em virtude de sua função em determi-nado contexto ou sistema. Assim, não importará muito se a dor é intencional porque é representacional — aquele ponto de polêmica entre Brentano e Hamilton, como vimos acima. Pois a dor tem uma função clara na economia do organismo e é nela que ela tem essa função. Sua relacionalidade depende desse contexto ou sistema orgânico.

Page 89: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

88

O mesmo vale então para aqueles estados mentais cla-ramente representacionais em relação a partes do ambiente, como nossas crenças. E vale também para os objetos culturais. Sua intencionalidade deriva não do mentalismo humano, mas de sua função nas relações sociais. Entretanto, para reconhe-cermos que a intencionalidade tem a ver mais com a funciona-lidade relacional, é preciso considerarmos os fenômenos men-tais de uma perspectiva emergentista, como veremos num dos próximos capítulos. Desse ponto de vista, não há uma intenci-onalidade intrínseca em oposição a uma intencionalidade de-rivada. Apenas o caráter relacional de nossos estados mentais é específico e diferente daquele dos objetos culturais, assim como é diferente daquela intencionalidade dos estados pura-mente biológicos ou orgânicos, aqueles que não reconhecemos como casos ligados especificamente ao mentalismo, isto é, que não dependem da consciência reflexiva.

* Questões para revisão

1. Explique a noção de Brentano de intencionalidade co-mo relacionalidade e por que ela seria própria apenas dos fenômenos mentais.

2. Qual é a relação entre a noção de representação (men-tal) e a noção de intencionalidade, de Brentano?

3. De que maneira Searle aplica a noção de intencionali-dade na caracterização da mente humana?

4. Explique a abordagem intencional, de Dennett, compa-rando-a às duas outras abordagens de que ele fala.

5. Comente a noção de intencionalidade factual como re-lacionalidade funcional, especialmente quando aplica-da ao caso dos objetos culturais e sua relação com a mente humana.

Page 90: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

89

Leituras adicionais recomendadas Os argumentos de Dennett em favor da distinção entre as três abordagens e de sua distinção entre os quatro tipos de criatu-ras de que ele fala estão em seu livro Tipos de mentes (DEN-NETT, 1997), capítulos 2 e 4, respectivamente. Aí se encontra também uma discussão sobre a distinção de Searle sobre os dois tipos de intencionalidade, original e derivada (cap. 2, p. 51s). De Searle, vale a leitura do capítulo 4 de seu Mente, lin-guagem e sociedade (SEARLE, 2000), sobre sua concepção da intencionalidade e, para o caso das realidades sociais, o capítu-lo 5 da mesma obra. Atividade complementar Depois da leitura dos textos acima indicados de Searle e Den-nett, assim como da parte final do presente capítulo, discuta a questão da distinção entre intencionalidade original e deriva-da, posicionando-se ou em favor de Searle, ou em favor de Dennett e do que dissemos acima a respeito desse assunto.

§

Page 91: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

90

Page 92: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

91

5

MATERIALISMO, FISICALISMO E FUNCIONALISMO As teorias materialistas ou fisicalistas da mente constituem uma boa parte da filosofia da mente contemporânea. Há uma variedade delas e certas interdependências entre as principais posições. Podemos dizer que há duas tendências predominan-tes, que são aquela de tomar o entendimento dos eventos men-tais como uma questão ligada à neurofisiologia e aquela para a qual o mentalismo humano deve ser comparado ao processa-mento de informação no domínio das ciências da computação, especialmente a inteligência artificial. A meio caminho entre essas duas abordagens, por assim dizer, podemos considerar aquelas teorias da mente no domínio da ciência cognitiva, área que se vale da colaboração com ambas essas abordagens. Nesse domínio de discussões há uma pluralidade de noções e os termos nem sempre são utilizados de maneira uní-voca e inequívoca. Como há dois aspectos principais que essas discussões exibem, a saber, o aspecto metafísico e o aspecto conceitual, podemos começar por aí para colocar uma ordem mínima no uso dos termos e no estabelecimento de relações mais exatas entre as noções. Para isso, vamos nos referir a no-ções, concepções ou teorias materialistas quando se trata de discutir aquilo de que são feitas as mentes, seu estofo, como já dissemos nos capítulos anteriores. E quando se trata de indicar propriedades da mente, ou predicados mentais, ou conceitos aplicáveis ao mentalismo humano, vamos nos referir a noções, concepções ou teorias fisicalistas. Em resumo, nas discussões deste capítulo, vamos tomar o materialismo como um monis-mo de substância ou estofo; e vamos tomar o fisicalismo como um monismo conceitual, mais especificamente, um reducio-nismo conceitual. Uma consequência dessa convenção é que o chamado materialismo reducionista — às vezes também indicado como a teoria da identidade (entre mente e cérebro) — continua a

Page 93: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

92

ser indicado pelo termo “materialismo”, pois, além de ser um monismo de substância, admite a possibilidade de conceitos mentalistas, mas argumenta que eles são redutíveis a conceitos fisicalistas. Por sua vez, o que na literatura tem sido denomi-nado materialismo eliminativista será aqui indicado pelo ter-mo “fisicalismo”, já que é um monismo conceitual, isto é, afir-ma que os próprios conceitos mentalistas, mais cedo ou mais tarde, com o progresso da ciência, serão encarados como no-ções relativas a entidades e processos que não são reais.

A principal razão para introduzirmos essa convenção linguística é que, a nosso ver, como já indicamos antes e como ainda discutiremos nos próximos capítulos, podemos combi-nar o monismo de estofo com o pluralismo conceitual. Há, portanto, algumas combinações entre o materialismo e o fisi-calismo, sendo uma delas a posição conhecida na literatura como funcionalismo, posição que, aliás, apesar de se valer também da noção de função, nada tem a ver com o tipo de abordagem funcional que discutimos no fim do capítulo ante-rior.40 O fisicalismo que vamos considerar aqui é distinto da-quele que Rudolf Carnap defendeu quanto à segunda formula-ção de seu sistema construcional, que comentamos no capítulo 3, acima. A postura de Carnap era instrumentalista e o que importava para ele era poder definir rigorosamente em termos

40 Há uma vasta literatura sobre essas teorias e abordagens e vamos indicar aqui apenas alguns títulos dos principais autores que as dis-cutem seja de forma mais introdutória e panorâmica, seja de forma mais aprofundada, como: CHURCHLAND, 1992 e 2004; 1996; KIM, 1996; RORTY, 1979. Sobre o chamado materialismo australiano, criticado por Rorty e também comentado pelos outros autores aqui citados, também cf. ARMSTRONG, 1993 [1968], e PLACE, 2004. Além de David Armstrong e Ullin Place, J. J. C. Smart é outro autor ligado a essa escola. Sobre o funcionalismo, além das obras acima mencionadas, cf. PUTNAM, 1975 (especialmente, cap. 14–22). Sobre a relação com as neurociências, cf. ainda CHURCHLAND, 1989, de Patricia Churchland, hoje considerado um clássico nesse domínio. Sobre a relação com a ciência cognitiva, neurociências e inteligência artificial, cf. GARDNER, 1985 e 1995.

Page 94: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

93

observacionais todos os conceitos científicos. Assim, seu fisica-lismo consistia na tese de que a linguagem fisicalista — aquela que descreve ocorrências e propriedades das coisas materiais como um domínio intersubjetivo de observação — é a lingua-gem universal que permite reduzir ou interpretar todos os ou-tros conceitos científicos (psicológicos e culturais) de forma rigorosa e observacional. Podemos dizer, portanto, que esse era um fisicalismo de dicto. O fisicalismo a que nos referimos neste capítulo, e que está ligado à posição conhecida como materialismo eliminati-vista, é um fisicalismo de re. Ou seja, trata-se da tese de que todos os conceitos mentalistas são falsos conceitos que serão abandonados com o progresso da ciência e substituídos por conceitos físicos. Mas quais são exatamente esses conceitos físicos, esse é um problema especial dessa forma de fisicalis-mo. Eles não são os mesmos conceitos físicos daquele fisica-lismo de Carnap. Esse fisicalismo eliminativista na filosofia da mente pode pretender que os conceitos neurofisiológicos se-jam legítimos e que vão ser conservados no futuro da ciência; mas pode ainda ser mais radical e afirmar que, de fato, os pró-prios conceitos neurofisiológicos também serão abandonados em favor de conceitos puramente físicos, digamos, do tipo que encontramos nas disciplinas do domínio da física. Nesse caso, é a física do futuro que vai, em última instância, explicar o mentalismo humano. No sentido daquele fisicalismo de Carnap, o materia-lismo reducionista também é uma forma de fisicalismo, obvi-amente, pois o que ele afirma é que os conceitos mentalistas são redutíveis a conceitos fisicalistas, neurofisiológicos, por exemplo, que os fundamentam. Mas o uso da linguagem men-talista e dos conceitos a ela relativos não precisa ser abando-nado; é preciso apenas que saibamos, ao utilizá-los, a que con-ceitos neurofisiológicos nos referimos. E o mesmo deve valer então para esses próprios conceitos fisiológicos, que também não serão eliminados, mas apenas fundamentados por concei-tos fisicalistas mais básicos. Como a preocupação principal do materialismo reducionista é com o problema do estofo das realidades mentais, desde que o monismo de substância seja

Page 95: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

94

mantido, o uso de conceitos alternativos, mentalistas, não re-presenta problema. Entretanto, já que introduzimos aquela convenção no uso dos termos, vamos começar discutindo essa última posi-ção, isto é, o que vamos denominar materialismo. Em seguida, vamos discutir o que vamos denominar fisicalismo; e, por fim, o funcionalismo. Enquanto esse último é compatível, como veremos, com a perspectiva emergentista, que vamos ver nos próximos capítulos, embora também se distinga dela, tanto o materialismo quanto o fisicalismo se opõem ao emergentismo, embora por razões diferentes. A tese central do materialismo como uma posição me-tafísica quanto ao estofo de que são feitas as coisas — grosso modo, a matéria —, é aquela segundo a qual tudo o que há é de natureza material; portanto, a mente também. Esse materia-lismo se opõe, assim, ao dualismo e ao tipo tradicional de mentalismo. Assim sendo, segundo essa forma de encarar a mente humana, quando falamos da mente, estamos falando do próprio cérebro ou, de forma mais geral, do sistema nervoso central, isto é, de todas as estruturas neurofisiológicas cujo funcionamento normal dá ocasião a haver eventos mentais. Em resumo, um evento mental é um evento neurofisiológico. Na literatura de filosofia da mente contemporânea há duas versões dessa tese de identidade da mente com o cérebro, digamos assim para resumir. Uma delas é aquela da identida-de de tipo, a outra, aquela da identidade de ocorrência.41 A diferença fundamental entre essas versões é a de identificar todos os eventos mentais de determinado tipo com um tipo de evento neurofisiológico, no caso do materialismo de tipo, ou então de identificar alguma ocorrência de evento mental com alguma ocorrência de evento neurofisiológico, o que não im-plica que toda ocorrência de determinado evento mental tenha de ser correlacionada com o mesmo tipo de ocorrência neuro-

41 Na literatura pertinente, essas duas posições têm sido indicadas, respectivamente, como type physicalism e token physicalism. Res-peitando então a convenção que propusemos acima, vamos denomi-ná-las materialismo de tipo e materialismo de ocorrência.

Page 96: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

95

fisiológica, ou vice versa. Para esse materialismo de ocorrên-cia, a ideia é apenas que sempre que há um evento mental, há também um evento neurofisiológico, mas que não precisa ser sempre um evento da mesma classe. Já para o materialismo de tipo, todo evento mental de determinada classe corresponde a um evento neurofisiológico da mesma classe. Por exemplo, se uma dor for a excitação de fibras nervosas C, então o termo “dor” é apenas e sempre uma forma econômica de nos referir-mos a um evento neurofisiológico com as fibras C. Não há dor que não seja um evento com essas fibras.42 Devemos reconhecer o grande apelo que esse materia-lismo representa para a mentalidade científica de hoje em dia. Como nossa tendência predominante é em favor do monismo de substância, a identidade entre mente e cérebro é uma ideia muito sugestiva. Pois esse materialismo implica reconhecer que todo evento ou estado mental não apenas nos seres huma-nos, mas também nas outras espécies animais, está correlacio-nado com eventos ou estados neurofisiológicos. Em suma, on-de há mentalismo, há estruturas neurofisiológicas de certa complexidade. Aquele mentalismo naturalista de Searle, que vimos no capítulo precedente, por exemplo, é compatível com essa posição. O emergentismo e o supervenientismo, que ve-remos no próximo capítulo, são igualmente compatíveis com esse materialismo. Mas ele implica também que só há menta-lismo onde há essas estruturas neurofisiológicas sofisticadas e que, portanto, os eventos mentais não podem ser realizados em estruturas constituídas de outra maneira — uma ideia que não é aceita pelo funcionalismo, como veremos adiante. Mais uma vez, a razão para que esse materialismo seja compatível com diversas outras posições na filosofia da mente

42 Essas fibras nervosas (dos tipos A e C) são prolongamentos das células nervosas, os neurônios, incluindo suas partes denominadas axônios e as células gliais, que são as células do sistema nervoso que dão sustentação à estrutura neuronal, mas que não são propriamente células nervosas. As fibras A são de maior diâmetro e as C de menor diâmetro, as primeiras são mielinizadas, as segundas não. A mielina é uma substância lipídica que envolve as fibras nervosas.

Page 97: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

96

decorre de seu caráter metafísico, isto é, de ser um monismo de substância. E, justamente, algumas das outras posições mencionadas, como veremos, sustentam que se pode manter o monismo de substância sem identificar o mental com o neuro-fisiológico. Isso vale particularmente tanto para o funcionalis-mo quanto para o emergentismo, embora por diferentes ra-zões, como veremos. Contudo, se voltarmos a considerar aquelas duas ver-sões da tese de identidade a que nos referimos acima (o mate-rialismo de tipo e o materialismo de ocorrência), nos damos conta de que o segundo está mais próximo da perspectiva fun-cionalista, enquanto o primeiro está mais próximo do fisica-lismo eliminativista. Pois, para o materialismo de ocorrência, há a possibilidade de múltipla realização do mental, embora restrita ao domínio neurofisiológico específico. Por exemplo, para os seres humanos, a dor como evento mental pode cor-responder à estimulação de fibras C, mas para outra espécie pode corresponder a outro tipo de acontecimento neurofisio-lógico. Entretanto, na economia dos diferentes organismos, a dor como evento mental desempenhará a mesma função. E isso abre então a possibilidade de preservarmos os conceitos mentalistas, pois eles não receberão a mesma interpretação neurofisiológica sempre, mas, por assim dizer, receberão a mesma interpretação funcional. Ao contrário, para o materialismo de tipo, todos os conceitos mentalistas sempre recebem a mesma interpretação neurofisiológica. E, nesse caso, os próprios conceitos funcio-nais devem ser reduzidos aos conceitos neurofisiológicos exa-tos. Ora, tanto os defensores do funcionalismo, como veremos, quanto os defensores do emergentismo negam que os concei-tos funcionais mentalistas tenham de ser reduzidos a conceitos neurofisiológicos. Assim, eles podem concordar em parte com o materialismo de ocorrência, embora desejem sustentar teses mais radicais do que aquelas do materialismo. Mas tais teses são mais radicais no sentido meramente conceitual, não no sentido metafísico. O fisicalismo eliminativista é também mais radical do que o materialismo no sentido conceitual, mas de forma opos-ta ao funcionalismo e ao emergentismo. Esse tipo de fisicalis-

Page 98: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

97

mo está associado à chamada indução pessimista quanto à história das ciências. Segundo essa forma de pensar, assim como muitos conceitos e teorias do passado foram abandona-dos e são hoje considerados completamente equivocados, o mesmo vai ocorrer com os conceitos e teorias mentalistas. Os casos citados pelo fisicalismo eliminativista são, por exemplo, a teoria do flogisto, abandonada depois dos trabalhos de La-voisier sobre o oxigênio, o vitalismo, abandonado em decor-rência dos progressos na fisiologia experimental, a concepção geocêntrica na astronomia, abandonada depois de Copérnico etc. Essa ideia de indução pessimista é associada pelos de-fensores do fisicalismo a uma concepção realista da ciência, segundo a qual, a partir de determinadas conquistas científicas — teóricas e experimentais —, certo conhecimento aproxima-damente verdadeiro foi alcançado a respeito dos eventos men-tais, assim como ocorreu em outras áreas, de tal forma a im-pedir retrocessos ou rupturas daquele tipo que haveria nas revoluções científicas, tal como, por exemplo, argumenta Thomas Kuhn.43 Para esse realismo científico, ainda há erros a serem eliminados pela ciência do futuro, mas já há acertos básicos que não estão sujeitos a revisão. E um deles é aquele a respeito da mente humana, de que os eventos mentais são eventos neurofisiológicos. Assim, a neurofisiologia do futuro vai tudo explicar sobre o mentalismo humano, sem necessida-de alguma de noções mentalistas. Todas elas serão abandona-das no devido tempo. As concepções mentalistas serão então reconhecidas como mitos ou falsas crenças. É preciso reconhecermos que os defensores desse fisi-calismo fundamentado na indução pessimista e no realismo científico têm certa razão. Em primeiro lugar, no plano metafí-sico, esse fisicalismo também é adepto do monismo de estofo. Do ponto de vista das ciências e da filosofia de hoje, em sua enorme maioria, esse fisicalismo está correto. Em segundo lugar, também é verdade que algumas teorias e noções menta-

43 Cf. KUHN, 1970 e 1987, hoje considerado um clássico da postura antirrealista.

Page 99: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

98

listas do passado, mesmo que não comprometidas com a nega-ção do monismo de estofo, não parecem hoje sustentáveis à luz de algumas realizações científicas. É difícil darmos exemplos retirados da própria psicologia científica desde o fim do século XIX, mas poderíamos apontar aquelas concepções antigas, algumas das quais permanecem na chamada psicologia popu-lar. Um exemplo sugestivo retirado da psicologia popular, mas que encontraria eco em algumas escolas de psicologia científi-ca, é o de que os sonhos são eventos mentais que nos fornece-riam conhecimentos extraordinários. Ora, para algumas esco-las de psicologia, como a psicanálise de orientação freudiana, os sonhos podem ser reveladores de aspectos importantes da conformação psíquica das pessoas.44 Mas, para a neurofisiolo-gia, eles são apenas estados de consciência comparáveis àque-les induzidos pelo uso de determinadas drogas, comparáveis, portanto, a alucinações — e por isso sem qualquer valor cogni-tivo.

Outro exemplo ligado ao mentalismo tradicional, mas que, de fato, não é propriamente da psicologia e sim de uma espécie de neurofisiologia do passado, encontramos em Des-cartes. Embora Descartes fosse um dualista, como vimos no capítulo 2, sua teoria sobre os espíritos animais seria compatí-vel com o monismo de substância. E ainda que a noção de es-píritos animais como mensageiros de informação entre o cére-bro e os membros do corpo pareça prefigurar a noção atual de neurotransmissor, a aceitação dessa noção e da teoria que a associa a todo o modelo neurofisiológico do corpo humano implica que a noção de espírito animal, daqueles corpúsculos dos quais Descartes falava, é uma concepção errônea a ser de-finitivamente abandonada. A história da fisiologia e da psico-logia pode nos fornecer outros exemplos desse tipo. Contudo, quando os fisicalistas apontam concepções mentalistas que seriam abandonadas e consideradas míticas em virtude dos progressos na neurofisiologia, eles estão em geral se referindo

44 Cf., por exemplo, o famoso texto de Freud, A Interpretação dos sonhos; FREUD, 2010 [1955/1899] e 2006.

Page 100: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

99

a concepções da psicologia popular, e não da psicologia profis-sional, propriamente científica. A argumentação empreendida pelos defensores do fisi-calismo em bases epistemológicas pode ser redirecionada con-tra sua própria concepção. Ora, por mais que as teorias neuro-fisiológicas de hoje nos pareçam basicamente corretas, seria um otimismo injustificável apostar que a ciência do futuro não vai fazer revisões drásticas em relação a elas. Não é preciso que defendamos uma forma de antirrealismo como aquela de Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas e as trocas de paradigmas, que representam rompimentos radicais entre tradições científicas, para nos darmos conta disso. Podemos manter o realismo científico e mesmo assim, com base na mesma indução pessimista utilizada pelos fisicalistas, apos-tarmos que o progresso da ciência, mesmo que com base nas realizações atuais, vai conduzir a abandonar as concepções que hoje nos parecem corretas. Assim, do ponto de vista epistemo-lógico, esse fisicalismo eliminativista só se manteria se abra-çasse apenas o realismo científico, deixando de lado a indução pessimista. Contudo, mesmo no quadro do realismo científico, a indução pessimista é em parte razoável, assim como é razoável também certo otimismo em relação aos progressos que a pes-quisa em neurofisiologia tem feito. Assim, mesmo que mante-nhamos a ideia de que a neurofisiologia do futuro vai explicar os eventos mentais de forma muito mais convincente, permi-tindo eliminar algumas noções mentalistas de hoje, devemos admitir ao mesmo tempo a possibilidade de que as próprias teorias neurofisiológicas de hoje sejam abandonadas ou drasti-camente revisadas. Apenas um realismo científico muito ingê-nuo nos levaria a acreditar que hoje já temos uma neurofisio-logia tão bem elaborada a ponto de não sofrer revisões impor-tantes em suas teorias e conceitos mais centrais. Como uma decisão ou em favor de um realismo mais crítico, ou em favor desse realismo ingênuo, em última instân-cia, é uma questão que, no que diz respeito ao estado atual da neurofisiologia, só vai se resolver com o tempo e os resultados científicos concretos, a posição fisicalista parece ter pouco ape-lo, afinal. Em última instância, ela implica que no futuro não

Page 101: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

100

haverá qualquer psicologia, mas apenas uma neurofisiologia todo-poderosa. Além disso, o fisicalismo levado às últimas consequências não teria por que se deter na relação entre a psicologia e a neurofisiologia, mas deveria também defender a eliminação da própria neurofisiologia em favor da física do futuro. Mas isso significaria desconsiderar o fenômeno da complexidade totalmente. Como veremos no próximo capítulo, o surgimento de estruturas mais complexas em partes do mundo nas quais elas não existiam pede uma postura ontoló-gica e epistemológica mais inclusiva. Se, por outro lado, o defensor do fisicalismo não deseja ir tão longe e eliminar a própria neurofisiologia, mas apenas a psicologia, então ele deve poder de maneira analítica e pura-mente conceitual demonstrar que os conceitos neurofisiológi-cos são superiores aos conceitos mentalistas. E ele faz isso de forma imperfeita, pois se baseia em resultados da neurofisio-logia de hoje que implicam o abandono de algumas noções mentalistas, mas não analisa as limitações da neurofisiologia nem as realizações bem-sucedidas da própria psicologia. As-sim, a tese de que todos os conceitos mentalistas podem e de-vem ser eliminados em favor de conceitos neurofisiológicos não está estabelecida e, de fato, parece gratuita e preconceitu-osa. Ela parece decorrer de um cientificismo injustificável, pouco crítico em relação aos próprios resultados da neurofisio-logia nos quais se baseia. Desse modo, aquilo em que poderíamos concordar com os fisicalistas não parece ser mais do que aquilo em que pode-mos concordar com os materialistas de substância. E, no plano científico propriamente, ainda é preciso então considerar di-versas possibilidades. A rejeição de todos os conceitos menta-listas — uma vez sendo eles bem esclarecidos — impediria o que defendem os funcionalistas, que também aceitam o mo-nismo de substância, mas negam que haja a suposta identida-de da mente com o sistema nervoso central. Eles mantêm, ao contrário, a tese da múltipla realização. Esse funcionalismo ligado à tese da múltipla realização do mental é uma das abordagens funcionais, mas há outras. Por exemplo, a noção de funcionalidade relacional que discu-timos no fim do capítulo anterior está ligada a outra aborda-

Page 102: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

101

gem funcional, à qual vamos voltar nos próximos capítulos. A vantagem de todas as abordagens funcionais — e, portanto, também do funcionalismo da múltipla realização — é o reco-nhecimento da complexidade, do fato de que determinadas propriedades mentais decorrem da estrutura de um sistema e não de seus elementos constitutivos propriamente. Vemos logo como o funcionalismo é atraente para aqueles que se entusi-asmam com as conquistas da inteligência artificial (IA). Como há diversas versões do funcionalismo, por exemplo, depen-dendo de sua aproximação com a chamada Inteligência Artifi-cial Forte (IAF) ou com posturas menos radicais nesse domí-nio, vamos identificar aqui pelo termo “funcionalismo” a defe-sa da tese de múltipla realização. Há um famoso argumento na literatura contra a IAF e a tese de múltipla realização que foi apresentado por John Sear-le, a saber, o Argumento da Sala Chinesa.45 Vale a pena come-çarmos por comentar esse argumento. O ponto central de Se-arle é dizer que a programação de uma máquina pode levá-la a processar informação com propriedades meramente sintáticas, sem entendimento, sem propriedades semânticas. Essas últi-mas, sustenta o autor, derivam da intencionalidade intrínseca da mente humana, tal como já comentamos no capítulo ante-rior. Searle convida o leitor a imaginar uma sala completa-mente fechada e que contém manuais (dicionários etc.) de chi-nês. Um indivíduo que não sabe chinês é colocado dentro des-sa sala, e de fora lhe são enviadas mensagens em caracteres chineses, que ele, obviamente, não decifra. Mas os manuais que ele tem a sua disposição dentro da sala lhe permitem a cada mensagem recebida, enviar de volta para fora da sala uma resposta apropriada. Os manuais e seu uso são nessa parábola o equivalente ao processamento da informação pelos compu-tadores e sua programação. Ora, as pessoas fora da sala chine-sa, que enviam para dentro mensagens em chinês e recebem de volta respostas apropriadas, também em chinês, podem achar que quem está dentro da sala sabe chinês, que entende o

45 Cf. SEARLE, 1980.

Page 103: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

102

que lê e escreve. Mas esse não é o caso. Não há entendimento, mas apenas processamento mecânico. E o mesmo se dá com os computadores. Eles não podem entender o que processam. Portanto, eles não pensam como os seres humanos, que pen-sam porque entendem o que dizem. E, assim, segundo Searle, as máquinas não podem ter uma mente comparável à mente humana. O argumento foi bastante debatido em certa época e o próprio Searle fez esclarecimentos. Mas ele nunca abandonou sua tese central, de que as propriedades intencionais da lin-guagem que os seres humanos utilizam derivam da intenciona-lidade da mente humana, que não pode haver nas máquinas. Essas últimas podem estar em determinados estados cogniti-vos, mas não naquele tipo de estado cognitivo mais típico do ser humano, que é uma questão biológica e não de engenharia. Esses são os estados de consciência reflexiva. Ora, os adeptos do funcionalismo, embora em diferen-tes graus, sustentam que não é assim, e que o que faz com que a mente humana tenha as propriedades cognitivas que tem, inclusive aquelas ligadas à compreensão da linguagem no sen-tido semântico, é a arquitetura do sistema mental, e não seus elementos constitutivos. Assim, os mesmos estados mentais, inclusive de consciência reflexiva, poderiam ser realizados em estruturas formadas não por neurônios, mas por microproces-sadores, pentes de memória etc., isto é, por quaisquer disposi-tivos não biológicos que possam suportar o mesmo tipo de processamento que há na mente humana.46 Uma analogia que tem sido frequente da parte de al-guns funcionalistas é com o caso de corações artificiais. Assim como hoje já podemos ter corações artificiais que realizam as mesmas funções cardíacas dos corações humanos naturais, no futuro poderemos ter, argumentam eles, cérebros artificiais que realizarão as mesmas funções mentais do cérebro humano natural. Essa é uma postura muito otimista em relação à enge-

46 No último capítulo de seu livro Brainstorms, Dennett (1981 e 1999) parece endossar essa posição funcionalista, embora seja por meio de uma história de ficção e não via argumentos diretos.

Page 104: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

103

nharia humana que se supõe então ser capaz de realizar em algumas décadas (ou talvez séculos) aquilo que a evolução das espécies no planeta levou milhões de anos para realizar. E es-ses otimistas da IA e da computação acham isso possível, tal como algumas realizações na robótica hoje parecem sugerir, porque os processos da engenharia não são aleatórios como os da evolução, mas direcionados. Esse otimismo para com a engenharia que é sustentado pelos funcionalistas é comparável àquele otimismo dos fisica-listas em relação às ciências experimentais. Ele é justificável em parte porque, de fato, como sugere a comparação com o coração artificial e o desempenho de algumas máquinas (com-putadores e robôs), a técnica hoje permite resultados que pou-cos anos atrás eram considerados impossíveis ou que nem mesmo eram imaginados. Mas essa indução otimista em rela-ção às realizações tecnológicas não é razoável se também não considerar a complexidade das estruturas naturais. Ora, a ci-ência de hoje sugere que, em comparação com um órgão como o coração — que, afinal, é uma espécie de bomba hidráulica natural — o sistema nervoso central é uma estrutura biológica de complexidade muito maior. A função do coração na econo-mia do organismo é bastante simples se comparada àquelas funções — porque há mais de uma — desempenhadas pelo sistema nervoso central. Por mais que já tenhamos feito des-cobertas interessantes e mesmo surpreendentes a respeito do sistema nervoso central e a relação de algumas de suas funções com determinados estados mentais,47 é razoável pensarmos que não sabemos o suficiente para imaginar a construção de um dispositivo artificial que possa substituir o cérebro huma-no, como já é possível no caso do coração. Do ponto de vista conceitual, a importância do funcio-nalismo reside em algo mais modesto, que é apenas o fato de chamar a atenção para a estrutura ou arranjo dos diversos sis-temas. O caso do coração é ainda ilustrativo aqui. O que faz

47 A esse respeito vale a pena consultar o interessante livro de Dama-sio (1994 e 2012), assim como outras obras hoje disponíveis, que são de mesmo teor.

Page 105: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

104

com que o coração artificial seja um substituto a altura do co-ração natural é o fato de que, embora seja construído com ma-teriais completamente diferentes, ele realiza a mesma tarefa que o coração natural. Mas o fato de que isso já seja possível nesse caso específico não significa que também será possível em outros. De fato, no caso do cérebro ou do sistema nervoso como um todo, não sabemos se é possível. Podemos apenas recusar a ideia de que, em princípio, não pode haver um subs-tituto para o cérebro humano. E mesmo Searle, que é um críti-co severo dessa posição, reconhece que não se trata de uma questão de princípio. Contudo, o reconhecimento de que a estrutura de um aparato e a complexidade dele contam para o tipo de evento que ele tornará possível também nos leva a considerar que os fenômenos mentais humanos (e mesmo animais) podem não depender apenas do que está dentro da pele, para utilizarmos uma expressão devida a Skinner. E, como veremos num dos próximos capítulos, ao considerarmos a posição dos corporifi-cacionistas, mesmo o restante do organismo, além do sistema nervoso central, conta para a conformação específica do men-talismo (humano e animal). E mais, se considerarmos então as relações dos indivíduos com o ambiente, algo que não é sus-tentado apenas pela tradição behaviorista, mas também, como veremos, pelos defensores das noções de cognição distribuída e de mente estendida, os eventos mentais parecem não depen-der apenas de nosso aparato neurofisiológico, mas também de elementos ambientais, naturais e sociais. O tipo de sistema complexo que é a mente humana, como veremos nos próximos capítulos, envolve elementos não apenas neurofisiológicos ou, em geral, biológicos no sentido fisiológico, mas também elementos ecológicos e ambientais do ponto de vista evolutivo e do ponto de vista social. Mas carac-terizar a mente como um tipo de sistema complexo requer que também entendamos o tipo de complexidade que surge espon-taneamente no mundo, um tema para o qual se volta a tradição emergentista, cujas ideias serão discutidas no próximo capítu-lo, juntamente com aquelas dos defensores da noção se super-veniência do mental.

Page 106: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

105

* Questões para revisão

1. Explique em que consistem o materialismo de tipo e o materialismo de ocorrência.

2. Explique a posição do fisicalismo e por que, na termi-nologia adotada neste capítulo, essa doutrina se distin-gue do materialismo.

3. Explique a tese de múltipla realização dos funcionalis-tas e mostre por que ela é compatível com o materia-lismo, mas não com o fisicalismo.

4. Explique o argumento da Sala Chinesa, de John Searle, e por que ele é uma crítica radical à inteligência artifi-cial forte.

5. Quais são os argumentos pró e contra a tese de múlti-pla realização do mental defendida pelos funcionalis-tas?

Leituras adicionais recomendadas O livro de Paul Churchland (2004), Matéria e consciência, faz uma detalhada apresentação das posições discutidas aqui, com diversas considerações críticas, especialmente o capítulo 2. Para as questões relativas à inteligência artificial e à neurofisi-ologia, uma obra introdutória apropriada é o livro de Howard Gardner (1995), A nova ciência da mente. Atividade complementar Procure discorrer sobre o tema da indução pessimista, susten-tada pelos defensores do fisicalismo, particularmente o fato de que o argumento pode ser lançado de volta a eles mesmos.

§

Page 107: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

106

Page 108: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

107

PARTE II

O CAMPO A SER DESCOBERTO

Page 109: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

108

Page 110: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

109

6

SUPERVENIÊNCIA E EMERGÊNCIA Um dos aspectos conceituais — ou talvez devamos dizer dou-trinários — envolvidos nas questões discutidas no capítulo anterior é particularmente importante na consideração das noções de superveniência e de emergência, embora esse aspec-to não seja levado em conta pelos autores que na literatura filosófica atual discutem o assunto. Trata-se da diferença entre a abordagem atomista, ou molecularista, ou molecular sim-plesmente, e a abordagem molarista ou molar simplesmente.

É comum que a noção de superveniência seja confun-dida — ou deliberadamente identificada — com aquela de emergência, inclusive porque os termos “superveniência” e “emergência” e seus respectivos correlatos são utilizados pelos diversos autores que se identificam com a defesa de uma ou de outra dessas noções. Mas, para além das confusões meramente terminológicas, há também confusões conceituais de certa im-portância. A nosso ver, e ao contrário do que sugerem filósofos de certa fama nesse domínio de discussões, como Jaegwon Kim, que é, afinal, um dos autores de referência obrigatória sobre essas questões, apesar da aparência de similaridade, há diferenças mais relevantes entre a emergência e a superveni-ência do que alguma semelhança possa levar a entender.48 A nosso ver, a principal dificuldade que os adeptos da superveni-ência, como Kim justamente, têm de compreender a especifi-cidade da emergência decorre do fato de adotarem eles a pos-

48 Cf., por exemplo, KIM, 1993 e 2010, entre outras de suas obras sobre os temas da superveniência e da emergência. Para uma boa introdução à filosofia da mente em geral, cf. KIM, 1996, que também trata do assunto. A distinção entre emergência e superveniência é sustentada por McLAUGHLIN, 2008b, e por DUTRA, 2013b, entre outros.

Page 111: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

110

tura atomista ou molecular, enquanto que é essencial para o ponto de vista emergentista adotar a postura molar. A distinção entre as abordagens molar e molecular pro-vêm da psicologia, especificamente, da análise experimental do comportamento manifesto na tradição skinneriana. Vamos indicar aqui a abordagem molecular também como uma abor-dagem atomista, uma vez que a ideia central é que as realida-des mais complexas no mundo são compostas de elementos menores. Levada ao extremo, essa postura conduz cientifica-mente à busca pelos constituintes últimos da realidade, aquilo que haveria de mais básico e do que são feitas, em última ins-tância, todas as coisas. Assim, tudo o que há é formado a partir de átomos, constituindo moléculas, esses termos sendo utili-zados às vezes literalmente, às vezes metaforicamente. É fácil vermos como aquelas posições examinadas no capítulo anteri-or — o materialismo e o fisicalismo, mas não o funcionalismo — estão ligadas a essa abordagem molecular. Ao contrário, a abordagem molar consiste em tomar inicialmente porções maiores da realidade e, por assim dizer, metodologicamente, proceder de forma inversa, procurando entender o comportamento dos constituintes de uma estrutura a partir do funcionamento do todo.49 Tomar porções maiores da realidade implica postular inicialmente relações necessárias entre as coisas ou, se o termo “necessárias” parecer forte de-mais, filosoficamente falando, relações aparentes tão estáveis que não possam ser desconsideradas. Foi assim que, por exemplo, Skinner apresentou seu conceito de operante ou comportamento operante como um conceito molar em relação ao conceito de comportamento res-pondente, que se encontra nas análises de Pavlov e Watson. O comportamento respondente é provocado no organismo por um estímulo ambiental. O comportamento operante é a rela-

49 Embora seja comum na literatura sobre a análise experimental do comportamento, a distinção entre molarismo e molecularismo é co-locada de forma bastante clara por RACHLIN, 1984, que, a partir dessa distinção também diferencia a tradição behaviorista da psico-logia cognitiva.

Page 112: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

111

ção entre um estímulo ambiental ao qual o organismo respon-de, essa resposta e as consequências ambientais dessa resposta do organismo. Estímulo, resposta e consequências são os três elementos que têm de ser tomados conjuntamente para enten-dermos o comportamento dos organismos animais, argumenta Skinner.50 A distinção entre molar e molecular é relativa, pois quando ampliamos o escopo da análise, podemos encarar aquilo que antes era considerado uma estrutura relacionando certos elementos como um único elemento que, por sua vez, se relaciona com outros em uma estrutura maior. E, ao contrário, se tomamos um elemento de determinada estrutura e o anali-sarmos mais de perto, podemos descrevê-lo como uma estru-tura menor, na qual outros elementos estão relacionados. As-sim, de fato, metodologicamente, molarismo e molecularismo são posturas ou estratégias investigativas. Adotamos uma ati-tude molar quando queremos ampliar o escopo da investiga-ção; adotamos uma atitude molecular (ou atomista) quando restringimos o escopo da investigação. A preferência por uma dessas diferentes estratégias têm muito a ver com certas diferenças metodológicas entre as ciências da natureza a partir da modernidade e as ciências humanas a partir de fins do século XIX. Assim, de maneira geral, podemos dizer que a maior parte das ciências naturais adota uma postura molecularista, procurando explicar certos acontecimentos ou as características de determinada coisa com base na investigação sobre aquilo que a compõe, de que ela é feita, como seus elementos se articulam etc. Devemos a esse respeito salientar que, desse ponto de vista, curiosamente, duas daquelas abordagens das quais Dennett fala, como vimos num dos capítulos anteriores, a abordagem de projeto e a abordagem intencional, apesar das diferenças que Dennett aponta entre elas, compartilham da mesma atitude molecula-rista. E, ao contrário, a abordagem que ele denomina física está ligada à atitude molarista. Pois as duas primeiras se vol-

50 Cf. SKINNER, 1965 [1953]; 2003; e 1976; 1995, livros que contêm apresentações menos técnicas e mais acessíveis de sua posição.

Page 113: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

112

tam para dentro das coisas para explicá-las, enquanto que a abordagem física se volta para fora delas, para a relação entre elas e outros elementos ambientais. Assim, podemos ver que a postura molar pode ser ado-tada também nas ciências da natureza, embora, como disse-mos, haja uma tendência nelas hoje de adotar uma postura molecular, sobretudo depois dos desenvolvimentos mais re-centes — e um tanto impressionantes — da microfísica. E em-bora haja molecularismo também nas ciências humanas, po-demos dizer que há nelas uma tendência maior de adotar a postura molar, na medida em que a relação de alguma coisa com o contexto no qual a encontramos é em geral considerada relevante. Isso é assim, obviamente, mais particularmente na-quelas ciências humanas que têm um viés mais claramente social, aquelas ciências que mais propriamente podemos de-nominar ciências sociais, como a sociologia, a antropologia, a ciência política e a economia. Na psicologia, em particular, dada a variedade de esco-las, encontramos tanto posições molaristas, como aquela da tradição behaviorista, já mencionada, e a Gestalt, quanto posi-ções molecularistas, como a psicanálise e a psicologia cogniti-va. Aqui a diferença básica é aquela que consiste em procurar explicar o comportamento ou como decorrente de fatores in-ternos ao organismo, o caso do molecularismo, ou como de-corrente de fatores externos a ele, o molarismo. Essas posturas não precisam ser muito radicais. É claro que, mesmo adotando a postura molar, podemos reconhecer que muito do que faze-mos depende daquilo que está dentro da pele, para utilizarmos a expressão de Skinner. Em última instância, nosso compor-tamento depende também do aparato neurofisiológico que possuímos. Mas o ponto central para o qual os defensores da postura molar querem chamar a atenção é que, nem por isso, o comportamento depende menos de fatores ambientais. Quando encaramos o comportamento de um indivíduo humano como dependente de suas relações com determinados elementos ambientais, podemos descobrir que o indivíduo humano faz parte de uma espécie de sistema juntamente com esses outros elementos ambientais. O indivíduo humano e o que ele faz tomam parte nesse sistema, dessa estrutura que

Page 114: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

113

relaciona determinados elementos. Essa é a ideia mais funda-mental relacionada com a noção de comportamento operante, de Skinner. Contudo, nem todas as relações que podemos presenci-ar entre determinadas coisas são evidência de haver ali um sistema. Uma distinção fundamental na tradição emergentista ajuda a entendermos esse ponto. Trata-se da distinção feita por George H. Lewes entre resultantes e emergentes.51 É por onde devemos começar a falar de emergência. Suponhamos, por exemplo, um acidente de carro. Esse é um evento que não vamos encarar como um sistema. Embora ele traga conse-quências no mundo, elas não estão ligadas à continuidade da relação entre os carros que colidiram. E conhecendo previa-mente as características desses carros e das vias nas quais eles circulam, podemos prever acidentes desse tipo. Esse é um caso em que temos meros resultantes. Quando temos um emergente, em primeiro lugar, as consequências que sua presença no mundo trazem estão liga-das à continuidade daquele tipo de relação que há entre seus elementos constitutivos, ao sistema que esses elementos for-mam. Em segundo lugar, o conhecimento prévio das caracte-rísticas desses elementos constitutivos do sistema não permite prever nem sua ocorrência, nem as características que tal sis-tema vai ter. Nesse caso, dizemos que o sistema e suas propri-edades emergem a partir daqueles elementos que, no sistema, estão em relação. Esses elementos são suas condições de base ou condições basais. Isso significa que as propriedades do sis-tema como um todo, do emergente, não são dedutíveis — e, portanto, não são também redutíveis — às propriedades de seus constituintes ou condições de base, embora dependam

51 Cf. LEWES, 1875b, p. 368. A monumental obra desse autor merece ser lida por aqueles que se interessam pelo emergentismo, embora ele não seja hoje dos autores mais citados que pertencem a essa esco-la. Cf. LEWES, 1875a; 1875b; 1979a; 1879b; 1891.

Page 115: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

114

delas de alguma maneira, pois, sem elas, o sistema não existi-ria. Explicar isso é o desafio da tradição emergentista.52

Como, desse ponto de vista, o comportamento de um dos elementos do sistema emergente não pode ser nele com-preendido independentemente do contexto criado pelo próprio sistema, aqui temos um caso de abordagem molar. Não é pre-ciso isso para explicarmos os resultantes, o acidente de carro, por exemplo. Nesse caso, podemos adotar a postura molecular. Outro aspecto importante que distingue os emergentes dos resultantes é que a relação entre um resultante e os elementos ambientais que nele estão envolvidos é uma relação causal. Mas a relação entre um emergente e suas condições de base não pode ser causal. Há uma relação, mas ela é de outro tipo, como veremos no próximo capítulo.

Outra forma de falar das propriedades emergentes de um sistema é dizer que elas lhe sobrevêm ou, para utilizarmos a forma mais comum na literatura, que tais propriedades são supervenientes em relação às condições de base do sistema. O próprio sistema é superveniente em relação a suas condições de base. Esse é um modo de expressão às vezes utilizado pelos próprios defensores da noção de emergência. Essa é uma das razões, embora de menor importância, para certa confusão entre as noções de emergência e de superveniência.

Na filosofia da mente, já na segunda metade do século XX, a noção de superveniência é introduzida por Donald Da-vidson, embora em outros domínios da filosofia ela já fosse utilizada.53 Davidson está ligado também a uma forma de ma-

52 O emergentismo remonta não apenas a Lewes, acima mencionado, mas também a seu contemporâneo John Stuart Mill (1882 [1842]), e tem como principais representantes desse Emergentismo Britânico, já no século XX, Samuel Alexander (1927 [1920]), Conwy Lloyd Mor-gan (1927 [1923]) e Charlie D. Broad (1925). Sobre essa escola, cf. DUTRA, 2013b; 2015; 2017, cap. 3; e McLAUGHLIN, 2008a. Sobre o emergentismo em geral, especialmente as discussões das últimas décadas, cf. o volume BEDAU; HUMPHREYS, 2008. 53 Cf. DAVIDSON, 1980, especialmente os ensaios 11 a 13. Cf. tam-bém KIM, 1993 e 2010. Esse autor mostra como a noção de superve-

Page 116: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

115

terialismo, isto é, a um monismo não reducionista, que ele denomina Monismo Anômalo.54 Comentaremos logo adiante a concepção de Davidson, mas antes voltemos a um ponto discu-tido no capítulo 3 que também tem relevância para bem en-tendermos as noções de superveniência e de emergência. Tra-ta-se da noção de níveis de abstração, que comentamos a res-peito da filosofia da mente de Ryle.

Em diversos dos textos em que discute a noção de su-perveniência, Kim se refere aos exemplos provindos das dis-cussões de Moore e de Hare a respeito da superveniência dos conceitos morais em relação aos conceitos naturalistas. Pode-mos dizer, por exemplo, que alguém é bom porque se compor-ta de certa maneira. Nesse caso a relação entre o conceito mo-ral e suas condições de base é de superveniência. Fazer deter-minadas coisas, por sua vez, subvém a ser bom. Está claro, portanto, que o conceito moral é mais abstrato do que aqueles que se referem a suas condições de base. Isso é semelhante ao exemplo de Ryle da universidade. Confundir os níveis de abs-tração, como vimos, é cometer um erro categorial. Kim não diz, contudo, que essa é a mesma maneira pela qual, para o behaviorismo definicional, os conceitos teóricos são definidos com base em conceitos observacionais. Mas ele menciona o fato, com isso relacionado, que essa é também a maneira pela qual o materialismo reducionista interpreta os conceitos men-talistas.

Em suma, a superveniência pode ser encarada como uma questão pura e simples de nível de abstração. Por exem-plo, quando falamos de um sistema qualquer, estamos empre-gando um termo abstrato. Se considerarmos que é concreto aquilo que podemos observar — o que, do ponto de vista epis-temológico, não deixa de ser uma boa forma de definir o que é

niência provém das discussões de G. E. Moore sobre a moral e, de-pois dele, de R. M. Hare. 54 “Anomalous monism” é a expressão original em inglês, cuja tradu-ção em português já se impôs na forma “monismo anômalo”, embora a tradução mais apropriada devesse ser monismo não nomológico, como veremos ao comentar a posição de Davidson.

Page 117: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

116

concreto —, um sistema qualquer é abstrato e seus elementos constituintes são concretos. Mas como essa distinção entre concreto e abstrato em termos de observabilidade também é relativa, isso conduz a resultados curiosos de análise. Um cor-po macroscópico, que para o senso comum é algo observável, desse ponto de vista, de fato, é abstrato, já que o que observa-mos são os nossos dados dos sentidos. E por isso mesmo, co-mo vimos antes, para Carnap, os próprios objetos físicos já são teóricos ou inobserváveis.

Se comparamos esse caso com aquele dos conceitos morais, que são abstratos e supervenientes sobre conceitos naturalistas, tal como Kim comenta os exemplos de Moore e Hare, vemos que, do ponto de vista ontológico, a superveniên-cia não pode ser uma simples questão de nível de abstração. Em seus textos já mencionados, Kim apresenta definições mais técnicas e — devemos dizer, menos intuitivas e mais complica-das — de superveniência e de emergência. Ele distingue por exemplo entre superveniência fraca, forte e global; e afirma que a superveniência é um dos elementos necessários — mas não suficiente — da emergência. Suas análises são certamente relevantes para toda essa discussão, mas não vamos entrar nos detalhes. Ao contrário, vamos introduzir aqui uma distinção alternativa; vamos distinguir entre superveniência de dicto e superveniência de re.

A superveniência de um objeto de um nível mais alto de abstração em relação aos objetos que são suas condições de base pode ser meramente de dicto. Esse é, a nosso ver, o caso das definições de predicados morais com base em predicados comportamentais e das definições de predicados teóricos em geral com base em predicados observacionais. Há uma dife-rença semântica — que é, portanto, conceitual — importante entre os termos teóricos, que se referem a realidades superve-nientes, e os termos observacionais, que se referem a realida-des subvenientes. Sustentar a superveniência quer dizer que não é possível reduzir, mas apenas traduzir com perda se-mântica, os termos mais abstratos aos menos abstratos, os teóricos aos observacionais. A tradução é possível e é justificá-vel, mas o defensor da superveniência vai dizer que os termos observacionais não esgotam a significação dos termos teóricos.

Page 118: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

117

E, ao contrário, o que o behaviorista definicional e o materia-lista reducionista sustentam é que a tradução é completa, que não há resíduo semântico. Mas aqui ainda estamos nos refe-rindo apenas à superveniência de dicto.

A superveniência de re é uma noção de caráter ontoló-gico e não tem a ver apenas com a tradução do vocabulário teórico para o vocabulário observacional e, no caso específico do mentalismo humano, do vocabulário mentalista para o vo-cabulário fisicalista. Para a superveniência de re, um sistema qualquer ainda é uma realidade abstrata em relação a suas condições de base, a seus elementos constitutivos, mas o termo chave aqui é “realidade”. O sistema é algo real, embora seja algo (mais) abstrato. A nosso ver, para o defensor da superve-niência no plano ontológico, o desafio é mostrar como pode algo ser real e ser de natureza abstrata; ou, em outras palavras, que ser um fenômeno ou evento superveniente é diferente de ser apenas um epifenômeno. Embora haja um componente linguístico importante na abordagem de Davidson ao mentalismo humano, a nosso ver, para a ele, a superveniência do mental em relação ao físico é superveniência de re. Isso quer dizer que o mental não é um mero epifenômeno em relação ao físico. É claro que, assim como há uma variedade de significações dos termos “emergên-cia” e “superveniência”, há também uma variedade de signifi-cações de “epifenômeno” e de “epifenomenalismo”. Mas a ideia intuitiva mais comum é aquela segundo a qual um epifenôme-no é algo observável, mas inócuo, que não traz quaisquer con-sequências para a ordem das coisas no mundo. O emprego dessa noção de epifenômeno, de fato, ajuda menos do que po-de parecer à primeira vista. Pois a diferença entre um epife-nômeno e um fenômeno superveniente ou um fenômeno emergente não é nada simples de especificar. Contudo, quando os defensores da superveniência e da emergência tentam explicar suas concepções, é comum eles tomarem o epifenomenalismo como aquilo que eles não dese-jam sustentar, a posição que desejam criticar. Se é assim, um fenômeno superveniente faz diferença na ordem das coisas no mundo; e o mesmo vale para um fenômeno emergente. A nos-so ver, as coisas podem ficar menos obscuras se, mais uma vez,

Page 119: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

118

empregarmos aquelas noções devidas a Lewes, as noções de resultante e de emergente. Vimos que um resultante não traz consequências que dependem da continuidade dele e que as consequências provocadas por um emergente dependem de sua continuidade enquanto tal. Nesse caso, podemos ainda dizer que um epifenômeno é algo que pode ser observado, mas que não traz qualquer consequência para a ordem das coisas. Voltemos ao exemplo do acidente de carro. Trata-se de um resultante, pois podemos prever sua ocorrência com base no que sabemos dos carros e das vias de tráfego. Um acidente desses provoca consequências diversas, inclusive depois que a configuração de objetos do acidente se desfez. O acidente é, por assim dizer, um evento breve, que provoca consequências diversas, mas que cessa logo, pelo menos assim que os carros forem removidos da via, assim como outros objetos envolvi-dos, inclusive possíveis feridos. Quando vemos lá os carros chocados um contra o outro, não estamos vendo mais o aci-dente, mas uma de suas consequências. Outras são os possí-veis ferimentos das pessoas e estragos nos próprios carros, que podem perdurar. Mas o acidente se foi num instante. Ele pode ser observado e, embora dure pouco e logo cesse, não é um epifenômeno, já que provoca consequências diversas. Não é fácil, na verdade, dar exemplos de epifenômenos. Há, contudo, metáforas comuns na literatura. Algumas vezes a metáfora utilizada é aquela da sombra projetada por um corpo. Se um carro vai indo por uma estrada e sua sombra o acompa-nha o tempo todo, esse seria um caso de epifenômeno. A som-bra está ali o tempo todo, mas não traz qualquer consequência para o movimento do carro nem para quaisquer outras coisas no mundo. O movimento da sombra depende do movimento do carro, mas esse não depende daquele. Há uma assimetria entre os dois fenômenos. O fenômeno inerte é o epifenômeno. Se a sombra do carro fizesse alguma diferença para o movi-mento do carro, ela não seria um fenômeno inerte e, logo, não seria um epifenômeno. Como veremos no próximo capítulo, os emergentistas insistem que as realidades emergentes não são inertes e por isso, inclusive, eles têm dificuldade de explicar quais seriam seus poderes causais. A superveniência resta um tanto confusa em comparação com os dois lados, pois ora pa-

Page 120: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

119

rece se aproximar de um epifenômeno, ora de um emergente. Para não ser reduzido a um epifenômeno, é preciso que um fenômeno superveniente provoque consequências no mundo. Ele deve, portanto, ser comparável a um resultante. Quando essas noções são aplicadas ao mentalismo hu-mano, surgem exemplos específicos com os quais é difícil lidar. Alguns dizem, por exemplo, que nossos estados de consciência reflexiva são supervenientes em relação aos estados neurofi-siológicos em nossos cérebros. Onde há determinados estados neurofisiológicos, há certos estados de consciência. Mas, en-quanto uma dor é um estado de consciência (básica) que traz consequências na economia do organismo, não sendo, assim, um epifenômeno — talvez seja um resultante —, quando nos damos conta dessa dor e a representamos mentalmente, isso não tem quaisquer consequências nem para a economia do organismo como um todo, nem para com aqueles estados neu-rofisiológicos que são as condições de base do estado de cons-ciência reflexiva de se dar conta da dor ocorrendo. Contudo, a dor como um estado de consciência básica (não reflexiva) pode indiretamente provocar consequências no sistema nervoso central, já que provoca consequências na economia do orga-nismo em geral. Mas se a consciência reflexiva de se dar conta da dor é um epifenômeno, então esse estado de consciência não faz nenhuma diferença na ordem dessas coisas. Ora, é verdade que isso pode ser assim se considerar-mos apenas o organismo, independentemente de suas relações com o ambiente. Mas os estados de consciência reflexiva dos seres humanos são essenciais para diversas formas do compor-tamento manifesto. E como o organismo é dependente do meio no qual o comportamento provoca consequências, indire-tamente, o estado de consciência reflexiva também pode trazer consequências para o próprio organismo e, em última instân-cia, para determinados estados neurofisiológicos do sistema nervoso central, embora pela mediação de elementos ambien-tais. Mas é claro que, nesse caso, é preciso empregar uma abordagem (mais) molar para podermos perceber essa possibi-lidade de que algo que parece ser apenas um epifenômeno, na verdade, é pelo menos um resultante e, quem sabe, um emer-gente.

Page 121: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

120

Voltemos ao caso simples da sombra projetada pelo carro. Se, por acaso, esse carro estiver se movimentando em um espaço aberto e sua sombra for observada pelo condutor ou por outra pessoa, de tal forma que ela deva estar sempre formando um ângulo de 90º em relação ao eixo do carro da esquerda para a direita, então a sombra deixará de ser um epi-fenômeno, pois ela vai provocar consequências no movimento do carro. É em função dela que o motorista vai dirigir o veícu-lo. Nesse caso, ao contrário do exemplo inicial, é o movimento do carro que depende do movimento da sombra. A assimetria se inverte localmente, embora não torne o movimento do carro um epifenômeno, por sua vez, já que ele está ligado a outros acontecimentos no mundo. Kim, cujas ideias já mencionamos sobre a superveniên-cia, considera que a assimetria é uma característica da relação entre um superveniente (podemos utilizar também a forma substantivada) e suas condições de base. Assim, a ideia intuiti-va de superveniência é aquela segundo a qual onde determina-das condições de base estão postas, temos também o superve-niente e, em contrapartida, onde há o superveniente, temos também as condições de base correspondentes. E é assim que esse autor interpreta a posição supervenientista de Davidson na relação entre o físico e o mental. Onde há determinados estados neurofisiológicos (ou físicos), que são descritos por meio de um vocabulário inteiramente fisicalista, há certos es-tados mentais, que são descritos por meio de um vocabulário mentalista irredutível ao vocabulário fisicalista. E, em contra-partida, onde há tais estados mentais, há os correspondentes estados neurofisiológicos. Mas, segundo Davidson, apesar dis-so, não há leis que conectem o físico com o mental, as chama-das leis psicofísicas. E disso decorre o caráter não nomológico (ou anômalo) do mental, segundo Davidson. Como os termos mentalistas necessários para descre-vermos os eventos mentais, segundo Davidson, não irredutí-veis a termos fisicalistas, apesar de não haver leis psicofísicas conectando os eventos mentais com eventos neurofisiológicos, os mesmos acontecimentos podem ser descritos ou como físi-cos, ou como mentais. No primeiro caso, descrevemos os esta-dos neurofisiológicos por meio de uma forma de linguagem

Page 122: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

121

fisicalista; no segundo, descrevemos os estados mentais por meio de uma forma de linguagem mentalista. Por isso David-son diz que defende uma versão da tese de identidade do men-tal com o físico.55 Mas estamos falando dos mesmos aconteci-mentos no mundo. Davidson explica sua posição utilizando os termos “superveniente” e “superveniência”. Davidson define essa noção de superveniência que ele emprega da seguinte forma: se dois eventos são iguais fisica-mente (em termos neurofisiológicos), então eles são iguais mentalmente; e, em contrapartida, se há uma alteração men-tal, então há uma alteração física (neurofisiológica). Davidson utiliza também o termo “dependência” como sinônimo de “su-perveniência” para argumentar que não há a redução do men-tal ao físico por meio de leis psicofísicas. A irredutibilidade do mental ao físico e, ao mesmo tempo, sua dependência em rela-ção ao físico é o que caracteriza os eventos mentais segundo o monismo anômalo de Davidson. É desse modo que ele acredita poder sustentar ao mesmo tempo o monismo materialista de substância e o dualismo conceitual. No plano ontológico, isso quer dizer que os eventos mentais não são epifenômenos, inclusive e principalmente porque eles trazem consequências para a ação, segundo David-son. Portanto, os eventos mentais são reais no sentido de que sua presença traz consequências no mundo, já que eles são necessários para a ação humana. Uma forma de aproximar a posição de Davidson daquela de Ryle seria afirmar que, para o primeiro, assim como para o segundo, os eventos mentais são mais abstratos que os eventos físicos. Esses autores provavel-mente não concordariam com essa aproximação, mas, é ver-dade que no sentido em que estivemos empregando a noção de abstração acima, os eventos mentais segundo Davidson são abstratos. Pois o que observamos são os eventos físicos. Os

55 Cf. DAVIDSON, 1980, cap. 11, especialmente, p. 209s; e p. 214 sobre o uso dos termos indicados a seguir e a correspondente defini-ção de superveniência de Davidson. Adaptamos, contudo, a forma de exprimir essa definição. Davidson utiliza uma forma negativa de expressão, enquanto que colocamos a definição em forma afirmativa.

Page 123: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

122

eventos mentais são uma interpretação dos mesmos aconteci-mentos mediante noções mentalistas. Por isso, apesar de Da-vidson não encarar os estados mentais como epifenômenos, não está suficientemente claro se eles são supervenientes de re ou se são apenas supervenientes de dicto. Kim afirma que a negação das leis psicofísicas dificulta ter uma ideia mais defi-nida do monismo anômalo. Mas se os eventos mentais têm consequências para a ação, a nosso ver, não há outro modo de tomá-los a não ser como supervenientes de re. Os emergentistas, contudo, que também às vezes em-pregam a noção de superveniência, defendem claramente uma superveniência de re. Se entendermos por superveniência de re a relação de dependência do mental para com o neurofisio-lógico, então podemos ver que os emergentistas vão além dis-so, e afirmam também a mútua dependência entre o mental e o neurofisiológico. Mas, de fato, essa é ainda uma forma incom-pleta de apresentar a posição dos emergentistas. A melhor maneira, que eles mesmos escolhem, é aquela de falar dos emergentes como realidades de caráter sistemático em relação a suas condições de base. Os emergentistas não falam apenas de eventos e de objetos emergentes, mas também de proprie-dades emergentes. A ideia chave é aquela de que, num emer-gente, as propriedades do todo não se encontram nos elemen-tos constitutivos de suas condições de base. Os emergente são, portanto, sistemas complexos.56 Essa é uma forma de distin-guirmos mais claramente os emergentes dos resultantes. Esses últimos, se constituem um sistema, não são um sistema com-plexo. O emergentismo é uma ontologia evolutiva da comple-xidade. Ele é plenamente compatível com o monismo materia-lista de substância, associado a um pluralismo de proprieda-des, que é também um pluralismo conceitual de re. A partir de objetos meramente materiais e suas relações, devidas a suas

56 Cf. DUTRA, 2017, cap. 3, e SIMON, 1996 [1969]. A noção de sis-tema complexo que empregamos aqui e em nosso livro acima citado é devida a Herbert Simon. Ou seja, um sistema complexo é aquele no qual as propriedades do todo não são propriedades de suas partes.

Page 124: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

123

propriedades físico-químicas, emergem realidades complexas na própria esfera dos objetos físicos. Um dos exemplos sempre repetidos pelos emergentistas desde J. Stuart Mill e G. H. Le-wes até hoje é aquele da molécula de água, cujas propriedades macroscópicas, como a liquidez e o fato de ser inodora, insípi-da, incolor etc., não são propriedades de seus elementos cons-titutivos, os átomos de hidrogênio e oxigênio. Uma molécula de água é um emergente porque, conhecendo as propriedades desses dois gases, não podemos prever a emergência da água, nem as propriedades que ela terá. Esse é o caso de todos os sistemas emergentes meramente físicos. Tradicionalmente, os emergentistas recorrem à metáfo-ra dos níveis para explicar sua posição, falando então, a partir das realidades físicas, dos níveis emergentes vital, mental e social. Como veremos no próximo capítulo, contudo, essa me-táfora conduz a confusões quanto à questão da causação des-cendente, que preferimos denominar determinação descen-dente, assim como preferimos deixar de lado a metáfora dos níveis e falarmos apenas de esferas de objetos emergentes, que é uma metáfora que conduz menos a confusões. Deste modo, a partir de condições de base físico-químicas, há emergentes vitais, os seres vivos em geral, plantas e animais, cujas propriedades vitais são irredutíveis às propri-edades físico-químicas da matéria. E a partir de condições de base neurofisiológicas, em alguns seres vivos, há emergentes mentais. Por fim, no caso dos seres humanos, a partir de con-dições de base mentais, há emergentes sociais, que são todos os objetos culturais que criamos. Em todas essas esferas de objetos ou realidades emergentes, para o emergentista, os sis-temas emergentes são dotados de autonomia em relação a suas condições de base. Há uma relação de dependência entre um emergente de qualquer uma dessas esferas — vital, mental e social —, mas não se trata de uma forma de relação causal a nosso ver, como discutiremos no próximo capítulo. O fato de que haja uma dependência do emergente em relação a suas condições de base faz com que a noção de emer-gência seja semelhante àquela de superveniência. A possibili-dade de determinação descendente, em acréscimo à determi-nação ou dependência ascendente (das condições de base para

Page 125: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

124

os emergentes) tem sido apontada como um dos aspectos nos quais o emergentismo se distingue do supervenientismo. Esse é o entendimento, por exemplo, de Kim, assim como de Roger Sperry, cuja posição examinaremos no próximo capítulo. A nosso ver, isso está basicamente correto, mas há outro aspecto a considerar, que é o fato de que, ao contrário do supervenien-tismo, o emergentismo é molar. A superveniência não envolve necessariamente a noção de complexidade e autonomia dos supervenientes; a emergência implica a complexidade e a au-tonomia dos emergentes. Por isso, os supervenientes são me-ros resultantes, e não emergentes. Uma realidade supervenien-te não é um epifenômeno, pois traz consequências no mundo, mas essas consequências não se devem ao caráter complexo e autônomo do sistema. Ao contrário, um sistema emergente adquire autonomia em virtude de sua complexidade e as con-sequências que traz dependem de seu caráter sistemático. A autonomia do mental em relação ao neurofisiológico tem sido um tema polêmico na filosofia da mente, como vimos no capítulo anterior, assim como, na filosofia social, a auto-nomia das realidades sociais em relação aos estados mentais dos indivíduos humanos tem sido um tema polêmico. Mas, para o emergentista, a autonomia do mental não quer dizer que não haja dependência de um estado mental em relação a suas condições de base neurofisiológicas, nem que não haja dependência de uma realidade social em relação a suas condi-ções de base mentais nos indivíduos humanos nela envolvidos. Trata-se, portanto, de uma autonomia relativa, já que ela exis-te ao mesmo tempo que a dependência em relação às condi-ções de base dos emergentes. O caráter sistemático dos emergentes só pode ser com-preendido da perspectiva molar. Se tomamos um estado men-tal isoladamente, constatamos apenas sua dependência em relação a suas condições de base neurofisiológicas. É apenas quando tomamos um estado mental em sua relação com ou-tros elementos (mentais e sociais) que podemos perceber sua autonomia, pois é quando suas propriedades se mostram como as condições para as relações entre um estado mental e esses outros elementos. O tipo de emergentismo mentalista que con-sideramos adequado é, portanto, de caráter ambiental. É nas

Page 126: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

125

relações entre um ser humano com seu ambiente que podemos ter evidência do caráter sistemático de seu mentalismo. Aqui vale a pena voltarmos aos exemplos dos estados de consciência básica e reflexiva para ilustrar esse ponto. Uma dor, como um estado de consciência básica, emerge a partir de determinados estados neurofisiológicos e, como dissemos aci-ma, desempenha um papel na economia do organismo. É rela-tivamente a esse sistema dos estados de consciência básica que devemos entender sua funcionalidade. Isso faz com que esses estados de consciência não sejam epifenômenos e, além disso, faz com eles constituam um sistema mental interno do orga-nismo, cuja finalidade é manter as condições fisiológicas óti-mas de conservação, sobrevivência e reprodução do ser vivo. De fato, para isso, não é preciso haver consciência reflexiva — e sabemos disso porque a grande maioria das espécies animais no planeta sobrevive e se reproduz possuindo apenas a consci-ência básica. Mas a consciência reflexiva é necessária para al-gumas das relações dos seres humanos com o ambiente em que vivem, especialmente as relações sociais. Assim, se tomado apenas em sua relação de dependên-cia para com suas condições de base neurofisiológicas, numa abordagem molecular, um estado de consciência reflexiva vai se mostrar como um mero epifenômeno, pois não parecerá trazer consequências para a manutenção do organismo, dife-rentemente daqueles estados de consciência básica. Uma cren-ça sobre algum elemento ambiental é um estado de consciên-cia reflexiva e é na sua relação intencional com esse elemento ambiental que sua funcionalidade se mostra. Em uma aborda-gem molar, portanto, essa crença mostra seu papel no sistema de crenças que representa uma porção da realidade externa ao organismo. A crença é necessária para a vida de relação do organismo. Esse é um ponto com o qual Davidson concorda com o emergentista, o que não faz, contudo, que ele seja adepto dessa forma de entender o mundo. A nosso ver, Davidson defende apenas a superveniência. Embora ele também sustente uma forma de holismo em relação a nossas crenças, não nos parece, por outro lado, que Davidson descreva esse sistema de crenças unicamente no qual uma crença particular pode ser entendida

Page 127: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

126

como um sistema autônomo da mesma forma como o emer-gentista o encara. A nosso ver, a diferença entre a posição su-pervenientista de Davidson e aquela do emergentista que sus-tenta a complexidade dos sistemas emergentes, no caso do mentalismo humano, está no fato de que esse último entende os estados mentais humanos e o sistema que eles possam cons-tituir em sua conexão com elementos ambientais. Assim, a nosso ver, como veremos num dos próximos capítulo, o emer-gentista está próximo do teórico da mente estendida. A siste-maticidade de nossos estados de consciência reflexiva depende também, como vamos ver, de elementos ambientais, especial-mente sociais. Ela se mostra, em particular, como veremos no último capítulo, na relação com a linguagem verbal. O uso da linguagem quando falamos uma língua natu-ral é um exemplo — de fato, o melhor, podemos dizer — dessa sistematicidade e autonomia de nossos estados de consciência reflexiva. Uma conversa entre dois falantes não é possível sem as condições de base neurofisiológicas em seus respectivos cérebros, mas também não é possível sem as realidades cultu-rais que constituem a estrutura abstrata da língua que eles falam, sua gramática e sua semântica. Os indivíduos que con-versam em uma língua, que se comunicam, estão exibindo o caráter sistemático e autônomo de parte das esferas mental e social. Metaforicamente falando, eles estão explorando o cam-po da mente que, segundo George Mead, emerge da lingua-gem. Eles estão se movendo nos espaços linguístico e cultural de que falamos no livro Autômatos geniais.57 Como veremos num dos capítulo adiante, há uma interdependência estreita entre a consciência reflexiva e a linguagem verbal. Contudo, é preciso antes elucidarmos um pouco mais em que sentido a mente humana pode ser um sistema, um emergente dotado de autonomia em relação a suas condições de base neurofisiológicas, de um lado, e sociais, de outro, como o caso específico da linguagem permite ver.

57 Cf., respectivamente, MEAD, 1972 [1934], § 18; DUTRA, 2017, cap. 6.

Page 128: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

127

Tomemos uma realidade qualquer, isto é, uma porção qualquer do mundo, que pode ser um objeto, no sentido co-mum desse termo, ou um evento. Se identificarmos partes nes-sa realidade, podemos descrever sua estrutura. Se perceber-mos como ela funciona e acrescentarmos sua funcionalidade à estrutura, identificaremos um sistema. Um sistema é, portan-to, a descrição conjunta da estrutura e da funcionalidade de alguma coisa no mundo; é um modelo dinâmico que fazemos daquela coisa. Isso mostra como as noções de sistema, de es-trutura e de funcionalidade são todas abstratas. E são abstra-tas também as coisas que identificamos como sistemas, por mais observáveis que sejam suas partes e seu funcionamento. Nesse caso, como dissemos antes, seriam concretos apenas os dados de nossos sentidos. Mas é claro que, do ponto de vista ontológico, a distinção entre concreto e abstrato é mais plausí-vel como algo relativo, como a distinção entre as condições de base de alguma coisa e ela como um superveniente ou um emergente. Se aceitarmos esses conceitos, em particular, essa rela-tividade entre concreto e abstrato, então deveremos concluir que a mente humana é algo abstrato, enquanto são concretas as condições neurofisiológicas de base das quais ela emerge. Mas em relação às condições de base físico-químicas das quais um estado neurofisiológico emerge, esse último também é en-tão abstrato. Em todas as esferas de emergentes, em última instância, estamos tratando de realidades abstratas. A mente humana não é exceção. Entretanto, nem por isso estamos fa-lando de entidades fictícias, como sugere o fisicalismo elimina-tivista, que vimos no capítulo precedente. Para os defensores da superveniência e da emergência, os supervenientes e os emergentes são coisas reais. E são reais porque sua presença no mundo faz alguma diferença para a ordem das coisas. O tipo de consequência que é acarretada no mundo é o que torna diferentes os emergentes dos supervenientes. Esse caráter sis-temático dos emergentes é que precisa ser mais bem explicado, como veremos no próximo capítulo, assim como o tipo de rela-ção que há, segundo o emergentista, entre um emergente e suas condições de base. Há uma relação necessária entre essas

Page 129: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

128

duas instâncias, obviamente, mas ela não é uma relação cau-sal, tal como a tradição filosófica tem entendido.

* Questões para revisão

1. Explique por que a distinção entre molecularismo e molarismo é uma distinção relativa.

2. Explique os conceitos devidos a Lewes de resultante e emergente.

3. Explique os conceitos de epifenômeno, de supervenien-te e de emergente relacionando-os.

4. Por que o monismo anômalo de Davidson defende uma forma de superveniência e não de emergência.

5. Explique por que, para os defensores da emergência, um sistema é sempre algo abstrato.

Leituras adicionais recomendadas O texto de Davidson, “Mental Events” (capítulo 11 de DAVID-SON, 1980) pode ser encontrado em mais de uma tradução para o português através dos aplicativos de busca na Internet, com o título “Eventos mentais”, embora não esteja ainda pu-blicado por nenhuma editora. Uma introdução à problemática da emergência se encontra em nosso artigo “Emergência e rea-lismo perspectivista” (DUTRA, 2013b). Atividade complementar Procure discorrer sobre o tema da distinção entre superveni-ência e emergência, dando destaque ao fato de que em ne-nhum desses dois casos temos epifenômenos, isto é, aconteci-mentos que não acarretariam qualquer diferença na ordem das coisas.

§

Page 130: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

129

7

DETERMINAÇÃO DESCENDENTE E CONTROLE O problema da causação mental, que está intimamente ligado ao problema da relação mente-corpo, é um dos tópicos mais discutidos na filosofia da mente contemporânea.58 De maneira geral, a causação mental pode ser interpretada pelo menos de três formas distintas, que podem ser expressas nas seguintes questões: (1) Um evento (ou estado) mental — uma represen-tação, ideia ou crença — pode acarretar outras representações? (2) Um evento (ou estado) mental — um estado de consciência (ou básica, ou reflexiva) — pode acarretar mudanças fisiológi-cas, inclusive neurofisiológicas? (3) Um evento (ou estado) mental — um estado de consciência reflexiva — pode dirigir os movimentos do corpo e, assim, acarretar modificações no am-biente?

Questões semelhantes a essas são levantadas na litera-tura sobre a causação mental, às vezes com formulações seme-lhantes, às vezes com formulações um tanto diferentes. Mas procuramos nas três questões acima apresentadas resgatar três formas de relação do mental, a saber: (1) as relações entre estados mentais diretamente uns com os outros, quaisquer que sejam eles; (2) as relações entre estados mentais e estados do organismo, especialmente estados do sistema nervoso central;

58 Há uma enorme literatura especializada a esse respeito, mas cf. KIM, 1998. Esse autor é um dos principais pensadores sobre essas questões e, embora mais antigo, esse seu livro é uma boa referência geral e um bom ponto de partida para os interessados no assunto. Neste capítulo, contudo, não vamos revisar a literatura sobre isso, mas apresentar uma visão alternativa, visão essa ligada especifica-mente à solução de um problema central para o emergentismo, que é aquele conhecido como problema da causação descendente (downward causation).

Page 131: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

130

e (3) as relações entre estados mentais e estados físicos do mundo, a partir do próprio organismo e abrangendo outros elementos ambientais.

As relações apontadas em (1) — ou relações do tipo-1, vamos chamá-las assim — se tomadas como relações causais no mesmo nível ou esfera dos eventos mentais ou, de um modo mais intuitivo, tal como o problema foi colocado já por Descar-tes, trata-se da questão se uma ideia pode ser causa de outra ideia. Nesse caso, se afastarmos o dualismo de substância ou estofo e nos ativermos ao monismo materialista, é necessário que a causação de um estado mental por outro tenha como intermediário um estado neurofisiológico. Assim, essa possibi-lidade envolve também a causação descendente de um evento neurofisiológico por um evento mental. Em suma, a esfera de objetos neurofisiológicos é encarada como um domínio de me-diação entre objetos mentais.

As relações do tipo-2, por sua vez, seriam aquelas que já apontamos no parágrafo anterior, obviamente, além daque-las que podem não conectar diretamente estados mentais a estados neurofisiológicos, mas estados mentais a estados do organismo de maneira geral. Ou seja, nesse caso, um estado mental altera a economia do organismo ou, mais especifica-mente, afeta o equilíbrio homeostático do organismo, provo-cando uma reação do sistema nervoso central para restabele-cer esse equilíbrio. Esse seria o caso, por exemplo, de um esta-do mental (como recordar uma experiência dolorosa ou a an-tecipação de uma experiência prazerosa) provocar alterações hormonais ou de outros tipos que, por sua vez, vão afetar o sistema nervoso central. Outro exemplo aqui seria aquele do efeito placebo, no qual a convicção de um indivíduo provoca reações orgânicas, inclusive neurofisiológicas.

As relações do tipo-3 são aquelas que têm a ver com a vida de relação. Elas estão pressupostas na concepção tradici-onal de que certos estados mentais conscientes dirigem os mo-vimentos do corpo. Por exemplo, uma pessoa pensa em mover seu braço e move seu braço. O pensamento, ou antecipação, ou representação mental de mover o braço seria a causa do mo-vimento do braço. E como esse, sendo um evento físico, pode afetar outros eventos físicos no mundo, indiretamente, aquele

Page 132: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

131

estado mental modificaria o estado físico do mundo. Essa con-cepção é fortemente criticada por Hume em sua discussão so-bre a necessidade da relação causal.59 Achar que é o pensa-mento de mover o braço que faz mover o braço é o mesmo que achar que o pensamento de mover uma montanha vai fazer a montanha se mover. Uma versão não ingênua dessa concepção é aquela que se encontra na filosofia da ação, inclusive em au-tores como Davidson, que vimos no capítulo precedente. Nesse caso, o estado mental é encarado como causa ou pelo menos como uma das condições necessárias para que haja determi-nadas modificações no mundo, aquelas provocadas pela ação humana sobre os ambientes natural e social. E aqui, mais uma vez, como isso não pode acontecer sem que haja a mediação de estados neurofisiológicos, também há um tipo de causação descendente. Contudo, independentemente disso, observamos uma conjunção constante entre determinados estados mentais representativos e determinadas modificações físicas no mun-do. Portanto, mesmo da perspectiva de Hume, embora não possamos dizer que o pensamento de mover o braço tenha o poder de movê-lo, a crença de que tal pensamento, anterior no tempo, seja a causa do movimento do braço, posterior no tem-po, é inevitável, tal como vamos comentar adiante a respeito da concepção de relação causal defendida por esse autor.

Podemos ver que a causação descendente do mental para o físico ou, mais especificamente, o neurofisiológico, é o elemento comum a essas supostas relações dos três tipos apon-tados. Como a causação descendente é negada pelos defenso-res da concepção de que os estados mentais são epifenômenos, para essa posição não há um problema a ser resolvido. E, como vimos no capítulo precedente, como os defensores da superve-niência também excluem a possibilidade da causação descen-dente (por exemplo, no caso de Davidson, com a impossibili-dade das leis psicofísicas), esse também não é um problema para algumas versões da superveniência. Pode ser para outras, como aquela de Kim, que considera a posição de Davidson

59 Cf. a seção VII da Investigação sobre o entendimento humano; HUME, 1996 [1777], p. 44s.

Page 133: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

132

restritiva demais ao eliminar as leis psicofísicas.60 Mas para os emergentistas a causação descendente é um grande problema, uma vez que eles também aderem ao monismo materialista.

O monismo materialista tem sido associado à tese ou princípio de fechamento causal do mundo, isto é, a ideia de que todos os processos no mundo têm causas exclusivamente físicas. Essa tese ou princípio está presente também no mo-nismo anômalo de Davidson e tem relação com sua ideia de que não há leis psicofísicas. Pois todas as mudanças no mun-do, todos os efeitos, são provocados por estados ou processos anteriores também físicos. Esses são necessários e suficientes para acarretar aqueles efeitos. Assim, não há por que somar a tais causas físicas outras causas, que seriam de natureza men-tal. Isso tornaria não apenas implausível, mas também impos-sível, a causação descendente do mental para o físico. No caso particular de Davidson, em que essa concepção é sustentada juntamente com aquela da irredutibilidade do mental ao físico, a saída, que é o próprio monismo anômalo, é tão complicada quanto a solução a ser dada — aparentemente — para o pro-blema da causação descendente por parte dos defensores da emergência.

A nosso ver, contudo, a solução para o problema que preferimos denominar da determinação descendente é possí-vel por meio do exame da relação causal e não do fato de ela ser supostamente descendente. Para o materialismo — epife-nomenalista, supervenientista e emergentista indistintamente — a causação ascendente não parece problemática. Já que os estados neurofisiológicos são condições de base para que so-brevenham ou emerjam os estados mentais, esses estados do sistema nervoso central são encarados como causas dos esta-

60 Cf. KIM, 1993 e 2010. Kim, por sua vez, defende uma forma muito fraca de causação descendente (cf. KIM, 2000), que criticamos em DUTRA, 2017, cap. 3, juntamente com outras interpretações da cau-sação descendente. O volume ANDERSEN et al., 2000, é todo dedi-cado ao tema da causação descendente, com uma visão ampla e críti-ca sobre o assunto. Vale a pena consultar também o número especial da revista Principia (Florianópolis, UFSC), vol. 6, n. 1, 2002.

Page 134: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

133

dos mentais, que seriam seus efeitos. E como segundo a con-cepção padrão ou tradicional da relação causal, um efeito não pode retroagir sobre sua causa, não pode ser causa de sua cau-sa, a conclusão que parece inevitável e bem simples é aquela de que a causação do neurofisiológico pelo mental é impossível. Além disso, para alguns, a causação descendente, sendo toma-da como o processo reverso da causação ascendente, implica-ria a possibilidade da reversão do tempo, pois uma causa é concebida como um evento anterior no tempo com relação a seu efeito. E como o tempo não é reversível, havendo uma es-pécie de assimetria temporal entre a causa e o efeito, a causa-ção descendente é um processo impossível.

Achamos que o problema está especificamente em identificar a relação entre o mental e o físico (ou neurofisioló-gico) como uma relação causal. Há uma relação, obviamente, mas vamos ver que ela é de outro tipo.61 Contudo, voltemos ainda um instante a essa concepção tradicional da relação cau-sal como uma relação assimétrica com respeito ao tempo.

Essa concepção da causação ou relação causal remonta aos filósofos modernos, tanto Descartes e os autores ligados ao racionalismo continental, quanto Locke e outros autores do empirismo britânico. Em especial, em Hume encontramos claramente a concepção da relação causal como uma relação entre dois eventos que observamos repetidamente na mesma ordem temporal, sendo que isso nos leva a crer na conexão entre ambos esses eventos, o anterior no tempo como causa e o posterior no tempo como efeito.62 Segundo Hume, não há uma 61 Defendemos uma concepção alternativa em DUTRA, 2015 e 2017, cap. 3. Retomamos aqui as principais ideias desses textos. A identifi-cação da causação como o problema com a causação descendente se deve a PATTEE, 2000. Esse autor, contudo, não apresenta uma solu-ção com base nas ideias de Kant, como fizemos nos textos citados antes e como resumiremos aqui. A noção de controle, de Pattee, é também essencial na discussão, mas vamos apresentar também uma concepção alternativa do controle. 62 Cf. HUME, 1996 [1777]. A análise da causação apresentada por Hume na sua Investigação sobre o entendimento humano é bem conhecida. Apresentamos aqui uma formulação que procura expres-

Page 135: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

134

conexão necessária entre causas e efeitos, nem nossas crenças causais possuem valor demonstrativo, isto é, elas não estão baseadas em argumentos válidos do ponto de vista lógico. Para Hume, adquirimos crenças causais em virtude de um princípio da natureza humana que ele denominou Hábito ou Costume.

Kant parte da mesma ideia básica de que a relação cau-sal é uma relação que envolve a precedência da causa no tem-po em relação ao efeito. Como é bem conhecido, ele vai discor-dar de Hume quanto ao caráter necessário de nossos juízos causais. Para Kant, eles são apodíticos (necessários e univer-sais), ao contrário do que Hume pensava, porque o princípio de causalidade que regula o uso da categoria de causa-e-efeito nos impõe que ela seja aplicada às condições em que os objetos nos são dados em sucessão temporal. E como tanto a catego-ria, como um conceito puro a priori, quanto o princípio men-cionado são constitutivos do próprio entendimento humano, os juízos causais não são apenas forçosos para nós, digamos, no sentido psicológico, mas revestidos de validade lógica. Eles não decorrem apenas de um princípio de natureza psicológica e de conceitos oriundos da experiência, como pensava Hume, mas de conceitos e princípios racionais que, ao contrário, são algumas das condições para que haja experiência. Eles são elementos constitutivos do entendimento humano.

Para Kant, outras condições necessárias desses juízos de experiência são aquelas dadas pelas formas puras da sensi-bilidade, que também são a priori, espaço e tempo, a primeira

sar a ideia central. Sobre a concepção de Kant, que comentaremos a seguir, cf. KANT, 2006 [1787], as partes da Crítica da razão pura denominadas Analítica dos conceitos e Analítica dos princípios. Na primeira dessas partes está a explicação sobre as categorias de rela-ção causa-e-efeito e comunidade, e, na segunda, a explicação dos respectivos princípios do entendimento que regulam o uso das duas categorias. Essas duas categorias são, respectivamente, a segunda e a terceira das três categorias de relação. Sobre as formas puras da sensibilidade, cf. a Estética transcendental, na mesma Crítica. Tanto no caso de Hume como no de Kant, adaptamos um pouco a apresen-tação de suas ideias para facilitar o entendimento e sua aplicação à presente discussão.

Page 136: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

135

sendo a forma do sentido externo, a segunda, a forma do sen-tido interno. O tempo é a forma pela qual conectamos nossas representações internas e o espaço é a forma como represen-tamos as coisas fora de nós. Embora espaço e tempo sejam ideais para Kant, isto é, relativos a nossa forma de perceber e não às coisas em si, a ordem temporal na qual ordenamos as percepções é importante no emprego das categorias. Se a or-dem temporal de duas percepções não puder ser alterada, o princípio de causalidade impõe o uso da categoria de causa-e-efeito ou dependência, sendo então que a relação que repre-sentamos entre dois eventos é a relação causal. Mas, se a or-dem temporal puder ser alterada, então outro princípio do entendimento, o de simultaneidade, impõe o uso da categoria de comunidade ou reciprocidade. Nesse caso, a relação entre os dois objetos é uma relação de comunidade.

Um dos exemplos dados por Kant é o da relação entre os movimentos da lua e da terra. Podemos observar primeiro uma e depois a outra, ou vice versa. A relação entre elas será uma relação de ação recíproca, mas não podemos dizer que a terra é a causa do movimento da lua, nem que essa é a causa do movimento da terra. Mas é como se fosse assim, diz Kant, que procura explicar essa noção, que ele mesmo reconhece que é mais difícil de entender, em comparação com a relação de causação. Mas o juízo é diferente e a relação que ela expressa é outra, já que a categoria de comunidade é diferente daquela de causação e o princípio de simultaneidade é diferente daquele de causalidade.

Essa análise de Kant procura dar conta a seu modo de um dos problemas difíceis até hoje para as teorias causais, que é justamente o problema da simultaneidade. De forma geral, o problema consiste na noção de antecedência temporal da cau-sa em relação a seu efeito. Assim, se dois eventos são simultâ-neos, um não pode ser a causa do outro; mas se for, então, por sua vez, o efeito é também causa de sua causa. Ora, ou elimi-namos então a ideia tradicional de que a causa é um evento anterior no tempo, para que o problema se resolva, permitindo que a causa seja simultânea com seu efeito, ou permitimos a reversibilidade do tempo. Ambas as alternativas são problemá-ticas por razões científicas e ontológicas. Aquela solução, entre

Page 137: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

136

essas duas, que talvez pareça mais viável é a de tomar a causa não necessariamente como um evento anterior no tempo ao efeito que ela produz. Mas isso parece ir contra a ideia de que a causa tem a capacidade de acarretar ou produzir o efeito, que é também uma ideia consolidada entre filósofos e cientistas, apesar das críticas de Locke, Hume e Kant a essa ideia. A solu-ção alternativa que pode haver então, com base nas análises de Kant, é aquela segundo a qual há uma relação entre os objetos ou eventos dados simultaneamente e que parecem claramente conectados, mas que essa relação não é causal.

Não tomarmos essa relação como causal, contudo, im-plica então não apenas que a anterioridade no tempo é descar-tada e respeitamos a aparência de simultaneidade, mas, além disso, que não podemos falar de quaisquer capacidades ou poderes que as coisas teriam para produzir outras. Mas, mes-mo assim, esse tipo de solução kantiana está em perfeito acor-do com teorias científicas amplamente aceitas, como a mecâ-nica clássica ou newtoniana, como o próprio Kant observou. O caso da simultaneidade dos movimentos da terra e da lua é ilustrativo, obviamente. Pois, segundo a teoria de Newton, é a atração gravitacional que mantém os dois corpos em movi-mento relativo um ao outro. Então, se há uma causa desses eventos, ela é outra coisa diferente dos dois objetos ou eventos observados em simultaneidade.

Se aplicarmos esse mesmo modelo no entendimento da relação entre as condições de base neurofisiológicas de um evento mental e esse último, então vemos que não há uma re-lação de causação entre as duas coisas, já que o evento mental é simultâneo com o evento neurofisiológico. Assim, não só não haveria causação descendente, mas também não haveria cau-sação ascendente. As condições de base de um emergente não são sua causa. Entre um emergente e suas condições de base há uma relação de comunidade, não uma relação causal. É claro que essa relação ainda é necessária, no sentido ontológi-co, mas ela não é uma relação causal. Em linhas gerais, essa parece uma boa solução, mas ela também apresenta certas dificuldades que devem ser consideradas.

De fato, essa interpretação neokantiana da relação en-tre um emergente e suas condições de base deve poder ser

Page 138: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

137

aplicada a quaisquer casos de complexidade, isto é, os casos nos quais determinados elementos em relação permitem a emergência de um sistema que exibe propriedades que não podem ser atribuídas a esses seus elementos constitutivos. Pois o funcionamento do sistema como um todo é simultâneo com o funcionamento das partes. Mas se essa relação de co-munidade for encarada como ação recíproca e mútua depen-dência entre o sistema e suas partes ou subsistemas, então, mais uma vez, o problema da determinação descendente volta a se mostrar. Pois essa reciprocidade ou mútua dependência faz com que a própria existência do todo, do sistema, altere ou tenha algum tipo de controle sobre o funcionamento de suas partes ou elementos constitutivos.

Uma versão humiana poderia ser apresentada, toman-do a relação de comunidade, assim como aquela de causação, apenas como uma relação de dicto. Mas, segundo a versão ne-okantiana considerada acima, trata-se de uma relação de re, ou seja, a relação de comunidade entre o emergente e suas condições de base é uma relação real de mútua determinação. Assim, essa comunidade de re entre um sistema e seus ele-mentos e, mais especificamente, entre o mental como emer-gente e suas condições de base neurofisiológicas é uma relação de mútua dependência, o que nos obriga a explicar como o mental pode afetar o físico. Desse modo o problema da deter-minação mental volta, embora não mais como causação men-tal. Mas é o problema que há em toda análise de um sistema e de sua funcionalidade como determinante para as funcionali-dades de suas partes constitutivas.

À primeira vista, pode então parecer estranho interpre-tarmos certos estados neurofisiológicos como partes constitu-tivas de um estado mental, mas é isso mesmo. Pois estamos dizendo o mesmo quando afirmamos que os estados neurofisi-ológicos são condições de base dos estados mentais. E, dito assim, isso não causa estranheza alguma àqueles que aderem ao monismo materialista, inclusive supervenientistas e emer-gentistas. Mas como um sistema é algo mais abstrato do que suas partes, ou subsistemas, ou elementos constitutivos, então, nessa interpretação, a mente é mais abstrata do que suas con-dições de base neurofisiológicas. A vantagem dessa interpreta-

Page 139: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

138

ção é que o materialismo é mantido à risca. E o que pode ser encarado como uma desvantagem, pelo menos inicial, é que isso nos obriga a explicar como a funcionalidade de um siste-ma, que é algo mais abstrato, pode influenciar as funcionali-dades de suas partes que, nesse caso, são algo concreto.

Ora, a determinação descendente, nesse caso, tem de ser encarada como uma questão relativa à economia do siste-ma e de como faz diferença para o comportamento de um de seus elementos o fato de ele estar inserido no sistema. Ou seja, é preciso também aqui adotar uma abordagem molar. Pois é o entendimento da funcionalidade do sistema que poderá eluci-dar o papel que, nela, as funcionalidades das partes desempe-nham. Enquanto aplicarmos uma abordagem molecular a esse problema, ele não deixará de parecer uma forma de causação dissimulada como comunidade. Na medida em que o emergen-tismo é uma abordagem molar, não faria sentido querer resol-ver o problema da determinação descendente adotando uma abordagem molecular. Nesse caso específico, a abordagem molar sugere que as funcionalidades das partes de um sistema sejam compreendidas a partir da funcionalidade do sistema como um todo.

Um autor emergentista da atualidade que, embora não faça explicitamente referência à abordagem molar, a adota em sua solução para o problema da determinação descendente é Terrence Deacon, que introduz na discussão a noção de condi-cionante (constraint).63 A ideia aqui é que a funcionalidade do sistema é um fator condicionante para o funcionamento de suas partes. No sentido ascendente, é claro que é o funciona-mento das partes do sistema que o condicionam, digamos as-sim, uma vez que é isso o que faz emergir o sistema enquanto tal, enquanto uma realidade nova no mundo que adquire pro-priedades novas, emergentes. Mas, uma vez esse sistema es-tando em funcionamento, no sentido descendente, ele condici-

63 Cf. DEACON, 2012, p. 160s. Cf. também EMMECHE et al., 2000, p. 24, que introduz a noção de fatores condicionantes (constraining conditions). Contudo, a solução nesse caso é bem diferente daquela de Deacon, embora a ideia seja semelhante.

Page 140: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

139

ona as funcionalidades de suas partes. Daí a mútua dependên-cia entre a funcionalidade do sistema todo (o emergente) e as funcionalidades de suas partes (suas condições de base).

Não é sem razão que o emergentismo contemporâneo está bastante ligado às discussões em filosofia da biologia, pois nos organismos, enquanto sistemas vivos, encontramos o me-lhor exemplo, o mais intuitivo, para ilustrarmos essa noção de mútua dependência entre o todo e suas partes constitutivas. Sem todas as sínteses bioquímicas que ocorrem no interior do organismo, esse último, enquanto sistema vital, não sobrevive. Mas é o meio interno que ele oferece que dá as condições ou fatores condicionantes que permitem aquelas sínteses bioquí-micas.

É claro que, à primeira vista, pode parecer que esse ca-so não é comparável àquele da relação entre as condições de base neurofisiológicas e certos estados mentais emergentes. Mas só não parece comparável porque sabemos que todo or-ganismo vivo tem origem em outro(s), e justamente não enca-ramos um estado mental como algo que tenha origem em ou-tro(s). Mas a dificuldade tem a ver com o fato de retornarmos à abordagem molecular. O caso de aplicar a abordagem molecu-lar na compreensão da origem de um organismo vivo é aquele que encontramos no problema da origem da vida enquanto tal a partir de condições físico-químicas. E aqui também é a abor-dagem molar do emergentismo que pode trazer a solução.

Se queremos entender um estado mental em relação com suas condições de base neurofisiológicas no quadro da abordagem molar, não podemos deixar de tomar em conside-ração a funcionalidade toda do sistema nervoso central e seus respectivos estados mentais. É apenas nesse quadro mais mo-lar que é compreensível dizermos que determinados estados mentais podem ser fatores condicionantes para o sistema ner-voso. Essa é a noção — difícil de entender à primeira vista — apresentada por outro emergentista da atualidade, a saber, Roger Sperry.64

64 Cf. SPERRY, 1969; 1980 e 1983.

Page 141: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

140

Sperry utiliza uma metáfora para ajudar a compreender sua concepção, comparando a relação entre o sistema nervoso e a mente com aquela que há entre as partículas que compõem uma roda e essa última enquanto corpo macroscópico. É claro que a roda ganha suas propriedades macroscópicas em virtude das condições de base que possui, que são as partículas que a compõem. Mas quando essa roda gira, essas partículas descre-vem em relação a um observador externo uma trajetória espi-ral que elas só descrevem porque fazem parte da roda. Como todo modelo aproximado, essa comparação tem suas limita-ções, mas mostra como é possível que o fato de pertencer a um sistema pode determinar o comportamento de um objeto que, fora desse sistema, não exibiria tal comportamento, porque justamente não estaria sob o controle de certos fatores condi-cionantes.

É claro que quando estamos falando dos organismos e da mente humana, estamos falando de sistemas com muito maior complexidade. E é apenas o estudo detalhado do tipo de complexidade que há nos seres vivos e naqueles dotados de consciência reflexiva, entre outros tipos de capacidades men-tais, que poderá indicar de que maneira nesses sistemas vitais e mentais a economia do todo do sistema funciona como uma série de fatores condicionantes para o funcionamento de suas subestruturas.

Lembremos um ponto já mencionado no capítulo 2 a respeito dos sistemas em geral. A descrição adequada de um sistema deve apontar seus elementos constitutivos, a estrutura na qual eles estão conectados e a funcionalidade do sistema, isto é, sua finalidade ou aquilo que ele pode fazer dadas suas propriedades. Os sistemas complexos são aqueles que são do-tados de propriedades que suas partes não possuem. E, dentre os sistemas complexos, os sistemas hierárquicos, na forma como Herbert Simon os compreende, são aqueles sistemas cujas partes são subsistemas que, por sua vez, também podem ter partes que são subsistemas, até que, num nível basal último chegamos pela análise do sistema àqueles elementos que fa-

Page 142: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

141

zem parte dos subsistemas mas que não são analisáveis en-quanto subsistemas menores.65

Ora, os organismos vivos pluricelulares são claramente sistemas hierárquicos desse tipo, com uma crescente variedade de estruturas, cada vez mais complexas, até chegarmos ao or-ganismo humano. Os diversos sistemas orgânicos (circulató-rio, respiratório, digestivo, nervoso etc.) desempenham suas funções no organismo de maneira coordenada de forma a manterem as condições ótimas do meio interno que lhes per-mitem continuar a funcionar adequadamente. Logo, cada um deles contribui para a funcionalidade total do organismo e, ao mesmo tempo, depende dela para funcionar como deve em relação a essa mesma funcionalidade do sistema todo. Tam-bém é bastante conhecido hoje o fato de que o sistema nervoso nos organismos que o possuem tem dentre suas funções aque-la de, por assim dizer, coordenar o funcionamento dos outros sistemas orgânicos. Tem também a função de permitir a vida de relação do organismo com o ambiente. Os estados de cons-ciência são justamente fenômenos orgânicos com tal finalida-de. Por exemplo, a dor como estímulo aversivo provocado pelo contato com determinados elementos ambientais funciona como um dispositivo de proteção do organismo. Desse modo, se queremos compreender a relação entre nossos estados men-tais mais sofisticados, por exemplo, aqueles estados de consci-ência reflexiva de valor cognitivo, certos estados mentais re-presentativos, devemos examinar por meio da abordagem mo-lar seu papel na economia do organismo como um todo, espe-cificamente na vida de relação com o ambiente.

Vista dessa maneira, a mente humana (além das men-tes das outras espécies animais em geral) é uma espécie de subsistema de controle. Podemos dividir os sistemas comple-xos, inclusive os sistemas hierárquicos, em duas classes distin-tas, a saber, aqueles que possuem um subsistema central de controle e aqueles que não o possuem. Por exemplo, os orga-nismos sem sistema nervoso não possuem um subsistema cen-tral de controle orgânico e, ao contrário, os organismos dota-

65 Cf. SIMON, 1996 [1969], já citado.

Page 143: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

142

dos de sistema nervoso possuem tal subsistema de controle. Um subsistema de controle num sistema complexo é aquele subsistema que coordena as funções dos outros subsistemas. No caso do organismo humano, é claro que é uma parte do sistema nervoso central que é responsável por esse tipo de controle da vida vegetativa, de forma inconsciente coordenan-do todas as funções orgânicas que mantêm o meio interno do organismo em estado ótimo. Para isso não é preciso nem mesmo termos o tipo mais básico de consciência, e, logo, tam-bém não é preciso termos consciência reflexiva. Mas é claro que, assim como os outros, esses subsistemas orgânicos men-tais constituídos por nossos estados de consciência básica e de consciência reflexiva devem também possuir suas finalidades na economia do organismo.

É dessa forma, portanto, como sistemas de controle, que nossos subsistemas mentais — o de consciência básica e o de consciência reflexiva, que vamos examinar mais detalha-damente num dos capítulos adiante — podem ser encarados como fatores condicionantes para as funcionalidades de outros subsistemas orgânicos. Num sistema de alta complexidade como o organismo humano, não devemos esperar que de um modo direto e simples esse controle se dê. E, mais uma vez, são as pesquisas na neurofisiologia em associação com aquelas na psicologia que poderão fazer avançar a compreensão do papel desses subsistemas mentais. Todos os processos de con-dicionamento, que são importantes para a vida de relação do organismo em seu ambiente, seriam impossíveis se determi-nados estados mentais, mesmo que de consciência básica ou não reflexiva, não estivessem voltados para a economia do organismo como um todo. Mesmo numa perspectiva bastante ambientalista como aquela dos behavioristas na análise expe-rimental do comportamento, se determinados elementos am-bientais exercem controle sobre o comportamento de um or-ganismo, só podem fazer isso por meio da intermediação de algum subsistema mental.

Quando examinamos um subsistema mental — ou aquele de consciência básica, ou aquele de consciência reflexi-va —, se focalizarmos suas condições de base, então são de-terminadas estruturas neurofisiológicas que vamos encontrar.

Page 144: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

143

Mas se focalizarmos as funções mentais emergentes a partir dessas estruturas neurofisiológicas, são, por exemplo, estados de consciência básica, como uma dor, ou estados de consciên-cia reflexiva, como uma crença, que vamos encontrar. Por isso, a mente humana (interna) como o sistema total que engloba os dois subsistemas de consciência (básica e reflexiva) é ao mes-mo tempo concreta ou material, enquanto suas condições de base neurofisiológicas, e abstrata, enquanto os estados de consciência emergentes a partir daquelas condições neurofi-siológicas de base.

Contudo, se a mente humana é um sistema de controle voltado para a vida de relação do organismo com o ambiente, então devemos poder indicar por que meios ela exerce esse controle, ou seja, de que forma ela pode funcionar como uma série de fatores condicionantes da atividade neurofisiológica, unicamente mediante a qual é possível que o organismo hu-mano realize qualquer tarefa. Esse é justamente o ponto das análises — que, aliás, não são nem um pouco simples — do programa de pesquisa idealizado por Sperry, que citamos aci-ma. E isso só é possível de forma molar, isto é, partindo de seguimentos maiores do comportamento até chegarmos a sua influência sobre determinadas estruturas neurofisiológicas.

Howard Pattee comenta que a dificuldade com a de-terminação descendente é que, quando lidamos com um sis-tema qualquer, é sobre algum elemento de suas condições de base que podemos exercer certo controle focal.66 De fato, isso dá a impressão de que o sistema enquanto realidade emergen-te é inerte e que apenas suas condições de base são operativas ou funcionais. Por exemplo, sabemos que a estimulação de determinadas áreas cerebrais provoca determinados estados de consciência. E sabemos também que determinadas lesões

66 Cf. PATTEE, 2000. E sobre os casos de lesões cerebrais comenta-dos em seguida, cf. DAMASIO, 1994. Esse autor conta o interessante caso de um indivíduo chamado Gage que, ao sofrer um acidente no trabalho, tendo um bastão de aço lhe atravessado o cérebro, sobrevi-veu e teve suas funções mentais basicamente preservadas, mas com uma mudança radical de personalidade.

Page 145: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

144

em certas áreas do cérebro provocam ou perda de funções mentais, ou modificações às vezes radicais dessas funções. Nesses casos, estamos agindo sobre algumas das condições de base do mentalismo humano.

Contudo, uma coisa é esse tipo de ação localizada ex-terna sobre alguma parte do sistema e outra é o tipo de ação interna que o próprio sistema exerce sobre suas partes. Na interação com qualquer sistema capaz de reagir a certos estí-mulos, é claro que é preciso agirmos e, por assim dizer, procu-rarmos exercer controle sobre algum elemento de suas condi-ções de base. Mas esse é um tipo de controle externo, que nada tem a ver com o controle interno do sistema, com sua autorre-gulação. Os sistemas complexos capazes de autorregulação — e o organismo humano é um deles — exercem sobre suas condi-ções de base outro tipo de controle, que é aquele a que nos referimos ao falarmos antes de fatores condicionantes. O sis-tema não se autorregula da mesma forma como ele pode ser controlado de fora por meio da interação com alguma agência externa de controle.

Aqui, mais uma vez, o processo de condicionamento é um bom exemplo. Suponhamos o condicionamento mais sim-ples, como aquele descoberto pelas pesquisas de Pavlov com cães. Esses animais primeiro salivavam quando estimulados com a apresentação de comida em concomitância com algum outro estímulo arbitrário, como uma luz ou um som. Depois do processo de condicionamento, apenas a apresentação do estí-mulo associado (a luz ou o som) provocava nos cães a saliva-ção, sem que o alimento fosse apresentado. Em geral, nossas antecipações mais simples provocadas pela experiência passa-da e repetida são desse tipo também. Ora, para produzir esse tipo de resposta condicionada, é preciso agir sobre os órgãos dos sentidos do animal, sua visão ou audição e, consequente-mente, sobre todo seu aparato neurofisiológico ligado a essas funções perceptivas. Assim, essa interação é possível graças a esse tipo de controle focal sobre alguns elementos das condi-ções de base que permitirão a emergência da resposta condici-onada. Mas os processos internos, neurofisiológicos, pelos quais se implanta essa resposta condicionada se dão graças a certos fatores condicionantes que, de maneira abstrata, são

Page 146: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

145

designados como a percepção que o animal tem da relação entre o estímulo natural da salivação (o alimento) e o estímulo associado (a luz ou o som). Essa percepção é um estado men-tal, não pura e simplesmente um estado neurofisiológico, em-bora suas condições de base sejam todas neurofisiológicas, obviamente. O animal não precisa de consciência reflexiva para ser condicionado dessa forma e ter seu comportamento futuro modificado; mas precisa ter alguma consciência básica, sem a qual não há percepção da relação entre o estímulo natu-ral e o estímulo associado ou substitutivo.

Vejamos um exemplo que, por sua vez, no caso huma-no, requer o uso da consciência reflexiva. Suponhamos que uma pessoa queira mudar determinada crença de outra pes-soa. Suponhamos que esse segundo indivíduo pense que todo político é corrupto. Se o primeiro quiser mudar essa sua cren-ça, vai argumentar com ele e procurar dar evidências de algum político que não é corrupto. Em todo esse processo de argu-mentação, o argumentador exerce algum tipo de controle focal sobre elementos das condições de base do evento mental do outro indivíduo, pois falar com ele é agir sobre seus órgãos perceptivos e provocar reações neurofisiológicas em seu cére-bro. E o entendimento que vai levar naquele indivíduo à mu-dança de crença sobre os políticos depende de processos neu-rofisiológicos, obviamente. Mas esse entendimento e essa mu-dança de crença são eventos mentais que vão produzir modifi-cações em seu comportamento futuro. Não são apenas estados neurofisiológicos de seu cérebro. É apenas quando nos damos conta de que a nova crença implantada no lugar da antiga vai exercer algum novo tipo de controle sobre o comportamento dessa pessoa em relação aos políticos que nos damos conta de que não tem cabimento dizer que são seus estados neurofisio-lógicos que modificam seu comportamento com relação aos políticos. Se fizermos isso, estaremos cometendo aquele tipo de erro categorial do qual falamos no capítulo 3; estaremos confundindo níveis de abstração, confundindo as condições de base de um emergente com esse último.

Além disso, na economia interna da mente dessa pes-soa, a acomodação da nova crença a suas outras que não foram modificadas levará a novos processos neurofisiológicos, sem os

Page 147: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

146

quais isso não pode ocorrer. Mas a nova crença não é uma par-te das redes neuronais nem dos processos neurofisiológicos necessários para que ela se implante nesse indivíduo. O pro-cesso mental envolvendo a consciência reflexiva atua como um fator condicionante nas modificações neurofisiológicas neces-sárias. A nova crença também não é uma entidade etérea e misteriosa que, não sendo material, seria capaz de atuar sobre o cérebro do indivíduo. Sua crença é uma característica de seu sistema mental como um todo, não das condições de base neu-rofisiológicas que o sustentam. Ao falarmos da nova crença, estamos nos referindo a uma modificação nas propriedades ou capacidades do sistema mental da pessoa, não apenas de uma modificação pura e simples em alguns dos elementos das con-dições de base neurofisiológicas do sistema mental emergente.

Estamos cientes de que não é fácil ver as coisas sobre o mentalismo humano dessa maneira, e isso porque a atitude molecularista é mais ou menos bem entrincheirada em nossa visão comum sobre a mente humana e o sistema nervoso. A condição epistemológica para que a argumentação dos pará-grafos anteriores faça sentido é termos em mente, em primeiro lugar, o caráter emergente da mente e de todos os estados e propriedades dela; é considerá-la como um sistema emergen-te. E esse sistema, na verdade, é muito mais complexo do que o estudo exclusivo das condições de base neurofisiológicas para ele possa mostrar. Nos próximos capítulos veremos que há também condições de base de outros tipos. A mente como um sistema emergente ultrapassa os limites do sistema nervoso central e do próprio organismo, pelo menos no caso dos seres humanos. Em primeiro lugar, esse sistema se estende para outras partes do próprio corpo e tem correlações importantes com outros subsistemas orgânicos. Em segundo lugar, ele se estende também para certos elementos ambientais, especial-mente certas estruturas de natureza física que funcionam co-mo dispositivos auxiliares dos processos mentais. Mas, mais importante que isso, a mente se estende também para elemen-tos ambientais de natureza social, especialmente a linguagem e as realidades sociais cuja emergência o uso da linguagem ver-bal humana permite.

Page 148: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

147

No plano ontológico, essa mente humana como sistema estendido ao ambiente só faz sentido se associarmos o monis-mo materialista de substância com um pluralismo conceitual, que reconhece a emergência de esferas de realidades não físi-cas, não apenas vitais e mentais, mas também sociais. E esse pluralismo conceitual implica que essas realidades não físicas possuem propriedades que também não são físicas, mas que as habilitam a fazerem diferença na ordem das coisas no mundo.

* Questões para revisão

1. Descreva as relações dos tipos 1, 2 e 3 entre o mental e o físico e relacione isso com o princípio do fechamento causal do mundo.

2. Explique a concepção tradicional, que remonta a Hume e Kant, da relação causal como uma relação associada à sucessão temporal.

3. Por que a noção de mútua determinação, com base nas ideias de Kant, se aplicaria ao problema da relação en-tre o neurofisiológico e o mental?

4. Qual é, em termos de mútua determinação, a relação num sistema complexo entre a funcionalidade total do sistema e as funcionalidades das suas partes constituti-vas?

5. Explique como, na economia do organismo, os estados de consciência básica e de consciência reflexiva podem ser entendidos em termos de mútua determinação en-tre o sistema orgânico e suas partes.

Leitura adicional recomendada Uma introdução à problemática da determinação descendente no quadro da doutrina da emergência se encontra em nosso artigo “Emergência sem níveis” (DUTRA, 2015). O artigo exa-mina também com mais detalhes alguns dos pontos discutidos neste capítulo.

Page 149: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

148

Atividade complementar Procure discutir o problema da determinação descendente, assim como da determinação ascendente, entre um sistema mental e suas condições de base, destacando a questão do tempo, isto é, o fato de que tanto o sistema total quanto suas partes funcionam simultaneamente.

§

Page 150: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

149

8

CORPORIFICACIONISMO, COGNIÇÃO DISTRIBUÍDA E MENTE ESTENDIDA

Tem sido uma comparação comum entre filósofos e cientistas cognitivos aquela entre a mente humana e um computador. Mais precisamente, a ideia é que a mente está para o cérebro assim como o software (a programação) está para o hardware (a máquina). Isso não deixa de ser curioso do ponto de vista histórico, uma vez que, inicialmente, isto é, na época moderna, o ser humano é que era modelo das máquinas, dos autômatos ou bonecos animados, dotados de estrutura ou mecânica, ou hidráulica, que lhes dava movimento. O próprio Descartes, que comparava o corpo humano e os dos outros animais com má-quinas hidráulicas, também admirava esse tipo de invenção que já era utilizada para fins recreativos nos jardins dos palá-cios da realeza de então. Mais tarde, o clássico de Julien Offray de la Mettrie, L’homme machine, também explorou essa ana-logia entre o corpo humano e os autômatos, opondo-se ao dua-lismo cartesiano.67

67 Cf. LA METTRIE, 1865 [1748]. O tema, de fato, era bastante co-mum nas discussões dos filósofos desde Descartes até o século XIX. Outros pensadores famosos, como Leibniz (1695), também usam a comparação do ser humano com os autômatos, embora com objeti-vos argumentativos diferentes. E aqui vale também darmos uma explicação sobre o título de nosso livro já citado, Autômatos geniais (DUTRA, 2017). Os autômatos geniais — uma associação de ideias à primeira vista inapropriada — são as pessoas comuns, aquelas dota-das de consciência reflexiva e discernimento, como vamos ver no próximo capítulo. São autômatos, num certo sentido, porque sua mente funciona segundo condições de base e fatores emergentes condicionantes, mas são geniais, ao mesmo tempo, porque sua ação produz realidades novas, como aquelas que emergem no mundo

Page 151: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

150

De fato, desde os filósofos modernos até hoje, a compa-ração entre as máquinas de processamento e funcionamento automatizado e o ser humano, hoje os robôs e as pessoas, tem funcionado em ambas as direções: ora é o ser humano que é modelo das máquinas, ora são elas que são modelo do ser hu-mano. Hoje a comparação entre robôs mais sofisticados e o ser humano é mais detalhada. O robô é uma máquina com dispo-sitivos mecânicos e eletrônicos controlados por uma CPU, por um computador que é programado; e tal programação é feita em uma linguagem-suporte, uma das linguagens de programa-ção, dentre as muitas que há no mundo da informática e que são capazes de ser traduzidas em linguagem de máquina, o código binário — de uns e zeros que representam, respectiva-mente, a passagem de corrente elétrica ou sua interrupção. Desse modo, a CPU, por meio de dispositivos periféricos, con-trola as operações da máquina. Dado esse modelo, a comparação com o ser humano que hoje é tão sugestiva o vê como uma espécie de robô natural ou biológico, seu cérebro como sua CPU, seu dispositivo de controle, e sua mente como a programação. Esse modelo foi levado tão a sério na ciência cognitiva que fez com que muitos levantassem então a hipótese de haver uma linguagem interna, uma espécie de linguagem do pensamento, na qual nossa men-te seria programada.68 Se tal linguagem do pensamento existe, ela não é uma das línguas naturais que falamos, e não sabemos exatamente como ela é, mas, em princípio, segundo a concep-ção de autores como Jerry Fodor, trata-se de uma forma de linguagem com propriedades sintáticas e semânticas bem de-

social graças ao uso da linguagem verbal. Portanto, esses autômatos geniais nada têm a ver com robôs ou computadores. 68 Cf. FODOR, 1975. Esse autor é um dos que defendem a existência dessa linguagem do pensamento e que se notabilizou por isso. Cf. também o já mencionado GARDNER, 1985; 1995, que discute tam-bém esse ponto na ciência cognitiva. O inatismo (ou nativismo) na linguística e na filosofia da linguagem, mencionado em seguida, tem como principal representante Noam Chomsky (cf., por exemplo, CHOMSKY, 2009 [1966]; 1972).

Page 152: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

151

finidas, tal como as linguagens de programação da informáti-ca. Essa linguagem teria de ser pelo menos em parte inata. Uma das concepções materialistas de que tratamos antes, o funcionalismo, tem ligações conceituais e programáti-cas com essa forma de encarar o ser humano. A ideia também já mencionada dos defensores da IA forte é que os robôs pode-rão realizar um dia aquilo que mentalmente os seres humanos já realizam. Assim, desse ponto de vista, a mente humana seria apenas a programação que a evolução de nossa espécie nos legou. A mente dos robôs do futuro — inclusive, talvez, consci-entes — será a programação neles implantada. Se tomarmos essas ideias como elementos de ficção científica, então não há problema algum do ponto de vista ci-entífico e filosófico. E, desse ponto de vista, não deixa de ser interessante pensar a mente humana como uma espécie de programação, pois uma programação é algo abstrato; é uma série de comandos em uma linguagem de programação. Em última instância, portanto, a mente seria uma coleção arruma-da de representações internas. Segundo esse modelo, que é bastante comum na ciência cognitiva hoje, ou pelo menos na-quela forma de ciência cognitiva dita tradicional ou padrão, o pensamento é uma espécie de processamento dessas represen-tações internas. E a forma de representar é, portanto, verbal, isto é, proposicional. Uma representação interna é uma sen-tença da linguagem de programação ou, se tal linguagem do pensamento existe, uma representação na mente humana é uma sentença da linguagem do pensamento, algo similar às sentenças das línguas naturais, na comunicação entre nós, que também são formas de representação verbal.

Todavia, o que há de interessante nessa forma de enca-rar a mente humana é apenas o fato de que ela é concebida como algo abstrato, como um sistema abstrato, assim como é abstrato qualquer sistema de programação de uma máquina. E a comparação é boa porque elimina certo mistério que havia no mentalismo tradicional, como na teoria de Descartes, que vimos no capítulo 2. Aqui não há mistério sobre a interação da mente com o corpo porque a programação abstrata da CPU da máquina é capaz de interagir com o restante dela graças a cer-tos dispositivos de interface que, como já mencionamos, tra-

Page 153: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

152

duzem os comandos da programação em linguagem de máqui-na e controlam os dispositivos eletrônicos que deixam passar a corrente elétrica ou a interrompem. Se esse modelo servir para explicar a mente humana, então o problema da relação entre mente e corpo se revolverá da melhor forma que podemos imaginar hoje.

Contudo, esse modelo tem um inconveniente grave, que é o fato de isolar a mente humana do mundo, não apenas do corpo humano, mas do ambiente em relação ao qual a men-te é também um dispositivo de controle, como vimos no capí-tulo precedente. A ciência cognitiva procura lidar com essa limitação, mas isso leva os pesquisadores a se distanciarem do próprio modelo acima mencionado. A conexão da mente com o corpo e com o ambiente parece pedir conceitos heterodoxos em relação às concepções da informática, da inteligência artifi-cial e da ciência cognitiva tradicional. A teoria da mente corpo-rificada é uma dessas alternativas atuais, assim como a teoria da cognição distribuída e a teoria da mente estendida. Essas três têm muito em comum e merecem ser comentadas, pois representam formas mais promissoras de superar as dificulda-des do modelo padrão que vimos acima da relação entre mente e corpo, de um lado, e mente e ambiente, de outro.69

É claro que o cérebro humano — ou, talvez, o mais cor-reto seja dizermos a mente humana — é um dispositivo de processamento, assim como é um dispositivo de representação e de armazenamento de informação. E é claro também que uma parte das representações mentais que temos são proposi-cionais, isto é, expressáveis em sentenças declarativas de al-guma língua ou forma de linguagem. Mas não é pacífico que todas as nossas representações internas ou mentais sejam

69 Para essas teorias todas, uma obra introdutória e bem informativa é SHAPIRO, 2011; cf. também SHAPIRO, 2004, e DUTRA, 2017, cap. 2. Sobre a teoria da mente corporificada, cf. VARELA et al., 1991; 2000, e THELEN; SMITH, 1994. Sobre a teoria da cognição distribu-ída, cf. HUTCHINS, 1996. Sobre a teoria da mente estendida, cf. CLARK, 1998 e 2008, e MENARY, 2010. Sobre o conexionismo, co-mentado adiante, cf. HARNISH, 2002.

Page 154: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

153

proposicionais, assim como não é pacífico que a mente huma-na processe a informação de maneira similar àquela dos com-putadores digitais que há hoje. Um dos aspectos a esse respei-to que tem dificultado a comparação de nosso processamento mental com aquele dos computadores é que certas inferências que fazemos ou certas conclusões que tiramos em um argu-mento (uma sequência de premissas conduzindo a uma con-clusão) são impossíveis nos computadores, mesmo mediante as formas de programação mais sofisticadas que foram elabo-radas nos últimos anos. Um dos casos que dizem respeito a isso é aquele em que um conflito de informação não pode ser superado pela máquina, que para. Mas isso não acontece com os seres humanos. O que alguns especulam hoje, como é o caso com os modelos conexionistas da mente humana, é que en-quanto o processamento dos computadores digitais é serial, aquele da mente humana seria paralelo, tal como nas máqui-nas conexionistas.

Contudo, um aspecto mais geral que torna a compara-ção entre os computadores e a mente humana menos sugestiva é que nossas representações internas nem sempre são proposi-cionais. E, além disso, particularmente, alguns estados men-tais, como os estados de consciência básica (uma dor, uma coceira, uma sensação prazerosa etc., ou mesmo qualquer da-do sensorial bruto, digamos, como ver uma cor, ouvir um som etc.) não são propriamente representativos. Assim, a compara-ção entre nossos estados mentais e os estados de processamen-to dos computadores se restringe a alguns de nossos estados de consciência reflexiva, aqueles que são expressáveis em sen-tenças declarativas, mesmo que se suponha que esse proces-samento mental possa se dar de maneira inconsciente. Em suma, é uma concepção cognitivista e muito restritiva da men-te humana que permite a comparação com os computadores.

Os defensores da concepção da mente corporificada pretendem romper com esse modelo mesmo no caso de nossos estados cognitivos representativos que são proposicionais e que envolvem conceitos. E algo semelhante é sustentado pelas concepções da cognição distribuída e da mente estendida. As-sim, essas três teorias se restringem à dimensão cognitiva da mente, mas rompendo com a ciência cognitiva padrão, de certa

Page 155: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

154

maneira, modificando radicalmente os próprios conceitos de cognição e de processo cognitivo. É claro que a mente humana, além de ser um sistema de controle, como vimos no capítulo anterior, é também um sistema cognitivo; e em parte é porque é um sistema cognitivo que pode ser um sistema de controle, pelo menos da ação e das relações do indivíduo com o ambien-te.

Os corporificacionistas se concentram inicialmente na própria aquisição de conceitos, que é algo fundamental para que haja representações mentais, memória e processamento da informação. Além disso, insistem na ideia de que, ao intera-girmos com o ambiente, alguns processos representacionais internos, simbólicos e considerados algorítmicos pelas teorias cognitivas tradicionais, são dispensáveis. Por fim, outra noção fundamental para essa perspectiva é que a cognição envolve também elementos ambientais e que esses últimos também são constitutivos da cognição, e não apenas fontes de estímulo para o organismo. A teoria da mente estendida, que vamos comentar adiante, é uma das versões mais específicas dessa forma de corporificacionismo. Mas mesmo antes de envolver-mos elementos ambientais ou de fora de nosso corpo, ele mesmo é encarado não apenas como fonte de informação e determinante para as ideias que temos, mas também como executor de processos cognitivos em certo sentido, mas que são processos não representacionais. De fato, como veremos em seguida ao comentarmos a teoria da cognição distribuída, essa postura requer pensar a cognição de uma forma muito diferente do que faz o mentalismo tradicional e o mentalismo típico das teorias cognitivistas padrão.

Nosso corpo é determinante para os conceitos que pos-suímos, em primeiro lugar, em virtude dos próprios órgãos dos cinco sentidos que temos. Um caso facilmente compreensível a esse respeito é o da visão das cores. Hoje sabemos que a maior parte dos seres humanos é de tricromatas, isto é, vemos cores compostas a partir de três cores básicas, que correspondem à sensibilidade das células cone da retina humana a três diferen-tes faixas do espectro eletromagnético da luz que incide em nosso planeta. Os diversos tipos de daltonismo conhecidos, em virtude de constituições menos comuns dos olhos humanos,

Page 156: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

155

por exemplo, o dicromatismo, o monocromatismo e o acroma-tismo, fazem com que os indivíduos desses subgrupos cromáti-cos humanos vejam outras cores, ou vejam apenas tons de cin-za etc. E há também casos muito mais raros de humanos tetra-cromatas, cuja visão das cores a maioria da população (de tri-cromatas) nem pode imaginar. Além disso, mesmo no caso do acromatismo, certos contrastes são vistos, o que permite iden-tificar visualmente objetos. E, assim, de qualquer forma, não podemos imaginar um mundo em que nenhum tipo de visão cromática seria o caso. Esses indivíduos não seriam cegos, mas eles não veriam quaisquer objetos caso, por exemplo, também as células bastonetes de suas retinas fossem diferentes; essas células são as que reagem à intensidade da luz.

Desse modo, a constituição de nossos olhos, assim co-mo dos outros quatro sentidos, é responsável por toda uma gama de conceitos físicos fundamentais. Pensemos também no caso da ideia de objeto sólido, que está associada à nosso con-ceito de espaço tridimensional. A noção de profundidade e perspectiva que temos, e que nos faz ver o mundo tal com o vemos, não depende só da visão, mas também da audição e do tato. Ora, esses sentidos poderiam ser diferentes em nós, de tal forma que, por exemplo, poderíamos não conceber o espaço como tridimensional, mas bidimensional, ou unidimensional, ou talvez tetradimensional, o que é mais difícil ainda de imagi-nar, praticamente impossível, embora possamos representar algebricamente, como se faz em algumas teorias científicas.70

Além disso, há também os casos em que podemos dizer que a cognição é realizada pelo corpo, ainda que sempre seja preciso que haja alguma participação do sistema nervoso cen-tral. Mas não há a ocorrência de processos representacionais, embora eles possam estar envolvidos em uma parte do apren-dizado que vai levar à implantação de certos automatismos. Por exemplo, uma pessoa que aprende a dirigir automóveis pode fazê-lo (e é melhor que seja assim) sob a orientação de um instrutor. Mas depois de aprender bem e de dirigir por um

70 A esse respeito é interessante a leitura – desafiadora para a imagi-nação – do livro Flatland, de Edwin Abbott (1991 [1884]).

Page 157: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

156

tempo, ela pode automatizar todo o processo de direção de seu automóvel, tanto que ela não terá na maior parte das vezes consciência das operações específicas que executou em deter-minado trajeto ao dirigir. Isso significa não só que ela passou a executar tarefas inconscientemente, mas também que uma espécie de memória muscular, digamos, elimina a necessidade de certos estados representacionais e de processamento no sistema nervoso central. Mais uma vez, não é que não haja a participação do sistema nervoso central, mas ela não é uma participação na forma de manipulação de representações in-ternas.

Uma ideia semelhante já se encontra na epistemologia ao distinguir entre saber que e saber como, ou seja, entre o conhecimento proposicional e o conhecimento como habilida-de. O caso do automóvel é mais difícil, mas uma pessoa pode aprender sozinha a andar de bicicleta sem ter nenhuma infor-mação que lhe seja passada de modo proposicional sobre o que é preciso fazer para se equilibrar sobre uma bicicleta. Essa habilidade, quando implantada, cria hábitos musculares e mo-tores que não são representacionais. Mas podemos dizer que esse também é um caso em que há algum tipo de cognição, pelo menos no sentido de que determinados problemas são resolvidos. O tempo todo, ao executar uma dessas operações mecânicas automatizadas, a pessoa tem de ter em conta modi-ficações do ambiente e de seu próprio corpo, e compensá-las adequadamente, de forma a atingir o objetivo, por exemplo, seguir pela rua de bicicleta sem cair, sem se chocar com outros objetos, até chegar a seu destino. Ora, se há a resolução de problemas, se há o exercício de controle em virtude de mudan-ças ambientais e se uma tarefa predeterminada é cumprida, então não podemos dizer que não há cognição nesse processo.

O mentalista tradicional e o cognitivista vão concordar que há, mas eles vão argumentar que isso se deve ao fato de que, de qualquer forma, o cérebro inconscientemente faz cál-culos e manipula informação. Para o corporificacionista, o corpo faz isso em diversos momentos, liberando o cérebro para outras atividades. De qualquer maneira, é verdade que, em um momento mais crítico em que os hábitos musculares e motores não são suficientes, o cérebro assume de forma representacio-

Page 158: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

157

nal e intelectual a tarefa. Mas isso só mostra que o organismo humano é suficientemente sofisticado do ponto de vista men-tal para distribuir a cognição e o controle de funções, e retomá-lo de maneira centralizada apenas quando necessário.

A noção de distribuição da cognição é encarada de ma-neira mais radical por Edwin Hutchins,71 que apresenta em seu livro uma análise detalhada de casos em que não apenas nosso corpo participa dos processos cognitivos, mas esses processos envolvem necessariamente outros elementos ambientais, que podem ser outras pessoas ou dispositivos mecânicos e eletrô-nicos, máquinas, ferramentas etc., isto é, qualquer coisa que no ambiente possa fazer parte de um sistema de cognição dis-tribuída. Essa é uma teoria heterodoxa da cognição, uma vez que ela a concebe como um processo no mundo, um processo observável, dentro do qual cada um de nós pode estar, em vez de tê-lo dentro de si, dentro de sua cabeça, em seu cérebro.

A ideia básica aqui é que se determinada tarefa cogniti-va, em determinado contexto, não pode ser executada por um indivíduo humano sozinho, mas deve envolver outros indiví-duos e outros objetos do ambiente, então o processo cognitivo é distribuído. Um exemplo longamente explorado por Hut-chins é o da manobra de atracação de um navio antes que os aparelhos de GPS existissem. Basicamente, isso envolvia um piloto, um navegador e dois observadores laterais no navio. Esses últimos observavam as posições do navio em relação a determinados pontos da costa, passando tais informações ao navegador que, com base nelas e com o uso das cartas náuti-cas, traçava a rota e comunicava isso ao piloto. Esse processo reiterado é que permitia que o navio entrasse no porto e atra-casse em segurança. Embora uma pessoa possa fazer o mesmo se estiver, por exemplo, em um pequeno barco, num navio de grande porte, não há como fazê-lo a não ser do modo acima descrito. E mesmo depois dos aparelhos de GPS, enquanto cognição distribuída, o processo não mudou essencialmente, pois esses dispositivos, por assim dizer, fazem o papel dos ob-servadores laterais e mesmo do navegador. Assim, podemos

71 Cf. o já citado livro desse autor: HUTCHINS, 1996.

Page 159: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

158

dizer que nesses casos é a própria embarcação que resolve o problema cognitivo ou, melhor dizendo, quem especificamente o resolve é o sistema constituído pelos indivíduos e equipa-mentos pertencentes a tal sistema de navegação e pilotagem.

É claro que há também processos cognitivos internos aos indivíduos humanos envolvidos nesses processos de cogni-ção distribuída, assim como há processos informacionais e computacionais nos equipamentos de diferentes níveis de so-fisticação mecânica e eletrônica envolvidos no sistema. Mas esses são outros sistemas cognitivos menores, digamos, que estão inseridos no sistema maior. Trata-se, portanto, de um sistema complexo, tal como vimos no capítulo anterior. A cog-nição distribuída, nesse caso, é um fenômeno emergente e que diz respeito ao sistema de cognição distribuída como um todo.

Nossa participação em sistemas de cognição distribuída do tipo comentado acima, como aquele caso da navegação de um barco de grande porte, pode ser episódica e pode envolver basicamente estados de consciência reflexiva nossos. Mas, há também aqueles casos em que nossa participação é inconscien-te, o que não faz com que o processo de cognição distribuída deixe de ser essencialmente cognitivo. E, mais importante, há processos permanentes dos quais participamos, e esses é que são mais decisivos para o tipo de mentalismo que possuímos.

Andy Clark,72 que defende a concepção da mente es-tendida, apresenta um exemplo bem ilustrativo, inicialmente, de como podemos participar de um sistema de cognição distri-buída sem nos darmos conta disso. Suponhamos um campus universitário recém-construído. O arquiteto precisa traçar os caminhos entre os diversos prédios da melhor maneira possí-vel. Para isso, ele teria de levar em conta as necessidades de deslocamento entre esses prédios de centenas ou milhares de pessoas, o que resultaria em um problema de alta complexida-de. Em vez de tentar resolver o problema diretamente, o que ele pode fazer é simplesmente abrir o campus para frequenta-ção e observar os caminhos que vão surgir espontaneamente à medida que as pessoas se deslocarem entre os prédios. Depois

72 Cf. as obras já citadas desse autor: CLARK, 1998 e 2008.

Page 160: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

159

basta pavimentar esses caminhos e gramar o espaço entre eles. Ou seja, o próprio campus resolve o problema. Cada pessoa que se desloca entre os prédios tem de fazer cálculos muito simples, que se restringem a sua necessidade momentânea de deslocamento. Todos os frequentadores do campus, sem se darem conta, tomando parte em um sistema de cognição dis-tribuída, resolvem juntos — e sem saber — o problema.

O mais interessante desse exemplo nem é que nenhum dos indivíduos que contribuiu para a solução do problema tem consciência de tomar parte em um sistema de cognição distri-buída, mas que, de fato, esse é um sistema autorregulador, um sistema sem um controlador central. O arquiteto ou a adminis-tração do campus não controlam o processo a não ser criando as condições iniciais para que o sistema surja. E ele surge sim-plesmente pelo fato de as pessoas começarem a se deslocar entre os prédios segundo suas necessidades particulares. Em certo sentido, é o próprio campus — sua geografia — que con-trola o sistema, uma vez que as pessoas se deslocam entre os prédios de acordo com o que está construído e disposto no terreno. Mas a planta do campus apenas oferece parte dos fa-tores condicionantes da movimentação das pessoas.

O sistema desse exemplo tem origem social, uma vez que foi uma decisão do arquiteto ou da administração do cam-pus que estabeleceu as condições iniciais para que ele tivesse lugar. Mas na própria sociedade há sistemas que surgem mesmo na ausência de decisões tomadas por alguém, mesmo que ninguém disponha deliberadamente as coisas para que um sistema de cognição distribuída tenha lugar. E o mesmo acon-tece na natureza em geral.

Quando um problema é resolvido, quer uma ou mais pessoas tenham consciência de resolvê-lo, quer não, podemos dizer que há cognição. No caso do exemplo do campus, como vimos, a cognição é distribuída e, de fato, inconsciente no que diz respeito a cada um dos frequentadores do campus. Mesmo que o arquiteto e as pessoas da administração do campus se-jam também frequentadores, isso não faz diferença, pois cada um dá uma contribuição parcial para a solução do problema enquanto faz seu caminho entre um prédio e outro, segundo suas necessidades pessoais, e não, propriamente falando, ten-

Page 161: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

160

do em conta o problema geral que está sendo resolvido. E quando há cognição e solução de um problema, em geral, pro-curamos identificar a mente que fez isso. Nesse caso do cam-pus universitário, trata-se de uma mente estendida.

O próprio sistema de cognição distribuída formado pe-las pessoas em deslocamento entre os prédios não possui uma mente a não ser em sentido metafórico. Pois suas mentes indi-viduais, embora coordenadas pela geografia do próprio cam-pus, não possuem as propriedades mentais típicas do menta-lismo humano, como unidade, consciência, intencionalidade etc. Mas se fizermos uma análise mais molar e incluirmos no sistema o próprio arquiteto e as pessoas da administração do campus que começaram o processo, criando as condições ini-ciais mencionadas, então podemos atribuir a elas — a suas mentes — a solução do problema. Suponhamos que, tendo a ideia, o arquiteto é que convenceu a administração do campus, que abriu o espaço para uso etc. Nesse caso, podemos dizer, sim, que a mente que resolveu o problema foi a do arquiteto, mas teremos de reconhecer que ele o fez por meio de elemen-tos ambientais, que são as outras pessoas em duas subclasses, a saber, as da administração do campus e aquelas que em geral se deslocaram entre os prédios; e, além dessas pessoas, o pró-prio campus é outro elemento ambiental, já que ele próprio funcionou como parte dos fatores condicionantes para que o sistema funcionasse. Ora, nesse caso, a mente do arquiteto que resolveu o problema é uma mente estendida.

Temos aí a noção de Clark de mente estendida, isto é, a mente com os predicados mentais usuais — como consciência, propósito etc. —, mas que resolve problemas e executa proces-samentos e cálculos de forma distribuída por elementos ambi-entais. Assim, resumidamente, se uma pessoa resolve proble-mas de cabeça, como se costuma dizer, então sua mente nesse momento não está estendida. Mas se ela resolve problemas com recurso a quaisquer elementos ambientais, fora de seu corpo, então nesse momento sua mente está estendida. O pró-prio caso de fazer uma operação aritmética utilizando lápis e papel ou uma calculadora já é um caso em que a cognição é distribuída e a mente está estendida.

Page 162: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

161

Contudo, nossa mente não apenas está estendida epi-sodicamente, mas é uma mente permanentemente estendida. À medida que um indivíduo cresce, aprende sua língua, se in-sere na cultura de sua comunidade, aprende a lidar com as diversas situações naturais e sociais e resolve uma variedade de problemas usando rotineiramente diversos dispositivos ambientais para isso, sua mente é uma mente estendida. Se-gundo Clark, é da natureza da mente humana descarregar a informação em dispositivos ambientais e utilizá-los para ma-nipular essa informação, assim como é de sua natureza recu-perar a informação estocada nesses dispositivos ambientais quando é necessário tê-la em nossas representações internas.

Assim, a mente humana é distribuída em dois aspectos principais. Enquanto uma coleção arrumada de representa-ções, a mente humana é distribuída por uma variedade de dis-positivos ambientais em acréscimo a nosso sistema nervoso central. E enquanto um sistema de cognição, de manipulação da informação, a mente humana também é distribuída, pois rotineiramente, para fazer tudo o que precisamos fazer no meio social normal, temos sempre que contar com o auxílio de dispositivos ambientais para raciocinar convenientemente. Quanto mais se torna complexa a cultura na qual um indivíduo humano vive, mais distribuída tem de ser sua mente.

É claro que isso só faz sentido numa perspectiva evolu-tiva e é claro que só é possível graças à enorme capacidade que nosso aparato neurofisiológico possui, o que também foi pos-sível por meio da evolução de nossa espécie. As outras espécies animais não possuem essa formidável capacidade que possuí-mos de descarregar a informação em dispositivos ambientais, de recuperá-la quando necessário e também de utilizar alguns desses dispositivos como auxiliares nos cálculos e raciocínios em geral. É a cultura humana que nos oferece as condições ambientais adequadas para que nossa mente possa ser esten-dida e, assim, amplie consideravelmente suas capacidades cognitivas. E o principal elemento dessa cultura humana é a linguagem verbal, são as línguas naturais que falamos. É gra-ças à linguagem que nossa mente pode se estender e incluir parte do ambiente em seu favor.

Page 163: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

162

A concepção de mente humana assim delineada é aque-la de uma estrutura abstrata que conta com elementos ou con-dições de base neurofisiológicas, orgânicas em geral, se pen-sarmos, por exemplo, em nossos órgãos sensoriais e seu papel na aquisição de conceitos e em toda a estrutura do corpo na execução de tarefas voltadas para a vida de relação e, por fim, as próprias condições ambientais que se prestam a ser parte de nossa mente estendida. A mente é esse sistema que inclui ele-mentos neurofisiológicos, orgânicos e ambientais e, dentre esses últimos, especialmente elementos de natureza social, como a linguagem e todo o mundo da cultura que ela permite haver.

Esse sistema mental estendido opera no que Mead, ci-tado inicialmente neste livro, denomina o campo da mente. Esse campo da mente é o que também denominamos o espaço cultural, que contém o espaço linguístico criado pela lingua-gem verbal e que dá origem ao próprio espaço cultural.73 Esse assunto será tratado no último capítulo. E, no próximo, vamos tratar de outro aspecto do mentalismo humano já mencionado diversas vezes e sem o qual não podemos caracterizar a mente humana adequadamente, isto é, a consciência reflexiva. Embo-ra muitos processos cognitivos possam ser inconscientes e em-bora possamos sem consciência participar de diversos siste-mas de cognição distribuída, como aquele do campus universi-tário, os principais processos cognitivos humanos — aqueles que estão associados a nossas ações deliberadas que criam e mantêm as realidades sociais e, nesse sentido, realidades men-tais estendidas mais sofisticadas — são processos conscientes. A consciência reflexiva é uma característica mental humana exclusiva e central para o próprio tipo de mente estendida que possuímos.

A teoria da mente estendida nos oferece um conceito amplo da mente humana, digamos, enquanto que as filosofias da mente mais tradicionais lidam com um conceito restrito, eminentemente interno ao corpo humano e, mais exatamente, localizado no sistema nervoso central. Assim, poderia parecer

73 Cf., respectivamente, MEAD, 1972 [1934], e DUTRA, 2017, cap. 6.

Page 164: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

163

que temos a opção de adotar quer o conceito mais restrito de mente, o conceito tradicional, ou o conceito estendido ou am-plo, esse conceito heterodoxo acima comentado. A nosso ver, não é assim que podemos encarar o mentalismo humano. Dos pontos de vista evolutivo e social, sem os quais também não temos uma caracterização adequada, molar, do mentalismo humano, o conceito amplo de mente, a mente estendida, é o mais relevante.

É esse mentalismo, de caráter evolutivo e social, que importa entender. Mesmo quando nos voltamos para a análise da consciência, como faremos no próximo capítulo, podemos ver que esse elemento tão central do mentalismo humano é algo que não pode existir independentemente de determinadas condições sociais, dentre as quais a principal é a linguagem. A concepção tradicional, molecular, é aquela segundo a qual, primeiro, temos um aparato neurofisiológico que permite ha-ver consciência reflexiva e, uma vez de posse dela, podemos criar a linguagem e as realidades sociais que ela permite haver. Mas, evolutivamente falando, não pode ter sido assim. Ao lon-go de milhões de anos e sobretudo ao longo dos últimos milha-res de anos da existência de nossa espécie, nosso aparato neu-rofisiológico se modificou e se readaptou juntamente com as modificações orgânicas em geral e principalmente com aquelas de natureza ambiental, especialmente social, como a lingua-gem justamente e as realidades sociais que dela dependem. Desse ponto de vista, não é possível na nossa espécie separar o natural do social ou o neurofisiológico do ambiental — se é que em alguma outra espécie isso é possível.74

Por isso o mentalismo humano tem de ser encarado preferencialmente como essa realidade estendida e abstrata, como esse sistema mental complexo para cuja análise o concei-to tradicional ou restrito de mente humana contribui apenas

74 Um autor que tem argumentado insistentemente em favor dessa concepção é Terrence Deacon, que sustenta a tese de evolução con-comitante entre cérebro, mente e linguagem. Cf. DEACON, 1997 e 2012.

Page 165: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

164

parcialmente. Sem o contexto criado pelo conceito amplo de mente humana, o próprio conceito restrito não é aplicável.

* Questões para revisão

1. De que maneira nossos próprios sentidos determinam os conceitos que possuímos segundo a perspectiva cor-porificacionista?

2. Qual é a concepção de cognição que está pressuposta pela teoria da cognição distribuída e em que aspectos essenciais ela difere daquela defendida pela ciência cognitiva padrão?

3. Que relação há entre as teorias da cognição distribuída e da mente estendida?

4. Por que a consciência não é absolutamente necessária num processo de cognição distribuída?

5. Por que podemos dizer que a mente humana não ape-nas está distribuída em algumas circunstâncias, mas que ela é uma mente sempre estendida?

Leitura adicional recomendada Uma introdução aos mesmos temas tratados neste capítulo, aprofundando alguns aspectos importantes se encontra em DUTRA, 2017, cap. 2. Há poucas obras em português sobre as teorias tratadas neste capítulo, mas pode-se consultar também VARELA et al., 2000 [1991]. Atividade complementar Comente a comparação entre o ser humano e os autômatos, especialmente a analogia segundo a qual a mente humana está para o corpo humano da mesma forma que a programação de um computador está para esse tipo de máquina e por que, do

Page 166: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

165

ponto de vista das teorias discutidas neste capítulo, essa com-paração não é tão elucidativa como se costuma acreditar.

§

Page 167: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

166

Page 168: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

167

9

CONSCIÊNCIA E PESSOALIDADE Entender como a consciência surge a partir do funcionamento do sistema nervoso central tem sido uma das principais preo-cupações dos filósofos da mente na atualidade, e também de boa parte dos pesquisadores na neurofisiologia. Um famoso artigo de Thomas Nagel, com o curioso título “Como é ser um morcego?” é considerado hoje uma referência na filosofia da consciência, tendo colocado o problema de maneira a orientar todo um novo programa de pesquisa.75 A consciência discutida por Nagel, Chalmers e outros é, mais especificamente, deno-minada consciência fenomênica, ou experiência subjetiva, ou simplesmente experiência. A relação entre essa consciência e suas condições de base neurofisiológicas é encarada por esses autores como o problema difícil da filosofia da consciência, em oposição aos problemas que seriam fáceis, que são basicamen-te os problemas relativos à relação entre nossos estados de consciência e a ação ou o comportamento. Esse tipo de consci-ência é denominado por esses autores consciência psicológica ou funcional. Ou, mais precisamente, o que esses filósofos da consciência pretendem é discutir o conceito de consciência fenomênica ou experiência, e não o conceito de consciência psicológica. É claro que há certa confusão terminológica a esse res-peito, pois, toda consciência é psicológica, porque é mental, assim como é sempre a experiência de algo. Mas a noção de consciência fenomênica diz respeito à experiência pessoal, aquela experiência que só pode ser narrada em um discurso de primeira pessoa. Como diz o próprio título provocativo do arti-

75 Cf. NAGEL, 1974; 2005, e também CHALMERS, 1996 e 2010, que é o autor que mais se notabilizou por discutir o conceito de consciên-cia fenomênica.

Page 169: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

168

go de Nagel, trata-se daquela experiência que só pode saber como é quem a tem. Então, é claro, como Chalmers reconhece, a consciência fenomênica tem de ser acompanhada por aquilo que ele denomina consciência psicológica. Mas ela é algo dis-tinto dessa última. E é claro que alguém pode estar num esta-do de consciência psicológica sem que ele seja acompanhado da consciência fenomênica. Já que, como diz Nagel, essa cons-ciência é a experiência de si ou, mais precisamente, a experi-ência de alguém saber como é ser quem (ou o que) ele ou ela é, de fato, podemos conceder que alguém pode estar em deter-minado estado de consciência psicológica sem se dar conta de ser quem é, sem ter a experiência subjetiva de si. Isso só pode ficar mais claro, contudo, no aspecto con-ceitual propriamente se soubermos primeiro o que é a consci-ência psicológica ou funcional. Esse conceito deve basicamente recobrir nossos estados ordinários de consciência que não se-jam então estados de dar-se conta de ser quem se é e experi-mentar isso subjetiva, qualitativa e perspectivamente. Mas mesmo nesse domínio da consciência psicológica, como já mencionamos nos capítulos precedentes, há uma diferença entre o que normalmente se denomina consciência básica ou consciência simplesmente, e a consciência superior ou reflexi-va. Essa última tem sido também denominada na literatura consciência de si ou autoconsciência. Aproximadamente, a concepção comum é aquela de que apenas os seres humanos possuem essa consciência de si, superior ou reflexiva, enquan-to que os indivíduos das outras espécies animais só possuem a consciência básica. Em suma, esses estados de consciência básica (como sentir uma dor, uma coceira, fome, sede etc.) não são acompanhados da referência dessas experiências a um eu, a uma identidade subjetiva. Diferentemente, a consciência reflexiva ou superior permite ao indivíduo reunir essas experi-ências básicas de consciência sob o domínio do eu ou, para utilizarmos um termo mais tradicional da filosofia, subsumir as experiências de consciência à experiência do eu. Mesmo que aceitemos essas noções e as explicações que elas oferecem para a variedade de nossos estados de cons-ciência psicológica, ainda não se trata da consciência fenomê-nica, argumentam os defensores dessa noção. A consciência

Page 170: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

169

fenomênica não é a consciência superior ou reflexiva, nem dela depende. Ela não é também a consciência básica de que fala-mos acima, mas pode acompanhar a ambos esses tipos de es-tados de consciência. A consciência fenomênica depende basi-camente das mesmas condições de base neurofisiológicas da consciência básica, contudo, e não daquelas condições de base neurofisiológicas da consciência reflexiva. Pois não apenas os morcegos, tal como Nagel diz em seu artigo, mas também os indivíduos de diversas espécies animais, além da espécie hu-mana, podem ter consciência fenomênica, mesmo que não sejam capazes de tentar verbalizar isso, como os seres huma-nos fazem, mesmo que não subsumam essa experiência subje-tiva sob o eu, mesmo que eles não tenham a consciência feno-mênica desse eu quando sua consciência reflexiva lhes permite ter um eu. Para ficarmos com o exemplo do próprio Nagel, pode-mos descrever objetivamente como é ser um morcego do ponto de vista neurofisiológico e perceptivo, como, aliás, resumida-mente, o próprio Nagel faz em seu artigo. E, como ele também diz, alguém não humano e capaz de conhecimento científico poderia fazer o mesmo com relação aos seres humanos. Mas essa experiência subjetiva de ser um morcego não é acessível para nós, nem nossa experiência subjetiva de ser um ser hu-mano seria acessível a quem nos estudasse. E Nagel dá uma razão biológica para isso, razão que é perfeitamente aceitável e que, aliás, vai na mesma linha argumentativa dos autores cor-porificacionistas. É a constituição fisiológica de cada espécie animal com consciência que é determinante para sua consci-ência fenomênica. Desse modo, em última instância, é nosso corpo, inclusive seu aparato neurofisiológico, que determina a perspectiva na qual vamos experimentar o mundo de forma geral. Só com o mesmo corpo é possível ter a mesma consciên-cia fenomênica. Embora na literatura a respeito da consciência fenomênica não haja comentários a esse respeito, podemos dizer que ela é de natureza perspectivista. O perspectivismo da mente humana será comentado em mais detalhes no próximo capítulo. Por mais que essa noção seja interessante e as discus-sões sobre ela possam ser fascinantes, é mais fundamental

Page 171: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

170

discutirmos a noção de consciência básica, pois sem ela não há consciência fenomênica. Além disso, já que é o mentalismo humano que nos interessa e já que ele envolve a consciência reflexiva, que também pressupõe a consciência básica, esse será o tema deste capítulo ou, mais precisamente, a relação entre a consciência reflexiva e suas condições de base. Entre elas estão nosso aparato neurofisiológico, de um lado, e a pró-pria consciência básica, de outro, que tem nesse mesmo apara-to neurofisiológico suas condições de base. Mas isso não é tudo para que os seres humanos tenham consciência reflexiva, pois essa última depende também da linguagem verbal (um assunto que vai ser abordado no próximo capítulo em mais detalhes), de determinadas outras condições sociais, além da própria linguagem que já é uma realidade social, e, por fim, dos meca-nismos de memória específicos de nossa espécie. É essa parte de nosso aparato neurofisiológico que mais interessa para compreendermos a consciência reflexiva. A concepção tradicional e mais comum é que a consci-ência básica ou primária, como Gerald Edelman a denomina, é uma condição necessária para a consciência reflexiva ou su-perior, na denominação de Edelman, e que essa última, por sua vez, é uma condição necessária para a consciência moral.76 As consciências reflexiva e moral, como já dissemos, são con-sideradas exclusividade dos seres humanos e com dependência direta da linguagem (verbal) e, sobretudo no caso da consciên-cia moral, de realidades sociais. Mesmo assim, Edelman afir-ma que os grandes primatas (como gorilas, chimpanzés e bonobos, por exemplo) demonstram sinais de alguma consci-

76 Cf. DUTRA, 2017, cap. 5. Cf. também EDELMAN, 1990 e 2004. E sobre os mecanismos da memória que comentaremos adiante, neste capítulo, cf. também SWEATT, 2010; e HASSELMO, 2012. A distin-ção aqui apontada entre consciência (básica), consciência reflexiva e consciência moral corresponde aproximadamente àquela que tam-bém é comum na língua inglesa entre awareness, (reflexive ou self) consciousness e conscience, embora também não haja em inglês, assim como em português, uniformidade no uso desses termos todos. Mesmo assim, vamos conservar essa distinção. A consciência feno-mênica, contudo, fica fora desse esquema.

Page 172: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

171

ência reflexiva rudimentar, digamos, assim como demonstram também, aliás, alguma capacidade linguística, embora, obvia-mente, também a esse respeito, muito rudimentar e distante das capacidades verbais dos seres humanos. Como não há ou-tra espécie sobrevivente do gênero Homo, obviamente, é im-possível qualquer análise comparativa a respeito da consciên-cia humana, mas é uma especulação sustentável que os Nean-derthais possuíssem capacidades linguísticas e reflexivas com-paráveis às de nossa espécie. Do ponto de vista neurofisiológico, é razoável pensar-mos que quando passamos da consciência básica para a cons-ciência reflexiva e, depois, para a consciência moral, passamos para níveis de maior complexidade quanto a regiões do siste-ma nervoso central envolvidas e, se quisermos, redes neuro-nais. Sabemos hoje, por exemplo, que o autocontrole — que é algo intimamente ligado à consciência moral e que é, funda-mentalmente, um fenômeno reflexivo bastante elaborado ou sofisticado — está ligado ao pleno desenvolvimento do córtex pré-frontal. E sabemos também que essa região do cérebro só está inteiramente consolidada no fim da adolescência. Com isso, a consciência moral, que tradicionalmente era encarada como um fenômeno puramente cognitivo ou, mais especifica-mente, como a capacidade de entender noções socialmente compartilhadas sobre o dever, passou a ser encarada também como uma questão biológica. É claro que a consciência moral não deixa de ser, mes-mo quando vista assim, um fenômeno cognitivo superior. Afi-nal, está em questão também o que se entende por fenômeno cognitivo. A esse respeito, ao contrário, a mesma concepção tradicional encarava a própria consciência reflexiva como um fenômeno não cognitivo. Isto é, o indivíduo humano tem cons-ciência de si, mas não como objeto de conhecimento propria-mente, ou pelo menos como um tipo muito especial de conhe-cimento imediato, incomparável com outros tipos de conheci-mento, aqueles a respeito de tudo mais. Essa forma de encarar a consciência reflexiva se mostra, por exemplo, no Cogito car-tesiano. Segundo Descartes, na Segunda Meditação, o conhe-cimento de si como coisa pensante (res cogitans) é aquilo que resta — aquilo de que nos damos conta — quando afastamos

Page 173: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

172

ou colocamos em suspensão toda outra forma de conhecimen-to.77 Ambas, a consciência moral e a consciência reflexiva, são em alguma medida de caráter cognitivo, embora, devemos reconhecer, de diferentes maneiras. Mas a própria consciência básica é também de caráter cognitivo, devemos lembrar, já que ela nos dá acesso a realidades mentais que possuem papel fun-cional no organismo, como vimos no capítulo 4, e que são também determinantes para nossa aquisição de conceitos, como enfatizam os defensores da perspectiva corporificacio-nista, como vimos no capítulo anterior. E a própria consciência fenomênica é, enfim, um recurso também cognitivo. Assim, a questão não é aquela de separar esses diferentes fenômenos de consciência em duas categorias, uma eminentemente cogniti-va, outra não, mas de vermos em que medida eles dependem de cognições.

Tanto a consciência reflexiva quanto a consciência mo-ral dependem da formação do eu (self) e da identidade pessoal. De fato, a posição que desejamos defender é a de que o amadu-recimento neurofisiológico e a emergência do eu e das consci-ências reflexiva e moral se dão concomitantemente. Nos ter-mos daquela relação de mútua dependência de que falamos no capítulo 7, a nosso ver, todas essas realidades psicológicas são mutuamente dependentes umas das outras. E mais: há tam-bém entre elas, de um lado, e as realidades sociais, de outro, uma relação de comunidade. Nesse caso, do ponto de vista

77 Embora Descartes se expresse assim, utilizando o termo metafisi-camente tão carregado de “res” (“coisa”), a filosofia posterior procu-rou separar a tese metafísica da realidade da substância pensante daquela manifestação originária do eu, tal como entende, por exem-plo, a tradição fenomenológica. Em termos mais simples: esse eu se manifesta ou se dá a conhecer como puro fenômeno, sem que pos-samos dizer de que coisa ele é uma manifestação. A tradição fenome-nológica iniciada por Edmund Husserl, segundo esse mesmo autor, remontando a Franz Brentano, de qualquer modo, recupera também o ponto de vista de Kant, de um eu fenomenal, sem que possamos saber de seu status metafísico. Sobre esses pontos, cf. DUTRA, 2017, cap. 1.

Page 174: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

173

evolutivo, não podemos dizer que, primeiro, os seres humanos adquiriram consciência reflexiva e, depois, a linguagem verbal e, com ela, criaram as realidades da vida social tipicamente humana, todos os tipos de objetos culturais e instituições, e, por fim, a moral. Todas essas coisas têm de ter surgido evolu-tivamente ao mesmo tempo, como sustentam diversos autores hoje, entre eles, Terrence Deacon.78

Contudo, antes de tratarmos dessa relação entre as modalidades da consciência (básica, reflexiva e moral) com as realidades sociais sem as quais as duas últimas não emergem nem se desenvolvem plenamente, vamos voltar à relação entre elas e nosso aparato neurofisiológico, especialmente os meca-nismos de memória. Por ora, observemos apenas que a consci-ência moral que, afinal, é um tipo especial de consciência re-flexiva, é tão dependente de nossa constituição cerebral quanto da constituição cultural da sociedade humana. Ela não é, por-tanto, apenas um fenômeno cultural, mas uma forma sofisti-cada e específica de atuação da consciência reflexiva como, metaforicamente falando, uma espécie de internalização do outro e externalização do eu. De fato, como vamos comentar adiante, ela é o estágio final de desenvolvimento da identidade pessoal.

Segundo Edelman e outros pesquisadores, nenhuma das duas formas da consciência — a básica ou primária e a su-perior ou reflexiva — seria possível sem os mecanismos de memória típicos da espécie humana. Há diversos modelos a esse respeito, mas, de forma geral, eles distinguem entre a chamada memória de longo prazo (às vezes denominada me-mória remota) e a memória de curto prazo (também denomi-nada memória recente). E dessa última faz parte a memória operacional ou memória de trabalho, que é o que permite manipular uma informação conservada por alguns segundos. Ou seja, é a capacidade de prestar atenção a determinado vo-lume limitado de informação. A memória de curto prazo regis-

78 Cf. seus já citados livros: DEACON, 1997 e 2012. A relação das formas de consciência com as realidades sociais, contudo, será trata-da no próximo capítulo. Cf. também DUTRA, 2017, cap. 5 e 6.

Page 175: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

174

tra as percepções por um tempo até que elas sejam conduzidas à memória de longo prazo e, posteriormente, recebe de volta ou recupera a informação guardada na memória de longo pra-zo, tendo-a presente novamente. Assim, a consciência primária é essa nossa capacidade de prestar atenção em uma represen-tação ou informação que entra, provinda de percepções, ou que é recuperada, provinda da memória remota. Como diz Edelman, essa consciência primária é a capacidade de constru-ir uma cena ou, em termos mais simples, a capacidade de ter algo presente, metaforicamente falando, a capacidade de con-templar algo internamente.

Dessa forma, a consciência não é uma propriedade da mente humana, como sugerem os defensores daquela noção de consciência fenomênica, mas um processo que envolve os me-canismos de memória, especialmente o sistema de memória de curto prazo e, nele, a memória operacional. A consciência bási-ca é esse prestar atenção a uma informação retida na memória de curto prazo. Como esse sistema é limitado, ao contrário do sistema de longo prazo, é preciso também aprendermos a con-trolar esse processo, aprendermos a prestar atenção a uma informação ou, por assim dizer, renovarmos a permanência da informação na memória de curto prazo. O sistema de curto prazo é limitado tanto em sua capacidade de conter informa-ção quanto com relação ao tempo que essa informação é retida aí. Uma experiência simples ilustra isso. Basta tentarmos per-ceber por quantos segundos conseguimos guardar mentalmen-te um número qualquer, por exemplo, de telefone. Vemos que isso é possível por alguns segundos e que o número que conse-guimos ter presente por esse curto intervalo pode ter de quatro e sete dígitos.

Dessa forma, vemos que a consciência básica é esse processo de prestar atenção em alguma coisa. E quando nos damos conta de fazer isso, entra em cena a consciência reflexi-va, isto é, o processo de ordem superior de sermos conscientes de sermos conscientes. Com isso é possível não apenas mani-pularmos de maneira mais detalhada a informação recuperada da memória de longo prazo, o que nos dá a noção de passado, mas, em analogia com ele, projetarmos o futuro, anteciparmos aquelas situações que, depois de passarem pela memória de

Page 176: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

175

curto prazo, serão registradas na memória de longo prazo. E essa consciência superior permite também que o indivíduo se localize em relação ao passado e ao presente. Assim, ela envol-ve a referência ao eu. É parte do processo de consciência refle-xiva subsumir as representações (passadas e presentes, de um lado, e as antecipações, o futuro, de outro) sob o eu como aquele indivíduo que experimenta tudo isso. Desse modo, as noções de consciência reflexiva e de eu ou identidade pessoal são correlativas, pois elas derivam do mesmo processo. Ser consciente de ser consciente não pode não fazer referência ao indivíduo que é consciente.

Graças a nosso aparato neurofisiológico, especialmente os sistemas ou mecanismos de memória, como vimos acima, aprendemos a prestar atenção e a controlar esse processo que faz emergir a consciência reflexiva e o eu. Esse aprendizado, contudo, não depende apenas de tal aparato neurofisiológico, mas também das condições ambientais que o estimulam. Em parte, essas condições ambientais são puramente naturais, digamos. Elas são simplesmente as condições ambientais que estimulam nossos sentidos e nos conduzem a produzir repre-sentações ambientais, isto é, a registrar cenas, a reter informa-ção que provém do ambiente. Por isso o tipo de memória que está relacionada com esses estados de consciência é também chamada de memória episódica. Mas em parte as condições ambientais que possibilitam a consciência reflexiva são de ca-ráter social, mais especificamente, semântico, isto é, linguísti-co e relacionado com a significação que as situações ambien-tais podem adquirir para o indivíduo.

Retomemos um caso simples já mencionado, aquele do condicionamento dos cães de Pavlov. O estímulo condiciona-do, a luz ou o som que foram correlacionados com a apresen-tação de alimento, passa a ser alguma coisa que possui signifi-cação para o animal. Contudo, essa significação rudimentar, digamos, ainda não é do mesmo tipo que aquela que a posse da linguagem verbal nos possibilita. O estímulo condicionado é significativo ou importante para o cão, mas ele tem apenas consciência primária do próprio estímulo, e não a consciência reflexiva de que o estímulo é significativo ou importante para ele. A capacidade semântica da linguagem que apenas os seres

Page 177: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

176

humanos possuem é aquela de estar ciente de que determina-do objeto é importante ou significativo para o indivíduo, mas que esse objeto é apenas o representante de outro. Os símbolos para nós cumprem esse papel, pois temos clareza de que eles são determinados objetos (sons ou marcas gráficas) que estão no lugar de outros, que são representantes de outros. Isso é o que há de essencial na dimensão semântica da linguagem. Para o cão o som ou a luz indicam o alimento, mas ele não é capaz de separá-los mentalmente do alimento. Nós somos capazes de separar idealmente os símbolos da linguagem daqueles objetos que eles representam para nós. E nos damos conta ao mesmo tempo de que é apenas para nós que eles representam tais ob-jetos. Trata-se da capacidade de abstração, de pensar ideal-mente as relações entre as coisas e não somente as próprias coisas isoladamente.

Segundo Edelman, a consciência superior não é apenas o que possibilita essa nossa capacidade semântica e, com ela, a representação detalhada que integra o objeto representado àquele que o representa e ao sujeito para quem isso se dá. Essa capacidade semântica é também, por sua vez, o que possibilita a emergência da consciência reflexiva. Pois a consciência refle-xiva é essa capacidade de idealmente separar a cena criada pela consciência primária do sujeito que a elabora. Ela integra, portanto, a cena com aquilo que ela representa e aquele para quem ela a representa. Assim, a consciência reflexiva é a capa-cidade que os indivíduos humanos têm de se darem conta da própria perspectiva. E com isso é possível também imaginar que há perspectivas distintas. E, nesse caso, o indivíduo se dá conta também de que ele é o outro do outro, de que há outros indivíduos com perspectivas distintas da dele. Esse eu emerge na medida em que se dá conta de que pode ser visto de outras perspectivas. Sem isso não há eu nem consciência reflexiva; há apenas consciência fenomênica. O indivíduo é e se experimen-ta enquanto tal, mas não sabe que é nem é capaz de descrever o que é. E por isso as condições sociais da sociabilidade do indivíduo humano são também essenciais para a emergência

Page 178: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

177

do eu e da consciência reflexiva.79 A própria consciência refle-xiva emerge por meio de um processo de abstração — essa é sua dimensão cognitiva fundamental.

A partir dessas considerações podemos então discutir agora outro ponto que tem sido central na filosofia da mente, a saber, a relação entre as noções de mente e de pessoa. Intuiti-vamente, é claro que nossa primeira noção de pessoa provém daquela de indivíduo da mesma espécie que nós — e não pode-ria ser de outro modo. Afinal, dadas as condições neurofisioló-gicas e sociais normais ou comuns, todos os indivíduos de nos-sa espécie desenvolvem a consciência reflexiva e sua identida-de como um igual dentro de sua comunidade específica. Nesse sentido, para nós, seres humanos, uma pessoa é alguém com quem podemos conversar; e mesmo que não saibamos sua língua nem esse outro indivíduo saiba a nossa, podemos aprender sua língua e ele pode aprender a nossa. Mas essa noção de pessoa de fundo biológico e lastreada pelas noções de consciência reflexiva e da linguagem verbal não é a única que encontramos socialmente. Esse critério biológico não é o único critério de pessoalidade que empregamos socialmente.

Podemos dizer também, então, que há graus de pes-soalidade, embora tenhamos de tomar essa noção com muita precaução ética para evitar quaisquer formas de discriminação e preconceito. Mas vejamos alguns casos ilustrativos. Do ponto de vista civil, todas as sociedades possuem um critério de mai-oridade, isto é, todas fixam determinado momento do cresci-mento e desenvolvimento de uma criança ou adolescente em que esse indivíduo passa a ser considerado adulto, inteiramen-te responsável por suas ações, imputável perante a lei e ple-namente um agente moral, capaz de compreender as noções de certo e errado, de dever e de direito, e de agir de acordo com tais noções socialmente compartilhadas. Não é que, antes da maioridade, o indivíduo não seja uma pessoa; mas, socialmen-te, ele não recebe todos os atributos que uma pessoa pode re-

79 A esses respeitos, cf. também MEAD, 1972 [1934]. E, para mais detalhes a respeito dos mecanismos de memória e das noções de consciência primária e superior, cf. DUTRA, 2017, cap. 5.

Page 179: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

178

ceber da parte de sua sociedade. Outro caso ilustrativo é do indivíduo que é atingido por uma doença neurológica degene-rativa e que perde determinadas capacidades intelectuais e mesmo, às vezes, perceptivas, perdendo também a capacidade de diálogo racional e coerente. Esse indivíduo também não deixa de ser uma pessoa, mas, igualmente, seu grau de pessoa-lidade do ponto de vista social diminui para efeitos legais, mo-rais e mesmo de convívio comum.

Esses exemplos — que, mais uma vez, não devem ser encarados de maneira discriminadora — servem apenas para mostrar que a noção social de pessoa é distinta daquela de base biológica. E podemos mesmo dizer que a pessoa social é aquele indivíduo também considerado um agente racional e moral. Mas esse indivíduo é aquele que se vê como um eu en-tre pares, é aquele no qual a consciência reflexiva se desdobra em consciência moral — basicamente a capacidade de encarar o outro como um outro eu, alguém tão merecedor de respeito e consideração como ele mesmo.

Do ponto de vista psicológico há dois casos bem ilustra-tivos dessa mútua dependência entre a consciência reflexiva e a consciência moral, de um lado, e, de outro, da mútua depen-dência entre as condições neurofisiológicas que permitem a emergência das consciências reflexiva e moral e as condições sociais que são também condições de base para isso. O primei-ro caso é bastante lamentável, o segundo, ainda que também seja lamentável, é muito preocupante socialmente e um tanto desconcertante. O primeiro é o das crianças ferais, o segundo, dos psicopatas.80

As crianças ferais são ilustrativas a esse respeito porque são crianças que foram privadas do convívio da sociedade no período crítico para o desenvolvimento psicolinguístico. O pe-ríodo adequado para que a criança adquira sua língua materna

80 Sobre as crianças ferais, cf. AROLES, 2007; CANDLAND, 1993; CURTISS, 1977; ITARD, 1801, 1807 e 1894; NEWTON, 1996 e 2002; RYMER, 1994; SHATTUCK, 1994. Sobre a psicopatia, cf. BABIAK; HARE, 2007; CLECKLEY, 1988; COOKE; FORTH; HARE, 1998; GLENN; RAINE, 2014; HARE, 1995; 2013.

Page 180: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

179

quando exposta aos estímulos verbais dos adultos varia mais ou menos entre seis meses e três anos de vida. As crianças que não aprendem a língua materna nesse período, que é o caso de algumas crianças ferais, mesmo depois de trazidas para o con-vívio social e colocadas sob os cuidados de pesquisadores em certas instituições, não chegam a desenvolver a fala plenamen-te, nem a aprender até mesmo noções básicas da convivência humana em sociedade. Entre os casos mais conhecidos e mais bem estudados está aquele do menino Victor, encontrado nos arredores de Aveyron, na França, com mais ou menos dez anos de idade, e depois levado para Paris, numa instituição para surdos-mudos, sendo colocado sob os cuidados de Jean Itard, que o acompanhou por anos. Isso ocorreu no fim do século XVIII e início do XIX. Mais recentemente, por volta dos anos 1970s, o outro caso bem estudado foi o da menina Genie, que não era propriamente feral, pois vivia com a família na região de Los Angeles, Estados Unidos. Ela vivia isolada em um quar-to, grande parte do tempo presa a uma poltrona, sem contado normal nem mesmo com o pai, a mãe e um irmão. Genie tam-bém foi levada para uma instituição e foi acompanhada por diversos pesquisadores, entre eles, Susan Curtiss, que estudou o caso sobretudo no aspecto linguístico.

O que é típico das crianças nessa situação é a falta do domínio ou fluência em uma língua. As formas de comunica-ção que elas acabam adquirindo com as pessoas que delas se ocupam são formas muito rudimentares, muito distantes da fluência em uma língua natural. Com isso, fica impossível para esses indivíduos participar de uma cultura, compreender as regras sociais em geral e, obviamente, os preceitos morais.

O caso dos psicopatas é bem distinto desse das crianças ferais no que diz respeito ao convívio social. Eles são pessoas que sempre tiveram a oportunidade de conviver com suas fa-mílias e o restante da sociedade, aprender sua cultura, estudar em escolas, ter ocasião de adquirir uma profissão etc. Os estu-dos mais recentes sugerem que há problemas neurológicos relacionados com a psicopatia. Uma das hipóteses bastante considerada é a de alguma deficiência ligada ao córtex pré-frontal e à amídala, possivelmente também um problema de comunicação entre essas duas regiões do sistema nervoso cen-

Page 181: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

180

tral. A psicopatia é uma síndrome e, assim, se manifesta com uma variedade de sintomas ou, mais especificamente, formas desviantes de comportamento. E há graus de psicopatia. Con-tudo, há amplo acordo entre os pesquisadores da área quanto ao perfil típico do psicopata, que não costuma apresentar cul-pa, nem empatia para com as outras pessoas; são indivíduos impulsivos, com grande necessidade de excitação; são incons-tantes, manipuladores, com comportamento verbal exacerba-do, chegando a ser mesmo verborrágicos. Não são necessaria-mente criminosos, embora uma boa parte dos criminosos te-nha sido diagnosticada como de psicopatas. Mas há também os chamados psicopatas bem sucedidos, isto é, basicamente aque-les que, mesmo cometendo crimes, não são pegos pelo sistema judiciário. Muitas vezes eles se restringem a pequenos delitos e a uma vida de exploração de seus familiares e pessoas próxi-mas. E é óbvio que esses indivíduos, mais cedo ou mais tarde, perdem o convívio da família, dos amigos, dos colegas de tra-balho, tendo mesmo que mudar de atividade, de cidade etc.

Os psicopatas são em geral considerados inteligentes, mas há hoje pesquisas que sugerem que eles também têm cer-tas deficiências cognitivas. Por exemplo, eles têm dificuldade para aprender das experiências mal sucedidas e de mudar seu comportamento. Em parte isso se deve ao fato de que eles não se importam com as consequências de seus atos e com a opini-ão dos outros, mas parece haver também alguma dificuldade eminentemente cognitiva, pois, mesmo quando são identifica-dos pelas pessoas com as quais convivem, eles deixam de mu-dar seu comportamento, o que seria mais proveitoso para eles. E vale lembrar que seu perfil típico é de pessoa exploradora e manipuladora, o que sugere, portanto, que mudar seu compor-tamento em função do meio seria mais vantajoso. Como eles não fazem isso, são pouco racionais, podemos dizer. Dentro de certos limites, as pessoas costumam amoldar seu comporta-mento às circunstâncias sociais, mas, em geral, o psicopata tem dificuldade de fazer isso.

Diferentemente das crianças ferais, os psicopatas en-tendem o que é certo e errado em sua sociedade. Eles apenas não sentem a obrigação de agir de acordo com as convenções e normas sociais. No plano emocional, para eles, é indiferente, já

Page 182: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

181

que não sentem culpa quando fazem algo socialmente repro-vável, nem satisfação quando fazem algo socialmente aprová-vel. Seus prazeres são bastante básicos, exceção apenas de cer-to prazer que eles demonstram em manipular e enganar as outras pessoas.

Em suma, apesar das diferenças brutais entre as crian-ças ferais e os psicopatas, ambos os tipos de indivíduos são considerados ineptos para a ação moral. Eles não são agentes morais. Apenas saber o que é certo e errado, no caso dos psi-copatas, não basta para caracterizá-los como agentes morais, pois é consenso entre os filósofos que a ação moral deve ser acompanhada de sentimentos morais. E as pesquisas em neu-rofisiologia hoje confirmam essa opinião comum entre os filó-sofos morais. Assim, se considerarmos que o grau pleno de pessoalidade inclui ser um agente moral, então nem as crian-ças ferais, nem os psicopatas são capazes de atingir esse grau máximo ou ótimo da pessoalidade.

O caso das crianças ferais é mais lamentável porque elas não apenas estão excluídas da comunidade moral, mas cultural em geral. Estão, portanto, praticamente excluídas de nossa comunidade epistêmica. Não compartilham conosco uma visão de mundo. Os psicopatas, ao contrário, fazem parte da mesma comunidade epistêmica, basicamente. Mas não fa-zem parte da comunidade moral. Todavia, se considerarmos que fazer parte da comunidade cultural, conviver no mesmo espaço cultural, do qual vamos falar no próximo capítulo, é também compartilhar sentimentos morais, então os psicopatas também deixam de participar da mesma comunidade cultural que o restante da população.

O caso da psicopatia é inquietante e preocupante do ponto de vista social em virtude das consequências aversivas, às vezes desastrosas mesmo para as famílias, do comporta-mento do psicopata. E é desconcertante porque é muito difícil para as demais pessoas não encarar o psicopata como um igual, sobretudo para os familiares dele. E, contudo, não é pos-sível lidar com o psicopata da mesma forma como lidamos com as pessoas em geral. E, por isso, em termos dos critérios de pessoalidade, é muito difícil encará-los, afinal, como pesso-

Page 183: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

182

as normais ou, propriamente, como pessoas, no sentido pleno do termo.

Há uma hipótese fantasiosa considerara por muitos fi-lósofos da mente hoje quando tratam da consciência, que é a hipótese dos zumbis (zombies), que seriam indivíduos iguais aos outros, que se comportariam exatamente como os outros, mas que não teriam consciência do que fazem. Do ponto de vista evolutivo e mesmo do ponto de vista funcional, essa hipó-tese é absurda, pois, primeiro, é difícil aceitar a ideia de que a consciência seria apenas um bônus inútil que a evolução nos deu, um mero epifenômeno sem nenhum papel na vida de re-lação, como já comentamos nos capítulos precedentes. Segun-do, porque muito do que fazemos requer necessariamente de-terminados estados de consciência, sobretudo, obviamente, a consciência reflexiva. Mas mencionamos essa hipótese absur-da apenas para dizermos que, se tais zumbis existissem, eles não seriam pessoas, pois não seriam eus, já que não teriam consciência.

Agora, se compararmos os casos das crianças ferais e dos psicopatas com esse dos zumbis, podemos ter uma ideia mais clara de por que aqueles também não seriam plenamente pessoas. Em sua aparência, pelo fato de serem indivíduos de nossa espécie, tanto as crianças ferais quanto os psicopatas parecem pessoas, obviamente. Mas quando prestamos atenção a seus comportamentos, percebemos que, nesse aspecto, so-bretudo no que diz respeito ao comportamento moral, eles não podem ser considerados indivíduos que correspondem a nosso modelo socialmente compartilhado de pessoa, que tem como ponto central aquele de que o indivíduo deva ser um agente racional e moral. Tanto a criança feral quanto o psicopata têm deficiências racionais e morais importantes.

Uma analogia que poderia ser feita entre o zumbi e o psicopata bem sucedido perfeito é que, no caso desse último, teríamos realmente alguém que pareceria ser uma pessoa, pa-receria ter consciência moral, mas não a teria. Assim, por não ter sentimento morais nem, portanto, consciência moral, mas apenas consciência reflexiva, poderíamos dizer que o psicopata é uma espécie de zumbi moral. Mas é apenas uma hipótese aquela de que há psicopatas bem sucedidos perfeitos, isto é,

Page 184: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

183

indivíduos que são acometidos dessa síndrome, mas que aprenderam a controlar seu comportamento de tal forma a se passarem por agentes morais. Essa hipótese é muito imprová-vel por causa do caráter impulsivo do psicopata. Se estamos falando do indivíduo nos graus mais altos da síndrome, essa impulsividade seria incontrolável para ele. Muito dificilmente ele teria autocontrole para ser um psicopata bem sucedido. Portanto, na prática, o mais provável é que os supostos psico-patas bem sucedidos sejam apenas os indivíduos que apenas ainda não foram identificados, mas que, mais cedo ou mais tarde, serão identificados como psicopatas.

Assim como a esquizofrenia, a psicopatia é incurável e, ao contrário da esquizofrenia, a psicopatia não é tratável, não pode ser mitigada por meio de tratamento químico, nem muito menos por meio de tratamento psicoterapêutico, uma vez que o psicopata não se submete a esse tipo de terapia, que tem de ser voluntária, é claro. Mas estima-se também que o número de psicopatas no mundo seja mais ou menos o mesmo de es-quizofrênicos. E, por fim, embora os esquizofrênicos sejam considerados legalmente não responsáveis, os psicopatas são considerados imputáveis legalmente por seus crimes. Embora eles não sejam agentes morais e não tenham os sentimentos morais, eles têm pleno conhecimento (no sentido meramente intelectual) do que é certo e errado e do que podem ou não fazer em sua sociedade. Esses casos são apenas ilustrativos para nos darmos conta então de que a noção de pessoa, aproximadamente, aquela noção socialmente compartilhada de que as pessoas são agentes morais, é uma noção abstrata e cultural. Ela não se confunde com a noção de mente, nem com a mente no sentido mentalista tradicional, nem com aquela noção de mente esten-dida, que vimos no capítulo anterior. Embora, como vamos ver no próximo capítulo, a noção de mente seja também abstrata, como, aliás, já dissemos nos capítulos anteriores, e embora a noção de pessoa seja também de uma realidade abstrata, elas são diferentes realidades abstratas. Nós construímos social-mente essas duas realidades abstratas de maneiras diferentes e as fazemos emergir como duas realidades distintas, embora conexas. Para ser uma pessoa, um indivíduo humano deve

Page 185: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

184

possuir uma mente bem estruturada não apenas no que diz respeito aos aspectos neurofisiológicos e psicolinguísticos, mas também culturais. Muitíssimo se tem discutido na filosofia desde os gre-gos a respeito dos fundamentos da moralidade e muitas são as abordagens críticas à moral. Mas não há dúvidas de que a consciência moral, além de requerer os sentimentos morais e a empatia, a capacidade de considerar os outros como outros eus, e de requerer também uma capacidade cognitiva especial, aquela de fazer abstrações, requer também o ambiente cultural adequado. Entretanto, o ambiente cultural adequado para que os indivíduos alcancem a consciência moral tem de ser um ambiente constituído por indivíduos que já possuem essa mo-dalidade da consciência. Essa dimensão social da consciência, da mente e da identidade pessoal será discutida no próximo capítulo.

* Questões para revisão

1. Caracterize as quatro formas de consciência menciona-das, isto é: fenomênica, básica ou primária, reflexiva ou autoconsciência e moral.

2. Qual é a relação entre a consciência básica e os meca-nismos de memória?

3. Qual é a relação entre a consciência reflexiva e a lin-guagem verbal?

4. Qual é a relação entre a consciência reflexiva e a cons-ciência moral?

5. Qual é a relação entre a consciência moral e a noção de pessoa humana?

Leituras adicionais recomendadas O artigo “Como é ser um morcego?” de Thomas Nagel (2005) é uma leitura interessante para compreender a abordagem que discute a consciência fenomênica. São também leituras intro-

Page 186: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

185

dutórias ao tema da consciência em geral o capítulo 3 do livro de John Searle (2000), Mente, linguagem e sociedade, e o capítulo 6 do livro de Daniel Dennett (1997), Tipos de mentes. Para uma discussão mais detalhada dos assuntos deste capítu-lo, seguindo o mesmo enfoque, pode-se consultar o capítulo 5 de nosso livro Autômatos geniais (DUTRA, 2017). Atividade complementar Comente a relação entre a autoconsciência e a identidade pes-soal, especialmente no que diz respeito à moralidade, isto é, ao fato de que o agente moral não apenas sabe o que é certo ou errado em sua sociedade, mas que isso é acompanhado de sen-timentos morais.

§

Page 187: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

186

Page 188: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

187

10

O LUGAR DA MENTE NA NATUREZA E NA SOCIEDADE

As sociedades animais, como colmeias e formigueiros, já foram muito estudadas, e descobertas interessantes foram feitas a respeito dessas criaturas industriosas. Entre outras coisas, é notável o fato de que esses animais constroem suas moradias segundo determinados padrões ou modelos que, grosso modo, podem ser considerados pertencentes à espécie biológica. Mui-tas outras espécies animais produzem modificações similares na natureza. Exemplos sempre lembrados são os diques cons-truídos pelos castores, os ninhos construídos pelos pássaros joão-de-barro etc. Também nesses casos o modelo de constru-ção parece ser passado geneticamente, de geração em geração; parece ser algo que faz parte da própria natureza dos indiví-duos dessas espécies animais. De tal forma é isso que ninguém pensaria em separar as construções e outras formas de interfe-rência que esses animais produzem na natureza em uma classe de objetos culturais produzidos por eles. Apenas num sentido metafórico poderíamos falar, por exemplo, da cultura das abe-lhas, de um projeto arquitetônico de suas colmeias, de sua indústria do mel e da cera. Mesmo que haja diferenças entre as colmeias, o mel e a cera produzidos pelas diferentes comu-nidades de abelhas pelo mundo afora, e essas diferenças exis-tem, nós as desconsideramos e pensamos que colmeias, mel e cera são decorrência direta da natureza das abelhas e que ape-nas isso é importante pensarmos a respeito delas. No caso de nossa própria espécie, é claro que não agi-mos assim. Pensamos que as diferentes comunidades de seres humanos pelo mundo afora produzem diferentes culturas, no sentido próprio, antropológico, do termo. E pensamos que essas diferentes culturas são formas não necessariamente na-turais de interferência dos seres humanos na natureza. As dife-renças entre suas moradias, instrumentos de todos os tipos,

Page 189: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

188

modos de produção de alimento e de utilidades dos mais vari-ados tipos, suas línguas, costumes, preceitos morais etc. são tão grandes que não concebemos que tais coisas possam ser decorrência da natureza dos seres humanos, ao contrário de cera e mel, que nos parecem meras decorrência da natureza das abelhas. E isso é tão marcante em nossa compreensão das sociedades humanas que muitos chegam mesmo a dizer que não há uma natureza humana e que o que ocorre é apenas que os seres humanos são indivíduos tão plásticos que seu contato com a natureza bruta os leva a formas de vida extremamente distintas. E tais formas de vida ou de cultura não são passadas geneticamente de geração em geração porque, no limite, ape-nas aquela plasticidade seria suficiente para dotar os seres humanos das capacidades para enfrentar os desafios do ambi-ente e sobreviver. Assim, sua natureza humana, em última instância, se resumiria a tal plasticidade. E essa plasticidade seria uma decorrência natural de sua enorme capacidade men-tal, cognitiva propriamente, decorrente de seu inigualável apa-rato neurofisiológico. Os comentários acima resumem a maneira tradicional de separar nossa espécie das outras, de distinguir a sociedade humana das sociedades animais, e de distinguir na nossa espé-cie natureza de cultura — o que não parece pertinente fazer com relação a outras espécies. Mas suponhamos que outros seres inteligentes (talvez extraterrestres com capacidades cog-nitivas muito superiores às nossas) chegassem ao nosso plane-ta e observassem o que fazemos e como vivemos da mesma forma que nós observamos as sociedades animais, tal como fazemos ao estudarmos as abelhas e as formigas. Esses seres notariam aquilo que as primeiras gerações de antropólogos profissionais salientaram como características universais das sociedades humanas. Esses extraterrestres a nos estudarem notariam que em todos os grupos humanos pelo planeta afora constroem-se moradias, produzem-se ferramentas e outras facilidades com as quais lidamos com o ambiente, falam-se línguas, organizam-se esses grupos de acordo com a divisão do trabalho ou com o exercício da administração das necessidades do grupo, criam-se regras de conduta e convivência etc. E não seria de se espantar que esses estudiosos extraterrestres da

Page 190: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

189

sociedade humana chegassem à conclusão de que toda essa cultura humana seria uma pura decorrência de nossa natureza, de que falar línguas, organizar a convivência e se instrumenta-lizar de diversas maneiras para lidar com o ambiente são ca-racterísticas passadas geneticamente de geração em geração. E como esses nossos observadores seriam, obviamente, muito perspicazes, eles concluiriam também que as diferenças cultu-rais entre os diferentes grupos humanos decorrem meramente dos diferentes desafios que as diversas regiões do globo apre-sentam a essas comunidades humanas. Eles concluiriam que nossas diferentes culturas são apenas diferentes modos como respondemos aos estímulos ambientais nos diferentes nichos ecológicos em que vivemos. Todavia, em um congresso entre terráqueos e extrater-restres, se os dois grupos pudessem se comunicar, haveria uma radical diferença de opiniões sobre a natureza humana. Nós continuaríamos a dizer que apenas aquela plasticidade é nossa natureza; os extraterrestres continuariam a argumentar que moradia, trabalho, linguagem, instituições etc. são parte cons-titutiva de nossa natureza, pois em qualquer ambiente em que formos colocados, produziremos essas coisas, assim como as abelhas sempre produzem mel e cera e constroem colmeias em qualquer parte do mundo onde vivem. A diferença fundamen-tal de opinião entre nós e nossos estudiosos extraterrestres seria então que, ao contrário de nós, eles não concordariam em separar natureza e cultura também no nosso caso humano. Não precisamos decidir aqui a qual dos dois grupos daríamos razão, mesmo porque essa hipótese é apenas uma fantasia de filósofo. Mas isso nos ajuda a perceber que, assim como as abelhas são seres produtores de mel e cera, os seres humanos são seres produtores de cultura ou, mais especifica-mente, produtores de línguas, de ferramentas e, mais impor-tante, de instituições. E, em última instância, o que parece mais interessante em toda essa nossa produção são as realida-des abstratas. Nós somos seres produtores de abstrações, de entidades nem físicas, nem mentais. É por meio de nossa pro-dução de realidades abstratas que melhor lidamos com o mundo a nossa volta. A comunicação verbal entre nós por meio de uma língua natural é o primeiro domínio de realida-

Page 191: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

190

des abstratas que criamos e que modifica radicalmente a forma como vivemos. Ela permite a colaboração eficiente e a estrutu-ração dos grupos humanos, o surgimento de outras realidades abstratas que passam a ser também fundamentais em nossa maneira de ser: as instituições. A linguagem abre para nós um espaço linguístico, que é a primeira região de um imenso es-paço cultural que construímos e no qual vivemos. E isso é tão marcante na espécie humana que a natureza bruta passa a ser para nós um mero acessório, um repositório de recursos para perpetuarmos nossa existência no planeta. Para repetirmos a fórmula de Mead, a linguagem faz emergir para nós o campo da mente no qual se desenrola a aventura humana, o mundo que realmente exploramos. E esse mundo é tão variado, tão cheio de regiões diferentes e surpreendentes, que não vemos mesmo como concordar com aqueles estudiosos extraterres-tres, pois cada um de nós se vê como um descobridor do que há nesse mundo. Logo, ele não pode estar dentro de nós. Contudo, o mundo que há dentro de nossos corpos, em nossos cérebros, não é menos rico e surpreendente. E para o entendimento desse mundo interno — como a fonte de toda cultura — a filosofia da mente tradicional se dedicou, assim como a psicologia tradicional e a ciência cognitiva padrão. Mas ao se restringirem ao interior das fronteiras da pele, essas abordagens mantiveram a separação radical entre natureza e sociedade. Para elas a mente e a natureza humana estão dentro de nós — e a cultura é apenas um subproduto, um bônus evo-lutivo, uma coleção de epifenômenos, de realidades que não mudam nossa natureza, nem, particularmente, nossa mente. Contudo, se não separarmos natureza e cultura, invertendo a ordem tradicional de investigação e começando a procurar a compreender os seres humanos pelo exame das realidades abstratas que eles produzem, perceberemos que a mente, a identidade pessoal e a própria consciência são realidades que emergem no espaço cultural. A lamentável constatação à qual nos levam os casos de crianças ferais é que, retirando o indivíduo da cultura humana, o impedimos de emergir como uma pessoa completa, com ple-nas capacidades cognitivas, racionais, morais etc. Se isso ocor-re, o indivíduo perde a oportunidade de adquirir uma mente e,

Page 192: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

191

nos casos mais radicais, provavelmente, de adquirir mesmo a própria consciência reflexiva e de ser consciente de ser consci-ente, de se ver como um eu. Mas o caso dos psicopatas nos mostra, por outro lado, que para tudo isso é preciso também ter o aparato neurofisiológico intacto, isto é, ter um cérebro funcionalmente perfeito ou normal. Mas de onde pode provir esse conceito de normalidade mental senão do que socialmen-te consideramos comum? Suponhamos que houvesse uma po-pulação humana (de preferência, em outro planeta) constituí-da inteiramente de psicopatas no grau máximo da síndrome. Essa conformação mental é que teria de ser considerada nor-mal, obviamente. Contudo, dando asas novamente à imaginação filosófi-ca, provavelmente, essa comunidade humana totalmente psi-copata não sobreviveria a si mesma. Não é provável que esses indivíduos chegassem a um mínimo de colaboração de modo a sustentar a convivência e sua sobrevivência. O mais provável é que esse grupo vivesse daquela forma imaginada por Hobbes no que ele chamou de estado de natureza, num estado de constante guerra de todos contra todos. A consequência que esse filósofo via nessa forma de vida era ou sua extinção mais cedo ou mais tarde, ou, se se conservasse, uma existência mi-serável tanto física quanto psicologicamente.81 Diante dessa dificuldade teórica de determinar o que é normal para os seres humanos, o que é natural neles, não há outra saída diferente de tomarmos a produção de cultura — e com prováveis características universais — como aquilo que é mais caracteristicamente humano. Em suma, não há humanos sem cultura, nem cultura que não seja uma coleção de objetos abstratos, uma coleção de partes do mundo que ganham signi-ficação. Assim, toda cultura deriva fundamentalmente da di-mensão semântica da linguagem, toda cultura decorre de fa-larmos alguma língua. Mas falar uma língua já é estar dentro do espaço cultural. Logo, mesmo que pragmaticamente e pro tempore, não temos como não considerar a emergência do

81 Cf. HOBBES, 1994 [1651].

Page 193: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

192

espaço cultural como uma decorrência direta da natureza hu-mana. Explorando a metáfora geográfica, podemos dizer que, no espaço cultural, as vias de acesso de uma região a outra são aquilo que constitui o espaço linguístico. A linguagem é nossa forma de lidar com os objetos culturais em geral. Assim, a lin-guagem faz com que, necessariamente, nossa mente seja uma mente estendida. Ela se estende entre o interior neurofisioló-gico de nossos corpos e o exterior cultural de nossa sociedade. Mas ela se estende entre esses dois polos, e não do primeiro para o segundo. A cultura não emerge da mente. A cultura e a mente emergem conjuntamente. Sua relação é aquela de mú-tua dependência de que falamos no capítulo 8. Uma coisa é condição de base da outra, e vice-versa. Isso é possível graças ao fato de que nem a mente, nem a cultura, são realidades es-tanques. Elas não são coisas acabadas. Elas são, mais propri-amente falando, processos. Desse ponto de vista, a mente é a classe de processos que envolvem ao mesmo tempo nosso aparato neurofisiológico e a cultura. Ela emerge dessas condições de base mas, ao mesmo tempo, é condição de base para a manutenção tanto da cultura quanto das condições de desenvolvimento e funciona-mento normal do aparato neurofisiológico interno. Interna-mente, a emergência da mente humana se mostra como cons-ciência reflexiva; externamente, ela emerge como cultura, co-mo o espaço cultural e todos os objetos abstratos que ele com-preende. Por isso a mente individual tem origem também soci-al, e não apenas neurofisiológica. E o que deixa isso patente é a existência da consciência moral. Muitos filósofos afirmam que a matemática é o maior grau de abstração de que os seres humanos são capazes. Mas, de fato, a nosso ver, esse máximo de abstração até hoje possí-vel é a moralidade. A matemática é essencialmente ordem; a moralidade é controle e, mais especificamente, autocontrole. É o que põe ordem tanto no mundo externo da cultura quanto no mundo interno do indivíduo. A moralidade é a maior realiza-ção cultural até hoje dos seres humanos. E muitos filósofos

Page 194: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

193

percebem isso, aqueles que dizem que não se pode inferir valo-res de fatos.82 Em outras palavras, a noção de valor é comple-tamente abstrata, e a moralidade está fundamentada nos valo-res de maior grau de abstração. Encarar um objeto como algo de valor (ou prático, ou estético, ou moral etc.) é um grande esforço cognitivo de abs-tração. Não nos damos conta disso porque estamos acostuma-dos a fazê-lo diariamente. Mas isso não quer dizer que esse não seja um modo de vida particularmente sofisticado, dada a ordem das outras coisas no mundo. A valoração é um processo semântico; ela consiste em atribuir a determinado objeto uma relação com outro de um modo particular, isto é, do ponto de vista de um sujeito. Ou seja, toda valoração é perspectivista. De fato, toda a cultura humana é um mundo de produtos de processos de valoração; toda cultura é a consolidação — a exte-riorização no ambiente natural e social — de uma perspectiva. Isso vale para as diversas perspectivas particulares, das dife-rentes culturas humanas; mas vale também para a perspectiva humana em geral, já que não há grupo humano sem valores. O espaço cultural é um mundo perspectivista.83 Ele só existe, obviamente, do ponto de vista dos seres humanos que, por meio de uma língua, são capazes de viver nesse espaço. Viver nesse espaço cultural significa também explorá-lo, fazer descobertas e aprender a lidar com os objetos aí existentes. Assim como é preciso aprender a lidar com os objetos naturais, é preciso aprender a lidar com os objetos culturais. Assim co-

82 Hume e Kant, entre tanto outros, são filósofos que sustentam esse ponto de vista. Cf., por exemplo, HUME, 1996 [1777], e os textos da filosofia prática de Kant (1996). 83 O perspectivismo, como uma forma de constatar aquilo que há de não eliminável em nossa forma humana de encarar o mundo, é de-fendido, por exemplo, por GIERE, 2006, em relação a objetos cultu-rais específicos, como teorias e modelos científicos. A noção de auto-nomia dos objetos culturais, associada a esse perspectivismo, e que comentaremos em seguida, é devida a Popper (1972; 1999). Cf. tam-bém a esse respeito, DUTRA, 2013a, cap. 8, que estende o perspecti-vismo a todos os objetos culturais tal como caracterizados por Pop-per em sua teoria do Mundo 3.

Page 195: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

194

mo os objetos naturais são autônomos, ou seja, funcionam não segundo nossa vontade, do mesmo modo, os objetos culturais são autônomos. Há uma ordem do mundo cultural que precisa ser respeitada se quisermos lidar com ele, assim como há uma ordem do mundo natural que acarreta a mesma consequência para nós. Nosso mundo cultural, se lidamos adequadamente com ele, é a melhor forma de lidarmos com o mundo natural. Por isso nossa mente individual se estende naturalmente a esse mundo cultural. Ela se estende a ele no sentido de que está também aí e não apenas dentro de nossas cabeças. Contudo, como a mente é ela mesma uma realidade abstrata, ela não está em parte alguma, embora se manifeste em diversas partes do mundo cultural e do mundo psicológico interno de cada um de nós. Nós vivenciamos nossa mente de diversas formas. Uma delas é nossa participação na cultura, outra é nossa identidade pessoal. A mais importante é quando, pela moralidade, constatamos a indissociabilidade entre o eu e a sociedade.84 A mente humana é nossa forma de integrar o espaço psicológico individual (ou neurofisiológico, se quiser-mos) com o espaço cultural. Por isso podemos dizer que a mente é um sistema que emerge dessas duas ordens de condi-ções de base. E um sistema é sempre uma realidade abstrata, pois um sistema são basicamente as relações entre seus ele-mentos. Por isso podemos contar a mente humana dentre as realidades abstratas que emergem em sociedade. A mente humana é também uma realidade de natureza perspectivista, isto é, sua existência só pode ser constatada por aqueles indivíduos humanos dotados de consciência reflexiva. Mas os que a compreendem mais detalhada e profundamente são aqueles dotados de consciência moral. A mente humana produzida normalmente em sociedade — aquela que gostamos de considerar a mente normal — é aquela realidade abstrata

84 Dois autores particularmente inspiram essa postura, a saber: Ge-orge Mead (1972 [1934]) e Émile Durkheim (1895 e 1924). Para am-bos o eu tem origem social e é impossível separar radicalmente o domínio da psicologia individual daquele da psicologia social ou coletiva.

Page 196: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

195

que faz com que seus portadores, os seres humanos comuns, os indivíduos com discernimento, sejam capazes de compre-ender os valores morais. Esses indivíduos, as pessoas comuns, são aqueles que denominamos também os autômatos geni-ais.85 O discernimento é essa capacidade mental que torna os indivíduos humanos pessoas plenas, agentes racionais e mo-rais. Nesse sentido do termo, o discernimento é a capacidade de, com base em determinados valores, adaptar meios a fins, controlar o comportamento para o melhor resultado que pare-ce possível em certa circunstância. O discernimento não é, portanto, omnisciência, mas a capacidade de escolher mesmo com informação limitada. Ele exige, portanto, não apenas cog-nição, mas responsabilidade. Exige assumir riscos calculados. Por isso os computadores que já existem não são de forma alguma comparáveis à mente humana. Pois essa última é dotada de discernimento. Os seres humanos, os autômatos geniais, mesmo seguindo regras, preceitos práticos de diversos tipos, assumem riscos. Eles não param onde as máquinas pa-ram. E por isso eles são capazes de criar realidades novas em qualquer parte. A criatividade provém do discernimento, de escolher com base em informação limitada e agir correndo riscos. A racionalidade humana é tipicamente aquela que Her-bert Simon denominou racionalidade restrita. Essa racionali-dade humana é a racionalidade que não pareceria possível, já que, à primeira vista, imaginamos que uma decisão só seria racional se fosse tomada com toda informação possível. Mas é essa racionalidade ilimitada que é impossível, pois sempre agimos em uma situação dada e com informação limitada. Voltemos àquela fantasia filosófica de seres extraterres-tres a nos estudarem. A imaginação popular sempre concebe esses possíveis seres como mais inteligentes que nós, com ca-pacidades perceptivas mais amplas e raciocínio mais penetran-te, seres capazes de observar onde não observamos e de pensar o que não conseguimos pensar. Mas mesmo sendo capazes de

85 Cf. DUTRA, 2017, especialmente, os capítulos 4 a 6. E sobre a no-ção de racionalidade restrita (bounded rationality), comentada logo a seguir, cf. SIMON, 1983, e 1996 [1969].

Page 197: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

196

viagens intergalácticas rápidas e de nos observar (quem sabe sem que nos demos conta disso), pode ocorrer que esses seres não tenham capacidades perceptivas e analíticas superiores às nossas, mas apenas capacidades alternativas, diferentes das nossas. Como no caso das diversas comunidades cromáticas a que já nos referimos no capítulo 8, grupos correspondentes aos diversos daltonismos e à visão comum humana, suponha-mos que nossa comunidade de tricromatas e aquela dos extra-terrestres sejam mutuamente excludentes, isto é, que eles ve-jam cores que não podemos ver e que vejamos cores que eles não podem ver. E suponhamos que seja assim para todos os outros sentidos e, inclusive, que eles tenham algum sentido que não temos e que tenhamos algum sentido que eles não têm. Dessa forma, nós e esses supostos extraterrestres forma-ríamos duas comunidades perceptivas completamente inconci-liáveis. E suponhamos que o mesmo ocorra com as formas de raciocínio de nossa comunidade humana e aquelas dos extra-terrestres, de tal modo que tenhamos duas comunidades epis-têmicas ou cognitivas completamente díspares, incomensurá-veis mesmo. A imaginação filosófica pode nos conceder tudo isso. Ora, a consequência nesse caso é que esses seres supos-tamente mais inteligentes que nós apenas são inteligentes de um outro modo, diferente do nosso. E por causa disso, supo-nhamos que eles não sejam capazes de observar coisas simples para nós, como, por exemplo, uma conversa entre dois seres humanos e aquilo de que eles falam. Esses nossos observado-res serão incapazes de perceber a existência da cultura huma-na. Eles poderão talvez constatar nossos movimentos, diga-mos, mas não terão como compreender seu significado social. Eles verão dois seres humanos movendo suas bocas, mas não saberão que ali se dá um evento de comunicação. Eles poderão supor que nossos eventos de comunicação se dão de outras maneiras (talvez por telepatia, já que estamos imaginando coisas bizarras). O leitor mais arguto poderá a essa altura se perguntar então se não é exatamente isso o que acontece quando obser-vamos as sociedades de abelhas e de formigas. E não há como darmos uma resposta taxativa para isso. A ciência do futuro

Page 198: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

197

poderá revelar coisas muito surpreendentes sobre as outras espécies animais e suas mentes, assim como já fez no passado e tem feito hoje. Mas tanto esse caso quanto aquele dos possí-veis extraterrestes (que, mesmo sendo mais inteligentes que nós, porque já fazem viagens intergalácticas, são incapazes de perceberem nossa cultura humana) mostram que para conhe-cer uma cultura é preciso entrar em sua perspectiva. Isso é algo de que, metodologicamente, a antropologia e a linguística empírica têm plena consciência. Para sabermos como é deter-minada cultura de um grupo humano até então desconhecido, temos de aprender sua língua e conviver suficientemente com esse grupo. Temos que procurar nos colocarmos em sua pers-pectiva, que aprender a ver o mundo como eles veem. Contudo, naquele caso imaginário dos extraterrestres, a disparidade entre sua comunidade epistêmica e a nossa seria tal que eles não poderiam se colocar em nossa perspectiva, nem nós na deles. Cada grupo não poderia aprender a forma de comunicação do outro.86 E, logo, um grupo não poderia conhecer a cultura do outro. Não poderia saber como é a men-te do outro. Isso quer dizer que a mente humana é uma reali-dade perspectivista que só pode ser compreendida por indiví-duos que dela participem — ou por indivíduos que tenham alguma capacidade cognitiva de participar dela pelo menos em parte. Mais que isso, a mente humana é algo cuja existência só pode ser constatada por quem dela participa. E, para partici-par da mente humana, é preciso não apenas ter o aparato neu-rofisiológico desenvolvido e plenamente funcional, mas tam-bém viver no espaço cultural que dele e da sociedade humana emerge.

86 Noam Chomsky, cuja teoria cognitiva inatista sustenta que a lin-guagem humana é exclusivamente humana, derivando de uma gra-mática universal e profunda pertencente à espécie, que só podemos aprender línguas humanas e que podemos aprender qualquer língua humana, toma a sério uma hipótese como essa e suas consequências epistêmicas. Cf. dentre suas muitas obras, por exemplo, CHOMSKY, 2009 [1966]; 1972.

Page 199: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

198

A consequência filosófica de maior alcance que isso acarreta é que, afinal, a mente humana é uma realidade abstra-ta. Ela é um emergente cujas condições de base são ao mesmo tempo neurofisiológicas e sociais. As já mencionadas deficiên-cias linguísticas e cognitivas das crianças ferais ilustram isso, embora negativamente. Positivamente, é mais difícil constatar isso, pois o espaço cultural é onde vivemos normalmente, é o campo da mente, é onde ela se dá. A mente humana tal como a descrevemos aqui é um sistema emergente e perspectivista. Por isso, propriamente falando, ela não tem um lugar entre a natureza e a sociedade, como aquilo que faz a ponte entre uma coisa e outra, tal como a filosofia tradicional a concebeu. Ela não pode estar em parte alguma porque é um sistema ou, dito de outro modo, uma sé-rie de processos ao mesmo tempo neurofisiológicos e sociais. O indivíduo humano ainda é, obviamente, particularmente algo peculiar, pois, no tipo de sociedade em que vivemos, os indiví-duos humanos biologicamente falando adquirem mentes indi-viduais. Por ser uma realidade abstrata, a mente humana não deixa de ser individual e relativa a cada um de nós. A pessoa humana, que tem por substratos o corpo hu-mano e os papeis sociais que ela desempenha, é a realidade mais concreta com a qual podemos correlacionar sua mente como uma realidade mais abstrata. Podemos caracterizar uma pessoa como todo seu repertório de ação, o que deve também incluir todo seu mundo privado, inclusive suas emoções e suas memórias. Tudo isso é mais concreto do que sua mente, embo-ra ainda seja uma espécie de processo que perdura durante toda sua vida. É também um tipo de sistema. Quando falamos de sua mente individual, estamos falando de forma mais abs-trata dessa mesma realidade pessoal. E essa realidade pessoal é uma espécie e síntese de fatores neurofisiológicos e sociais. Ou, melhor dizendo, ela é algo que emerge dessas duas ordens de fatores. Logo, se tivermos que localizar a pessoa e sua men-te, devemos dizer que, no espaço cultural, ela está no foco, no centro geométrico, metaforicamente falando, de tudo o que o indivíduo humano faz, de tudo o que ele vive. O que há de espetacular em nós é podermos contem-plar tudo isso, é podermos presenciar o que acontece conosco

Page 200: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

199

quando nos movemos no espaço cultural — é, enfim, a consci-ência reflexiva. Mas é mais espetacular ainda o fato de viver-mos em função de valores — e de valores tão abstratos quanto os morais. A satisfação de nossas necessidades morais é algo difícil de entender, difícil mesmo de reconhecer como necessi-dades. Pois, como somos animais, as primeiras necessidades que temos são aquelas que garantem a sobrevivência. Mas a vida no espaço cultural cria necessidades que não são menos básicas para nós. Por exemplo, fazer o que é certo — por mais difícil que seja saber o que é certo — é tão imperativo para nós quanto satisfazer nossas necessidades animais. Uma vez den-tro da cultura, não há mais como sair dela. A cultura nos mar-ca, nos modifica de tal sorte que passamos a ter necessidades incontornáveis, assim como aquelas que nossa natureza ani-mal nos impõe. Mas, no fundo, é a mesma natureza humana que nos impõe essas necessidades culturais. Separar a cultura do mentalismo humano é o mesmo que separar as abelhas do mel, da cera e da colmeia. Para as outras espécies, essas coisas não são valores; mas para as abelhas, elas são sua vida. Igual-mente, o espaço cultural é onde se desenrola a vida humana. A maneira pela qual se constitui uma pessoa é aquela pela qual os valores, padrões e modelos socialmente comparti-lhados ganham versões pessoais. Por exemplo, a adaptação ao comportamento individual de determinadas normais sociais é um desses fenômenos que tornam aquilo que Durkheim de-nominou representações coletivas em representações indivi-duais. Na sociedade há basicamente três tipos de regras, sejam elas expressas em máximas morais, em normas de conduta ou em leis no sentido jurídico do termo. Há regras de proibição (como: não roubar, não matar); há regras de permissão (como: ser simpático, fazer amigos etc. sempre que possível); e há regras de obrigação (como: cuidar de crianças, idosos, indefe-sos e inválidos). As regras de proibição exigem muito pouca adaptação pessoal ou, de fato, nenhuma. Não há o que interpretar numa regra como aquela de que não se deve roubar. Todos os que compreendem o sentido o verbo “roubar” têm clareza dos efei-tos de seguir essa regra, em quaisquer circunstâncias. As re-gras de permissão e de obrigação, contudo, sempre requerem

Page 201: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

200

interpretação a circunstâncias concretas e a pessoas. A regra que sugere que devemos ser simpáticos com as outras pessoas pode estar sendo seguida por alguém que simplesmente evita os outros, pois ele pode interpretar que esse é o melhor jeito de não incomodar, e não incomodar é ser simpático. É claro que essa é uma interpretação bizarra da regra, uma interpretação um tanto idiossincrática, mas ela é possível. O mesmo vale para as regras de obrigação. Por exemplo, se é uma obrigação nossa cuidar de inválidos, precisamos de um critério claro para decidirmos quando determinado indivíduo está inválido; e isso pode variar segundo as diferentes pessoas e situações, sobre-tudo se nos referimos não à invalidez física, mas mental. Seguir modelos de conduta é outro caso que nos obriga a fazer adaptações pessoais dos modelos socialmente compar-tilhados. Por exemplo, se um indivíduo que considera seu pai um bom pai quiser imitar seu comportamento a esse respeito, seguir seu modelo, ao se tornar pai, esse indivíduo vai ter de fazer adaptações, pois as pessoas e os contextos nos quais elas vivem serão diferentes. Ser um bom pai para o indivíduo que vive em certa época, em certas circunstâncias sociais, pode ser muito diferente de ser um bom pai para outro indivíduo que vive em outra época e em circunstâncias sociais diferentes. E ambos estarão seguindo o mesmo modelo socialmente com-partilhado. Eles apresentarão versões mais concretas do mes-mo modelo ideal e mais abstrato. Nossas mentes e as pessoas que somos se moldam a partir desses padrões sociais. A mesma sociedade que nos ofe-rece os modelos, valores e normas a serem seguidos nos dá os meios para os assimilarmos, para produzirmos nossas versões individuais deles. Isso exige discernimento e o uso daquela racionalidade restrita ou limitada, mas tal discernimento é algo que a própria sociedade também nos passa; ela nos ajuda a aprender a alcançá-lo. A sociedade nos conduz a construir-mos as pessoas que somos e as mentes que temos. Essa transformação de modelos sociais em modelos pessoais é o processo inverso do que ocorre em determinadas atividades sociais que criam modelos socialmente comparti-lhados. Uma dessas atividades é o teatro, contexto no qual partimos de situações ordinárias, retiradas da vida comum, e

Page 202: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

201

elaboramos situações típicas, idealizadas, mais abstratas. Não é de admirar, portanto, que essa forma de arte seja uma das atividades humanas mais antigas de transmitir padrões soci-ais. Mas ela é também uma forma pela qual podemos confron-tar nossos modelos pessoais com certos modelos sociais. E por isso ela nos ajuda a refletir, a nos espelharmos e a sermos críti-cos sobre nós mesmos. Ela também nos ajuda a construir o eu e a reformá-lo. A filosofia da mente humana tem de ser necessaria-mente, portanto, uma filosofia social também, uma filosofia da cultura humana. Ela não pode ser uma mera aplicação do co-nhecimento produzido pela neurofisiologia, como querem os fisicalistas mais radicais, ou pela psicologia individual. Ela tem de ser uma psicologia filosófica de caráter social.

* Questões para revisão

1. Que diferença fundamental há entre as sociedades animais, como de abelhas e formigas, e a sociedade humana?

2. Caracterize os espaços linguístico e cultural, relacio-nando-os.

3. Por que podemos dizer que cultura e natureza não se separam no caso dos seres humanos?

4. Por que a moralidade é possivelmente o grau máximo de abstração que os seres humanos atingem.

5. Caracterize as noções de mente e pessoa humanas, re-lacionando-as.

Leituras adicionais recomendadas O capítulo 4 do livro de Karl Popper, Conhecimento objetivo (1999), apresenta uma teoria do caráter autônomo dos objetos culturais que é similar ao tipo de perspectivismo do espaço cultural que discutimos aqui. Também se pode consultar o capítulo 6 de nosso livro Autômatos geniais (DUTRA, 2017).

Page 203: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

202

Sobre a noção de pessoa e sua relação com a noção de mente humana, do ponto de vista do perspectivismo discutido aqui, pode-se consultar o capítulo 5 desse mesmo livro (DUTRA, 2017). Atividade complementar Comente a ideia de que mente humana é uma realidade abs-trata que emerge de condições tanto neurofisiológicas quanto sociais e a relacione com a noção de pessoa que, em compara-ção com a mente, seria uma realidade mais concreta.

§

Page 204: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

203

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBOTT, Edwin A. Flatland. A Romance of Many Dimen-sions. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1991 [1884].

ALEXANDER, Samuel. Space, Time, and Deity. 2 volumes. Nova York: The Humanities Press, 1927 [1920].

ANDERSEN, Peter B.; EMMECHE, Claus; FINNEMANN, Niels O.; CHRISTIANSEN, Peder V. (org.), Downward Causa-tion. Mind, Bodies, and Matter. Aarhus (Dinamarca): Aarhus University Press, 2000.

ARISTÓTELES. Generation of Animals. (The Complete Works of Aristotle. Vol. 1). Princeton, N.J., e Oxford: Princeton Uni-versity Press, 1984.

ARMSTRONG, David M. A Materialist Theory of Mind. Londres: Routledge, 1993 [1968].

AROLES, Serge. L’Enigme des enfants-loups. Paris: Pub-libook, 2007.

BABIAK, Paul; HARE, Robert D. Snakes in Suits. When Psy-chopaths Go to Work. Nova York: Harper Collins, 2007.

BEDAU, Marc A.; HUMPHREYS, Paul (orgs.). Emergence. Contemporary Readings in Philosophy of Science. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 2008 [1992].

BERGSON, Henri. L’évolution créatrice. Paris: Presses Universitaires de France, 1959 [1907].

BERNARD, Claude. Introduction à l’étude de la médecine expérimentale. Paris: Flammarion, 1984 [1865].

Page 205: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

204

BRENTANO, Franz. Psychology from an Empirical Stand-point. Londres e Nova York: Routledge, 2009 [1874].

BROAD, Charlie D. The Mind and Its Place in Nature. Londres e Nova York: Kegan Paul, Trench, Trubner & Co. Ltd./ Har-court, Brace & Co. Inc., 1925.

CANDLAND, Douglas K. Feral Children and Clever Animals. Reflections on Human Nature. Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1993.

CARNAP, Rudolf. The Unity of Science. Londres: Kegan Paul, 1934.

CARNAP, Rudolf. The Logical Structure of the World. Berke-ley e Los Angeles: University of California Press, 1969.

CARNAP, Rudolf. Pseudoproblemas na filosofia. Coleção Pen-sadores, vol. Schlick/Carnap. São Paulo: Abril, 1980.

CHALMERS, David J. The Conscious Mind. In Search of a Fundamental Theory. Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1996.

CHALMERS, David J. The Character of Consciousness. Nova York e Oxford: Oxford University Press, 2010.

CHOMSKY, Noam. Cartesian Linguistics. A Chapter in the History of Rationalist Thought. Cambridge: Cambridge Uni-versity Press, 2009 [1966].

CHOMSKY, Noam. Linguística cartesiana. Petrópolis: Vozes, 1972.

CHURCHLAND, Patricia. Neurophilosophy. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1989.

CHURCHLAND, Paul M. Matter and Consciousness. A Con-temporary Introduction to the Philosophy of Mind. Cam-bridge, Mass.: The MIT Press, 1992 [1984].

Page 206: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

205

CHURCHLAND, Paul M. Matéria e consciência. Uma introdu-ção contemporânea à filosofia da mente. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

CHURCHLAND, Paul. The Engine of Reason, the Self of the Soul. A Philosophical Journey into the Brain. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1996.

CLARK, Andy. Being There. Putting Brain, Body, and World Together Again. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 1998.

CLARK, Andy. Supersizing the Mind. Embodiment, Action, and Cognitive Extension. Oxford: Oxford University Press, 2008.

CLECKLEY, Hervey. The Mask of Sanity. Augusta, Ga.: Emily S. Cleckley, 1988.

COOKE, David J.; FORTH, Adelle E.; HARE, Robert D. (orgs.). Psychopathy: Theory, Research and Implications for Society. Berlim e Londres: Springer-Science+Business Media, 1998.

CURTISS, Susan. Genie: A Psycholinguistic Study of a Mod-ern-Day “Wild Child.” Salt Lake City: Academic Press, 1977.

DAMÁSIO, Antônio R. Descartes’ Error. Emotion, Reason, and the Human Brain. Nova York: Avon Books, 1994.

DAMÁSIO, Antônio R. O erro de Descartes. Emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

DARWIN, Charles. The Descent of Man and the Selection in Relation to Sex. Londres: Wordsworth, 2013 [1871].

DAVIDSON, Donald. Essays on Actions and Events. Oxford: Clarendon Press: 1980.

Page 207: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

206

DEACON, Terrence. The Symbolic Species. The Coevolution of Language and Brain. Nova York e Londres: W. W. Norton, 1997.

DEACON, Terrence. Incomplete Nature. How Mind Emerged form Matter. Nova York e Londres: W. W. Norton, 2012.

DENNETT, Daniel C. Brainstorms. Philosophical Essays on Mind and Psychology. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 1981.

DENNETT, Daniel C. Brainstorms. Ensaios filosóficos sobre a mente e a psicologia. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

DENNETT, Daniel C. The Intentional Stance. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 1987.

DENNETT, Daniel C. Darwin’s Dangerous Idea. Evolution and the Meaning of Life. Nova York: Simon & Schuster, 1995.

DENNETT, Daniel C. Kinds of Minds. Toward an Understand-ing of Consciousness. Nova York: Basic Books, 1996.

DENNETT, Daniel C. Tipos de mentes. Rumo a uma compre-ensão da consciência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DESCARTES, René. Oeuvres et lettres. Paris: Gallimard, 1953.

DURKHEIM, Émile. Les règles de la méthode sociologique. Paris: Félix Alcan Éditeur, 1895.

DURKHEIM, Émile. Sociologie et philosophie. Paris: Félix Alcan, 1924.

DUTRA, Luiz H. de A. Pragmática de modelos. Natureza, es-trutura e uso dos modelos científicos. São Paulo, Edições Lo-yola, 2013a.

Page 208: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

207

DUTRA, Luiz H. de A. Emergência e realismo perspectivista. Scientiae Studia (São Paulo), vol. 11, n. 3, p. 637–675, 2013b.

DUTRA, Luiz H. de A. Emergência sem níveis. Scientiae Stu-dia (São Paulo), vol. 13, n. 4, p. 841–65, 2015.

DUTRA, Luiz H. de A. Autômatos geniais. A mente como sis-tema emergente e perspectivista. Brasília: Editora da UnB, 2017 (no prelo).

EDELMAN, Gerald M. The Remembered Present. A Biological Theory of Consciouness. Nova York: Basic Books, 1990.

EDELMAN, Gerald M. Wider than the Sky. The Phenomenal Gift of Consciouness. New Haven e Londres: Yale University Press, 2004.

EMMECHE, Claus; KØPPE, Simo; STJERNFELT, Frederik. Levels, Emergence, and Three Versions of Downward Causa-tion. In ANDERSEN et al., p. 13–34, 2000.

FODOR, Jerry A. The Language of Thought. Nova York: Thomas Y. Crowell Co. Inc., 1975.

FREUD, Sigmund. The Interpretation of Dreams. Nova York: Basic Books, 2010 [1955/1899].

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Imago, 2006.

GARDNER, Howard. The Mind’s New Science. A History of the Cognitive Revolution. Nova York: Basic Books, 1985.

GARDNER, Howard. A nova ciência da mente. Uma história da revolução cognitiva. São Paulo: Edusp, 1995.

GLENN, Andrea L.; RAINE, Adrian. Psychopathy. An Intro-duction to Biological Findings and Their Implications. Nova York e Londres: New York University Press, 2014.

Page 209: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

208

GIERE, Ronald N. Scientific Perspectivism. Chicago: The Uni-versity of Chicago Press, 2006.

HAMILTON, William. Lectures on Metaphysics and Logic. (Vol. I. Metaphysics.) Boston: Gould and Lincoln, 1859.

HARE, Robert D. Without Conscience. The Disturbing World of Psychopaths among Us. Nova York e Londres: The Guilford Press, 1995.

HARE, Robert D. Sem consciência. O mundo perturbador dos psicopatas que vivem entre nós. Porto Alegre: Artmed, 2013.

HARNISH, Robert M. Minds, Brains, Computers. An Histori-cal Introduction to the Foundations of Cognitive Science. Ox-ford: Wylie-Blackwell, 2002.

HASSELMO, Michael E. How We Remember. Brain Mecha-nisms of Episodic Memory. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 2012.

HOBBES, Thomas. Leviathan. Londres: Everyman, 1994 [1651].

HUME, David. Inquiries concerning Human Understanding and concerning the Principles of Morals. (Ed. Selby-Bigge.). Oxford: Clarendon Press, 1996 [1777].

HUTCHINS, Edwin. Cognition in the Wild. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 1996.

ITARD, Jean M. G. De l’éducation d’un homme sauvage ou des premiers développemens physiques et moraux du jeune sauvage de l’Aveyron. Paris: Goujon Fils, 1801.

Page 210: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

209

ITARD, Jean M. G. Rapport fait à son excellence le ministre de l’intérieur sur les nouveaux développemens et l’état actuel du sauvage de l’Aveyron. Paris: Imprimerie Impériale, 1807.

ITARD, Jean M. G. Rapports et mémoires sur le sauvage de l’Aveyron. L’idiotie et la surdi-mutité. Paris: Progrès Médical/Félix Alcan, 1894.

KANT, Immanuel. Practical Philosophy. Cambridge: Cam-bridge University Press, 1996.

KANT, Immanuel. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cam-bridge University Press, 2006 [1781 (A)/1787 (B)].

KIM, Jaegwon. Supervenience and Mind. Cambridge: Cam-bridge University Press, 1993.

KIM, Jaegwon. Philosophy of Mind. Boulder, Col.: Westview Press, 1996.

KIM, Jaegwon. Mind in a Physical World. An Essay on the Mind-Body Problem and Mental Causation. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1998.

KIM, Jaegwon. Making Sense of Downward Causation. In ANDERSEN et al., p. 305–321, 2000.

KIM, Jaegwon. Essays in the Metaphysics of Mind. Oxford: Oxford University Press, 2010.

KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University of Chicago Press, 1970.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

LA METTRIE, Julien Offray de. L’homme machine. Paris: Frédéric Henry, 1865 [1748].

Page 211: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

210

LEIBNIZ, Georg W. Nouveau système de la nature et de la communication des substances, aussi bien que de l’union qu’il y a entre l’âme et le corps. Journal des Savants, n. 26, de 4 de julho, p. 301–306, 1695.

LEIBNIZ, Georg W. La Monadologie. Paris: Victor Lecoffre, 1990 [1714].

LEWES, George H. Problems of Life and Mind (The Founda-tions of a Creed, vol. I). Boston e Nova York: Houghton, Mif-flin and Co., 1875a.

LEWES, George H. Problems of Life and Mind (The Founda-tions of a Creed, vol. II). Boston: James R. Osgood and Co., 1875b.

LEWES, George H. Problems of Life and Mind (Third series, Problem the First: The Study of Psychology, its Object, Scope, and Method). Boston: Houghton, Osgood and Co., 1879a.

LEWES, George H. Problems of Life and Mind (Third series, continued). Londres: Trübner & Co., 1879b.

LEWES, George H. The Physical Basis of Mind (Second series of Problems of Life and Mind). Boston e Nova York: Hough-ton, Mifflin and Co., 1891.

MARTIN, Jack; SUGARMAN, Jeff; SLANEY, Kathleen L. (orgs.). The Wiley Handbook of Theoretical and Philosophical Psychology. Methods, Approaches, and New Directions for Social Sciences. Malden, MA, e Oxford: Wiley Blackwell, 2015.

McLAUGHLIN, Peter. The Rise and Fall of British Emer-gentism. In BEDAU & HUMPHREYS, 2008a, p. 19–59.

McLAUGHLIN, Peter. Emergence and Supervenience. In BE-DAU & HUMPHREYS, 2008b, p. 81–97.

Page 212: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

211

MEAD, George H. Mind, Self, and Society. From the Stand-point of a Social Behaviorist. Chicago e Londres: The Universi-ty of Chicago Press, 1972 [1934].

MENARY, Richard (org.). The Extended Mind. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2010.

MORGAN, Conwy Lloyd. Emergent Evolution. The Gifford Lectures Delivered in the University of St. Andrews in the Year 1922. Londres: Willliams and Norgate, 1927 [1923].

NAGEL, Thomas. What Is It Like to Be a Bat? The Philosophi-cal Review, vol. 83, n. 4, p. 425–50, 1974.

NAGEL, Thomas. Como é ser um morcego. Cadernos de histó-ria e filosofia da ciência, série 3, vol. 15, n. 1, p. 245–262, 2005.

NEWTON, Michael S. The Child of Nature. The Feral Child and the State of Nature. (Tese de doutorado.) Londres: Uni-versity College, 1996.

NEWTON, Michael S. Savage Girls and Wild Boys: A History of Feral Children. Londres: Faber & Faber, 2002.

PATTEE, Howard H. Causation, Control, and The Evolution of Complexity. In ANDERSEN et al., p. 63–77, 2000.

PLACE, Ullin T. Identifying the Mind. Selected Papers of U. T. Place. Oxford: Oxford University Press, 2004.

POPPER, Karl R. Objective Knowledge. An Evolutionary Ap-proach. Oxford: Clarendon Press, 1972.

POPPER, Karl R. Conhecimento objetivo. Uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.

Page 213: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

212

PUTNAM, Hilary. Mind, Language and Reality. Philosophical Papers, vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975.

RACHLIN, Howard. Behavior and Mind. The Roots of Modern Psychology. Nova York e Oxford: Oxford University Press, 1984.

RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1979.

RYLE, Gilbert. The Concept of Mind. Chicago: The University of Chicago Press, 2002 [1949].

RYMER, Russ. Genie. A Scientific Tragedy. Nova York: Har-per, 1994.

SEARLE, John R. Minds, Brains, and Programs. Behavioral and Brain Sciences, vol. 3 (3): 417–457, 1980.

SEARLE, John R. Intentionality. An Essay in the Philosophy of Mind. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

SEARLE, John R. The Rediscovery of the Mind. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 1992.

SEARLE, John R. Mind, Language, and Society. Philosophy in the Real World. Nova York: Basic Books, 1999.

SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade. Filosofia no mundo real. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

SHAPIRO, Lawrence A. The Mind Incarnate. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 2004.

SHAPIRO, Lawrence A. Embodied Cognition. Londres e Nova York: Routledge, 2011.

SIMON, Herbert A. Reason in Human Affairs. Stanford: Stan-ford University Press, 1983.

Page 214: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

213

SIMON, Herbert A. The Sciences of the Artificial. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 1996 [1969].

SKINNER, Burrhus F. Science and Human Behavior. Nova York e Londres: The Free Press, 1965 [1953].

SKINNER, Burrhus F. About Behaviorism. Nova York: Vintage Books, 1976.

SKINNER, Burrhus F. Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cul-trix, 1995.

SKINNER, Burrhus F. Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins, 2003.

SPERRY, Roger W. A Modified Concept of Consciousness. Psycological Review, vol. 76, n. 6, 1969, p. 532–536.

SPERRY, Roger W. Mind-Brain Interaction: Mentalism, Yes; Dualism, No. Neuroscience, vol. 5, 1980, p. 195–206.

SPERRY, Roger W. Science and Moral Priority. Merging Mind, Brain, and Human Values. Nova York: Columbia Uni-versity Press, 1983.

SPINOZA, Baruch. The Ethics and Other Works (A Spinoza Reader). Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1994 [1677].

SWEATT, David. Mechanisms of Memory. Londres: Academic Press, 2010.

THELEN, Esther; SMITH, Linda B. A Dynamic Systems Ap-proach to the Development of Cognition and Action. Cam-bridge, Mass.: MIT Press, 1994.

Page 215: UFSC · 7 APRESENTAÇÃO O que alguém pensaria se lhe dissessem que sua mente não está dentro de sua cabeça? O que pensaria se lhe dissessem que ela não está nem mesmo em seu

214

VARELA, Francisco J.; THOMSON, Evan; ROSCH, Eleanor. The Embodied Mind. Cognitive Science and Human Experi-ence. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 1991.

VARELA, Francisco J.; THOMSON, Evan; ROSCH, Eleanor. A mente corpórea. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

WATSON, John B. Behaviorism. Nova York e Londres: W. W. Norton, 1970 [1930].

WEBER, Bruce H.; DEPEW, David J. (orgs.). Evolution and Learning. The Baldwin Effect Reconsidered. Cambridge, Mass., e Londres: The MIT Press, 2003.

§